A APOLOGIA DA LÍNGUA PORTUGUESA NO PERÍODO BARROCO:
OS BREVES LOUVORES DA LÍNGUA PORTUGUESA
DE FERREIRA DE VERA
ANA MARÍA GARCÍA MARTÍN
Universidad de Salamanca
É em pleno período barroco português, muito próximo do meridiano do século
XVII, que vê a luz a obrita que nos vai ocupar nestas páginas, os Breves louvores da
língua portuguesa de Álvaro Ferreira de Vera, publicada em 1631, fazendo parte de
um volume que contém também um tratado ortográfico, e outros opúsculos do mesmo
autor1. De novo, pois, como já acontecera um século antes no corpus gramatical de
João de Barros e umas décadas mais tarde em Magalhães de Gândavo, a proposta de
normalização ortográfica e a exaltação da língua configuram aspectos complementários de um único processo, a afirmação de uma identidade linguística própria. Assim,
os Breves Louvores fazem parte de uma cadeia de textos, já nesse momento secular,
que visa defender a língua portuguesa dos preconceitos daqueles – em geral, os próprios portugueses – que a denigram e classificam de língua inferior, bárbara, difícil,
desornada e não exportável. Considero estes textos como uma cadeia porque eles são
construídos à volta dos mesmos argumentos, que repetem e entrelaçam, desde que o
género apologético do português, sirva a denominação, fora inaugurado pelo Diálogo
em louvor da nossa linguagem de João de Barros, publicado em 1540 apenso à Gramática da Língua Portuguesa.
A Orthographia de Ferreira de Vera já mereceu a atenção de alguns estudiosos2,
não acontecendo o mesmo, tanto quanto sabemos, com o opúsculo que aqui suscita o
nosso interesse. Tal interesse não provém certamente da escassa originalidade da obra,
1
Álvaro Ferreira de Vera (1631), Orthographia ou modo para escrever certo na lingua portuguesa.
Com hum trattado de memoria artificial: outro da muita semelhança, que tem a lingua portuguesa com a
latina, Lisboa, Mathias Rodriguez [ff. 77-88r: Breves Lovvores da Lingva Portvgvesa, com notaveis exemplos
da muita semelhança, que tem com a lingua Latina].
2
Cf. Rolf Kemmler (2001), «Para uma história da ortografia portuguesa: o texto metaortográfico e a sua
periodização do século XVI até à reforma ortográfica de 1911», Lusorama 47-48, pp. 189-193 e Maria Filomena Gonçalves, As ideias ortográficas em Portugal de Madureira Feijó a Gonçalves Viana (1734-1911), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2003, pp. 855-862.
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que, como veremos, é devedora de uma tradição secular, mas sim, justamente, na
medida em que testemunha uma tradição que pervive e ainda se justifica plenamente
em meados do século XVII. Da difícil situação sociolinguística em que o português se
encontrava no fim do período filipino, sobretudo como língua literária, dá conta o ressentimento com que Ferreira de Vera recrimina os seus contemporâneos por preferirem recorrer a uma língua emprestada. Vejamos, pois, em que parâmetros se joga a
defesa da língua própria neste período.
1. A filiação latina e a pretendida maior fidelidade, dentro do espaço românico,
do português à língua mãe, constitui, sem dúvida, o argumento nuclear no processo de
normalização gramatical e de afirmação humanista do vulgar lusitano, iniciado em
Portugal com a publicação da Gramática da Linguagem Portuguesa de Fernão de Oliveira, em 1536. As implicações que tal filiação comporta para o espaço românico são
sintetizadas perfeitamente por Falencio, interlocutor castelhano do Diálogo de
Magalhães de Gândavo: «Pues como la lengua Latina sea madre de las otras lenguas,
y mas copiosa y excellente de todas quantas hay (como sabemos) aquella que mas
semejante y propinqua fuere a ella, essa serâ mejor y mas singular que las otras»3.
Efectivamente, a língua latina é considerada no século XVI, em pleno apogeu
humanista, como a língua perfeita, paradigma gramatical por antonomásia e modelo
de riqueza vocabular e possibilidades expressivas, sendo como é depositária de uma
longa tradição literária. Perante estas evidências, e em contraste declarado, as línguas
vulgares são vistas como objectos imperfeitos, selvagens, pobres no léxico e, por isso,
de muito limitadas possibilidades expressivas, ao que se acrescenta a sua escassa ductilidade por terem um ainda muito limitado tratamento literário4. Contudo, a distância
entre latim e vulgar não impediu aos gramáticos e ortógrafos portugueses quinhentistas afirmarem taxativamente a origem latina da língua portuguesa. Assim, nem Oliveira, nem Barros, nem Magalhães de Gândavo, nem Nunes do Leão, nem os seus
mais imediatos continuadores seiscentistas, mostram o menor laivo de dúvida a respeito da filiação da sua língua, afirmando, num exercício de rigor histórico-linguístico, que a língua portuguesa é filha da latina, e haverá que esperar ainda bastante
tempo para encontrar uma voz discrepante a este propósito5.
Maiores dúvidas suscitou aos gramáticos portugueses estabelecer qual tinha sido
a primeira língua falada na península, a língua natural dos hispanos, antecessora da
latina. Nunes do Leão, na sua obra Origem da Língua Portuguesa, publicada em
3
Pero Magalhães de Gândavo (1574), Regras que ensinam a maneira de escrever e orthographia da lingua Portuguesa, com hum Dialogo que adiante se segue em defensam da mesma lingua, edição fac-similar a
partir da primeira edição, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1981, p. 65.
4
O atributo ‘selvagem’ é aplicado por Juan de Valdés ao vulgar para significar o que ele considera uma
ausência de regras que o rijam. Por outro lado, o empenho dantesco de construção de um vulgar ilustre, que tem
o seu correlato no espaço lusitano já nos prosistas do século XV e manifestamente nos gramáticos quinhentistas, parte do reconhecimento da inferioridade expressiva do romance em relação ao latim.
5
Assim, por exemplo, em 1837 é publicada nas Memórias da Academia R. das Ciências de Lisboa, uma
memória que reza o siguinte título: «Em que se pretende mostrar, que a Lingua Portugueza não he filha da
Latina, nem esta foi em tempo algum a lingua vulgar dos Lusitanos» e em que o seu autor, Francisco de S. Luiz,
defende que a língua portuguesa se remonta às línguas primitivas faladas na península antes da conquista
romana, que teriam sobrevivido à convivência com a língua latina.
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1606, sugere para o período pré-latino uma situação de diversidade linguística e de
permeabilidade às línguas mediterrânicas dos povos com que os hispanos entraram
em contacto6. Entre os estrangeiros que se teriam assentado em Espanha refere fenícios, gregos e cartagineses, que teriam misturado as suas línguas com a original hispânica7. A argumentação de Leão, que nos surpreende pela sua modernidade, obriga-o a
contestar a teoria mítica, muito difundida na época, de que teria sido o caldeu, trazido
por Túbal, neto de Noé, aquando do seu assentamento em Setúbal, a primeira língua
falada na península8. Esta genealogia mítica, no entanto, sim vai ser aproveitada, anos
depois, como um mecanismo mais de legitimação etimológica e marca de nobreza da
língua portuguesa, por Álvaro Ferreira de Vera, quem, embora siga à letra amplas partes da Origem de Leão, neste ponto se afasta explicitamente dela. O autor seiscentista
serve-se de toda a tradição mítica sobre o povoamento originário de Portugal, para
afirmar a descendência do português das línguas semítica e grega, que, junto com a
filiação latina, lhe outorgam a prerrogativa de erigir-se em língua «das mais antigas,
& hua~ das melhores d’Europa»9:
Tubal, filho de Iapheth, aportando em Hespanha, o primeiro lugar, que fundou foi
Setuval, que em memoria de seu primeiro fundador, com pouca corrucção conserva o
nome primeiro de Cetubala, que significa ajuntamento de Tubal. E povoandose Portugal,
& toda Hespanha desta gente, a lingua que fallavão era Hespanhola: no que concordão
muitos, & mui graves authores. Que seja esta, ou aquella, ou que se conservasse mais
pura até estes nossos tempos, ha muita dùvida sem se corromper, & tomar muitos vocabulos d’outras nações vezinhas, & muitas estranhas, que a ella vierão: como forão os Gregos, Latinos, & Godos.
Assi que ficando muitos Gregos na nossa Lusitana, que vierão em companhia de
Hercules, que veio per duas vezes governar a Hespanha: os companheiros de Vlysses, que
fundou, & povoou Lisboa; & delle tomou o nome, que hoje em latim tem Vlyssipo: os
companheiros de Baccho, que derão o nome a nossa Lusitana do nome de hum delles
mais principal chamado Luso: que vierão por diversos tempos, & tomamos delles muitos
vocabulos, que hoje em dia temos no mesmo ser, & outros pouco corruttos10.
É verdade, porém, que Ferreira de Vera parece seguir, neste ponto, a lição ambígua de um João de Barros, quem não tinha rejeitado taxativamente a possibilidade de
o português poder derivar do hebraico. Com efeito, no início do seu Diálogo em Louvor da Nossa Língua, o humanista detém-se na tentativa de esclarecimento da língua
primigénia da humanidade, isto é, da primeira língua falada, e também escrita, pelo
6
Duarte Nunes de Leão (1576 e 1606), Ortografia e origem da língua Portuguesa, introdução, notas e
leitura de Maria Leonor Carvalhão Buescu, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983, p. 202. Assinalese que neste autor, como nos seus contemporâneos, o termo Espanha refere a Península Ibérica.
7
Leão, ed. cit., pp. 203-204.
8
Leão, ed. cit., pp. 199-204. A mesma genealogia era aplicada ao castelhano, fazendo de ambas as línguas ibéricas descendentes directas de uma das setenta e duas línguas pós-babélicas. Cf. Umberto Eco, La búsqueda de la lengua perfecta, Barcelona, Grijalbo–Modadori [tradução de La ricerca della lingua perfetta nella
cultura europea, Roma-Bari, Laterza, 1993], p. 88.
9
Vera, ed. cit., p. 81v.
10
Vera, ed. cit., pp. 82r-82v.
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homem, «pois néla está todo nósso edifíçio»11. Após uma revisão de autoridades clássicas – Ovídio, Heródoto, Vitrúvio –, reproduz a explicação bíblica de Babel, isso sim,
submetendo o mito a uma tentativa de interpretação racional12. De modo que, para
Barros, a língua original do homem, e também língua divina, o hebraico, ter-se-ia disseminado, após o castigo babélico, entre as diferentes línguas do mundo, conservando-se como significante, mas adquirindo em cada uma delas diferente significado.
Consequentemente, o humanista português parece subscrever a teoria de que nenhuma língua pode ser considerada herdeira unívoca da língua original, tendo desencadeado a poligénese pós-babélica um afastamento forçado em relação a ela. No
entanto, acredita na presença nas línguas de vestígios dessa primitiva filiação, em
forma de significantes provavelmente alterados pela passagem do tempo:
Donde pódes entender que a linguágem primeira de Adám [h]oje está no mundo: em
ésta naçám dez vocábulos, nest’outra vinte, e assi está repartida, que todos â tem em vóz,
mas nam em um só sinificado. E ainda se póde crer que éstas vózes, com antiguidáde, já
dévem ser corrompidas, como vemos em muitos vocábulos gregos, hebráicos e latinos
[...]13
É interessante, pois, como, apesar de reconhecerem claramente a origem latina da
língua portuguesa e de constituir-se essa filiação no principal argumento para a ponderação humanista da língua vulgar, o humanismo português não pode abstrair-se do
peso cultural da língua hebraica na época renascentista, querendo legitimar também o
vulgar ibérico pela presença nele de vestígios da língua original, que, em imagem de
Umberto Eco, lhe teria transferido a tocha da perfeição14.
Ora, à margem dessa reverência, de fundamento mágico-religioso, pelo hebraico,
claramente condicionada pela mentalidade cristã15, a conciência histórico-linguística
dos humanistas portugueses resulta surpreendentemente acertada. Nunes do Leão sintetiza-a no capítulo VI da sua Origem: a Hispânia pré-latina, fragmentada em vários
povos, após a conquista romana expressa-se num latim «puro, como em Roma, e no
mesmo Lácio», que posteriormente é corrompido pelas invasões germânicas, dando
lugar ao romance. Ao misturarem estes povos a língua latina com a sua «bárbara lín-
11
João de Barros, Gramática da Língua Portuguesa. Cartinha, Gramática, Diálogo em Louvor da nossa
Linguagem e Diálogo da Viciosa Vergonha, edição de Maria Leonor Carvalhão Buescu, Lisboa, Faculdade de
Letras, 1971, p. 391.
12
Cf. Maria Leonor Carvalhão Buescu, Babel ou a Ruptura do Signo, A Gramática e os Gramáticos Portugueses do Século XVI, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, pp. 241-261.
13
Barros, ed. cit., p. 396.
14
Cf. Eco, op. cit., p. 88: «Algunos autores no negaban en modo alguno que el hebreo fuese la lengua primitiva, pero sostenían que después de Babel el hebreo había dado origen a otras lenguas a las que había traspasado la antorcha de la perfección.”
15
A língua hebraica é considerada por Barros como a língua divina, na medida em que teria servido à
comunicação entre Deus e Adão: «Os Hebreos, por serem os primeiros a quem Deos quis comunicár a criaçám
do mundo, afirmam que a língua do nósso primeiro pádre Adám, foi a hebrea, aquéla em que Mousés escreveu
os livros da lei» (Barros, ed. cit., p. 393). Nesta consideração do hebraico como língua santa e primigénia
Barros reflecte o pensamento cristão, medieval e renascentista, pois, como assevera Eco, trata-se de matéria de
revelação bíblica. Contudo, a hipótese poligenética das línguas aparece no século XVII associada a formas de
cepticismo religioso como agnosticismo ou manifesto ateísmo. Cf. Eco, op. cit., pp. 76-84.
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gua», provocaram também uma incipiente diferenciação linguística regional, que se
acentua após a invasão árabe, com a qual «veio a perdição de toda Espanha», acabando de corromper uma língua já então «meia gótica e meia latina»16. Torna-se evidente o fundo ideológico que subjaz a esta explicação e que a justifica: se a língua que
se falava na Hispânia após a conquista romana era a mais perfeita e rica que o homem
renascentista conhece, só a par da grega, que ainda por cima apresentaria na Hispânia
um estado de alta pureza – ainda estamos bem longe do conceito de latim vulgar –,
qualquer mudança ou alteração provocadas por agentes externos culturalmente considerados muito inferiores, só pode ser interpretada como uma degeneração, dando origem ao conceito de corrupção evolutiva, plenamente assumido pelos gramáticos
renascentistas portugueses. Ora bem: se a legitimação da língua própria é consubstancial ao processo de afirmação das monarquias europeias na Renascença, o nascimento
bastardo, corrupto na sua origem, das línguas romances, justifica que, dentro do
espaço românico, a valorização do vulgar passe ineludivelmente por uma reaproximação da fonte.
Deste modo, e lembremos aqui as palavras de Gândavo citadas ao início, a língua
latina converte-se em modelo especular para as línguas românicas, de maneira que a
fidelidade à língua mãe acaba por funcionar como pedra-de-toque do processo de
revalorização do vulgar. Assim, qualquer argumento que justifique ou exemplifique a
proximidade linguística entre o latim e o português torna-se válido, seja a inata facilidade de aprendizagem do latim referida por Ferreira de Vera, que põe como exemplo
crianças de língua materna portuguesa que a uma idade precoce – oito meses, dois e
três anos – entendiam e falavam perfeitamente a língua latina; seja o argumento, também referido pelo mesmo autor, de que a pronúncia do latim é mais perfeita a partir do
português que a partir de outras línguas:
Tem outra grandeza a lingua Portuguêsa, que pronuncia melhor a Latina, que qualquer outra, porque lhe dá a pronunciação conforme a força & vigor das letras. O que não
tem a Castelhana, que todas as dicções acabadas em M pronuncião â maneira de N & as
começadas per V, como se fora B, dizendo boluerin, musan, amaban, probervio: por
musam, amabam, voluerim, proverbio, etc.17
Com o mesmo propósito, converte-se em tópico do género apologético do português, a recopilação de versos que tanto se podem ler em latim como em português,
incontestável prova da semelhança de ambas as línguas. João de Barros inaugurara no
seu Diálogo este procedimento, que chegou a conhecer uma grande voga, a julgar
pela continuidade que os seus contemporâneos lhe deram. Em palavras de Barros: «Aí
começarás tu de sentir o louvor da nóssa linguágem, que, sendo nóssa, â entenderá o
latino porque é sua»18. Assim, décadas depois, Gândavo repete os versos do diálogo
barrosiano, e Nunes do Leão, reiterando que a semelhança entre português e latim é a
maior que entre duas línguas pode haver, inclui vários novos, entre eles uns dedicados
16
17
18
Leão, ed. cit., p. 219.
Vera, ed. cit., pp. 85r-85v.
Barros, ed. cit., p. 398.
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a santa Úrsula, posteriormente reutilizados por Ferreira de Vera, que dedica uma parte
importante dos seus Breves Louvores a um florilégio do género macarrónico. Transcrevemos aqui, como exemplo, os versos de Barros19, recolhidos também por Gândavo e Vera:
O quam divinos acquiris terra triumphos
Tam fortes animos alta de sorte creando.
De numero sancto gentes tu firma reservas.
Per longos annos vivas tu, terra beata.
Contra non sanctos te armas furiosa paganos.
Vivas perpetuo, gentes mactando feroces,
Quae Aethiopas, Turcos, fortes Indos das salvos,
De Iesu Christo sanctos monstrando prophetas.
Ora bem, a argumentação sobre a maior ou menor semelhança com a língua mãe
estimula uma dinâmica de competência entre as línguas românicas20 que se evidencia
já na obra dos primeiros gramáticos, desde o Diálogo em louvor da nossa Linguagem
de João de Barros. Para o humanista, três línguas românicas usurpam no seu tempo a
preeminência das três clássicas, latina, grega e hebraica:
Éstas, porque perderam já a vez do uso, e tem somente a párte da escritura, leixá-lâsemos por outras três que fázem ao propósito da nóssa, as quáes, ao presente, todalas
outras preçédem, por tomárem, déstas primeiras, pártes de seus vocábulos, prinçipàlmente da latina, que foi a derradeira que teve a monarquia, cujos filhos nós somos. U~ déstas, é a italiana, outra a françesa, e outra a espanhól21.
E entenda-se que aqui o termo «espanhol» abrange, pelo menos, duas línguas
hispânicas, a portuguesa e a castelhana, e assim é também em todos os apologetas dos
séculos XVI e XVII. Seguidamente, perante a pergunta do interlocutor do diálogo
sobre qual das três línguas românicas mencionadas lhe parece melhor e mais elegante,
Barros, estabelecendo uma hierarquia linguística a partir de um critério, para além de
léxico, ortográfico e secundariamente fonético, responde:
 que se máis confórma com a latina, assi em vocabulos, como na ortografia. E
nésta párte, muita vantajem tem a italiana e espanhól à françesa, e, déstas duas, â que se
escréve como se fála, e que menos consoantes léva perdidas. E, nesta ortografia, a espanhól vençe a italiana22
1.
19
Leonor Buescu atribui ao humanista a autoria provável de tais versos. Cf. Barros, ed. cit., p. 398, nota
20
Cf. Buescu, op. cit., p. 190: «A Romanidade constitui um novo paradigma, que deriva sem fractura
desse outro que o precedera, a Latinitas, que, não sendo um ‘paradigma perdido’, se institui como uma presença – ainda que longínqua – estimulante duma dinâmica estabelecida através da competição e da hierarquia.
Paradigma novo e fecundante, já que engendra e se multiplica nos subparadigmas nacionais que vão afirmar-se
e progredir em complexidade».
21
Barros, ed. cit., p. 396.
22
Barros, ed. cit., p. 397.
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Insisto em que Barros continua a usar o termo «espanhol» para englobar as duas
línguas ibéricas. De facto, quando o gramático quer referi-las especificamente denomina-as «português» e «castelhano», como faz, por exemplo, por boca de António, o
interlocutor filho, para introduzir o tema da precariedade lexical do português:
Pois muitos dizem que a língua espanhól é desfaleçida de vocábulos, e que, quanta
vantáge tem a italiana à castelhana, tanto exçéde ésta a portuguesa, e que em seu respeito
se póde chamár elegante23.
Meio século mais tarde, no Diálogo em Defensão da Língua Portuguesa de
Magalhães de Gândavo, e devido com certeza a uma situação sociolinguística do português muito mais alarmante, a rivalidade entre línguas românicas restringe-se já a
ambas as línguas peninsulares, deixando transparecer, mais do que propriamente competição, uma dinâmica de conflito. Reparemos nos títulos de ambos os diálogos: se
em Barros o título evidencia uma vontade de louvor, de celebração da língua pátria
(Diálogo em louvor da nossa Linguagem), em Gândavo encontramos já uma manifesta vontade apologética (Diálogo em Defensão da Língua Portuguesa).
É dentro dessa dinâmica de extrema competição entre português e castelhano que
há que entender o esforço que Gândavo dedica ao cotejo de fenómenos ou evoluções
fonéticas que afastaram os vocábulos de ambas as línguas da sua origem latina.
Assim, em boca de Petronio, o castelhano é uma língua mais corrupta do que o português, isto é, mais afastada do paradigma latino, pela influência do árabe, a cuja responsabilidade atribui, por exemplo, as «aspirações» do castelhano:
Enfim que se algua~ com razão se pode chamar barbara he a vossa, a qual toma da lingua Arabia, & a mayor parte dos vocabulos falais de papo com aspiração: & assi fica hua~
linguagem imperfecta, & mais corrupta do que vos dizeis que a nossa he24.
E a seguir demora-se na enumeração de listas de palavras com o fim de demonstrar a maior proximidade ao latim das portuguesas, embora para isso se valha com frequência do recurso a uma ortografia de cunho etimológico que ele próprio tinha
defendido nas Regras que antecedem o Diálogo:
Petronio. Se com essa razão vos parece, senhor Falencio, que tendes concluido,
ainda vos prouarey que a nossa he mais chegada ao latim que a vossa, como se pode ver
em outros muitos vocabulos nossos de que a vossa tambem se desuia: alguns delles são
estes que se seguem. Vos dizeis lengua, nos lingua, o latim lingua. Dizeis pluma, nos
penna, o latim penna. Dizeis temprano, nos cedo, o latim cito. Dizeis lexos, nos longe, o
latim longe. Dizeis años, nos annos, o latim annos. Dizeis daño, nos damno, o latim
damno. Finalmente que se quantos me ocorrem vos quisesse aqui dizer, seria cousa infinita de nunqua acabar, porque (como digo) a mayor parte dos vocabulos pronunciaes com
aspirações, por onde fica vossa lingua muito mais remota, & desuiada do latim que a
nossa: & se não vedeo nestes que agora vos direy. Vos dizeis hembra, nos femia, o latim
23
24
Ibidem.
Gândavo, ed. cit., p. 64.
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femina. Dizeis hierro nos ferro, o latim ferro. Dizeis hiel, nos fel, o latim fel. Dizeis hado,
nos fado, o latim fato. Dizeis huir nos fugir, o latim fugere. Dizeis hazer, nos fazer, o
latim facere. Pois daqui podeis inferir quanto melhor, & mais graue he a nossa lingua25:
E mais à frente:
Petronio. Porque alem de as aspirações que vsais vos corromperem (como ja disse) a
semelhança que a vossa lingua podia ter com a Latina, tendes nella muitas syllabas que se
dobrão per duas letras vogaes, que o latim nem nós nunqua vsamos: como he, tierra,
suerte, muerte, fuerte, luengo, cierto, & outros infinitos vocabulos, nos quaes a nossa
segue o latim, & não descrepa delle cousa algu,~ & a vossa totalmente parece que nelles se
esmerou em se desuiar delle, como se desta maneira ficasse mais perfecta26.
Gândavo expressa perfeitamente, pois, como o desvio da língua mãe, e portanto a
maior ou menor proximidade ao latim, se erige em argumento fundamental na dialéctica de competição entre as línguas romances. Mas, paradoxalmente, a consciência
românica serve também aos apologetas do português para enquadrar a sua língua num
amplo e coeso marco linguístico e cultural herdeiro do latim. Assim, a Ferreira de
Vera, a alusão ao conjunto das línguas romances serve-lhe para justificar a própria
tipologia linguística do português perante aqueles que a classificavam como língua
inferior. Nas suas palavras: «Esta aspereza não ha na lingua Portuguesa, cujo alphabeto & ajuntamento de letras em syllabas, & desyllabas em dicções) he todo conforme
aos Latinos, Castelhanos, Franceses, & Italianos, & aos mais, que da Latina tem orijem»27. A mesma atitude é recorrente em Leão, quem, cada vez que expõe que o português carece de algum elemento que sim existe em latim, se preocupa de esclarecer
que o mesmo acontece nas outras línguas românicas. Assim, no cap. XIX, quando
refere que o português carece de formas flexivas próprias para expressar a voz passiva
ou a impessoal, deixa claro que tal carência é comum a línguas «como as outras,
espanhóis, italiana e francesa»28; ou, um pouco mais à frente, referindo outras perdas
romances: «Outra falta temos também, com os mais Espanhóis, Franceses e Italianos,
que não temos particípio do futuro, como têm os Latinos [...]»29, ou «Outra certeza é,
como também a todos os mais Espanhóis, Franceses e Italianos, que, como nos nomes
não têm desinências certas de casos, como têm os Latinos, não têm meio para derivarem deles seus advérbios [...]»30.
Torna-se claro, pois, que é na filiação latina onde os defensores do português
encontram o principal argumento para a valorização e afirmação da sua língua. A conciência românica é nestes autores portugueses demasiado forte para ousarem propor
teorias de filiação mais arriscadas, como as que começam a circular por Europa nesse
25
26
27
28
29
30
Gândavo, ed. cit., pp. 66-67.
Gândavo, ed. cit., p. 71.
Vera, ed. cit., p. 79r.
Leão, ed. cit., p. 297.
Leão, ed. cit., p. 298.
Leão, ed. cit., p. 299.
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momento31. No entanto, a pretendida filiação hebraica, ainda que indecisamente
manifestada, mostra que a hipótese monogenética, que faz da língua adâmica e divina
a língua primordial da humanidade, de que derivam as outras, está também fortemente
enraizada no pensamento humanista português.
2. A difícil situação sociolinguística da língua portuguesa em finais do século
XVI era percebida claramente por muitos homens de letras. No Diálogo de Gândavo,
de 1574, o castelhano Falencio recorre ao argumento sociolinguístico de que são os
próprios portugueses os primeiros que renegam da sua língua, afirmação a que Petronio pode apenas responder com um argumento sociológico.
Falencio. Pues señor Petronio, ya que essa gracia es attribuida a la capacidad de
vuestra misma lengua, y por virtud della sois tan habilissimos en tomar las agenas, qual es
la causa porque los mismos Portugueses siendo ella suya la desdeñan, y por su boca confiessan ser ella la mas tosca y barbara del mundo?
Petronio. A isso vos respondo, senhor Falencio, que esta nação Portuguesa pela
mayor parte, he mais affeiçoada ás cousas dos outros Reinos, que ás da sua mesma natureza, cousa que se não acha nas outras nações: porque todas engrandecem sua lingua, &
fazem muito pelas cousas que quadrão nella, sós os Portugueses parece que negão nesta
parte o amor á natureza. E daqui vem a muitos dizerem mal de sua lingua, & consentirem
na opinião dos estrangeiros, o que realmente se póde attribuir mais a ignorancia, que a
razão algu~a que a isso os mova. Porem os homens de bom juizo que bem a sentem, não
podem deixar de engrandecer muito, & confessar comigo que a ella se deue mais louuor
que á vossa32.
A alusão a este sentimento de inferioridade linguística, que, ao que tudo indica, se
mantém ainda em boa parte do século XVII, aparece reiteradamente nos Breves Louvores de Ferreira de Vera, não sem grande ressentimento. Vera trata de convencer os
seus próprios compatriotas das potencialidades da sua língua, consciente do menosprezo de que é alvo, facto a que alude em vários momentos da sua obrita: «Só os Portugueses mal contentes por não saberem o bem, que gozão, o contradizem sem razão,
nem fundamento»33. E surpreende-se de as virtudes do português serem mais bem
apreciadas fora que dentro de Portugal: «Por esta razão muitos authores Castelhanos
confessão ser a nossa lingua aventejada, não sômente a outras muitas, mas ainda a
Latina, & Toscana»34, asserção que ilustra com citações de autores castelhanos do
prestígio de Cervantes ou Lope de Vega, em que eles louvam a doçura e suavidade da
língua portuguesa.
A percepção da precariedade em que o português se encontrava obriga Vera a realizar uma autêntica defesa do poliglotismo como fórmula linguística destinada a
garantir in extremis a manutenção do português em certos âmbitos. A argumentação
31
E que não por casualidade aparecem muitas vezes em lugares com conflitos políticos ou religiosos,
como no âmbito flamenco ou alemão. Cf. Eco, op. cit., pp. 88-93.
32
Gândavo, ed. cit., pp. 57-58.
33
Ferreira de Vera, ed. cit., pp. 79v-80r.
34
Ferreira de Vera, ed. cit., p. 85v.
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ANA MARÍA GARCÍA MARTÍN
deste autor é que os portugueses que falam várias línguas além da sua não deixam de
reconhecer a grandeza do português, face àqueles que abandonam a sua língua sem
que por isso cheguem a dominar as alheias:
Deste mesmo parecer são os Portugueses, que conhecem a grandeza da lingua Portuguesa, porque a sabem fallar, & outras muitas linguas; & não os ingratos barbaros em
todas, que deixão de fallar na sua para dizerem mil erros na estranha35.
Por outro lado, apologetas como Ferreira de Vera fazem um grande esforço para
demonstrar que a língua portuguesa é uma língua exportável, como o era o castelhano,
língua em que, como é sabido, não poucos portugueses publicavam as suas obras, por
considerarem que assim teriam maior difusão internacional. Efectivamente, o castelhano tinha-se convertido já por essas datas numa língua de cultura europeia,
enquanto que o português era sentido por alguns dos seus falantes como uma língua
de restrito âmbito provinciano, preconceito de forte enraizamento cultural, a que não
terá sido alheia, é claro, a conjuntura política. Ferreira de Vera argumenta, no entanto,
a favor da exportabilidade do português, lembrando que muitos autores portugueses já
viram as suas obras traduzidas para várias línguas europeias, ou mesmo para o latim:
Se me disser algum destes, que compõe em Castelhano por ser lingua mais jêral, lhe
direi, que está cego de cobiça, pois não vê, nem conhece a excellencia dos nossos escrittores, quaes forão Ioão de Barros Tito Livio Lusitano, cujas Decadas forão a segunda vez
impressas em Castella na lingua Portuguesa: o insigne Poeta Luis de Camões, que anda
traduzido em muitas linguas, & ultimamente em Latim, que he o mais que se faz aos melhores livros Latinos, ou Gregos & na lingua Portuguesa foi impresso doze vezes: commentado hua~ ; duas em Castelhano, & o mesmo em Italiano, & Frances.
Os Dialogos de Frei Hector Pinto impressos por duas vezes em Portugues: & traduzidos nas linguas Italiana, Castelhana, Francesa, & Inglesa. O mesmo se farâ ainda do
famoso Poeta Francisco Roiz Lobo, que assaz he bem moderno, & conhecidas suas obras.
E o que mais he de espantar, que não somente sustentão este parecer (sendo tam mal
fundado) senão que persuadem a muitos, que avendo de compor alhu~a cousa seja em Castelhano, & não na Portuguesa, porque a não entendem todos, & assi não dâ tanto proveito.
No que bem mostrão seus animos cheios d’interesse, & não honra da impressão.
E mais à frente, Vera acaba a sua defesa do português reclamando para ele o estatuto de língua universal de evangelização, na esteira do pensamento dos primeiros
gramáticos e apologetas do idioma, Oliveira e Barros, que tinham visto no português
uma arma de cristianização:
Concluo com dizer, que pois esta he a opinião dos estranhos, & naturaes, que o melhor entendem, não deve aver quem o contradiga, suppena de não ser contado entre os verdadeiros Portuguêses. Porque por elles sós se pode dizer, que tem a melhor, & a mais
ditosa lingua (excepta a Latina) de todo o universo: pois por ella se anunciou, & manifestou a tantas gentes de tam remotas, & estranhas provincias (como são as da India, Ethio-
35
Ferreira de Vera, ed. cit., p. 86r.
A APOLOGIA DA LÍNGUA PORTUGUESA NO PERÍODO BARROCO: OS BREVES LOUVORES…
113
pia, Brasil, & partes d’Africa) a Fee Catholica, pregandose o Evangelho pelos Portugueses ao mundo todo, penetrando tudo o, que o mar Oceano cerca, não ficando ilha, que não
conheça, & ouça a voz da nação Portuguêsa. E assi podemos accommodar (com muita
razão) aos Portugueses o, que diz o Propheta Rei no Psalmo 18. In imnem terram exivit
sonus corum, & in fines orbis terrae verba corum36.
Reivindicação que, por certo, também tinha feito Leão, nos mesmos parâmetros,
várias décadas antes:
E manifesto é que, como entre todas as nações que no mundo há nenhua~ se alongou
tanto de sua terra natural como a nação portuguesa, pois, sendo do último ocidente e
derradeira parte do mundo, onde, como Plínio diz, os elementos da terra, água, ar, fazem
sua demarcação, penetraram tudo o que o Mar Oceano cerca, e consigo levaram sua língua.
A qual, tão puramente se fala em muitas cidades de África que ao nosso jugo são
sujeitas, como no mesmo Portugal, e em muitas províncias da Etiópia, da Pérsia e da
Índia, onde temos cidades e colónias, nos Sionitas, nos Malaios, nos Maluqueses,
Léqueos, e nos Brasis, e nas muitas e grandes ilhas do Mar Oceano e tantas outras partes
que, com razão, se pode dizer por os Portugueses o que diz o Salmista: «In terra verba
eorum».
E a língua portuguesa com razão se pode ter em muito e chamar ditosa, pois por ela
se anunciou e manifestou a tantas gentes e de tão remotas e estranhas províncias a fé de
Nosso Senhor Jesus Cristo, e foi causa de se tirarem as erróneas e trevas em que o mundo
vivia37.
Neste sentido, os apologetas do português valem-se do recurso ao galego como
exemplo de língua rural que efectivamente não conseguiu atingir uma normativização
ficando, ela sim, reduzida ao seu pequeno âmbito regional38. Os gramáticos portugueses reconheceram sempre, no entanto, que ambas as línguas tinham sido uma mesma
no seu início, que, como diz Leão, «ambas eram antigamente quase ua~ mesma, nas
palavras e nos ditongos e pronunciação que as outras partes de Espanha não têm”39.
Mas a portuguesa avantajou a galega por esta última carecer de um espaço sociopolítico que favorecesse a sua normativização:
Da qual língua galega a portuguesa se avantajou tanto, quanto na cópia como na
elegância dela vemos. O que se causou por em Portugal haver reis e corte que é a oficina
onde os vocábulos se forjam e pulem e donde manam para os outros homens, o que nunca
houve em Galiza40.
Vera, ed. cit., pp. 87v-88r.
Leão, ed. cit., p. 315.
38
Esta questão já mereceu a análise demorada de F. Vázquez Corredoira, em A construção da língua portuguesa frente ao castelhano. O galego como exemplo a contrário, Santiago de Compostela, Laiovento, 1998.
39
Leão, ed. cit., p. 219.
40
Leão, ed. cit., p. 220.
36
37
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ANA MARÍA GARCÍA MARTÍN
Assim se explicam também os esforços feitos pelos apologetas para demonstrar
que o português tinha evoluído desde as suas origens, recorrendo para isso, com frequência, a uma metáfora biológica aplicada à língua. Leão, por exemplo, considera
que em tempos dos reis D. Afonso VI de Castela e D. Henrique, a língua portuguesa
se encontrava na sua «meninice» e se caracterizava por ser «mui rude e mui curta e
falta de palavras e cousas», até à evolução experimentada em tempos do rei D. Dinis,
que se produz a par da castelhana em tempos de Afonso X, «E assim se foram
ornando ambas as línguas, portuguesa e castelhana, até à polícia em que agora
estão»41.
Leão insiste em que a evolução de ambas as línguas se verificou em paralelo, deixando claro que nenhuma delas – leia-se o português – se atrasou em relação à outra,
posição defensiva que deixa transparecer, mais uma vez, uma dinâmica de conflito.
No capítulo XII da sua Origem, intitulado «Porque os Portugueses não usurparam tantos vocábulos dos Castelhanos como tomam de outras nações mais remotas», Leão
admira-se da escassez de termos castelhanos que penetraram no português, chegando
a admitir que os portugueses parecem querer fugir de qualquer semelhança com a língua vizinha. E para explicar tal repúdio, recorre a razões de ordem fonética, baseadas
na dissemelhança fonética de ambas as línguas42, justificação que o parece satisfazer,
pois não chega a fornecer um só exemplo de castelhanismo no português face às dezenas de empréstimos que enumera de outras línguas. No entanto, preocupa-se em
esclarecer que muitos vocábulos similares em castelhano e português não são resultado do empréstimo lexical da primeira língua à segunda, pois pertencem a um fundo
românico comum:
E, se alguns disserem que há muitos vocábulos que os Portugueses têm semelhantes
aos Castelhanos, não é porque deles os tomassem, mas são comuns a eles, como são aos
Castelhanos, Italianos e Franceses, sem saber quem os tomou, de quem, como são muitos
derivados dos latinos ou godos, que cada um corrompeu segundo tinha a língua [...]43.
Finalmente, enumera alguns exemplos de lusismos em castelhano, justificando,
assim, a transferência lexical entre ambas as línguas em virtude da situação política
(monarquia dual). É este, pois, um capítulo muito interessante da literatura apologética do português que deve ser lido, mais uma vez, como uma defesa da autonomia da
língua portuguesa face ao castelhano. Leão não duvida, portanto, que ambas as línguas se encontrem ao mesmo nível evolutivo, na sua maturidade, poderíamos dizer,
entendendo a evolução em função da dita metáfora biológica. Esta convicção obriga-o
a rebater a ideia, no cap. XXIV, intitulado «Que não é falta da bondade da Língua Portuguesa não ser comum a tantas gentes da Europa como a Castelhana», de que a maior
expansão do castelhano seja consequência de uma maior idoneidade expressiva ou
Ibidem.
Põe como exemplo a oposição entre o n castelhano e o m português, ou os ditongos castelhanos ue e ie,
em que o português se mostra, de novo, mais próximo do latim.
43
Leão, ed. cit., pp. 306-307.
41
42
A APOLOGIA DA LÍNGUA PORTUGUESA NO PERÍODO BARROCO: OS BREVES LOUVORES…
115
comunicativa, insistindo em que tal situação é apenas resultado de contingências políticas:
Os Castelhanos e os afeiçoados a sua língua se jactam que, por a elegância e
excelência dela, é comum a muitas nações que a entendem e falam como na mesma
Espanha: em Itália e nos estados de Flandres e ainda entre Mouros, que a têm por sua
aljamia; e que a portuguesa tem os limites tão estreitos, que não passa da raia de Portugal,
tomando daí argumento da melhoria de u~a e menoscabo da outra44.
Leão contesta estes argumentos pela sua própria base, defendendo que «estenderse u~a língua mais que outra não é eficaz argumento de melhoria ou pioria»45. E como
exemplo refere imediatamente a restrita e humilde origem geográfica da língua latina,
que, apesar desse facto, era tida pela melhor língua do mundo. Como exemplo contrário oferece o caso do árabe, língua «bárbara y hórrida» que, no entanto, conseguiu
propagar-se por África, Ásia e muitas partes da Europa, demonstrando aí um claro
preconceito linguístico46. E acaba explicando que a língua castelhana tem maior presença no mundo, como consequência da expansão militar e política na Itália e na
Flandres: «A causa da língua Castelhana se estender por algu~as províncias e haver
nelas muitos que as saibam entender e falar, não é por a bondade da língua (que nós
não lhe negamos), mas por a necessidade que dela têm aquestas gentes que dela usam
[...]»47.
3. Ao lado dos argumentos sociolinguísticos, que recolhem as opiniões estereotipadas sobre as línguas produto da sua situação face a realidades alheias a elas, os
argumentos linguísticos, aqueles que surgem de uma suposta avaliação objectiva da
própria língua, tiveram também um importante peso na Questão portuguesa. Alguns
deles, os mais importantes de facto, são mencionados por Ferreira de Vera ao enumerar as cinco qualidades necessárias para que uma língua possa ser considerada perfeita:
Despois delles vierão os Romanos, de que tomamos muita parte da lingua Latina,
com que ficou limada, & aperfeiçoada de maneira, que tem as cinquo qualidades, que se
requerem para ser perfeita hua~ lingua. Porque he copiosa de palavras: boa na pronunciação, pois não acaba em consoantes juntas, como a Francesa, & outras: escreve o que
falla, o que não tem a Tudesca, nem o Vasconço, & linguajem dos Vizcaînhos, que he tal,
que se não pode escreuer: he apta para todos os estylos de compor: & sobretudo he tam
breve, que em algu~as cousas o he mais que a latina: & no derivar de hu~as palavra muitas,
he mais copiosa: he mais compendiosa que outras linguas em muitas palavras; como
Alvoroço, Adherencia: & sobre todas esta Saudades; que com muitas palavras d’outras
linguas se não pode explicar48.
Leão, ed. cit., p. 313.
Ibidem.
46
Ibidem.
47
Leão, ed. cit., p. 314.
48
Vera, ed. cit., pp. 82v-83r. Digamos desde já que alguns de estes argumentos são extraídos da obra de
Leão. Entre eles o último, o conceito de ‘compendioso’, e os exemplos léxicos que lhe seguem: alvoroço,
aderência e saudades.
44
45
116
ANA MARÍA GARCÍA MARTÍN
Vejamos, pois: das cinco qualidades mencionadas, as seguintes aludem à estrutura própria do português como sistema linguístico: «he copiosa de palavras» e «he
mais compendiosa que outras linguas em muitas palavras» (argumentos lexical e lexical-semântico); «boa na pronunciação» (argumento fonético); «escreve o que falla»
(argumento ortográfico); «he tam breve» e «no derivar de hu~a palavra muitcs, he mais
copiosa» (argumentos morfosintáctico e morfológico). De todos eles, o mais recorrente na literatura apologética do português é o argumento lexical.
O desenvolvimento e a afirmação das capacidades expressivas da língua são fundamentais no processo de valorização do vulgar. Pretende-se, agora, demonstrar que o
romance desfruta das mesmas virtualidades expressivas que o latim, e assim, no
âmbito românico, a eficácia expressiva converte-se, também ela, em factor comparativo de línguas. O procedimiento preferido para mostrar a superior capacidade expressiva de uma língua consiste em encontrar nela palavras que não existam (ou se pense
que não existem) em outra ou outras, pois a falta da palavra é interpretada como
carência do conceito que designa. Em Gândavo não podia faltar este argumento,
esgrimido para reivindicar a riqueza lexical e expressiva do português:
E allem disso outros temos cá de que vós lá careceis, sem os quaes não podeis por
nenhum modo bem explicar aquillo que elles significão, conuem a saber, dizemos geito,
saudade, lembrança, praguejar, enxergar, agasalhar, & c. E nos não carecemos daquelles
com que vós quereis significar estes & os mais que ha. E por todas estas razões, & outras
muitas que alegarey não se pode a esta nossa lingua chamar pobre nem grosseira, pois na
realidade da verdade o não he, nem pessoa que sentir bem della auera que tal confesse49.
No entanto, a reflexão sobre as potencialidades expressivas do português vinha
de muito antes. Já no diálogo barrosiano o fantasma da pobreza lexical do português
parece pairar sobre toda a obra. O tema é colocado pelo interlocutor filho, António,
uma vez encetado o tema da competência entre as línguas românicas:
FILHO – Pois muitos dizem que a língua espanhól é desfaleçida de vocábulos, e
que, quanta vantáge tem a italiana à castelhana, tanto exçéde ésta a portuguesa, e que em
seu respeito se póde chamar elegante50.
É curioso como Barros foge à questão levantada, que deixa sem resposta explícita, para passar a aplicar ao espaço linguístico espanhol o mesmo argumento que já
tinha utilizado antes para o italiano, a menção de dialectos pertencentes a esse espaço
classificando-os de formas linguísticas bárbaras, por carecerem de escrita: «Çérto é
que a língua castelhana muito melhór é que o vanconço de Biscáia e o çeçeár çigano
de Sevilha, as quáes nam se pódem escrever»51. A seguir, deixando em suspenso a resposta («Mas, quem [h]ouvér de julgár éstas linguágens, [h]á de saber d’ambas tanto,
que entenda os defeitos e perfeições de cada ua~ »52), passa a enumerar alguns aspectos
49
50
51
52
Gândavo, ed. cit., pp. 50-51.
Barros, ed. cit., p. 397.
Ibidem.
Ibidem.
A APOLOGIA DA LÍNGUA PORTUGUESA NO PERÍODO BARROCO: OS BREVES LOUVORES…
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do português dignos de louvor, como a semelhança com o latim e outras qualidades. E
mais à frente, sem que chegue a responder explicitamente à pergunta feita por António
sobre qual das duas línguas ibéricas é mais rica em vocabulário, preocupa-se de
defender o português argumentando que a todo aquele que tenha alguma coisa que
dizer, não lhe haverão de faltar vocábulos nesta língua:
Çérto, a quem nam faleçer matéria e engenho pera demostrár sua tençám, em nóssa
linguágem nam lhe faleçerám vocábulos, porque de crer é que, se Aristóteles fora nósso
naturál, nam fora buscár linguágem emprestáda pera escrever na filosofia e em todalas
outras matérias de que tratou53.
Note-se a alusão que o humanista faz ao recurso a uma língua emprestada: não a
nomeia, mas cremos mais provável que se esteja a referir à castelhana que à latina. O
certo é que Barros não chega a reconhecer em nenhum momento a pobreza lexical do
português, nem outra qualquer deficiência em relação à língua castelhana, todavia, a
sua preocupação por fornecer mecanismos que venham pôr fim a essa situação parece
indicar-nos a assunção implícita do estereótipo linguístico. Assim, o principal mecanismo proposto pelo gramático para incrementar o léxico português é a incentivação
do neologismo. Deste modo, seguindo com o exemplo aristotélico, diz:
E, se lhe faleçera algum termo soçinto, fizéra ô que vemos em muitas pártes aos presentes, os quáes, quando caréçem de termos teologáes, os teólogos, pera intendimento
reál da cousa, ôs compuséram54.
Ora bem, esses neologismos devem proceder da fonte latina, e hão-de passar pela
sanção do uso até se adaptarem à língua portuguesa:
FILHO – A língua portuguesa, onde desfaleçer com vérbo ou nome que comprenda
em bréve algua~ cousa, poderá formár algum vérbo aprazível à orelha, sem falár per rodeo,
como essoutros fázem?
PAI – Si, porque a liçença que Horáçio, em a sua Árte Poética, dá aos latinos pera
compoerem vocábulos nóvos, contanto que saiam da fonte grega, éssa poderemos tomár,
se ôs derivármos da latina.
FILHO – Lógo, per essa maneira nos faremos copiósos de vocábulos e, reçebidos
em uso, ficar-nos-ám tam próprios como sam os latinos que óra temos, que se tomáram
per esse módo55.
Outro recurso defendido pelo humanista para incrementar o léxico português é o
incentivo da tradução, à imitação daquilo que foi já feito noutros países, com o que
Barros parece assumir, de novo, a inferioridade lexical do português face a outras línguas:
53
54
55
56
Barros, ed. cit., p. 400.
Ibidem.
Barros, ed. cit., p. 401.
Ibidem.
118
ANA MARÍA GARCÍA MARTÍN
Mas agóra, em nóssos tempos, com ajuda da empressám, deu-se tanto a gente castelhana e italiana e françesa às treladações latinas, usurpando vocábulos, que ôs fez máis
elegantes do que foram óra [h]á çincoenta anos.56
Também no Diálogo de Gândavo a questão lexical torna-se proeminente, ao ser o
primeiro argumento esgrimido pelo castelhano Falencio para descategorizar a língua
portuguesa:
Fal. La causa señor Petronio de vuestra lengua ser juzgada por essa (no solo de todas
las naciones del mundo, mas aun de los mismos Portugueses que la posseen) es porque en
su principio como se puede ver en el lenguaje de algunas historias y chronicas antiguas de
Portugal, vsauan muchos vocabulos muy differentes y improprios de su natural significación y origen. Y despues conosciendo los hombres por el tiempo adelante la impropriedad, y poca policia deste lenguaje, vinieron poco a poco appurandolo con diriuar y componer vocabulos de diuersas lenguas ayuntandolos a la suya: y ansi con fauor de las
agenas supplieron muchos defectos que ella en si tenia. Por donde se no puede llamar verdadero Portugues el que agora en estos tiempos vsais, sino el antiguo que en principio se
vsaua, como ya tengo dicho. Y por esso con razon llaman todos a esta lengua barbara, que
en la realidad de la verdad lo es, pues de si es tan pobre, y tan poco polida, que sin ayuda
de las otras quedaria tan ruda y tosca, que en estos tiempos no se poderia oir, ni aun
entender de los mismos Portugueses57
Podemos perguntar-nos que considera Gândavo por «natural significación y origen», estará a referir-se ao desvio semântico relativamente ao latim? Seja como for, a
solução encontrada para o problema, que não é outra que o recurso ao empréstimo
lexical («vinieron poco a poco appurandolo con diriuar y componer vocabulos de
diuersas lenguas ayuntandolos a la suya: y ansi con fauor de las agenas supplieron
muchos defectos que ella en si tenia»), é visto de forma negativa, como uma negação
da própria identidade linguística («Por donde se no puede llamar verdadero Portugues
el que agora en estos tiempos vsais, sino el antiguo que en principio se vsaua, como ya
tengo dicho»). Claro que o português Petronio contesta radicalmente a suposta origem
imprópria do léxico português, recorrendo mais uma vez ao argumento da filiação e
semelhança com o latim:
Petro. Nessa opinião não consentirey eu, nem vos senhor Falencio deuieis de ir com
ella mais por diante: porque aueis de saber que esta nossa lingua foy inuentada como
forão as outras linguas. E se algua~ nesta parte a fauoreceo foy a Latina, da qual todos
estes nossos vocabulos, ou a mayor parte delles trazem sua origem. E assi a linguagem
que nesse antiguo tempo se vsaua neste nosso Portugal a que vos chamais tosca & ruda,
está claro em muitos vocabulos ser mais chegada ao latim que esta que agora vsamos:
porque hoje em dia ha neste Reino lugares onde ainda se vsa delles como antiguamente.
Pelo que se póde affirmar com verdade que não era outra cousa esta maneira de falar
senão hum latim corrupto58.
57
58
Gândavo, ed. cit., pp. 44-46.
Gândavo, ed. cit., pp. 46-47.
A APOLOGIA DA LÍNGUA PORTUGUESA NO PERÍODO BARROCO: OS BREVES LOUVORES…
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A consciência da origem latina do vocabulário patrimonial português é argumento fundamental na defesa desta língua, e, nesse sentido, Gândavo reconhece uma
maior proximidade em relação à fonte nos primórdios da gestação do português, considerando que a língua portuguesa antiga não era outra coisa que um «latim corrupto».
Parece-nos notável também a consciência dialectal na referência às falas do norte,
mais conservadoras, com um claro sabor arcaizante já para os gramáticos quinhentistas.
Por outro lado, Gândavo oferece uma explicação justificativa da diversificação
etimológica: à medida que foi sendo necessário criaram-se novas palavras, que correspondiam a novos conceitos, sem que se chegue a explicitar a origem etimológica destas, defendendo-as, seja como for, como formas adequadas ao conceito que querem
expressar. Nesse sentido, na medida em que cumprem a função de expressar conceitos, são melhores que quaisquer outras de outras línguas. No entanto, acaba o seu
argumento legitimando de novo o português como «natural & verdadeiro», isto é,
conforme à sua etimologia latina.
Mas como a gente pelo tempo adiante fosse em crecimento, & os homens teuessem
necessidade de exercitarem esta lingua em varios negocios, cada vez a forão mais appurando descobrindo nella outros vocabulos que ainda que não são latinos como estes antiguos que atras deixamos, todauia soam melhor aos ouuidos da gente polida, & são mais
proprios & accomodados pera significarem aquillo que queremos, que outros que aja em
nenhu~a lingua. Ora naquelles em que seguimos o latim, não ha que reprehender, pois claramente se vé que quanto mais a elle nos chegamos, tanto melhor parecem & mais authorizada fica nossa linguagem. Pela qual razão se não pode negar ser este o natural, & verdadeiro Portugues que agora vsamos59
Seja como for, Gândavo aparenta mais indecisão do que outros contemporâneos
seus no recurso a outras línguas como fontes vocabulares. Assim, o próprio Barros
justifica o empréstimo lexical de línguas asiáticas, que explica como resultado de uma
convivência cultural, e que é aprovado pela sanção do uso, natural e não afectado, na
boca dos nativos portugueses:
E agóra, da conquista de Ásia, tomámos CHATINHAR por mercadejar; BENIÁGA
por mercadoria; LASCARIM por hómem de guérra; ÇUMBÁIA por mesura e cortesia, e
outros vocábulos que sam já tam naturáes na boca dos hómens que naquélas pártes andáram, como o seu próprio português60.
Esta atitude positiva perante o empréstimo lexical de outras línguas, românicas e
não só, é especialmente notável em Nunes do Leão, que dedica bastantes dos capítulos da sua Origem à revisão do léxico que o português extraiu de línguas como o
grego, o árabe, o hebreu, o francês, o italiano ou o alemão. O recurso é avaliado por
Leão como o resultado natural da convivência, mais ou menos prolongada e profunda,
59
60
Gândavo, ed. cit., pp. 47-49.
Barros, ed. cit., pp. 401-402.
120
ANA MARÍA GARCÍA MARTÍN
de línguas diferentes, e justifica-o com o exemplo latino, língua que assimilou grande
quantidade de vocábulos do grego, e que foi bastante permeável aos vocábulos dos
povos conquistados61. Assim, o exemplar caso romano é considerado, novamente, um
precedente do caso português:
Isto mesmo nos aconteceu a nós, que por as cousas que de novo se inventaram e por
as conquistas e comércio que tivemos com outras gentes, nos vieram muitos vocábulos,
como foram, da Índia, catle, cabaia, lascarim, chatim, (de que fizemos chatinar),
veniaga, corja; e de África, alquicé, filele, balaio. E, por venção de muitas cousas: bombarda, arcabuz, espingarda, bomba, estribo e muitos novamente usurpados dos latinos,
como esplêndido, arrogante, como do (sic) acomodar, deliberar, consulta, primórdio,
infesto, infestar, aludir, que ora não há trinta anos se não usavam. Todos estes exemplos
trouxemos para mostrar claramente que não há língua algu~a pura nem a houve sem ter
mistura de outras línguas62.
Portanto, em última instância, o que justifica o empréstimo é o facto de permitir
expressar conceitos novos, e por isso, uma vez que serve para aumentar a capacidade
expressiva da língua, pouco importa que a procedência seja latina, asiática ou africana. Em Leão surpreende, pela sua modernidade, a afirmação de que não há línguas
puras, e que todas elas possuem termos de outras. E isso porque, como o autor explica
no cap. XXI, todas as línguas possuem termos de que carecem outras, entre elas o português, que possui termos que não existem nem em latim nem em outras línguas,
como, entre outros, achaque, aderência, alvoroço, ou saudade, termo «próprio dos
Portugueses, que naturalmente são maviosos e afeiçoados, não há língua em que da
mesma maneira se possa explicar, nem ainda por muitas palavras que se declare
bem»63. A mesma razão justifica o recurso ao vocabulário de outras línguas, fundamentalmente do latim ou grego, cujo empréstimo Leão defende também em virtude de
um critério de universalidade léxico-semântica, coerente com a sua defesa de uma
ortografia etimológica universalizante. Eis a justificação:
Além disso, há, nas línguas alheias, alguns termos que não há na nossa para declarar
o que sentimos ou ensinamos. Pelo que, cada dia os tomamos das línguas latina ou grega,
por terem para isso seus términos sabidos e notos a todos64.
Essa atitude positiva e aberta perante o empréstimo lexical leva Nunes do Leão a
criticar aqueles que defendem o léxico tradicional sem permitirem a inovação vocabular, «porque, se essa regra se guardara, e não renováramos vocábulos ou não os tomá-
Leão, ed. cit., pp. 213-214.
Leão, ed. cit., pp. 214-215.
63
Leão, ed. cit., p. 304.
64
Leão, ed. cit., p. 317.
65
Assinale-se que, mais uma vez, ao referir-se às origens mais rudes do português, faz alusão às outras
línguas peninsulares, para deixar claro que a evolução delas foi paralela, e não se encontra uma em um estádio
evolutivo superior à outra.
61
62
A APOLOGIA DA LÍNGUA PORTUGUESA NO PERÍODO BARROCO: OS BREVES LOUVORES…
121
ramos emprestados quando os não temos nossos, estivera a língua portuguesa e as
outras mais de Espanha65 na torpe rudeza em que a princípio estavam, quando, por
comigo, diziam migo e, por algu~a coisa, algorrem [...]»66. Leão conclui, pois, que «de
necessidade, se hão-de inovar vocábulos e tomar emprestados»67 e a partir dessa
necessidade justifica de novo o empréstimo lexical do latim:
Sendo, pois, a língua portuguesa, na origem, latina, e reformada muitas vezes, e
ampliada de vocábulos latinos de que carecíamos, por a corrupção que os Godos nela
fizeram sem nenhum pejo, com mais honra nossa nos devemos approveitar dela, como
filhos que dos bens paternos se ajudam, mais sem afronta sua, o que não fariam os estranhos68.
Mas Leão refere ainda outra maneira de incrementar a capacidade expressiva de
uma língua: a utilização de palavras em sentido metafórico, a par do emprego com o seu
significado original ou habitual, multiplica as suas virtualidades polissémicas. Em sua
opinião, é o português o povo que emprega mais amplamente a expressão metafórica:
A trasladação de palavras de u~a significação em outra, a que os Gregos chamam
metáfora, é mais natural aos Portugueses que a nenhua~ outra nação, e em que têm muita
graça e ficam ricos de muitas palavras e maneiras de falar [...]69
Estas maneiras de falar que os Latinos têm em muito, quando se persevera muito
nelas, não se apartando do sentido metafórico em que começaram, é tão frequente aos
Portugueses que alguns estarão muito espaço de tempo falando sempre metaforicamente,
se mudar da mesma metáfora70.
Leão oferece depois alguns exemplos desse uso metafórico, mas, o que nos interessa é destacar como qualquer caminho para a ampliação das potencialidades expressivas do português é, nesta altura, explorado.
Contudo, há outro argumento que ocupa um lugar de relevo nas Questões da língua e que ainda hoje em dia é recorrente quando o falante de uma língua emite juízos
sobre línguas estrangeiras: o argumento da facilidade ou dificuldade intrínseca das
línguas. Este tema tem uma presença importante no Diálogo de Gândavo, onde à pergunta de por que razão os estrangeiros têm em tão pouco a língua portuguesa, colocada pelo castelhano Falencio, o português Petronio responde:
Petronio. A causa desse aborrecimento, & desprezo (ou por melhor dizer inueja) senhor Falencio, naceo de ella ser em si tão difficultosa, que de marauilha vimos estrangeiro
algum que a podesse bem tomar, ainda que neste Reino andasse muitos annos, & trabalhasse pela imprender quanto humanamente fosse possiuel. E daqui vem a todas as nações
66
67
68
69
70
71
Leão, ed. cit., p. 319.
Ibidem.
Leão, ed. cit., p. 320.
Leão, ed. cit., p. 232.
Leão, ed. cit., p. 233.
Gândavo, ed. cit., pp. 52-53.
122
ANA MARÍA GARCÍA MARTÍN
aborreceremna tanto, & não na poderem gostar, por lhes ser (como digo) tão pouco facil,
& de tão ruim desistão71.
É claro que Falencio aproveita o argumento para colocar em destaque que, nesse
sentido, a língua castelhana é muito melhor, pois resulta fácil de adquirir pelos estrangeiros:
Falencio. Luego si assi es, muy mejor es la Castellana y mas vtil a todos: pues no
hay nacion en el mundo que no la tome con mucha facilidad, y la tenga en mucho mas
estima que la vuestra, la qual con razon se deue llamar grossera y tosca, ya que es tan
escabrosa y difficil de tomar, que no aprouecha a nadie el vso della sino a sus naturales72.
Mas se Falencio associa facilidade a utilidade e a possibilidade de difusão alémfronteiras, Petronio, dando a volta ao argumento, considera a dificuldade como um
signo de excelência:
Petronio. Antes hu~a das prouas que eu tenho de ella ser melhor, & muito mais delicada que a vossa, he por essa difficuldade que vós lhe achais, porque vemos por experiencia que quanto as cousas em si são melhores, & mais excellentes, tanto he mais trabalhoso
& difficil ao homem alcançallas. Quanto mais se esta nossa lingua fora difficultosa por
causa de ser barbara, & grosseira, de crer he, que a mesma difficuldade tiueramos em
tomar as outras linguas, que tem os estrangeiros em tomar a nossa. Mas pelo contrario he
ella tal, & de tanta preminencia, que a todos os naturaes habilita & dispoem de maneira,
que em pouco tempo & com muita facilidade (como claramente se vé por experiencia)
tomão qualquer lingua estranha, & nisto fazem ventagem a todas as outras nações73.
E acrescenta:
Petronio. Pois de crer he, que se os Portugueses teuerão ruim lingua, & fora tão grosseira como dizem, que não contrafezeram com ella tambem as outras linguas, nem lhes
aproueitára nesta parte seu bom ingenho74.
Isto é, a própria complexidade do português, que, portanto, Gândavo acaba por
assumir, capacita os seus falantes a uma mais fácil e rápida aprendizagem das línguas
alheias. Quase em meados do século XVII, o argumento volta a ser recuperado em
termos semelhantes por Ferreira de Vera, que encontra nele a justificação dada por
alguns para explicar a pouca «exportabilidade» da língua portuguesa, com fama de
grosseira e remota.
Porque a lingua Portuguesa se não toma das outras linguas com a facilidade, com
que os Portugueses tomão as de outras nações? E sem ouvirem resposta, dizem elles mesmos: Por ser a lingua mais grosseira, & mais remota75.
72
73
74
75
Gândavo, ed. cit., p. 53.
Gândavo, ed. cit., pp. 53-55.
Gândavo, ed. cit., pp. 56-57.
Vera, ed. cit., p. 78r.
A APOLOGIA DA LÍNGUA PORTUGUESA NO PERÍODO BARROCO: OS BREVES LOUVORES…
123
A explicação que Vera oferece para essa dificuldade de aprendizagem do português não é original, mas literalmente copiada da Origem de Nunes do Leão, em concreto do cap. XXIII, intitulado «Porque a língua portuguesa se não toma das outras
nações com a facilidade com que os Portugueses tomam as outras línguas»76. Nele,
Leão aborda, como Gândavo o fazia, o argumento da dificuldade intrínseca do português, chegando a proporcionar uma explicação fonética para esse facto: a maior dificuldade do português radica na pronúncia dos ditongos nasais, inexistentes em outras
línguas:
A dificuldade que os estrangeiros acham na língua portuguesa por que a não tomam
facilmente, não é por a obscuridade das palavras, nem por a aspereza ou má conglutinação e ajuntamento de letras, que todas são latinas e mui propínquas às outras línguas
derivadas da latina, scilicet, francesa, italiana e castelhana; somente por seis ditongos que
temos, em que intervêm (sic) um m entre duas vogais que não têm a pronunciação pura e
inteira, mas fica líquido e sem força, sem se pegar à letra precedente, nem ferir na
seguinte, que nós suprimos com um til77.
Contudo, depois de oferecer esta justificação fonética, Leão reivindica a facilidade e suavidade da língua, a sua graça e energia, e a sua capacidade para servir ao
pensamento elevado. Capacidade comunicativa e expressiva que fica patente na língua escrita, como demonstra a tradução de obras literárias portuguesas a outras línguas. Parece, pois, aceitar uma maior «exportabilidade» da língua escrita em relação à
língua oral:
Mas, em o mais, não há por que se negue a facilidade e suavidade da língua portuguesa, que para tudo tem graça e energia, e é capaz de nela se escreverem todalas matérias dignissimamente, assim em prosa como em verso.
E, posto que aos estrangeiros se faça aquela dificuldade na pronunciação daqueles
ditongos, não é assim na escritura, porque é facílima de se entender de todos, como se vê
pelas muitas trasladações que homens estrangeiros fizeram de livros e obras de Portugueses78.
Leão, ed. cit., p. 309.
Leão, ed. cit., p. 310.
78
Leão, ed. cit., p. 311. As palavras de Vera são quase literais: «Assi que a difficuldade que os estranjeiros achão na lingua Portuguesa (porque a não tomão facilmente) não he por oscuridade das palavras, nem por
aspereza, ou maa conglutinação, & ajuntamento de letras: senão polos seis dittongos, que temos, em que entrevem hum M, entre duas vogaes, que não tem a pronunciação pura, & inteira, mas fica liquido, & sem força, sem
se pegar a letra precedente, nem ferir na seguinte, que nos supprimos com hum til: como, irmão, irmãa, be~es,
confiıs,~ bõos, algu~us. Esta pronunciação de nenhu~a maneira he aspera, nem fragosa, como as que dissemos dos
Hebreos, ou Syros; mas mui suave, pois he hu~ letra tam branda, como he o M, que todas as linguas tem: cuja
pronunciação, por assi ser frautada [¿], he alheia de outras nações: mas em o mais não ha porque se negue a
facilidade, & suavidade da lingua Portuguesa, que para tudo tem graça, & energia, & he capaz de nella se escreverem todas as materias dignissimamente, assi em prosa, como em verso.
Mas não he assi na escrittura, inda que seja a pronunciação daquelles dittongos Portugueses: porque
com elles a lingua Portuguesa se da a entender a todos; como se vee pelas muitas trasladações, que homens
estranjeiros fizerão de livros, & obras de Portugueses. E assi elles não a contradizem; antes a gabão: como provarei neste trattado».
76
77
124
ANA MARÍA GARCÍA MARTÍN
Ora, se recuperamos os argumentos referidos por Vera como signos de excelência
da língua portuguesa, lembraremos que um deles era «& sobretudo he tam breve, que
em algu~as cousas o he mais que a latina: & no derivar de hu~a palavra muitas, he mais
copiosa”79. A que se refere Vera com o adjectivo «breve» aplicado a uma língua? A
resposta aparece-nos claramente em Nunes do Leão, de onde Vera, mais uma vez, retirou o conceito. Leão não utiliza o termo ‘breve’, mas sim o adjectivo ‘curta’ e o substantivo ‘curteza’, com que se refere à economia de meios, basicamente morfológicos,
de que o português dispõe, em comparação com o latim, e com que consegue uma
idêntica virtualidade expressiva e comunicativa. Assim, por exemplo, referindo-se às
vozes activa, passiva e impessoal, argumenta que o português carece formalmente das
duas últimas, mas os seus significados podem ser obtidos mediante circunlóquios:
De duas vozes destas, scilicet da impessoal e passiva, carece a língua portuguesa,
como as outras, espanhóis, italiana e francesa, porque o que haviam de dizer por suas
palavras directas e estendidas, como fazem os Latinos e os Gregos, o dizem por circunlóquios e rodeios de vozes emprestadas do verbo substantivo, sou, és [...]80
Esta celebrada economia de meios pode dar-se também no plano lexical: «Outra
curteza tem a língua espanhola, que a um só verbo dá muitas significações, suprindo,
com ua~ palavra, muitas»81. Para o qual dá como exemplo a palavra acordar e seus
múltiplos significados em português, que correspondem a diferentes significantes em
latim. Uma vez mais, pois, e como acontecia no caso do emprego metafórico das
palavras, Leão considera a polissemia como um indicador de excelência linguística.
Parece-nos ver aqui uma inovadora tentativa de superar a consideração de inferioridade estrutural das línguas vulgares em relação ao latim, e talvez não seja forçado
admitir que em Leão o conceito de corrupção parece começar a ser substituído pelo de
evolução. Efectivamente, o humanista não parece disposto a aceitar que o português,
formando conjunto com as outras línguas românicas, esteja em inferioridade de condições linguísticas em relação ao latim: aceita, sim, a riqueza expressiva da língua
mãe e o recurso a ela para incrementar o vocabulário português, mas afirma, na sua
diferença, os mecanismos estruturais próprios do vulgar.
Devemos entender nessa mesma linha a justificação que Leão faz no capítulo XX
do sistema de derivação morfológica do português: esta língua permite derivar muitas
mais palavras de uma raiz lexical que o latim. E com este mecanismo demonstra-se a
capacidade do vulgar para o ordenamento analógico, expressão de superioridade das
línguas, face à anomalia, que, como vimos, se relaciona com a consideração das línguas vulgares como línguas «selvagens». O que Leão quer mostrar é que o sistema de
derivação morfológica é mais rentável em português do que em latim, e, além disso,
mais consequente estruturalmente, pois é lógico que duas palavras de um mesmo
campo semântico compartam uma mesma raiz lexical. Por isso afirma: «Assim como
79
80
81
Vera, ed. cit., pp. 82v-83r.
Leão, ed. cit., p. 297.
Leão, ed. cit., p. 298.
A APOLOGIA DA LÍNGUA PORTUGUESA NO PERÍODO BARROCO: OS BREVES LOUVORES…
125
a língua portuguesa em algu~as cousas é mais curta que a latina, assim em outras muitas é mais larga e copiosa, formando de um vocábulo muitos, por que tem mais própria significação que por outros»82. E o escrúpulo perante a anomalia chega a ser
extremo: «Ao que anda errada a razão da analogia que os Castelhanos guardam, porque, dizendo puerta, dizem portero, e de fuerte, dizem fortaleza, e do puerto, portazgo»83.
Encontramos o mesmo raciocínio, poucos anos antes, em Gândavo, para quem a
rivalidade entre português e castelhano se apoiava também em argumentos derivados
dos binómios etimologia / significação e regularidade / anomalia:
Pela qual razão se não pode negar ser este o natural, & verdadeiro Portugues que
agora vsamos: no qual se desapassionadamente quiserdes pôr os olhos , & notar a ethymologia & significação de alguns vocabulos desta nossa lingua, achareis que em muitas
partes faz ventagem á vossa, como logo vos posso mostrar em hum nosso vocabulo que
agora me lembra (allem doutros muitos que aqui não alego por escusar proluxidade) & he
que dizemos olhar, & vos mirar: pois se o instrumento com que vemos chamamos olhos,
com razão dizemos olhar & vós chamaislhe ojos, & dizeis mirar. O qual verbo não pode
ser conveniente, nem conforme a sua significação, sem dizerdes ojar, ou chamardes aos
olhos miros. Outras muitas impropriedades de vocabulos ha desta maneira em vossa lingua que muy raramente ou nunqua se acharão na nossa84.
Efectivamente, os argumentos para a defesa do português parecem aqui fundir-se:
por um lado, o português apresenta maior conformidade com o latim pela manutenção
de um maior número de significados etimológicos, facto a que se acrescenta uma
superior coerência no emprego dos mecanismos morfológicos derivativos. Porque
compartem uma mesma raiz lexical, olh, é mais evidente a relação semântica entre
ambas as palavras, substantivo e verbo, monstrando assim a língua portuguesa uma
maior tendência à analogia face à anomalia existente em castelhano, onde duas palavras do mesmo campo semântico se valem de dois lexemas diferentes. Assim, a regularidade morfológica, como qualquer prova de gramaticalidade, é considerada como
um indício de perfeição das línguas, face à anomalia que se considerava elemento original constitutivo das línguas vulgares, expressado por Valdés na ideia de que as línguas vulgares de nenhuma maneira se deixan submeter a regras, isto é, são irregulares
por definição.
4. O debate sobre a língua literária constitui uma parte fulcral da discussão linguística em qualquer Questão da língua, e não há dúvida de que a urgência na normativização do vulgar deve muito à difusão do livro e da imprensa. O seu peso foi fundamental, como sabemos, na Questione italiana e não é por acaso que o segundo livro do
De vulgari eloquentia procura assentar as bases de uma ideal língua poética85. Como
82
83
84
85
Leão, ed. cit., p. 301.
Leão, ed. cit., p. 306.
Gândavo, ed. cit., pp. 48-50.
Cf. Eco, op. cit., pp. 48-49.
126
ANA MARÍA GARCÍA MARTÍN
não podia deixar de ser, pois, gramáticos e apologetas do português dedicam à língua
literária, e ao seu papel na normativização e afirmação do vulgar, grande parte das
suas reflexões. O autor literário é visto nada menos que como o guru que desvela o
segredo da essência da língua «descobrindo com seus ingenhos peregrinos o segredo
da grauidade & fermosura deste nosso Portugues»86. Por outro lado, a urgência de um
tratamento literário para o português é reivindicada peremptoriamente pelos gramáticos da primeira metade do século XVI, Oliveira e Barros, que confiam ao labor autoral o desenvolvimento das capacidades expressivas e o maior enriquecimento léxico
da língua.
No entanto, em finais do século XVI, Gândavo já não se queixa, como fazia
Barros meio século antes, da inexistência de autoridades literárias para o português, e
de facto oferece uma plêiade bastante ampla: Sá de Miranda, João de Barros, Frei
Heitor Pinto, Lourenço de Caceres, Francisco de Morais, Jorge Ferreira, António
Pinto, Luís de Camões, Diogo Bernardes e António Ferreira. Claro que Falencio, o
interlocutor castelhano do seu diálogo, não podia deixar de referir-se ao uso literário
da língua castelhana por parte de alguns insignes literatos portugueses, recurso que
significaria um reconhecimento da maior idoneidade expressiva desta língua. Petronio
só pode replicar a isto recorrendo ao tópico da melhor adaptação das línguas a diferentes géneros ou estilos, tópico que tinha já larga tradição na gramaticografia portuguesa, desde Oliveira e Barros:
Falencio. Creo yo señor Petronio, que deuen ser muy pocos o quiça ningunos, los
que quieran assentir con vós en essa opinion. Porque hombres Portugueses muy principales y de grandes ingenios, escriuieron, y aun hoy dia escriuen sus obras en Castellano por
ser lenguage mas appazible y dulce, y sonar mejor a los oydos que la vuestra: y esto es tan
notorio y manifiesto, que hasta los niños vuestros naturales conoscen y confiessan esta
verdad.
Petronio. Não he bastante razão essa que alegais pera que vossa lingua por esse respecto mereça ser prefirida á nossa, Porque aueis de saber que cada lingua per si tem hum
estylo mais proprio, & em que melhor parece, como he, a Grega nos versos, a Latina nas
orações, a Toscana nos sonetos, a Portuguesa nas comedias em prosa & no verso heroyco,
a Castelhana nas trouas redondas & garridas que naturalmente parecem & inuentadas
pera ella. E daqui veo a muitos Portugueses vendo quam bem parecia neste estylo, & que
nella se achaua mais facilmente consoantes pera verso, exercitaremna por seu passatempo
em eglogas, canções, elegias, & cantos pastorijs que são materias leues, & accomodadas
ao estylo da mesma lingua. Mas cousas graues, & de importancia, não me dareis nenhum
Portugues antiguo nem moderno que as tratasse nem escreuesse em vossa lingua. E se
quereis saber quam pouca necessidade temos della, vede o estylo das comedias & dos
versos do nosso verdadeiro portugues Francisco de Sâ de Miranda, que foy o primeiro
que nesta nossa Lusitania o descubrio com tamanha admiração, que de todos em geral
ficou confessada esta verdade. Vede a Asia daquelle famoso & excellente escriptor Ioam
de Barros que por ella em Veneza está preferido a Ptolomeu. Vede a primeira & segunda
parte da Imagem da vida Christãa daquelle doctissimo varão Frey Hector Pinto que agora
86
Gândavo, ed. cit., p. 62.
A APOLOGIA DA LÍNGUA PORTUGUESA NO PERÍODO BARROCO: OS BREVES LOUVORES…
127
em nossos dias sahio a luz: Vede o estylo da linguagem de Lourenço de Caceres, de Francisco de Moraes, de Iorge Ferreira, de Antonio Pinto, & doutros illustres varões que na
prosa tanto se assinalaram, descobrindo com seus ingenhos peregrinos o segredo da
grauidade & fermosura deste nosso Portugues. Pois se no verso heroyco vos parece que a
vossa lhe pode fazer ventagem: vede as obras do nosso famoso poeta Luis de Camões de
cuja fama o tempo nunqua triumphará, vede a brandura das daquelle raro espirito Diogo
Bernardez: vede finalmente as do doctor Antonio Ferreira de que o mundo tantos louuores canta: & em cadada [sic] hum destes autores achareis hum estylo tão excellente, & tão
natural & accomodado a esta nossa lingua, que forçadamente aueis de vir a deceruos de
vossa opinião, & confessar comigo ser ella indigna desse nome que vos lhe dais87.
Passado meio século, Ferreira de Vera não revela a mesma preocupação que Gândavo por nomear autoridades literárias portuguesas, sem dúvida porque a existência
de uma produção literária própria era, em meados do século XVII, um facto incontestável. O autor seiscentista alude mesmo ao fenómeno da tradução para justificar a
qualidade e altura do português como língua literária, o que lhe serve igualmente para
contestar a opinião daqueles que consideravam a portuguesa como língua pouco
exportável. Por outro lado, a aptidão do português como língua literária é destacada
com veemência em algum momento da sua obra: «mas em o mais não ha porque se
negue a facilidade, & suavidade da lingua Portuguesa, que para tudo tem graça, &
energia, & he capaz de nella se escreverem todas as materias dignissimamente, assi
em prosa, como em verso»88. E a mesma afirmação configura uma das cinco qualidades que deve ter, segundo ele, a língua perfeita: «he apta para todos os estylos de compor»89. Vera já não precisa de recorrer, pois, ao argumento da melhor adequação de
cada língua a um estilo literário, como sim faziam os apologetas quinhentistas, e isto
porque prevalecia a conciência de que o português já se tinha afirmado como língua
literária em todos os géneros, apesar do terreno que o castelhano lhe seguia «roubando» em muitos deles.
Leão, no entanto, no cap. XXV, intitulado «De que línguas tomaram os Portugueses os vocábulos de que tiveram falta ou lhes foram necessários para ornamento do
que falam ou escrevem», considera necessária ainda uma renovação da língua literária, que passe por uma ineludível inovação lexical. A consciência de língua e estilo
literários surge claramente em Leão, que justifica a variação vocabular «não somente
para suprir a necessidade de explicarmos o que queremos, mas para cópia e ornamento, por não repetirmos ua~ s mesmas palavras muitas vezes, o que, aos que ouvem
ou lêem traz sempre nojo e fastio»90. Há, pois, neste autor, uma ainda evidente preocupação pela construção de uma língua literária: «É também necessária a cópia de
palavras para delas fazerem escolha os que falam ou escrevem de cousas graves,
como são os historiadores, que não devem servir-se de palavras comuns aos baixos e
mecânicos, senão congruentes à matéria que tratam e às pessoas a que falam ou escre87
88
89
90
Gândavo, ed. cit., pp. 58-63.
Vera, ed. cit. p. 79v.
Vera, ed. cit., p. 82v.
Leão, ed. cit., p. 317.
128
ANA MARÍA GARCÍA MARTÍN
vem, porque hão-de respeitar o capto da gente mais nobre e de maior entendimento,
que tem diferentes termos de falar»91. E mais à frente «os que escrevem ou falam se
devem acomodar aos maiores e mais nobres e à sua maneira de falar»92. Língua falada
e escrita procuram, portanto, a referência normativa no plano diastrático.
5. O propósito de enaltecimento da língua portuguesa, expresso num título que
liga explicitamente os Breves Louvores com o Diálogo em louvor da Língua Portuguesa de João de Barros, não chega a ocultar o marcado tom apologético que caracteriza o opúsculo de Ferreira de Vera, desvendando-nos a situação de precariedade
sociolinguística em que se encontrava a língua portuguesa em meados do século
XVII, após um século de constante preocupação mormativizadora. Os preconceitos
linguísticos que nesse momento ainda subsistem são os mesmos contra os quais se
bateram os apologetas e gramáticos quinhentistas, preconceitos que definem a portuguesa como uma língua rude, pobre e provinciana. Portanto, os parâmetros em que a
apologia da língua se desenvolve na obra de Vera não são originais, mas devedores de
uma tradição já secular.
Assim, Vera baseia boa parte do seu esforço enaltecedor na demonstração da
semelhança entre o português e a língua mãe, a latina, sendo muito destacável a recopilação de textos do género macarrónico que ocupa uma boa parte do tratado. Mas, se
coincide com os apologetas quinhentistas em fazer da filiação latina o principal argumento para a nobilitação da língua vulgar, o autor seiscentista revela-se mais original
pelo recurso a uma genealogia mítica que os quinhentistas, nomeadamente Nunes do
Leão, tinham manifestamente refutado. Ora, sendo como é Vera um genealogista, não
podia desaproveitar uma tradição mítica que fazia dos portugueses descendentes dos
três povos antigos, latino, grego e hebraico, cujas línguas foram denominadas por
Barros «princesas do mundo».
Contudo, ao lado da filiação nobilitadora, Ferreira de Vera preocupa-se em sintetizar as qualidades que garantem ao presente a virtualidade expressiva e lógica da língua, conferindo-lhe um estado de perfeição. Exaltação de virtudes linguísticas que
contrasta com a defesa de um poliglotismo destinado a manter a presença do português em certos âmbitos, nomeadamente o literário, num momento em que a língua
castelhana, aludida explicitamente por Vera, e a sua influente literatura, continua a
roubar espaço escrito ao português. A preocupação com a sua afirmação como língua
de cultura, e aí o português encontra o seu espaço como língua universal de evangelização, liga novamente os Breves Louvores com a tradição apologética quinhentista.
91
92
Leão, ed. cit., p. 318.
Ibidem.
Download

a apologia da língua portuguesa no período barroco: os breves