Caso Clínico Fernando Bisinoto Maluf Coordenação: Elisa de Carvalho Escola Superior de Ciências da Saúde - ESCS História Clínica (02/04/06) Identificação: A.J.P.S., sexo masculino, 4 anos e 5 meses, natural de Brasília DF, procedente de São Sebastião DF Motivo da internação: “ Diarréia e vômitos há 1 dia” História Clínica (02/04/06) HDA: Mãe refere que a criança vinha bem, até que há um dia iniciou quadro súbito de vômitos, em moderada a grande quantidade, associado 3 episódios de diarréia líquida, com presença de muco, sem sangue, sem pus. Refere ainda dor abdominal associada ao quadro. Nega febre ou alterações na diurese. Com esses sintomas, procurou o PS do HRAS, onde permanece internado até o momento. História Clínica (02/04/06) Antecedentes Pessoais: - Parto cesárea, a termo, sem intercorrências - Chorou ao nascer, alta hospitalar com 48h - Aleitamento materno até o 2º mês de vida - DNPM normal História Clínica (02/04/06) Antecedentes Patológicos: - Bronquite desde os 2 meses de idade, sendo última crise há 8 dias, tratando com beta agonista inalatório e corticóide oral. - 1 internação prévia há 1 ano por crise de bronquite - Hepatite A aos 2 anos de idade História Clínica (02/04/06) Antecedentes Familiares - Pai, 50 anos, tuberculose tratada há vários anos - Irmão, 7 anos, asmático Antecedentes Sócio-Econômicos: - Criança passa a semana inteira na creche. Exame Físico (02/04/06) Ectoscopia: REG, abatido, hidratado, hipocorado (2+/4+), anictérico, acianótico, febril (38,5ºC), taquipnéico AP: MV rude, sem ruídos adventícios. FR:36ipm ACV: RCR, 2T, BNF, c/ sopro sistólico (+/4+) em foco tricúspide. FC: 120bpm Abdome: Flácido, RHA (+), traube livre, indolor, s/ VMG Extremidades: Perfundidas, s/ edema ou cianose Neurológico: Sem sinais de irritação meníngea Conduta Solicitado: Hemograma + Eletrólitos + Bioquímica Prescrito: - HV fase de manutenção (Holliday + 20%) Hemograma: Leu: 11.300 (70/01/27/01/01) Hb: 10,8 Ht: 32,8 Plaq: 130.000 Bioquímica Uréia: 13 Creatinina: 0,4 TGO/TGP: 27/12 Glicemia: 84 Eletrólitos Na: 130 K: 4,0 Cl: 98 Evolução Criança evoluiu com rápida melhora do estado geral, sem febre e com melhora dos vômitos e da diarréia, recebendo alta no segundo dia de internação hospitalar. Diarréia Aguda Fernando Bisinoto Maluf Coordenação: Elisa de Carvalho Escola Superior de Ciências da Saúde - ESCS Definição Diarréia pode ser definida como a eliminação de fezes amolecidas, de consistência líquida, geralmente acompanhada de: Aumento do número de evacuações diárias (4,5-20 evacuações/dia). Aumento da massa fecal (acima de 200mg/dia ou 10ml/kg/dia) Classificação Quanto ao tempo de evolução: - Diarréia aguda: até 14 dias; - Diarréia persistente: 14 dias a 4 semanas; - Diarréia crônica: mais de 4 semanas de evolução; Epidemiologia Maior problema mundial de saúde na criança. Mortalidade alta: 3 milhões de mortes/ano de acordo com a ONU. Média de 3 episódios de diarréia/ano/criança em crianças menores de 5 anos, nos países em desenvolvimento. No Brasil, estima-se que as crianças tenham em média 50 dias de diarréia por ano Fatores de Risco Lactente, com menos de 1 Escolaridade Menores 1 ano ano de idade, com curto dos pais tempo de aleitamento materno exclusivo, algum grau de desnutrição e vivendo em Nível Sócio condições ambientais Econômico desfavoráveis Falta de Saneamento Acesso aos serviços de saúde Desnutrição Habitação Precária Etiologia A gastroenterite infecciosa é a causa mais comum, cuja transmissão se dá por via oro-fecal interpessoal. Diversos patógenos virais, bacterianos ou até protozoários são responsáveis. O Rotavírus e a E. coli agentes mais comumente envolvidos (mais de 50% dos casos). Nas diarréias agudas não-infecciosas entram o uso de medicamentos (ATB, AINEs, laxativos), retocolite ulcerativa, alergia alimentar. Etiologia Virais Bacterianas Parasitoses Toxinas Rotavírus E.coli enteropatogênica Giardia lamblia S. aureus Adenovírus entérico E.coli enterotoxigênica Cryptosporidium B. cereus Astrovírus E.coli enteroagregativa Strongyloides Calicivírus (Norwalk) Vibrio cholerae Trichuris trichiura CMV E.coli enteroinvasiva Amoeba E.coli entero-hemorrágica Campylobacter jejuni Clostridium difficile Yersinia enterocolítica Shigella Salmonella Aeromonas Em vermelho: podem causar disenteria. Grifados: produtoras de toxinas Patogênese Desequilíbrio entre absorção e secreção de água e eletrólitos no lúmen intestinal Absorção: Ocorre nas células epiteliais maduras na parte superior do vilo intestinal. Secreção: Ocorre nas células epiteliais indiferenciadas das criptas. * Normalmente, a capacidade absortiva dos enterócitos maduros excede quantitativamente a atividade secretora nas criptas. Patogênese Invasão dos enterócitos maduros pelos patógenos Destruição de grande nº de enterócitos Reepitelização rápida com enterócitos indiferenciados Ruptura das funções absortivas Reabsorção inadequada de água, eletrólitos e nutrientes Nutrientes c/ força osmótica agindo no lúmen intestinal DIARRÉIA OSMÓTICA Patogênese Patógenos aderem/invadem epitélio intestinal Produção de enterotoxinas Ativação de mediadores que atuam nos canais de íons Inibição do influxo de NaCl Liberação de ânions Aumento da secreção intestinal DIARRÉIA SECRETORA Patogênese Patógenos aderem/invadem epitélio intestinal Reação inflamatória aguda intensa com citoquinas e mediadores inflamatórios Ruptura da integridade da mucosa Liberação de sangue, pus, muco DIARRÉIA EXSUDATIVA Patogênese Mecanismos de virulência dos microorganismos: Adesividade: adesão à mucosa intestinal por meio de adesinas secretadas pelas fímbrias Invasividade: capacidade de invadir a mucosa e multiplicar-se nas células epiteliais ou atingir a lâmina própria Toxigênese: Enterotoxinas secreção exagerada de sais e água Citotoxinas lesam a célula e causam necrose do tecido Quadro Clínico Em geral a diarréia aguda é benigna e autolimitada, com resolução dentro de poucos dias. Fezes de consistência diminuída/líquidas, com aumento na freqüência, perda de água e de eletrólitos nas fezes, e volume fecal aumentado. A apresentação clínica da diarréia aguda infecciosa varia de acordo com o patógeno. Ação Patogênica Localização Agente Quadro Clínico Efeito Citopático direto Intestino delgado Rotavírus Diarréia aquosa, s/ pus, s/ sangue proximal Adenovírus Vômitos e febre Norwalk Desidratação moderada a grave ECEP Má-absorção de lactose freqüente Giárdia Enterotoxigenicidade Invasiva Intestino delgado Íleo distal e Cólon Vibrio Cholerae Diarréia aquosa, s/ pus, s/ sangue ECET Desconforto abdominal ECEAg Pode haver febre ou vômitos Cryptosporidium Evolução usualmente leve Salmonella Disenteria c/ evacuações frequënte Shigella Dor à evacuação Yersinia Cólicas, febre ECEI Desidratação variável Amoeba Leucocitose, neutrofilia e desvio à E Campylobacter Citotoxicidade Cólon Clostridium Disenteria + cólicas + febre ECEH Shigella Desidratação variável E. coli Bacilo Gram negativo da família Enterobacteriaceae Seis categorias: - ECEPatogênica - ECEToxigênica - ECEInvasiva - ECEHemorrágica - ECEAgregativa - EC Difusamente aderente E. coli Transmissão pela ingesta de água contaminada Enteropatogenicidade capacidade de aderir à superfície mucosa ECET: - Mais comum (25% das diarréias nos países em desenvolvimento) - Quadro Clínico: Diarréia aquosa, explosiva + dor abdominal + febre, durando ± 5 dias - Não há invasão da mucosa (a bactéria apenas adere ao epitélio e produz toxinas E. coli ECEH: - Coloniza principalmente cólon e íleo distal - Quadro clínico começa com diarréia aquosa que evolui para diarréia + sangue + febre + dor abdominal - Dura em média 4 dias - Complicações: prolapso retal, intussuscepção, colite ECEAg → extremamente relacionada à evolução para diarréia persistente Rotavírus Presente em quase de 40% das crianças com diarréia aguda, nos países em desenvolvimento Ocorre principalmente em < 5 anos (pico entre 6-24 meses) Altamente contagioso – via oro-fecal Quadro Clínico: Início com vômitos → diarréia (aquosa, < 10 episodios/dia) + febre Duração média de 8 dias. Geralmente precedido por IVAS (40% dos casos) Complicações Desidratação Distúrbios hidroeletrolíticos Principais patógenos • ECEP Desnutrição: decorrente da inapetência e vômitos, • ECEAg mau aproveitamento dos alimentos • Shigella e catabolismo • Flora múltipla aumentado Diarréia Persistente: Ocorre em até 20% das diarréias agudas, onde encontra-se anormalidades da borda em escova, da permeabilidade intestinal e da flora bacteriana e até atrofia vilositária. DIAGNÓSTICO CLÍNICO DA DESIDRATAÇÃO Hidratado Desidratação leve/moderada Desidratação grave Estado geral Ativo irritabilidade prostrado, hiporreativo Olhos normais enoftalmia enoftalmia pronunciada Pulsos cheios finos finos, difíceis de palpar Perfusão periférica < 3 segundos 3 a 6 segundos > 10 segundos Diurese normal reduzida ausente Déficit de líquido < 3% do peso 3 a 10% do peso DESIDRATAÇÃO DESIDRATAÇÃO Mucosas úmidas umidade reduzida secas HIPERTÔNICA HIPOTÔNICA •Sede intensa •Pouca sede Turgor da pele•Mucosas normal alterado muito alterado muito secas •Mucosas menos secas •Irritabilidade •Diurese presente Lágrimas presentes diminuídas / ausentes ausentes •Oligúria acentuada •Hipotonia Fontanela plana deprimida muito •Hipertonia •Mais sinais de deprimida •Menos sinais de Desidratação Sede normal evidente Intensa desidratação (turgor, fontanela) > 10% do peso • • • • • • Volume Freqüência Consistência Restos alimentares Sangue Muco Diagnóstico Anamnese Início do quadro, características das fezes, tolerância à hidratação oral, outros sintomas associados (vômitos, febre dor, distensão abdominal ou perda de peso) Sinais de infecção e antecedentes de parasitoses Dieta atual e pregressa Histórico de alergias, intolerância ou medicamentos Condições sociais e sanitárias Outros casos de diarréia em casa, creche, colégio Diagnóstico Exame Físico Peso e estatura Estado geral Sinais de desidratação – mucosas secas, oligúria, alterações ortostáticas da FC e PA Estado nutricional Sinais de toxemia Diagnóstico Exames Complementares Exame de fezes Pesquisa de elementos anormais Parasitológico Coprocultura pH fecal Pesquisa de vírus HC, eletrólitos, hemocultura e gasometria: casos mais graves, com repercussão sistêmica. Tratamento Soro de Reidratação Oral Para diarréia aguda leve (desidratação leve): - Uso de SRO para corrigir a desidratação, num • 3,5g de NaCl • 2,9g de Citrato de Na período de 3-4h • 1,5g de KCl - Realimentação precoce com dieta normal (ou • 20,0g de glicose fracionada), logo após 4hdedeNareidratação • 90mOsm/l • Reposição: - SRO após cada episódio diarréico - 30 ml/kg/h em 4 horas - Não é necessário o uso de antibióticos ou de - 10ml/kg após após qualquer outro medicamento cada evacuação O TRATAMENTO É DOMICILIAR, A MENOS QUE HAJA * 1 envelope : 1 Litro INDICAÇÃO DE INTERNAÇÃO HOSPITALAR Tratamento Indicações para Internação Hospitalar: - Perdas hídricas superiores a 5 % do peso - Dificuldade para TRO em domicílio - Persistência da diarréia e vômitos apesar da TRO - Lactente < 2 meses com diarréia e vômitos - Desnutrição Tratamento Indicações para Hidratação Endovenosa: - Desidratação grave ( > 10% do peso) - Fracasso na TRO - Perdas intensas e persistentes - Distúrbio hidroeletrolítico - Choque hipovolêmico Tratamento Hidratação Endovenosa (desidratação grave): FASE RÁPIDA - 50ml/kg em 1h (SF 0,9% : SG 5% = 1:1) Reavaliar desidratação em 1 hora Não melhorou Melhorou Continuar HV com 25ml/kg e reavaliar FASE DE MANUTENÇÃO Tratamento Fase de Manutenção: repor perdas de acordo com fórmula de Holliday-Segar: - Até 10kg ............................................... 100ml/kg/dia - Até 20kg ................................ 1000ml + 50ml/kg/dia - > 20 kg .................................. 1.500ml + 20ml/kg/dia Fazer todo o volume em SG 5% e adicionar eletrólitos no seguinte percentual sobre o volume: - Sódio: 3% (em mEq) - Potássio: 2% (em mEq) NaCl 20% - 1ml = 3.4mEq KCl 10% - 1ml = 1,34mEq Tratamento A fase de manutenção se estabelece quando, após a fase rápida, a desidratação desaparece e uma boa diurese se estabelece Durante a fase de manutenção pode ser necessário ajustar a solução se houver desequilíbrio de eletrólitos, especialmente do sódio Pode-se ajustar a fase de manutenção de acordo com a desidratação (Ex: Holliday + 20% ou 70% do Holliday) Tratamento O uso de antimicrobianos deve ser avaliado somente nos casos mais graves de diarréia invasiva, com febre alta, queda no estado geral, em desnutridos graves, RNs e lactentes pequenos e nos imunodeprimidos. Patógenos passíveis de tto com ATB: Vibrio cholera, Shigella, Campylobacter, ECEI e Giardia. Deve-se evitar o uso de inibidores do peristaltismo e normalmente não é necessário uso de probióticos. Vacina para Diarréia? Objetivo: Tentar diminuir o número de hospitalizações e reduzir a morbidade e a mortalidade pelo Rotavírus. Década de 80 → resultados desastrosos (provocou vários casos de invaginação intestinal 2006 → nova vacina, com vírus atenuado de apenas 1 sorotipo (mas confere imunidade para outros sorotipos) Vacina para Diarréia? Esquema Vacinal: - 1ª Dose aos 2 meses (máx de 3 meses) - 2ª Dose aos 4 meses (máx de 5 meses) Por que utilizar primeiramente em países em desenvolvimento (Brasil)? Lembrar... Identificar rapidamente o estado de desidratação da criança e instituir terapêutica adequada (VO ou EV) (independe do agente etiológio) Internar ou não internar Procurar impedir a progressão para diarréia persistente, a qual ocorre em mais de 20% dos casos Identificar osciclo fatores de risco envolvidos e atuar Evitar o desnutrição-diarréia-desnutrição ligado de à mortalidade da diarréia tambémintimamente na prevenção novos episódios Referências Bibliográficas 1. Marcondes, E; Vaz, FAC; Ramos, JLA; Okay, Y. Pediatria Básica. Tomo I – Pediatria Geral e Neonatal. Nona Edição.São Paulo: Sarvier, 2002. 2. Oliveira, RG. Blackbook-Pediatria. Terceira edição, Belo Horizonte: Black Book Editora, 2005. 3. Benseñor, IM; Atta, JA; Martins, MA. Semiologia Clínica. Primeira Edição, São Paulo: Sarvier, 2002. 4. Rego, CFR; Pires, LAA.. Diarréia aguda. Manual de Gastroenterologia pediátrica, 2002; 49-52.