1 OS JOGOS, AS BRINCADEIRAS E AS CRIANÇAS Elizabeth Lannes Bernardes Faculdade de Educação/UFU Doutoranda da Faculdade de Educação/UNICAMP [email protected] A finalidade desse estudo é compreender o significado dos jogos e das brincadeiras para as crianças. Para tanto, será necessário entrecruzar passado, presente e futuro numa perspectiva interdisciplinar e dialogar com a psicanálise, a sociologia, a antropologia, a literatura, psicologia, a filosofia, e a história. Para Sonia Kramer (1996) a infância é um campo de investigação teórico - metodológico de natureza interdisciplinar: Estudar a infância exige, como, vimos, consciência interdisciplinar, mas exige, também o entendimento que a interdisciplinaridade, longe de significar justaposição de perspectivas teóricas diversas, só pode se gerada se as ciências humanas e sociais se tornarem dialéticas, tomando o sujeito social – neste caso, a criança – no âmago da vida social e da pesquisa. (1996, p.28). A visibilidade das crianças nas investigações acadêmicas, nos meios de comunicação, nas políticas públicas demonstra a relevância social da infância nas décadas finais século XX e anos inicias do XXI (Sarmento & Pinto, 1997). Entretanto, essas visibilidades sobre a infância nem sempre existiram. A infância como construção social e histórica surge e desenvolve-se entre os séculos XVI e XVIII, como demonstra Philippe Ariès, em sua pesquisa pioneira, anunciada em 1960, A História social da criança e da família. Para esse autor, o mundo medieval ignorava a infância, porque a partir do momento em que a criança conseguia sobreviver sem os cuidados da mãe ou da ama, ela era integrada ao mundo dos adultos, com os quais aprendia a brincar, a jogar e a arte de um ofício. A sociedade medieval representava a crianças como adultos em miniatura. Nesta época, as atividades lúdicas dos adultos não apresentavam distinção em relação às desenvolvidas pela criança, compartilhavam dos mesmos jogos e brinquedos, inclusive, com a presença ativa dos pequenos nas festas tradicionais e sazonais, como o Natal, das quais participavam junto a comunidade, fato registrado no diário de Héroard, médico de Luis XIII, que aos três anos, “viu a acha de Natal ser acesa, e dançou e cantou pela chegada do Natal” (ARIÈS, p.97); na comemoração no dia de Reis, era uma criança que distribuía o bolo de Reis a todos os participantes e, segundo o médico do futuro rei da França , a 5 de janeiro de 1697, o infante Luis XIII , foi “Rei pela primeira vez”; na festa de São João, cabia às crianças pequenas acenderem a fogueira; na festa da Terça-feira Gorda , as crianças e a juventude traziam seus galos de briga. 2 Homens, mulheres e crianças brincavam de cabra-cega, guerra de bolas de neve, jogos de salão, como os de rima e de mímica, ouviam os contos de fantasmas, lobisomens e do Barba Azul, diante dos quais as crianças ficavam apavoradas. Assim, observa Ariès (1981): Numa tapeçaria do início do século XVI, alguns camponeses e fidalgos, estes últimos vestidos de pastores, brincam de uma espécie de cabra-cega: não aparecem crianças. Vários quadros holandeses da segunda metade do século XVII representam também pessoas brincando dessa espécie de cabra-cega. Num deles aparecem algumas crianças, mas elas estão misturadas com os adultos de todas as idades: uma mulher, com a cabeça escondida no avental, estende a mão aberta nas costas. Luiz XIII e sua mãe brincavam de esconde-esconde. Brincava-se de cabracega na casa de Grande Mademoiselle, no Hotel de Rambouillet. Uma gravura de Lepeautre mostra que os camponeses adultos também gostavam dessa brincadeira (p.50). Ao se comparar as imagens descritas por Philippe Ariès no jogo de cabra-cega com o quadro de Orlando Teruz, que retrata a mesma brincadeira nos anos iniciais de 1930, constata-se que na pintura do artista brasileiro aparecem somente meninas-adolescentes brincando de cabra-cega. Homens, mulheres e crianças não compartilham mais dos mesmos jogos e divertimentos, e a brincadeira de cabra-cega passa a ser um reduto do sexo feminino infanto-juvenil. Acompanhando os estudos históricos, observa-se que a diferença de gênero no lúdico é uma construção cultural que se consolida na sociedade capitalista,porque, em torno dos anos de 1600, (...) a boneca não se destinava apenas às meninas. Os meninos também brincavam com elas. Dentro dos limites da primeira infância, a discriminação moderna entre meninos e meninas era menos nítida: ambos os sexos usavam o mesmo traje, o mesmo vestido. (ARIÈS, ibid. p. 91-92). O historiador Michel Manson (2002) compartilha da mesma reflexão de Philippe Ariès (1981), apontando que Luis XIII brincava com bonecas e de fazer comidinhas com utensílios em miniatura, de prata, chumbo, cobre ou barro verde. Héroard constata que o delfim: (...) brinca com uma pequena marmita de cobre que a ama lhe dera, quer cozinhar uma sopa com carneiro, toucinho e couves; coloca-se aos pés do seu leito. [...] [Em outro dia] mostrou desejo de preparar uma papa no seu tachinho de prata. Tínhamos dificuldade em obter leite: pede-me que envie alguém à cozinha, 3 onde diz haver grande quantidade. Pergunto-lhe de quanto precisa. “Six plene chaudiere” [seis tachos cheios]. (MANSON, 2002, p. 129) Entretanto, em torno dos sete anos, acontecia uma mudança na vida dessas crianças, particularmente para o menino. Este abandonava o vestido comprido usado na infância e passava a usar calças curtas e gibão; era proibido brincar com bonecas e de carreteiro. Além disso, sua educação ficava sob a responsabilidade dos adultos do sexo masculino. O menino nobre aprendia a atirar, a caçar, a montar a cavalo e a jogar jogos de azar. As meninas, em contrapartida, continuavam, por muito tempo, a ser tratadas como pequenas mulheres. As diferenças de gênero, tênues durante a primeira infância, tornaram-se mais aprofundadas. Para Philippe Ariès (1981.p.81): O sentimento da infância beneficiou primeiro meninos, enquanto as meninas persistiram mais tempo no modo de vida tradicional que as confundia com os adultos: seremos levados a observar mais uma vez esse atraso das mulheres em adotar as formas visíveis da civilização moderna, essencialmente masculina. Em relação aos divertimentos, jogos e brincadeiras constata-se que a partir do século XIV, moralistas e pregadores, por um lado, condenavam todas as práticas de entretenimento, ou seja, a dança, a música, o teatro, os jogos de azar; a população, por outro lado, era indiferente a essas críticas. Entretanto, entre os séculos XVII e XVIII, surge uma atitude moderna em relação aos jogos, às brincadeiras e às crianças, ou seja, há preocupação em preservar o aspecto moral e psicológico da infância, proibindo os jogos de azar para as crianças.Também instrutores de tênis e bilhar foram proibidos de ministrarem aulas durante o período escolar, pois esses jogos eram acompanhados de apostas.Assim, distingue-se o universo da criança e o do adulto. As paulatinas mudanças em relação aos jogos e também à exclusão das crianças dos cafés, clubes e pubs, fizeram com que o comportamento cosmopolita fosse considerado apropriado somente para os adultos.Para Richard Sennett (1988) “/.../a gradativa preocupação com o estatuto especial da infância demarcou certos limites para a expressão pública. Pode-se dizer que tais limites consideram /sic/ em que o domínio público era o lugar reservado na sociedade para o jogo adulto”.(p.123). O trabalho de Philippe Ariès teve grande impacto nos meios acadêmicos e foi fonte de inspiração para um grande número de pesquisas, entretanto, recebeu várias críticas. Entre elas, o fato de ter fundamentado suas teses em evidências iconográficas e que essas expressavam os valores e atitudes de um período histórico. Porém, esse historiador tem o mérito de mostrar que a infância é uma construção social e histórica e não um fenômeno natural e universal. 4 Seguindo essa trilha, Tizuko Kishimoto (1999), no texto Jogos Tradicionais Infantis, analisa a imagem da criança, nos tempos do engenho de açúcar, e o seu brincar,mostrando paralelamente as origens étnicas das brincadeiras infantis. Fundamentando-se nos estudos de Câmara Cascudo, essa autora evidencia que grande parte das práticas lúdicas da infância brasileira,tais como adivinhas, parlendas, cantigas de roda, histórias de príncipes, rainhas, assombrações, bruxas e brinquedos, como a pipa, o pião, o bodoque e os jogos de pedrinhas, a amarelinha, entre outros, foram trazidos pelos primeiros portugueses, e que a miscigenação índio-branco-negro e a falta de documentação sobre os jogos dos meninos negros, no período colonial, dificultam a especificação da influência africana no folclore infantil. Sabe-se, porém, que pela linguagem oral, a mãe-preta transmitiu às crianças os contos, as lendas, os mitos, as histórias de sua terra natal. Cabe destacar que as mães africanas, as amas de leite modificaram as canções de ninar de origem portuguesa e, em vez do papão, surgem o saci-pererê, a mula-sem-cabeça, as almas penadas, a cuca, o boitatá, o lobisomem. Essas superstições, lendas e histórias eram contadas pelas amas negras às crianças choronas e malcriadas das casas grandes e senzalas. A linguagem infantil também foi enternecida pela ação da ama negra, que reduplicou a sílaba tônica, dando às palavras um especial encanto: cacá, pipi, bumbum dindinho, mimi, neném, dodói, tatá. Kishimoto (1999) constata que nas casas-grandes era costume do menino branco receber um ou mais moleques negros como companheiros de brincadeira que lhe serviam como cavalo de montaria, burros de liteira, de carro de cavalo, em que um barbante serve de rédea, um galho de goiabeira de chicote. Os meninos brancos reproduziam, nas brincadeiras, as relações de dominação da escravidão. Os moleques eram os “manés-gostosos”, os “leva-pancadas” no dizer de Gilberto Freyre. Porém, longe da vigilância dos adultos e sob as regras infantis, essa relação se invertia, principalmente nos jogos de pião, papagaio, matar passarinho com bodoque, subir em árvores, durante os quais a liderança era dos moleques negros, prevalecendo às habilidades do jogador, como narra José Lins do Rego (1969, p. 56) em Menino de Engenho: O interessante era que nós, os da Casa-Grande, andávamos atrás dos moleques. Eles nos dirigiam, mandavam mesmo em todas as nossas brincadeiras, porque sabiam nadar como peixes, andavam a cavalo de todo jeito, matavam pássaros de bodoque, tomavam banho a todas as horas e não pediam ordem para sair para onde quisessem. Tudo eles sabiam fazer melhor do que a gente; soltar papagaio, brincar de pião, jogar castanha. Só não sabiam ler. Mas isto, para nós, também não parecia grande coisa. Queríamos viver soltos, com o pé no chão e a cabeça no tempo, senhores da liberdade que os moleques gozavam a todas as horas. E eles às vezes abusavam desse poderio, da fascinação que exerciam. Pediam para furtar coisas da casa-grande para 5 eles: laranjas, sapotis, pedaços de queijo. Trocavam conosco os seus bodoques e os seus piões pelos gêneros que roubávamos da despensa. Esse relato revela que no brincar, as diferenças de classes sociais eram atenuadas, e as relações existentes entre os dominados e dominantes, vigentes durante a escravidão, eram substituídas pela liberdade da atividade lúdica, pois essa é uma condição para que a brincadeira exista.Essa questão foi tratada por Johan Huizinga (2001), em Homo Ludens, ao estudar o jogo como elemento da cultura: /.../o jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente convertidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da vida quotidiana (p. 33). A partir dessa definição, pode-se evidenciar que a primeira característica do jogo é a de ser uma atividade livre e, quando sujeito a ordens externas ele deixa de ser jogo; a segunda é de ser uma atividade que permite à criança, sobretudo, distanciar-se da vida cotidiana e entrar no mundo da fantasia, do faz-de-conta. Johan Huizinga narra uma história demonstrando que a criança tem plena consciência de quando está só no faz-de-conta e quando está apenas brincando: “O pai foi encontrar seu filhinho de quatro anos brincando de “trenzinho”na frente de uma fila de cadeiras. Quando foi beijá-lo, disse-lhe o menino:”Não(sic) de beijo na máquina,Papai, senão os carros não vai acreditar que é verdade”(p.11).A terceira característica é a existência de regras em todos os jogos e, quando estas são desrespeitadas, estraga-se o jogo, privando-o de todo e qualquer valor. O jogador que desobedece às regras é chamado de “desmancha-prazeres”, pois destrói o mundo mágico, e esta figura é mais nítida nas brincadeiras infantis. Ressalta ainda que o jogo promove a formação de grupos sociais, a vivência comunitária e a capacidade que o indivíduo tem de colocar-se no papel do outro. Essas características, apontadas por Johan Huizinga, são fundamentais para o desenvolvimento infantil, particularmente ao se compreender que a cultura possui um caráter lúdico. Brincando e jogando, a criança estabelece vínculos sociais, ajustando-se ao grupo, e aceita a participação de outras crianças com os mesmos direitos. Obedece às regras traçadas pelo grupo, como também propõe suas modificações. Aprende a ganhar, e também a perder.Oliveira (2001), mostra que na experiência lúdica, a criança, assim como o adulto, cultiva a fantasia, vivencia a amizade e a solidariedade, traços fundamentais para se desenvolver uma “cultura solidária” na sociedade brasileira atual. 6 Em 1990, os sociólogos Alan Prout e Allison James apontaram para a construção de um novo paradigma da sociologia da infância, baseado em seis aspectos fundamentais: “1. A infância é uma construção social. 2. A infância é variável e não pode ser inteiramente separada de outras variáveis como a classe social, o sexo ou o pertencimento étnico. 3. As relações sociais das crianças e suas culturas devem ser estudadas em si. 4. As crianças são e devem ser estudadas como atores na construção de sua vida social e da vida daqueles que as rodeiam. 5. Os métodos etnográficos são particularmente úteis para o estudo da infância. 6. A infância é um fenômeno no qual se encontra a “dupla hermenêutica” das ciências sociais evidenciada por Giddens, ou seja, proclamar um novo paradigma no estudo sociológico da infância é se engajar num processo de “reconstrução”da criança e da sociedade” (JAMES e PROUT, apud, MONTANDON,2001,p.51). Portanto, o desafio teórico-metodológico apontado pelos autores citados acima é considerar as crianças como atores sociais plenos, construtores de suas próprias culturas.A esse respeito Sarmento & Pinto (1997) mostram que: A consideração das crianças como actores sociais de pleno direito, e não como menores ou como componentes acessórios ou meios da sociedade dos adultos, implica o reconhecimento da capacidade de produção simbólica por parte das crianças e a constituição das suas representações e crenças em sistemas organizados, isto é, em culturas (p.20). Em trabalho pioneiro, Florestan Fernandes (1979), na década de 1940, estudou o processo de socialização das crianças residentes em bairros operários que, após a escola, reuniam-se nas ruas para brincar. Ele afirma que a criança participa ativamente da construção da cultura infantil, e que esta é proveniente da cultura do adulto, cujos elementos são incorporados por um processo de aceitação e nela mantidos e transformados com o passar do tempo. Para esse autor, Um único folguedo pode pôr a criança em contato com quase todos os valores e instituições da comunidade de modo simbólico, em seus grupos (p. 388). E ainda: O desejo comum de brincar, o contínuo trato com as mesmas crianças, a preferência por certos tipos de jogos, sua livre escolha, a liberdade de que goza nesses momentos e o interesse que lhe desperta o brinquedo em bando conduzem a criança à 7 formação das primeiras amizades, dando-lhes a noção de posição social. (p. 378) Nesses grupos infantis, formados com finalidades lúdicas, a criança adquire espírito de solidariedade e disciplina, experimenta com seus pares diversas funções, obedece e elabora regras traçadas pelo próprio grupo, formando as primeiras amizades, construindo suas relações sócias. Roger Bastide, ao prefaciar esse estudo, enfatiza a necessidade de se multiplicar as pesquisas dessa natureza, captando as vozes das crianças e os seus significados sobre os brinquedos, as brincadeiras e os jogos e declara: “para poder estudar a criança é preciso tornar-se criança. Quero com isso dizer que não basta observar a criança, de fora, como também não basta prestar-se a seus brinquedos; é preciso penetrar, além do círculo mágico que dela nos separa, em suas preocupações, suas paixões, é preciso viver o brinquedo” (idem, p.154). Nesse sentido, acredito que as reflexões de Walter Benjamin são fundamentais para se compreender o significado da infância e suas culturas na modernidade, pois revela como a própria criança sente, imagina, participa, cria e age sobre o mundo, criando suas culturas e histórias. Esse autor não compreende a criança como um adulto em miniatura, incompleto, uma tabula rasa, cera moldável, na qual o adulto determina todo o seu aprendizado e desenvolvimento. Por outro lado, também não acredita na bondade natural e na ingenuidade da criança. Dialogando com Freud, mostra que as crianças constroem os seus próprios universos, constituídos de pureza, beleza, mas também de agressividade, perversidade, resistência e disciplina, entrecruzando presente, passado e futuro, “experiências vividas” no individual e no coletivo.Para esse autor, “Se a criança não é nenhum Robinson Crusoe, assim também as crianças não constituem nenhuma comunidade isolada, mas sim uma parte do povo e da classe que provém’’ (Benjamin, 1984, p.70). Ao apresentar o livro Reflexões: a criança, o brinquedo, e a educação, Wille Bolle levanta questões essenciais que foram desenvolvidas por Walter Benjamin: Por que o brincar é tão importante para as crianças e por que a repetição as fascina tanto? Ao comentar a obra Brinquedos Infantis dos velhos tempos.Uma história do brinquedo, de Karl Gröber, publicada na Alemanha, em 1928, Walter Benjamin analisa a substituição dos brinquedos artesanais pelos industriais, nos anos iniciais do século XIX, constatando que, nessa passagem, criança e família perdem o controle da criação e construção, e estes se tornam estranhos para ambos; demonstra também que o brinquedo é determinado pelo meio cultural e pelo desenvolvimento da técnica: “/.../esse condicionamento do brinquedo pela cultura econômica e principalmente pela cultura técnica das coletividades. Se até hoje o brinquedo tem sido visto demasiadamente como produção para a criança, se não da criança, o erro oposto é ver na brincadeira 8 excessivamente na perspectiva do adulto, do ponto de vista da imitação” (Benjamin, 1987, p.252). Ao tecer suas considerações sobre o lúdico, Walter Benjamin aponta que o brincar não pode ser considerado apenas como uma imitação da vida do adulto, e que a repetição constitui o fundamento do brincar, à medida que o “brincar outra vez” produz uma grande satisfação para a criança. Esse prazer remete à busca da primeira experiência que pode ter sido um terror ou a primeira felicidade. Assim, a repetição não é somente um caminho das “terríveis experiências primordiais”, mas também o“saborear, sempre com renovada intensidade, os trunfos e vitórias” (Benjamin, 1984, p.74). Roland Barthes (2006), ao analisar o brinquedo, mostra que o adulto considera a criança como uma imagem de si mesmo, pois a trata como reproduções do universo adulto e, desta forma, introjeta-lhe valores, atitudes e comportamentos inerentes à sociedade burguesa; apresentado-os como naturais. Ao falar sobres os diversos modelos existentes de bonecas na sociedade atual, ou seja, bonecas que andam, falam, trocam fraldas, tomam mamadeira, constata que sua função é preparar as meninas para o ambiente doméstico e condicioná-las para a função maternal, cristalizando as relações sociais do sexo.Assim, perante esse universo, “a criança só pode assumir o papel de proprietário, do utente, e nunca o do criador; ela não inventa o mundo utiliza-o: os adultos preparam-lhe gestos sem aventura, sem espanto e sem alegria (Barthes, p.60). Na sociedade contemporânea, grande parte dos jogos tradicionais infantis, tais como ciranda cirandinha, cabra-cega, barra manteiga, queimada, jogo de pião, pedrinhas, amarelinha, entre outros - que encantam e fazem parte do cotidiano de várias gerações de crianças, estão desaparecendo devido às transformações do ambiente urbano, ou seja, as ruas e as calçadas deixaram de ser os espaços para a criança brincar, a influência da televisão, e o advento de novas tecnologias da comunicação e da informação, particularmente, os jogos eletrônicos. Objeto de minha pesquisa os jogos eletrônicos fascinam as novas gerações desde a década de 1980, com o surgimento do Atari e seus jogos Pong, Pac-Man e Space Invaders. Esse fascínio exercido pelos games geraram inúmeras críticas, a mais comum é que esse tipo de entretenimento ao enfatizar a cultura da violência, estimula nos jogadores comportamentos agressivos e violentos. Nesse sentido, Fátima Cabral (2000), afirma: “ as tragédias ocorridas entre jovens americanos, comprovadamente adeptos de jogos que enfatizam a violência, e a experiência frustrada de um jovem japonês de 28 anos, fanático por simuladores de vôo, ao tentar seqüestrar um avião com 517 pessoas em Tóquio, podem ser indicativos sombrios da perda do senso de realidade e da tomada de experiências virtuais como referentes para a vida real. (p.64e 65) 9 A autora mostra que o jogo eletrônico, ao extinguir as fronteiras entre o real e o imaginário, oferece aos jogadores a sensação de ser, concomitantemente, o mesmo e o outro, isto é, sujeito e personagem. Eugene Provenço Jr (2001) afirma que os novos jogos de videogames têm como tema principal a violência, o sexismo e o racismo, e que utilizando novas tecnologias, os CD-ROM, tornam-se cada vez mais interativos e realistas, pois seus criadores utilizam atores digitalizados para desenvolver a ação, sendo o alicerce de uma nova indústria da televisão interativa, na qual pais e educadores devem ficar alarmados devido às mensagens divulgadas. No jogo Night Trap,por exemplo, cinco alunas de uma escola estão sendo perseguidas por figuras encapuzadas, e a missão do jogador é salvá-las. Para isso é necessário seguir as ordens do comandante Simms.Quando algum personagem torna-se prisioneiro, fica imobilizado e perfuram-lhe o pescoço com uma furadeira motorizada. Depois de morto, seu sangue é drenado em garrafas de vinho. Segundo a educadora canadense de mídia infantil, Sandra Campell, o personagem Simms possui características “militarista e fascista”, pois leva as crianças e adolescentes a seguirem suas ordens de maneira cega, trazendo- lhes conseqüências violentas. Contrapondo-se a essas críticas, Patrícia Marks Greenfield (1998) constata que videogames violentos, jogados em dupla, ao exigir tanto a cooperação quanto a competição entre os jogadores, podem diminuir o nível de agressividade nas brincadeiras. Além disso, demonstra que os videogames contribuem para o desenvolvimento cognitivo de seus jogadores, refutando a idéia que sua prática desenvolve somente a coordenação sensório-motora. Comparando os jogos tradicionais como xadrez, dama, monopólio, com os videogames, essa autora aponta que nos primeiros as regras são preestabelecidas e no segundo, as regras são apreendidas através da observação, exigindo mais raciocínio indutivo. Arlindo Machado (1996) ao escrever sobre as relações entre a máquina e o imaginário, observa que entre as reflexões apocalípticas difundidas por Jean Baudrillard ou Frederic Jameson e as idéias apologéticas por McLuhan, Alvin Tofler não produz avanços qualitativos, pois ambos polarizam em pontos extremos e não contribuem para entendermos a arte de nosso tempo. Esse autor observa que“ muito do que escreveram hoje esses pensadores se afina mais propriamente com a ficção científica do que com a experiência real e com as dificuldades que ocorrem no nível pratico”(p.24). Acredito que possamos utilizar o mesmo raciocínio que Walter Benjamin (1987) usou para analisar a fotografia e o cinema para os jogos eletrônicos.Trata-se de perceber que as transformações das técnicas alteram de forma significativa a percepção, a cultura, as vivências e sensibilidades individuais e coletivas. Para esse autor, “o filme serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações exigidas por um aparelho técnico cujo papel cresce cada vez mais em sua vida cotidiana” (p.174). As mudanças nas condições de produção alteram os espaços da cultura; ou seja, as transformações do modo de produção e da técnica determinam as transformações dos modos de percepção e, portanto, da experiência social e das 10 formas de expressão. Por essa razão pretendo analisar os jogos eletrônicos vendoos como imagens ambivalentes, provocando apaziguamento e catarse, ao mesmo tempo. Referências Bibliográficas ALTMAN, Raquel Z. Brincando na História. In: DEL PRIORE, Mary (Orga.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999. ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família.. Rio de Janeiro: LTC, 1981. BARTHES, Roland. Mitologias. 2ªed.Rio de Janeiro: Difel, 2006. BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. 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