UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA – UFSC CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO – CPGD _____________________________________________________________________ JONNEFER FRANCISCO BARBOSA EXTRAVIO DO JURÍDICO, OCASO DO POLÍTICO, UBIQÜIDADE DA EXCEÇÃO FRAGMENTOS HEURÍSTICOS SOBRE ALGUNS LOCAIS DA FILOSOFIA DO DIREITO CONTEMPORÂNEO _______________________________________________________________ FLORIANÓPOLIS 2007 JONNEFER FRANCISCO BARBOSA EXTRAVIO DO JURÍDICO, OCASO DO POLÍTICO, UBIQÜIDADE DA EXCEÇÃO FRAGMENTOS HEURÍSTICOS SOBRE ALGUNS LOCAIS DA FILOSOFIA DO DIREITO CONTEMPORÂNEO Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Direito, Curso de Pós-Graduação em Direito, Centro de Ciências Jurídicas, Universidade Federal de Santa Catarina. Orientadora: Profª. Drª. Jeanine Nicolazzi Philippi. FLORIANÓPOLIS 2007 JONNEFER FRANCISCO BARBOSA EXTRAVIO DO JURÍDICO, OCASO DO POLÍTICO, UBIQÜIDADE DA EXCEÇÃO FRAGMENTOS HEURÍSTICOS SOBRE ALGUNS LOCAIS DA FILOSOFIA DO DIREITO CONTEMPORÂNEO COMISSÃO EXAMINADORA ______________________________________ Profª. Drª. Jeanine Nicolazzi Philipp Universidade Federal de Santa Catarina - CPGD ______________________________________ Prof. Dr. Raúl Antelo Universidade Federal de Santa Catarina - CCE ______________________________________ Prof. Dr. Selvino Assman Universidade Federal de Santa Catarina - CFH Florianópolis, 12 de julho de 2007. AGRADECIMENTOS “Yo tengo tantos hermanos / Que no los puedo contar / En el valle en la montaña / En la pampa y en el mar / Cada cual con sus trabajos / Con sus sueños cada cual / Con la esperanza adelante / Con los recuerdos de tras (…) Gente de mano caliente / Por eso de la amistad / Con un lloro pa llorarlo / Con un rezo pa rezar / Con un horizonte abierto / Que siempre está mas allá / Y esa fuerza pa buscarlo / Con tezon e voluntad / Cuando parece más cerca / Es cuando se aleja más (…) Y así seguimos andando / Curtidos de soledad / Nos perdemos por el mundo / Nos volvemos a encontrar / Y así nos reconocemos / Por el lejano mirar (…)” (A. Yupanqui) Estas palavras - lançadas ao léu no formato dissertativo - não teriam sido possíveis sem o intertexto fraterno dos amigos que, nos primeiros meses de 2005, formaram uma comunidade (no sentido forte do termo) nessas paragens insulares do Desterro. Juntos combatemos - mesmo que de uma maneira distraída, mambembe, quase imperceptível – a pior das hojarascas que pode acometer uma ilha, o isola-mento. Flanagens, lugares, festejos, conversas, ações... muito disso está nas malhas do texto que levo (não digo o da dissertação), mas da própria vida. Quero deixar meu agradecimento, minha lembrança, a estas singularidades quaisquer... Vinícius Nicastro Honesko, Hermes da Fonseca e Suellen Muniz Coelho, trio de andarilhosaltimbancos, pelos diálogos (peripatéticos) vitais, pelas angústias compartilhadas e pela cumplicidade da amizade. Rafael Filippin, Joel Aló Fernandes, Fernando Gregui, André Rodrigues, Elton Fogaça, Marcelo Lasperg, Cissa Domingos, Paulo César Barbosa, Antônio Lopes, Margit Brugger, Melina Rocha, Thiago Souma Martins, Dulce Piacentini, Fabiana Pinheiro, Ana Paula Marcante, Marina Vital, Carol Ruschel e todos os aqueles que deixaram e deixarão muita saudade. Não posso esquecer de outra ilha, querida ilhota cercada pelos campos gerais do Paraná, ―Princesa dos Campos‖ e seus ventos, onde realmente tudo começou. Quero agradecer minha amiga, mestre, ―guia oracular‖, Christina Miranda Ribas (mesmo um simples agradecimento ainda é muito prosaico, contudo), meus amigos - velhos e diletos camaradas - Piter Zander, Thaís Ribeiro, Vinícius Teófilo Luchese, Agnon Ribeiro, Tahyana Ribeiro, Willian Weid Bezerra e Bruno Ribeiro (sempre cometendo a temeridade de esquecer de alguém). Lembrando também do Projeto de Ensino Direito e Justiça - dirigido pela Chris - ao qual muito devo, agradeço o grupo participante (a maior parte já citados) entre os anos de 2002, 2003 e 2004, linhas de fuga (conspiratórias) do curso de direito da UEPG. Ao amigo Ben-hur Demeneck, pelos diálogos (não raro acompanhados de boa música e quitutes) em Uvaranas (ou mesmo nas várias caminhadas pelo bairro) e pelo incondicional apoio durante a graduação em Ponta Grossa e nos primeiros dias em Florianópolis (agradecimento que também dirijo a Dona Ernestina). Ao advogado - apaixonado por processo coletivo, HQ‘s e Surrealismo - Marcius Nadal Matos, pelo apoio estrutural dado ainda nos tempos de graduação e, principalmente, pelo incentivo aos lampejos da ousadia. Aos professores Alessandro Pinzani e Raul Antelo, pelas sugestões na qualificação de meu claudicante projeto. Ao professor Carlos Capela, pelos diálogos na ocasião da disciplina ―Teoria da Modernidade‖, no mestrado em literatura da UFSC e ao professor Sérgio Cademartori, pelo acompanhamento nas veredas da teoria do direito. Meu agradecimento aos professores membros da banca, professor Raul Antelo e Selvino Assman, pela gentileza, pela leitura e provocações lançadas. Sou muito grato à professora Jeanine Philippi, pela orientação, disponibilidade, paciência com as derivas e, principalmente, pelo exemplo de resistência intelectual. Agradeço (extremamente) meus pais - Renato e Jucelma Barbosa e meus irmãos - Willian e Renata - pelo apoio inestimável, pelo cuidado acolhedor e pela paciência nesses últimos meses de escrita da dissertação em Guarapuava. Finalmente, à minha namorada, companheira, amiga... Aline Hessel, e ao seu filho Ivan (com quem re-aprendo, piá extemporâneo, a arte de brincar). A ambos, com muito carinho, vai dedicado este texto. Sabem bem o porquê. Terras de Guairacá – Princesa dos Campos – Ilha de Nossa Senhora do Desterro, Entre lapsos, interrupções e continuidades, nos meses de janeiro e abril de 2007. RESUMO Objetiva o presente trabalho – cujos arranjos estão fixados basicamente na intersecção entre a filosofia do direito e a filosofia política - lançar confrontações e análises – instaladas num caráter deliberadamente fragmentário - no plano de três eixos temáticos principais (intitulados, respectivamente: extravio do jurídico; ocaso do político e a ubiqüidade da exceção), compondo-se, cada eixo, de fragmentostese - sínteses heurísticas de argumentos e hipóteses - que tentam circunscrever debates – topografias – sobre algumas aporias ainda pendentes de respostas na teoria e na filosofia do direito contemporâneo, v.g, (eixo I) crise da estatalidade, topografias da decisão jurídica, direito e temporalidade, refuncionalização do direito nas sociedades de massas espetacularizadas contemporâneas; (eixo II) fenecimento das categorias da tradição contratualista (e a urgência de pensar outras referências para a política ocidental), emergência da biopolítica; (eixo III) a força de lei, a ubiqüidade e o tornar-se regra da exceção (aproximação aos conceitos de exceção efetiva e fictícia). Boa parte dos caminhos desta dissertação são margeados a partir dos vetores da filosofia contemporânea representados na teorizações de Walter Benjamin (1892-1940), Hannah Arendt (1906-1975) e Giorgio Agamben (1942 - ). Palavras-chave: teoria da modernidade jurídico-política, crises da estatalidade, biopolítica, estado de exceção. ABSTRACT The present work – whose arrangments are fixed basically in the intersection between the philosophy of law and the political philosophy – aims to launch confrontations and analyses, installed in a character deliberately fragmented, in the plane of three main thematic axes (titled, respectively: lost of the juridical; end of the political and the ubiquity of exception), composing itself, each axis, of ‗fragments-thesis‘ – heuristic syntheses of arguments and hypotheses – which try to circumscribe debates - topographies – about some aporias still pending of answers in theory and in philosophy of contemporary law, v.g., (axis I) crisis of statality, topografias of the juridical decision, law and temporality, refunctionalization of law in the societies of contemporary spectacularized masses; (axis II) perishment of the categories of contractualist tradition (and the urgence of thinking other references for the ocidental politics), emergency of biopolitics. (axis III) the force of law, the ubiquity and the becoming rule of exception (approach to the concepts of effective and fictitious exception. A good deal of the paths of this dissertation are margined from the vectors of the contemporary philosophy represented in the theorizations of Walter Benjamin (1892-1940), Hannah Arendt (1906-1975) and Giorgio Agamben (1942 - ). Key-words: theory of the juridical-political modernity; crises of statality; biopolitics; state of exception. SUMÁRIO Introdução ................................................................. 08 EXTRAVIO DO JURÍDICO # 1. .................................................................. 21 # 2. ................................................................. 37 # 3. ................................................................. 53 # 4. ................................................................. 65 OCASO DO POLÍTICO # 1. ................................................................. 81 # 2. ................................................................. 94 # 3. ................................................................. 113 UBIQÜIDADE DA EXCEÇÃO # 1. ................................................................ 125 # 2. ................................................................ 134 # 3. ................................................................ 154 Considerações Finais ................................................................ Referências ................................................................ 161 164 “A história, em contraposição com a natureza, é repleta de eventos; aqui, o milagre do acidente e da infinita improbabilidade ocorre com tanta freqüência que parece até estranho falar em milagres. Mas o motivo desta freqüência está simplesmente no fato de que os processos históricos são criados e constantemente interrompidos pela iniciativa humana, pelo initium, que é o homem enquanto ser que age. Não é pois, nem um pouco supersticioso, e até mesmo um aviso de realismo, procurar pelo imprevisível e pelo impredizível, estar preparado para quando vierem e esperar „milagres‟ na dimensão da política. E, como quanto mais força penderem os pratos da balança em favor do desastre, mais miraculoso parecerá o ato que resulta da liberdade, pois é o desastre e não a salvação que acontece sempre automaticamente e que parece sempre portando irresistível.” Hannah Arendt. “O que é a liberdade?”. Entre o passado e o futuro. p. 219. “A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção no qual vivemos é a regra. Precisamos chegar a um conceito de história que dê conta disso. Então surgirá diante de nós nossa tarefa, a de instaurar o real estado de exceção; e graças a isso, nossa posição na luta contra o fascismo tornar-se-á melhor” Walter Benjamin. “Sobre o conceito de história”. Tese VIII. “(...) Daí também a força de quem tomou consciência de não poder legitimar-se a partir de nenhuma tradição viva: ele já é um resto de naufrágio, já foi varrido do mapa; mas, como resto de um naufrágio, não teme as correntes e pode até mesmo mandar sinais.” Giorgio Agamben. “Projeto para uma revista.” Infância e história. p. 163. Introdução Ousar escrever. Nada mais tormentoso e exigente do que a simples atividade de lançar mensagens a destinatários desconhecidos, apresentar-se como remetente nesta comunicação escrita - realizada na distância e propiciadora de amizade (no sentido philosófico do termo)1 - de um debate pretensamente teórico, mesmo destinado a um pequeno número de leitores. Atividade marginal, ou melhor, tornada marginalizada, com a derrocada de todo o imaginário constitutivo do ideal de humanitas, talqualmente nos legado por um estrato da tradição ocidental advindo da antiguidade clássica grego-romana.2 Escrever, para e neste mundo espetacularizado em ruínas simbólicas, parece ser algo relegado às raias da insignificância, ou nãosignificância, tarefa equiparável a de artesãos sobreviventes lançados aos fundos escuros de suas oficinas de periferia em meio ao turbilhão industrial de produção desenfreada e descartável. 1 ―Desde que existe como gênero literário, a filosofia recruta seus seguidores escrevendo de modo contagiante sobre amor e amizade. Ela não é apenas um discurso sobre o amor à sabedoria, mas também quer impelir outros a esse amor.‖ SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. (Tradução de José Oscar Almeida Marques). São Paulo : Estação Liberdade, 2000. p. 07. Nesse sentido, Agamben assevera que ―a amizade (...) está tão estreitamente vinculada à própria definição de filosofia que poderíamos dizer que, sem ela, a filosofia não seria de fato possível. A intimidade entre amizade e filosofia é tão profunda que filosofia inclui o philos, o amigo, em seu próprio nome e, como ocorre com freqüência com todas as proximidades excessivas, corre o risco de não conseguir realizar-se. No mundo clássico é tão reconhecida essa promiscuidade – e, quase, consubstancialidade – entre o amigo e o filósofo, e foi por uma intenção quase arcaizante que um filósofo contemporâneo – quando se propunha a questão extrema, ‗o que é filosofia?‘ – chegou a escrever que era uma questão a ser tratada entre amis (entre amigos). Hoje a relação entre amizade e filosofia caiu em descrédito, e é com um pouco de embaraço e consciência inquieta que os que fazem da filosofia uma profissão tentam compactuar com um parceiro desconfortável e, por assim dizer, clandestino de seus pensamentos‖. AGAMBEN, Giorgio. Friendship. (Tradução: Joseph Falsone). ContreTemps, n. 5, dez. 2004, pp. 2-7. Revista eletrônica (Tradução revista para o português por Selvino Assman). 2 Reflexões trazidas de forma muito lúcida por Sloterdijk, no texto supracitado. Quando não há um mundo comum a ser compartilhado,3 escrever, num período obscuro de dessimbolização e dessubjetivação, é tatear sem um fio de Ariadne num labirinto destruído. É insistir na procura por clareiras e fachos de luz na escuridão, tentativas canhestras de abrir um caminho possível, quando tudo converge para a paralisia e a resignação. Este phátos da exigência da escritura, de uma escritura possível, não pode ser simplesmente redutível aos conceitos modernos de paixão, arroubo afetivo, compulsão, todos com uma elevada carga psicologizante. Seguindo os rastros de Heidegger, podemos intuir um significado deste phátos muito próximo ao thaumázein grego, onde nos detemos como se ―retrocedêssemos diante do ente pelo fato de ser e de ser assim e não de outra maneira.‖4 Detemo-nos diante daquilo que, nas palavras de Giorgio Agamben, poderíamos chamar de Irreparável. Irreparável é o facto de as coisas serem como são, deste ou daquele modo, entregues sem remédio à sua maneira de ser. Irreparáveis são os estados de coisas, sejam elas como forem: tristes ou alegres, cruéis ou felizes. Como és, como é o mundo – é isto o Irreparável. (...) O Irreparável não é nem uma essência nem uma existência, nem uma substância nem uma qualidade, nem um possível nem um necessário. Não é propriamente uma modalidade do ser, mas é o ser que se dá 3 ―Na situação de radical alienação do mundo, nem a história nem a natureza são em absoluto concebíveis. Essa dupla perda do mundo – a perda da natureza e a perda da obra humana no senso mais lato, que incluiria toda a história - deixou atrás de si uma sociedade de homens que, sem um mundo comum que a um só tempo os relacione e os separe, ou vivem numa separação desesperadamente solitária ou são comprimidos em uma massa. Pois uma sociedade de massas nada mais é que aquele tipo de vida organizada que automaticamente se estabelece entre seres humanos que se relacionam ainda uns aos outros mas que perderam o mundo outrora comum a todos eles‖. ARENDT, Hannah. O conceito de História – Antigo e Moderno. In: Entre o passado e o futuro. (Tradução: Mauro Barbosa de Almeida). São Paulo: Perspectiva, 1968. p. 126. 4 HEIDEGGER, Martin. Que é isto - a filosofia? (Tradução Ernildo Stein). Petrópolis : Vozes, 2006. p. 30. ―Dià gàr tò thaumázein hoi anthropai kay nym kai prõton ércsantophilosophei” (Aristóteles, Metafísica). ―Pelo espanto os homens chegam agora e chegaram antigamente à origem imperante do filosofar‖, um espanto não apenas como impulso inicial (logo descartado ao suprir as exigências do início), entretanto um phátos que perpassa todos os passos da filosofia: phátos na acepção de ―pàschein, sofrer, agüentar, suportar, tolerar, deixar-se levar por, deixar-se convocar por‖, thaumázein que simplesmente não ―se esgota neste retroceder diante do ser do ente, mas no próprio ato de retroceder e manter-se em suspenso é ao mesmo tempo atraído e como que fascinado por aquilo diante do que recua. Assim o espanto é a dis-posição na qual e para a qual o ser do ente se abre. O espanto é a dis-posição em meio à qual estava garantida para os filósofos gregos a correspondência ao ser do ente‖. Ibidem. Idem. desde logo na modalidade, é as suas modalidades. Não é assim, mas é o seu assim.5 Como perscrutar filosoficamente – naquela forma de proceder intelectualmente que a tradição de pensamento ocidental convencionou intitular como o atentar-se, o perquirir filosófico - uma realidade que, de certo modo, solapou todas as maneiras até então seguras para que o pensamento pudesse traçar um caminho minimamente confiável? Como des-ocultar (sem recair num retorno metafísico) o ser que ainda se manifesta - talvez de um modo sombriamente inaudito de ocultação - neste mundo estilhaçado, um ser abandonado em meio a dispositivos hipertrofiados como o do espetáculo 6 (como plus ao intrínseco abandono do ser no ente), relegando-nos a um horizonte do belo sem elos de transmissibilidade7 (aí a banalização das esferas do sublime 5 AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. (tradução de Antônio Guerreiro). Lisboa: Editorial Presença, 1993. p . 71 e 73. 6 Tomamos este conceito com o significados que Guy Debord lhe dá em ―La société du spectacle‖. 7 A perda do senso comum, na maneira em que era entendido, v.g., em Kant. Arendt lembra que ao usar o termo latino sensus communis, Kant estaria tratando de uma faculdade diferente da acepção corrente, ―sentido semelhante a outros sentidos‖. Kant estaria tratando de ―um sentido extra – como uma capacidade mental extra (o termo alemão Menschenverstand) – que nos ajusta a uma comunidade. O entendimento comum dos homens (...). O sensus communis é o sentido especificamente humano porque a comunicação, isto é, a fala, depende dele.. ‗O único sintoma geral de insanidade é a perda do sensus communis e a teimosia em insistir em seu próprio (sensus privatus) (...) Depois disso seguem-se as máximas deste sensus communis: pensar por si mesmo (a máxima do esclarecimento); colocarmo-nos no lugar de todos os outros em pensamento (a máxima da mentalidade alargada); e a máxima da consistência (estar de acordo consigo mesmo, mit sich selbst einstimming denken) Não se trata aqui de questões de cognição; a verdade nos compele; não precisamos de máximas. As máximas aplicam-se e são necessárias só para questões de opinião e juízo. E assim como em questões morais nossa máxima de conduta declara a qualidade de nossa vontade, também as máximas do juízo atestam nosso ‗tipo de mentalidade‘ (Denkungsart) nossos assuntos mundanos que são governados pelo senso de comunidade. (...) O gosto é esse ‗senso de comunidade‘ (gemeinshaftlicher Sinn), e senso significa aqui ‗o efeito de uma reflexão sobre o espírito‘ Esta reflexão me afeta como se fosse uma sensação... ‗Poderíamos até mesmo definir o gosto como a faculdade de julgar aquilo que torna comunicável em geral, sem a mediação de um conceito, o nosso sentimento [como uma sensação] em uma representação dada [não a percepção]. (...) A validade destes juízos nunca [possui] a validade das proposições cognitivas ou científicas, que não são, a rigor, juízos. (...) Neste sentido, nunca podemos compelir alguém a concordar com nossos juízos isto é belo, isto é errado (...) podemos somente ‗pretender‘, ‗cortejar‘ o acordo de todos os demais. E nesta atividade persuasiva, podemos na verdade apelar para o ‗senso de comunidade‘. (...) Quanto menos idiossincrático for seu gosto, melhor poderá ser comunicado; a comunicabilidade, novamente, é a pedra de toque. A imparcialidade em Kant, é chamada de ‗desinteresse‘, o prazer desinteressado no Belo‖. ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. O vertiginoso contemporâneo), onde a própria condição do ser humano é colocada, perigosamente, em questão? Tentar compreender as nuances do irreparável estar-no-mundo contemporâneo - seja em qual for o plano de existência e horizonte de saber ocidental de onde se dê esta busca - apresenta-se como um incontornável confrontar-se com inúmeras aporias (a-poros) indecidíveis. Esta é uma proto-interpretação que subjaz no presente texto. Ou seja, não é distinta a situação de quem se vê na contingência de pensar o direito contemporâneo (e em conseqüência, pensar seu mundo a partir deste fragmento de experiência),8 tomá-lo como objeto circunscrito, delimitado, neste espaçotempo não afeito a demarcações, informe. Prévia constatação - inevitavelmente arremessará a proposta teórica no oceano da indecidibilidade - que repercutirá no modo idiossincrático como teceremos a trama dessa dissertação, podendo, em alguns de seus matizes, contrapor-se à maneira convencionalmente disseminada de pensar o direito na pensar, o querer, o julgar. (Tradução Antônio Abranches, Cezar Augusto R. Almeida, Helena Martins). 5º ed. Rio de Janeiro : Relume Dumará, 2002. p. 379-380. (Trechos do último volume incompleto, dedicado ao ―Julgar‖). O mundo das subjetividades-mônadas-solipsistas contemporâneo deixa poucos rastros desta concepção de sensus communis kantiano, e seu correlato de um Belo desinteressado (que Arendt conecta com a questão de um julgar - onde não se tem critérios universais e coercíveis [v.g., evidências] - às questões relacionadas à moral e à justiça (aproveitando de uma matriz estética. Kant estabelece os juízos morais como sendo ligados à dimensão de uma razão pura prática, não sendo para o filósofo, a rigor, juízos). Esvai-se, contemporaneamente, tal transmissibilidade (fundada numa comunidade), causando a erosão dos critérios mesmos do juízo (máximas, por exemplo). Por outro lado, estamos muito mais próximos daquilo que a filosofia kantiana entendia por sublime do que da esfera da beleza (universal, racional).. Portanto, a pretensão de entendimento, na teoria de hoje, cai por terra. Do desinteresse e do imperativo da razão kantiana, normalizada na segunda metade do séc. XVIII, dominante no séc. XIX e manifestamente esgarçada no séc. XX (Eichmann como seu mórbido sintoma), as derivas do modernismo tardio estariam muito mais próximas da transgressão e do desbordamento de Sade. Para Lacan, o reverso kantiano. (Cf. LACAN, Jacques. Kant com Sade. Escritos. (Tradução Vera Ribeiro). Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1998.). Ou estaríamos na situação que Guy Debord anuncia (ou prenuncia) na tese 183 de seu opúsculo ―A Sociedade do Espetáculo‖: ―A cultura provém da história que dissolveu o gênero de vida do velho mundo. Mas, como esfera separada, ela é tão somente a inteligência e a comunicação sensível que continuam parciais numa sociedade parcialmente histórica. Ela é o juízo de um mundo pouquíssimo capaz de julgar‖. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. (Tradução Estela dos Santos Abreu). Rio de Janeiro : Contraponto, 1997. 8 Reportamo-nos ao conceito de mônada, ou imagem dialética, em Walter Benjamin, que deixaremos para analisar em momento oportuno. maior parte da teorizações jurídicas fundadas seja nas versões estatalistas (que no séc. XX não representaram nada mais que outras variantes de um estruturalismo tacanho), seja nas atuais versões sistêmicas, reflexivas (biologicizantes, diga-se de passagem), de análise do jurídico em suas configurações e manifestações contemporâneas. Portanto a necessidade imperiosa de captar, nesse caso o direito ocidental como se mostra hodiernamente - como eixo de projeção de saberes e racionalidades - a partir de outros locais, principalmente a filosofia e a teoria política, não deixando de lado o debate estético e as teorizações sobre a subjetividade contemporânea. Formular redes, dispositivos - heterocronotopias. Exigindo-se, tal busca, um proliferar que em muitas ocasiões terá que tratar do direito de forma oblíqua, com pinceladas de tratamento que, se não o toma como um mero epifenômeno naquilo que realmente interessa discutir nas questões mais prementes da filosofia contemporânea, assume de forma transparente que só poderemos ter acesso, tornar ex-posto (dis-posé), colocar em dis-posição (novamente Heidegger), o ―ser‖ do direito nas suas atuais configurações e antinomias, através do confrontar-se com os filosofemas e mitologemas que presidem a estruturação (constitutiva) de nossa própria tradição de pensamento (principalmente político), ou dos conceitos zumbis que mantém-se mesmo após a destruição desta tradição que os dava suporte, isto é, sua vigência fantasmática – próxima do misticismo - a despeito de sua escassez desértica de significado. O arquitetar de uma armação teórica que se utiliza de elementos metafóricos, lugares de significado, provindos dos mais heteróclitos pontos de disseminação de racionalidades - mesmo correndo o risco de desvirtuá-los, desgastá-los, quebrá-los - brincar, jogar com esses materiais (fragmentos de orientação sempre derivante), encaminhá-los para dimensões estrangeiras, parece ser, numa realidade que se esvai como poeira deixada pelo trotar de cavalos selvagens, uma alternativa extremamente plausível - lúcida, viável quando, em termos temporais, caminhamos em rotas já destruídas e não nos foi legada, pela tradição, uma imaginativa arte de criação de mosaicos com os destroços que restam ao nosso redor.9 Fazer disso um método de trabalho, um extravio discursivo, uma instalação dissertativa, é o que será buscado seqüencialmente. *** Antes, porém, uma ressalva: o horizonte explanatório da crítica do presente (ou da crítica que vem) parece estar preso ao universo do vago, do fragmentado, do volátil. A questão é lançar-se na volatilidade não como um obstáculo a superar, ou como o indeterminado prefigurando o determinado, como meio a um fim estável, sólido, manipulável. É preciso navegar nos mares da indeterminação (e, por que não, da indecidibilidade), aceitando todos os predicados inerentes a essa condição, encarando-a como condição de possibilidade, inescapável matéria mesma onde pode ser ativada uma critica possível. Sem retornos saudosistas às monumentalidades, sem o forjar de próteses temporais e espaciais cogentes (mensuráveis, controláveis) e obturantes da potencialidade salvívica do contingente. Walter Benjamin, a seu modo, prenunciou uma configuração, um local, uma "zona de experiência", para essa crítica no modo idiossincraticamente fragmentado com que operou a maior parte de sua análises. Ensaios, não obras fechadas, aforismos, não sentenças acadêmicas prolixas e, boa parte das vezes, 9 De tal modo podemos afirmar que nosso método está conectado a uma espécie de trabalho arqueológico, ou genealógico, em termos de metodologia, seguindo, nesse ponto específico, os rastros deixados por Friedrich Nietzsche, Michel Foucault, Walter Benjamin e (em certo sentido), Giorgio Agamben... Aquele modo de proceder intelectualmente que Hannah Arendt costumava chamar de a arte da pesca de pérolas no fundo do oceano (perlenfischerei), metáfora citada em sua carta a Blumenfeld, datada de 21 de julho de 1960, cf. YOUNG-BRUEHL, Elizabeth. Por amor ao mundo: a vida e a obra de Hannah Arendt . (Tradução de Antônio Trânsito). Rio de Janeiro : Relume Dumará, 1997. p. 99. redundantes.10 Nesse sentido, emergem com importância as chamadas teses, ou melhor, um estilo de pensamento fundado em teses. Evidenciam-se ainda necessárias, no campo da teoria literária e da filosofia, reflexões que tratem da importância das teses no plano da ―historia das idéias‖11. É nelas que podemos perceber o caráter de provisoriedade, de inacabamento, de suspensão dos "invariantes", de pré-compreensão no mote de que fortuna imperatrix mundi, de devir: elementos do estar-no-mundo factual, do aí-do-ser (como na terminologia heideggeriana),12 que contaminam o próprio fluxo da construção teórica (deixando desde já expostos seus esqueletos cambaleantes).13 Quiçá o modelos das teses esteja muito mais próximo às formas 10 Poderíamos, obviamente, enumerar toda uma tradição no plano da literatura e filosofia ocidentais que toma a sério uma proposta ensaística e aforística como estilo de pensamento (v.g., remotamente Montaigne, contemporaneamente, Valéry). Entretanto, é em Benjamin que vemos pela primeira vez este recurso lançado como o mais adequado à aproximação ao mundo que tocou um grau zero de experiência até então desconhecido às gerações anteriores às duas guerras mundiais. 11 Há que se ter cuidado ao manejar este conceito, não podendo implicar uma versão de aglomerado funéico (relativo ao personagem Funes, de Jorge Luis Borges) de categorias, mesmo porque é impossível deixar de lado a própria interferência dos conceitos no real histórico, principalmente em se tratando das teses, do contrário negaríamos peremptoriamente o local das vanguardas, e dos seus respectivos manifestos, na história. Do que se pode concluir que não podemos considerar o sintagma história das idéias num sentido coagulado, metafísico e mesmo universal. 12 Da-sein. Onde o privilégio de análise não mais será o segundo momento da palabra, ―ya no es la ‗estancia‘ o la ‗instancia‘ de la ‗existencia‘, ya no es la posicion del ser en acto e ya no es la entelquia en el sentido aristotélico, es decir, la realizacion del ser en su forma final final, sino lo cuenta es el primer momento, es decir, el ex: el momento de la salida y del fuera, ese momento que Heidegger subraya escribiendo ‗ek-sistence y que, para acabar, ya no es un momento, sino la cosa entera. La existencia ya sólo es ese ex ‖. NANCY, Jean Luc. La existencia exiliada. (tradução de Juan Gabriel López Guix). In: Archipielago, nº 26-27, Barcelona, 1996. p. 35 13 Para Jeanne Marie Gagnebin, as ―teses‖, no contexto do pensamento benjaminiano, ―não têm caráter definitivo, não são um credo dogmático, mas oferecem, à ocasião, um balanço de pensamento e, mais ainda, umas hipóteses de pensamento, para não desesperar‖, lembrando que, no caso específico das ―Teses de filosofia da história‖, temos um texto cuja redação se dá ―provavelmente entre setembro de 1939 (início da Segunda Guerra) e abril de 1940 (construção do campo de concentração de Auschwitz), isto é, um dos momentos mais negros da história européia. Portanto, não é um texto escrito na serenidade de um gabinete, mas em um quarto de exílio: ele pede aos leitores que não procurem por soluções ou respostas, mas que aceitem o fim de suas certezas sobre o curso da história e a formulação de questões novas, mesmo que continuem sem resposta‖. GAGNEBIN, Jeanne M. Seis teses sobre as ―teses‖. In: Revista Cult., setembro de 2006, p. 50-53. dançantes do pensamento (muito bem iluminado por análises como as de Nietzsche, Arendt, ou mesmo de Badiou14) do que as corridas operáticas de maratona dissertativas. Teses sobre teses, importantes e imperiosas derivas. Mesmo revelando que muitas delas possam ser nada mais que relampejos para um momento de perigo. É chegado o momento de lançar um desafio ao local próprio da universidade no ocidente, no sentido de que novas proposições conteudísticas repercutam em novas instalações teóricas em instituições que convergem, cada dia mais, a se tornarem instâncias produtoras de um regime de verdade desde logo capturado pelos dispositivos (teológicos) soberano-econômico-espetaculares, nesse ritmo fadadas a se tornarem mausoléus babélicos povoados por mimetomaníacos e proselitos paroquiais.15 Vige quase hegemonicamente, no presente das universidades, um estilo de saber bem-comportado e politicamente correto que incute efeitos de verdade apenas às construções que estejam ancoradas num trabalho museológico de lexicrografia compulsiva dos cânones reconhecidos (ou da ultima moda nos departamentos).16 Como se realmente possuíssemos uma tradição (monolítica) a ser preservada e transmitida, escamoteando um problema de fundo que é o de tentar caminhar a partir do estilhaçamento catastrófico da tradição mesma. 14 Cf. BADIOU, Alain. A dança como metáfora do pensamento. In: Pequeno Manual de Inestética. (Tradução Marina Appenzeller). São Paulo : Estação Liberdade, 2002. pp. 7996. 15 De certa forma podemos traçar um paralelo muito próximo da instituição universitária moderna ocidental com o dispositivo dos museus, assim representados por Donald Preziosi: ―(..) quando instituiu o museu, o iluminismo estabeleceu um espaço tempo funéico, ou historicamente inflectido. O museu, assim, serviu como técnica epistemológica: definindo, formatando, modelando e ‗reapresentando‘ muitas formas de comportamento social por meio de seus produtos e vestígios. O mundo se recompunha e se transformava nas partes componentes da maquinaria-palco de exibição e espetáculo, as quais funcionavam para estabelecer, pelo exemplo, pela demonstração ou pela exortação explícita, critérios vários para relações aceitáveis entre sujeitos e objetos, entre sujeitos, e entre sujeitos e suas respectivas histórias individuais – critérios que fossem consoantes com as necessidades do estado-nação modern(ista)o.‖ PREZIOSI, Donald. Evitando museocanibalismo. In: HERKENHOFF, Paulo; PEDROSA, Adriano (org). XXIV Bienal de São Paulo. Núcleo histórico: antropofagia e histórias de canibalismo. São Paulo : Fundação Bienal de São Paulo, 1998. 16 Isso em ciências sociais e humanas saídas de centenária tentativa de colonização pelo modelo das ciências naturais. A presente dissertação, portanto, coloca-se explicitamente como antitética à maquinaria acadêmica majoritariamente disseminada, justificando-se o porquê da escolha do modelo das teses como rede a partir da qual agutinar-se-ão as reflexões deste trabalho. Subjaz nessas escolhas, inicialmente, afinidades eletivas com a consciência de que a história não se apresenta como o repositório acumulativo, linear, progressivo, contínuo, evolutivo, de um aglomerado de fatos (manifestados de uma forma fechada ao presente). Não podemos, teoricamente e existencialmente, nos curvar ao papel de advogados inventariantes do espólio dos vencedores, ou tentar limpar as marcas de sangue que perduram nos fragmentos do passado. Algo que apenas uma perspectiva que encare o horizonte histórico também como catástrofe - desmistificando a ilusão de continuidade forjada na descontinuidade pura - pode realizar.17 Resta-nos talvez, como contemporâneos, as tentativas de estancar o fluxo do tempo homogêneo e vazio - explodir a vertiginosa continuidade e alargar, ou imobilizar, o presente (Stillstand ) - a partir daquilo que Benjamin intitula como a interrupção messiânica do mesmo, ou, em outros termos, a irrupção da descontinuidade e da plenitude no deserto do instante enclausurado e fugidio entre o não mais e o ainda não. 17 De certo modo, sem enveredar para os caminhos inóspitos da epistemologia (mesmo porquanto nos é distante), ao associarmos tal concepção histórica ao desenvolvimento dos estratos (ou extratos) da presente pesquisa, refutamos toda e qualquer pretensão de cientificidade, seja a corporificada no critério de rigor, assim entendido na tradição da filosofia analítica, por se basear numa forma de aniquilamento (incutidor de escassez) sintático-semântico do simbólico (tendo como horizonte de sentido utópico a construção de uma linguagem artificial, de efeitos de verdade supostamente unívocos); seja o modelo de falseacionismo popperiano, porquanto fundado ainda em pressupostos das ciências naturais e numa versão reducionista de razão. Está implícita em nossa escolha uma pré-compreensão, no sentido gadameriano do termo, da cientificidade como apenas um estrato muito específico (porém de pretensões universalizatórias, ou seja, na linguagem de Boaventura de Sousa Santos, um particularismo universalizado) da racionalidade ocidental, hegemonicamente assentado na história a partir de sua tecnologização e instrumentalização com vistas a atender a predominância da maquinaria capitalista. E mesmo o dispositivo da cientificidade, nessa acepção, opera a partir de um microcosmos científico mergulhado num mar aberto de não-cientificidade e descontinuidades. Não esquecer que toda a elaboração da epistemologia científica de viés racionalista guia-se por uma concepção extremamente ingênua e apequenadora do próprio universo da linguagem e da história. Pensar a historia a partir de tal ângulo é também encará-la como não-fechada ao presente, possibilitando que as pretéritas imagens dialéticas (na acepção proposta por Benjamin em seu projeto das Passagens) possam desencadear desestabilizações, inoperâncias,18 mesmo que fugazes, no próprio presente.19 Não o estudo celebratório que acompanha o cortejo fúnebre da historia, mas leituras a contrapelo objetivando resgatar aquilo que este cortejo, em sua passagem, deixou esquecido/jogado, porquanto incomodativo à sua marcha triunfal. Nesse ponto, reatando a discussão inicial, também entendemos a escritura como um extravio temporal (conceito de extravio com um nítido sentido surrealista), ou que tem uma conexão direta com estar-no-tempo (indissociável da práxis),20 uma atividade que pode interromper automatismos, proliferar o tempo18 Podemos afirmar, com Agamben, que o debate sobre o desceuvrement (ou inoperância), se colocado nos termos que o desloquem de uma forma soberana da negatividade (como em Bataille), pode render interessantes contribuições para pensar a própria política que vem, principalmente se relacionado à modalidade da potência, principalmente a potência de não. Em seu entender, ―o tema do desceuvrement, da inoperância com figura da plenitude do homem ao fim da história, que aparece pela primeira vez na crítica de Kojève sobre Queneau, foi retomado por Blanchot e por Jean-Luc Nancy, que o colocou no centro de seu livro sobre a Comunidade Inoperante.Tudo depende aqui do se entende por ‗inoperância‘. Esta não pode ser nem a simples ausência de obra, nem (como em Bataille) uma forma soberana e sem emprego da negatividade. O único modo coerente de compreender a inoperância seria o de pensá-la como um modo de existência genérica da potência, que não se esgota (como a ação individual ou aquela coletiva, compreendida como a soma das ações individuais) em um transitus de potentia ad actum‖. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. (Tradução de Henrique Burigo). Belo Horizonte, ed. UFMG, 2002. p. 69. Se seguirmos as veredas da inoperância certamente chegaremos, como rota privilegiada de análise, a Melville, com seu Batleby, traçado que pretendemos desenvolver oportunamente. 19 Vem-nos à mente um trecho do apêndice à tese XVII, das ―Teses sobre a filosofia da história‖, de Benjamin: ―Para o pensador revolucionário, a chance revolucionária própria de cada instante histórico se confirma a partir de cada situação política. Mas ela se lhe confirma não menos pelo poder chave desse instante sobre um compartimento inteiramente determinado, até então fechado, do passado. A entrada nesse compartimento coincide estritamente com a ação política; e é por essa entrada que a ação política, por mais aniquiladora que seja, pode ser reconhecida como messiânica. (A sociedade sem classes não é a meta final do progresso na história, mas, sim, sua interrupção, tantas vezes malograda, finalmente efetuada)‖. In: LÖWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses ―Sobre o conceito de história‖. (Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brand, et. al.). São Paulo : Boitempo, 2005. p. 134. 20 Nesse sentido temos a tese de Agamben, de que Marx não elaborou uma teoria do tempo (ainda presa a filosofia hegeliana) à altura de sua teoria da história, fundada na práxis. "A historia não é para ele (Marx) algo em que o homem cai, ou seja, ela não exprime de-agora (Zetzt-Zeit) ou simplesmente limitar-se a reproduzir o tempo cartorário, industrial ou das autopistas contemporâneas (o tempo hegemônico ritualísticosacrificial capitalista, sejam quais forem as facetas deste). Sentido temporal muito próximo à figura do jogo, ao termos na lembrança a hipótese agambeniana de que, ao brincar, "o homem despreende-se do tempo sagrado e o 'esquece' no tempo humano."21 Somente apoderando-se (num sentido lúdico, ou ilusionista, de inludere, do termo) do tempo nadificado do sublime-espetacular-vertiginoso contemporâneo - onde somos lançados cotidianamente - apenas com a nadificação desse nada, com a restituição, desse tempo sagrado e improfanável, ao uso comum dos homens (algo hoje apenas vislumbrado em átimos), talvez somente assim possamos desobstruir as quinquilharias mortíferas que obstam quase todos os caminhos para (pensar) o agir político contemporâneo. Ruptura que oxalá torne possível, contingencialmente e afortunadamente (com a esperança de ventos benfazejos da fortuna inflando as velas jangadeiras22 da virtú), traçar cartografias factíveis de horizontes menos simplesmente o ser-no-tempo do espírito humano, mas é a dimensão geral do homem enquanto Gattungswesen, enquanto ser capaz de um gênero, isto é, de produzir-se originalmente não como mero individuo, nem como generalidade abstrata, mas como individuo universal. A historia não é determinada, como em Hegel e no historicismo que dele descende, partir da experiência do tempo linear enquanto negação da negação, mas a partir da praxis, da atividade concreta como essência e origem (Gattung) do homem. A praxis, na qual o homem se coloca como origem e natureza do homem, é também imediatamente o "primeiro ato histórico", o ato de origem da história, compreendida como tornar-se natureza, para o homem, da essência humana, e o tornar-se homem da natureza. A história não é mais, como em Hegel, o destino de alienação do homem, e a sua necessária queda no tempo é o negativo, em que se encontra em um processo infinito, mas a sua natureza, ou seja, o original pertencimento do homem a si mesmo como Gattungwesen, da qual foi temporariamente subtraído pela alienação. O homem não é um ser histórico porque cai no tempo, mas, pelo contrario, somente porque e um ser histórico ele pode cair no tempo, temporalizar-se.". AGAMBEN, Giorgio.Tempo e história: crítica do instante e do contínuo. In: Infância e Historia. Destruição da experiência e origem da historia. (Tradução Henrique Burigo). Belo Horizonte : Editora UFMG, 2005. p. 120-121. 21 AGAMEN, Giorgio. O país dos brinquedos: reflexões sobre a história e sobre o jogo. In: Infância e história. Op. cit. p. 85. 22 A ambivalente imagem da jangada representa muito bem a imprevisibilidade do vira-ser da dissidência, podendo tanto representar o símbolo da viagem, da deriva, da sobrevivência, da possibilidade da abertura ao novo (novos portos, outras paragens, utopias), quanto aquilo que as pinturas de Géricault espelham com toda crueza. A partir de uma pintura do artista, que toma o mote de A jangada de Medusa, Régis Michel propõe a seguinte inóspitos para a condição humana sobrevivente aos maremotos da catástrofe. *** As reflexões que ora são lançadas nessa dissertação, (a ser) submetida à defesa pública no Centro de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, devem ser consideradas muito mais como hipóteses de trabalho, objetivando lançar questões (mesmo porquanto não são exigidos trabalhos conclusivos no âmbito do mestrado, se é que realmente possa ser possível visualizar um trabalho conclusivo fora da esfera metafísica),23 suscitar debates e sedimentar um plano de consistência ou mesmo traçar linhas de fuga (duas modalidades caras a Deleuze) no interior de um dado corpus discursivo. interpretação: ―Ora, a figura da jangada é a metáfora ideal de uma sociedade dissidente. Porque esse mundo aberto é na verdade um recinto fechado [a huis-clos], cuja insularidade o protege das instâncias repressivas – das pressões sociais. Nem Deus, nem senhor, nada de superego. Do que resulta uma seqüência inédita de anarquia pulsional, que dá vazão a um auge de violência: arruaças, rixas, motins; os náufragos da jangada passam o tempo a se autodestruir (é bem verdade que não tinham lá grande coisa a fazer). Pelo menos, esses exercícios homicidas têm por ganho secundário distraí-los da fome, ao matarem (também) o tempo. Géricault desenha vigorosamente esses combates furiosos, abraços de corpos, orgias de carne, cujos atores formam um monstro de cem cabeças: mistura da Hidra com o Leviatã. Um desenho de Amsterdã leva ao paroxismo esse caos belicoso, onde cada um parece devorar o outro com a energia do desespero.‖ MICHEL, Régis. A síndrome de Saturno ou a Lei do Pai: máquinas canibais da modernidade. In: HERKENHOFF, Paulo; PEDROSA, Adriano (org). XXIV Bienal de São Paulo. Núcleo histórico: antropofagia e histórias de canibalismo. São Paulo : Fundação Bienal de São Paulo, 1998. p. 120-133. 23 Seguimos uma advertência de Gilles de Deleuze, a partir de suas reflexões sobre a literatura, de que ―escrever não é certamente impor uma forma (de expressão) a uma matéria vivida. A literatura está antes do lado do informe, ou do inacabamento, como Gombrowicz o disse e fez. Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido. A escrita é inseparável do devir: ao escrever, estamos num devir-mulher, num devir-animal ou vegetal, num devir-molécula, até num devirimperceptível. Esses devires encadeiam-se uns aos outros, segundo uma linha particular, como num romance de Le Clézio, ou então coexistem em todos os níveis, segundo portas, limiares e zonas que compõe o universo inteiro, como na pujante obra de Lovecraft.‖. DELEUZE. Gilles. Crítica e clínica. (Tradução: Peter Pál Pelbart). São Paulo : Ed. 34, 1997. p. 11. De certo modo, cingem-se a representar uma pesquisa heurística, ao convergirem para uma arqueologia de categorias (presumidas) válidas para pensar aspectos que consideramos importantes no plano da modernidade jurídicopolítica ocidental, tendo como foco de análise principal o local da teoria e da filosofia do direito nesse horizonte, a partir das referências compulsadas durante os dois anos previstos para tais investigações em sede de pós-graduação. Em certo sentido, tratam de apontar aspectos, direções, encruzilhadas, a partir de tais leituras, formatadas num caráter de intertextualidade com os autores elegidos e transversalidade com seus respectivos locais teóricos. Nossa arquitextura escava-se a partir de três eixos de projeção principais, a saber: o extravio do jurídico, o ocaso do político e a ubiqüidade da exceção. Cada eixo é composto por quatro teses heurísticas, propondo problemáticas e formando ―platôs‖ que se comunicam com os outros (e com os demais eixos) não por relações silogísticas, de implicação ou conseqüência, mas através de relações oblíquas, diagonais, ou mesmo palimpsesticas (de superposição, apagamento, obnubilação), formando, cada qual, fragmentos móveis que podem se refletir de uma maneira especular nos demais (aproveitando do jogo de espelhos maiores que os eixos representam), podendo produzir um sem-número de combinações e matizes, algo que a metáfora do caleidoscópio exprime muito bem. Cada um pode, a seu tempo, ser lido independentemente dos outros, mas facilmente encaixado, como peça maleável de mosaico, no “todo” descontínuo do qual faz parte. Imperioso afirmar que a escolha dos três eixos para a análise fundamenta-se em um insight (quase abdutivo, no sentido pierceano do termo) de que só poderemos pensar as aporias da teoria do direito (refletir sobre seu local), a partir da problematização das aporias da política ocidental contemporânea, o que inevitavelmente nos leva a ter de enfrentar a categoria da exceção, peça que consideramos chave para entender o presente, assim como, para pensar o fenecimento da política teríamos que pensar as crises no direito e, ergo, novamente a exceção, sucessivamente, ad infinitum. As hipóteses aqui apresentadas podem ser consideradas ―balanços de pensamento‖ - argumentos-síntese de propostas teóricas - não de autoria direta de quem vos escreve (isso se aplicado o conceito soberano do autor clássico despido de toda e qualquer intertextualidade), porém reflexo das leituras (muitas vezes latentes, implícitas) e diálogos tidos durante esses últimos anos de investigação. O grande fio condutor entre elas pode ser considerado um esforço de compreensão,24 no sentido arendtiano do termo, dos umbrais que se colocam ao pensamento quando fadado a pensar o seu próprio estar-no-mundo, o que significa para nós enfrentar os paradoxos do carolliano mundo às avessas do ocidente contemporâneo. 24 ―Compreender não significa negar nos fatos o chocante, eliminar deles o inaudito, ou, ao explicar fenômenos, utilizar-se de analogias e generalidades que diminuam o impacto da realidade e o choque da experiência. Significa, antes de mais nada, examinar e suportar conscientemente o fardo que o nosso século colocou sobre nós – sem negar sua existência, sem vergar humildemente ao seu peso. Compreender significa, em suma, encarar a realidade sem preconceitos e com atenção, e resistir a ela – qualquer que seja.‖. ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. (Tradução de Roberto Raposo). São Paulo : Companhia das Letras, 1989. p. 12. I. EXTRAVIO DO JURÍDICO 1. Pensar o direito contemporâneo é confrontar-se com um “estado de arte” em que a categoria ocidental de lei, tal qual estruturada numa versão que remontaria à tradição grega - porém exsurgindo com centralidade na tradição ocidental a partir da configuração do Estado-nação europeu e reinscrita nos moldes do paradigma normativista no séc. XX passa a não ser mais um componente nuclear de sua própria caracterização, principalmente após o fenecimento do modelo do Estado-Providência (e já em gestação em sua estruturação) a partir de meados da década de 80, emergindo, de tal forma, outros modelos regulatórios e de governamentalidade (conceito que passa a se tornar corrente a partir de então). Não presenciamos o fim do jurídico (jurídico entendido num sentido mais amplo que a simples legalidade), porém temos de dar conta de um jurídico extraviado em incontáveis dispositivos de regulação social, muitas vezes externos à intrínseca configuração da estatalidade ocidental (como o mercado e a técnica), rompendo com postulados dito clássicos da própria juridicidade (territorialidade, soberania monolítica, substrato nacional).25 25 Tentaremos esboçar, de modo sintético, nesse primeiro argumento-síntese do trabalho, as configurações da estatalidade e da teoria do direito contemporâneo, com um intuito muito mais operativo (um estudo-embreagem, parafraseando Benveniste) para os fluxos posteriores das derivas que de fechamento teórico rigoroso de um discurso, aí se explicitando um estilo balbuciante na apresentação dos conteúdos. Para este fim será buscado tanto um resumo diacrônico das principais fisionomias do Estado moderno (no período que circunscreve desde sua emergência moderna às suas principais reconfigurações estruturais e funcionais - no sentido bobbiano da relação [Cf.,―Dalla struttura alla funzione‖] – circunscritas nos modelos liberal, providencial e pós-providencial), quanto uma mirada sincrônica que procure delinear uma imagem - um instantâneo - da estatalidade contemporânea, a partir do que revelam as fontes dos tradicionais estudos do direito e da teoria política. Serão, de certa forma, intercaladas ou justapostas tanto a aproximação jurídico teórica quanto a abordagem da teoria política.O que o texto perderá em rigor, circunspeção e acordo semântico, ganhará em fluidez, panorama e velocidade (nos estritos objetivos de um primeiro tópico de aproximação teórica), mote para os desenvolvimentos posteriores da armação teórica. Boa parte dos argumentos deste primeiro item do trabalho estão publicados, É possível afirmar, de forma provisória, que o capitalismo ocidental, como dispositivo chave que conduziu (e conduz) boa parte das derivas da modernidade desdobrada contemporânea (no sentido que Giacomo Marramao propõe para esse conceito),26 territorializou-se num plano dito nacional (ou naquele feixe ficcional de constelações de significado que passam a ser semanticamente reconhecidos e congelados no topos nacional) sob o impulso de um direito centralizado, racional, previsível, estatalizado, como contraponto a uma sociedade medieval que passa a ser tachada de fragmentária, caótica, baseada em um pluralismo de fontes normativas (organização suserana, poder real, tribunais eclesiásticos, mercadores, direito consuetudinário nos portos, etc.). Em face a este pluralismo do medievo, as grandes monarquias absolutas formam-se, no entender de Bobbio, através de um duplo processo de unificação: unificação de todas as fontes de produção jurídica na Lei (fenômeno de açambarcamento das fontes), como emanação da vontade do soberano; e unificação de todos os ordenamentos jurídicos (inferiores ou superiores) no ordenamento do Estado. Ou seja - no que diz respeito ao primeiro aspecto - gradualmente são rejeitadas as antigas fontes medievais do direito, reconhecendo-se roupagem jurídica ao costume apenas quando expressamente reconhecido pela lei, uma ciência jurídica não vinculatória, meramente opinativa, a jurisdição como poder secundário e derivado de aplicar as normas jurídicas de origem legislativa. A unificação de todos os ordenamentos jurídicos (inferiores ou superiores) no ordenamento do Estado realiza-se, por outro lado, através da liberação das Monarquias absolutas em relação à Igreja e ao Império, e por intermédio da sem alterações substanciais, com o título: Direito e crise da modernidade ocidental, rumo a uma regulação pós normativa? In: Paulo Emílio V. Borges de Macedo (org.). Direito e Política. Curitiba: Juruá, 2005. pp. 114-127. 26 Cf.: MARRAMAO, Giacomo. Poder e secularização. As categorias do tempo. (Tradução Guilherme G. de Andrade). São Paulo, Ed. UNESP, 1995. absorção dos ordenamentos inferiores (luta em face aos senhores feudais, às autonomias comunais e os privilégios das corporações).27 No horizonte de tal tradição de pensamento, múltiplos fatores influenciaram a consolidação deste projeto (projeto entendido com nítidas facetas processuais). Dentre eles destaca-se a recepção do direito romano por intermédio dos glosadores, resultado de uma ―convergência de interesses econômicos e culturais‖28 que tendia principalmente à substituição da liberdade caótica do período feudal por uma concepção jurídica erudita que desse conta de balizar a liberdade e garantia contratual das relações econômicas que então emergiam.29 Em traços gerais, nesse modelo explicativo, pode-se dizer que o Estado moderno, que progressivamente (e este é um termo importante no plano da história tradicional do direito, uma história de continuidades) veio se consolidando desde o séc. XIV, distingue-se do modelo de regulação feudal por dois aspectos principais: distinção entre a esfera pública (sociedade política, o aparato administrativo) e uma esfera privada caracterizada como sendo o âmbito específico da sociedade civil. Em simetria com esta separação está a dissociação estrutural entre o poderio econômico e o poderio político (pelo menos em termos de organização categorial, no feudalismo estes dois aspectos estavam reunidos). 30 Contrapondo-se às monarquias absolutas européias, emergindo principalmente com as revoluções burguesas do séc. XVIII e XIX, teria nascido o Estado liberal, tal qual descrito e defendido por uma extensa tradição teórica. Propugnar-se-á, na fundamentação deste modelo de Estado, principalmente um conceito moderno de liberdade entendida como não intervenção nos assuntos ligados aos aspectos econômicos e civis dos indivíduos, salvo para resguardar 27 BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. (Tradução: Alfredo Fait). Brasília : Editora UNB, 1997. p. 12. 28 WIEACKER, Franz. Privatrechtsgeschichte der Neuzeit. Gottingën : V&R,1967. p.48. Apud: SANTOS, Boaventura de Sousa. Crítica da razão indolente: contra o desperdício de experiência. São Paulo : Cortez, 2001. p. 122. 29 Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. cit. p. 123. 30 Cf. ROTH, André-Noël. O direito em crise: fim do Estado moderno? In: FARIA, José Eduardo C. (org) Direito e Globalização econômica. São Paulo : Malheiros, 1996. p. 23. aqueles direitos considerados fundamentais, vistos a partir do visor desta liberdade negativa (seja de expressão, seja de locomoção, contratual, etc.). Prevalecerá, na arquitetônica liberal estabelecida, as chamadas constituições garantias, um sistema jurídico que aspira a uma pretensa unidade, previsibilidade, correção formal, abstração e impessoalidade. A separação entre os campos do direito privado (principalmente o direito das relações econômico-patrimoniais) e do direito público (entendido principalmente como o universo do direito político), em germe já depositada na emergência da estatalidade política, aprofunda-se e ganha contornos mais nítidos. Nesse sentido, apenas uma concepção de justiça estritamente comutativa, vinculada à dimensão privatística, entra na análise das questões jurídicas, sendo o postulado de uma justiça distributiva relegado ao plano de mera questão política, ou melhor, pode-se afirmar que na configuração clássica do Estado-liberal não há como se falar de uma justiça distributiva fundada numa equalização operacionalizada pelo Estado. Ademais, na estrutura jurídico-política liberal a teoria da separação dos poderes apresenta-se como um dado irrefutável, sendo que, por intermédio desta sustentação, o poder legislativo adquire ampla predominância em relação ao poder executivo e a um poder judiciário politicamente neutralizado ou subalternizado (atavismo que pode ser diagnosticado como sendo oriundo da revolução francesa, a partir das exigências, v.g., do Exegetismo). A racionalidade dos monumentais e pretensamente abrangentes códigos, com uma proibição taxativa dos tribunais decidirem contra-legem estrita (princípio da legalidade), reduzem, nesse contexto, o atuar jurídico a uma rotinizada aplicação subsuntiva lógico-formal de fatos a normas, ou de normas a fatos, despida de referências que possam ultrapassar a desejável e presumida autoreferencialidade do direito (que será levada às últimas conseqüências, no séc. XX, com o projeto de depuração epistemológica proposto por Kelsen), movendose em um quadro político estaticamente pré-constituído, um atuar apenas velador de uma vigência entendida em seu aspecto meramente formal. Apresenta-se, de tal forma, na estatalidade liberal, um ethos de objetivos hegemonicamente retroativos, ou seja, o de simplesmente reconstituir uma realidade normativa sempre entendida como antes ―plenamente― constituída.31 Em correlação direta com este ethos, visualiza-se neste modelo (em traços gerais) uma concepção de interpretação jurídica envolvida muito mais com aspectos sintáticos-lexicográficos, de (essencialista) revelação do real sentido da lei ou até mesmo da busca das intenções do legislador, sem atentar-se para aspectos semânticos (adequação factual) ou pragmáticos (persuasão). Sintoma da localização privilegiada da idéia de legalidade no Estado-liberal e da correlata proeminência do Poder Legislativo a ele relacionado. A tradição do positivismo normativista tentará solucionar as aporias relacionadas à interpretação jurídica no contexto liberal com a afirmação (tornada explícita em Kelsen) de que, em caso de polissemia, vagueza, múltiplas possibilidades de aplicação de uma mesma norma ao caso concreto, isso se resolveria pelo aplicador através de um ato de vontade, respaldado pela autoridade (auctoritas facit legem).32 De tal forma que - talvez possa ser possível afirmar - boa parte das construções teóricas positivistas (principalmente em seu viés normativista) têm seu esclarecimento pleno apenas no quadro de referências liberal. Não obstante, com o desencadeamento vertiginoso das transformações tecnológicas cujo início remoto pode ser remetido à revolução industrial oitocentista (estando diretamente relacionadas à disseminação processual do capitalismo) e todas as implicações conexas a estas mudanças (redefinição do urbano, do econômico, do capital-trabalho, etc.),33 visualiza-se nitidamente, principalmente no contexto entre guerras e no pós segunda guerra, no plano dos Estados europeus e dos Estados Unidos (lembre-se do 31 MARQUES, Maria Manuel Leitão; PEDROSO, João; SANTOS, Boaventura de Sousa. Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas. Revista ANPOCS, Outubro de 1995. p.7. 32 Debate que será desenvolvidos no próximo tópico. 33 Não buscamos um inventário de todos os fatores determinantes para a emergência do Estado-providência na Europa e nos Estados Unidos, algo que foge do objeto de estudo deste trabalho, reportamos à vasta literatura existente sobre o assunto. intervencionismo ao estilo Roosevelt como forma de fomentar a reestruturação de um Estado saído do conflito mundial), as insuficiências regulatórias deste Estado restritamente gendarmeriano, guarda noturno (Lassale), que, neste quadro instaurado, não se colocava com outro objetivo que não fosse a reprodução insustentável de inúmeras problemáticas. Teoricamente desde o último quarto do séc. XIX, passando pela primeira guerra mundial, mas concretamente apenas no pós segunda guerra mundial, consolida-se nos países centrais os aspectos nucleares daquilo que se convencionou rotular como o modelo do Welfare State, o Estado Providência, ou simplesmente Estado Social.34 Tal configuração de Estado absorve formulações teóricas englobando desde inúmeras concepções da social-democracia (progressismo que passa a se tornar hegemônico nos países que se colocaram como oposição aos regimes ditos socialistas do leste), passando pela configuração de um intervencionismo estatal econômico de viés keynesiano, à adesão (quase irrestrita) à categoria do progresso como rota histórica inescapável, principalmente no viés do conceito (weberiano) de modernização, entendida seja num sentido de racionalização política (procedimentos conformadores da vontade e da decisão pública, algo já desencadeado a partir do imaginário liberal) e de promoção de reformas infra-estruturais voltadas à viabilizar um fluxo interno adequado à disseminação processual do capitalismo (aspectos de produção, de consumo, de trânsito de informação e pessoas, de know how tecnológico, etc). Em traços gerais, pode-se referir que inúmeras transformações no tocante ao direito e ao próprio sistema jurídico são operadas a partir desta nova forma política de Estado. Em primeiro lugar, a hiper-juridificação da realidade social coloca fim à idéia de coerência e unidade do sistema jurídico. 35 Uma estrutura normativa caósmica coloca em xeque o próprio princípio da legalidade e seu correlato da 34 Cf. ROSANVALLON, Pierre. A Crise do Estado-Providência. Brasília : Ed. UNB: 1997; MARQUES, Maria L.; et. al. Op. Cit.; SANTOS, Boaventura de Sousa. Toward a New Common Sense: Law, Sciense and Politics in the Paradigmatic Transition. Nova York, Routledge, 1995. 35 MARQUES, Maria L.; et. al. Op. Cit. p. 11. interpretação jurídica como mera subsunção lógica, de análise sintática, formalmente adequada. Por outro lado, com a positivação de direitos fundamentais de cunho prestacional (a exemplo dos intitulados direitos de segunda dimensão, como os econômicos, sociais e culturais, que exigem prestações positivas dos Estados para sua efetivação), inverte-se indelevelmente a maneira de se entender e interpretar o sistema jurídico como um todo, haja vista que tais direitos, como nas assertivas do jurista Tércio S. Ferraz Jr., não seriam simplesmente normativos, na forma de um a priori formal, porém possuiriam um sentido realizatório prospectivo, estabelecendo uma exigência imperativa de implementação.36 O direito público permeabiliza-se imperativamente no direito privado (publicização do direito privado, constitucionalização do direito civil), buscando abarcar toda uma imensa gama de realidades fáticas, gerando, dessa forma, uma especialização de tais ramos, que se autonomizam cada vez mais, implicando por vezes uma regulação minudente de micro-aspectos da realidade social, cada vez mais particularísticos, quebrando em muitas facetas os princípios, até então tradicionais no direito liberal, da generalidade, impessoalidade e abstratalidade da norma jurídica. Formam-se inúmeros micro-sistemas normativos que se comunicam com o núcleo do ordenamento muito mais através de aspectos principiológicos, valorativos - por conseguinte, mais fluídos, dúcteis, dependendo de argumentações - que de adequação dedutiva direta, exemplificada no modelo de sistema jurídico piramidal proposto por Kelsen, das normas inferiores deduzindo sua vigência das normas superiores e assim por diante. Os chamados princípios, de meros coadjuvantes no interior da teoria do direito (outrora apenas chamados de princípios gerais do direito), passam a assumir maior protagonismo nesse contexto. Entende-se então que 36 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. O Judiciário frente à divisão dos poderes: um princípio em decadência?. Revista de Estudos Avançados - USP. n. 21 (março/maio de 1994). p. 12-21. decisões podem ser embasadas exclusivamente em princípios, e que estes devem representar balizas hermenêuticas para a interpretação de todo o ordenamento (considerado, a partir de então, de uma forma mais aberta). Tais categorias produzem, de certo modo, uma mutação semântica para a própria configuração de norma, que passa a compreender não mais tão somente as normas-regras, mas também as chamadas normas-principiológicas. Logicamente, as implicação no plano da teoria das normas e da própria teoria do ordenamento não demoraram a aparecer (e a teorização é vasta e cansativa), emergindo conceitos como o de colisão de princípios (ao invés dos debates anteriores sobre a coerência e antinomias do sistema jurídico, representadas através da idéia da revogação) e harmonização de princípios (visto não ser possível revogá-los em caso da escolha de um em detrimento do outro), de abertura do sistema jurídico (incutindo modificações no âmbito da teoria da completude do ordenamento, com seu correlato no conceito de lacunas, visto que, nessa perspectiva, sempre o aplicador do direito terá subsídios normativos diretos para responder a um problema jurídico, não necessitando, em caso de lacunas, criá-los, ou buscar outras fontes, como o costume, a analogia, a jurisprudência, etc.). Grife-se que estamos a tratar de um ordenamento entendido num sentido hipertrofiado (por intermédio de seu extravio), ao termos em mente que o próprio debate sobre a normatividade dos princípios traz em seu interior uma indecidibilidade e indiscernibilidade entre as intituladas (principalmente no âmbito da tradição normativista) esferas do direito e da moral, cuja tentativa de separação (clássica) pode ser remontada à Doutrina do Direito de Kant, texto datado de 1797. É constatável que o dispositivo do princípio traz, em si, uma elevada carga substancialista, muitas vezes esquecidas pela maior parte dos juristas (principalmente se imersos num estudo apenas da faceta dogmática do direito). E, de certa forma, uma indeterminação (seja de valores ou mesmo semântica) que dá margem à abertura de um vasto campo para a pragmática e para a retórica no teoria do direito contemporâneo, voltadas principalmente para as instâncias da aplicação do direito (todo o debate sobre a teoria da argumentação jurídica insere-se nessa problemática). Se, por um lado, rompe-se com a tradição essencialista, silogística e exegética para a aplicação jurídica, por outro, os critérios de validade de uma decisão legítima ficam cada vez mais difusos, dando margem, por exemplo, à proliferação de sentenças contraditórias (também ao decisionismo e ao psicologismo arbitrário de juízes). Concomitante a isso, os próprios locais das dimensões zetéticas das dimensões dogmáticas da teoria do direito (aferidos pela tópica de Viehweg), com esse extravio nos campos sistemático e aplicativo, entram em indeterminação. O que se aponta, de forma sumária, é a mudança de configurações, na estatalidade moderna, de um modelo normativista para um modelo ―decisionista‖, mutação que acompanha – diacronicamente - a crise das estruturas liberais no plano político e a crise das categorias positivistas na dimensão da teoria do direito. Em termos de estrutura política, com a prevalência do modelo interventor colapsa o princípio da tripartição dos poderes (e, principalmente, a supremacia do poder legislativo previsto na arquitetônica liberal), com uma proeminência do Poder Executivo-Administrativo, respaldado com o beneplácito dos inúmeros direitos positivos que deve efetivar, fenômeno chamado no período de administrativização do direito público e até mesmo a governamentalização da produção do direito (crescem os casuísmos, o chamado instrumentalismo jurídico, a produção legiferante em massa através, v.g., de medidas provisórias, como é corrente no exemplo brasileiro). O componente promocional do Estado providência traz uma juridificação da justiça distributiva, os próprios efeitos extra-judiciais de uma sentença passaram a ser o critério principal de avaliação do desempenho judicial, num viés muito mais prospectivo que retrospectivo, como era na primeira fase. Quebra-se a conhecida simbiose entre independência dos tribunais e neutralização política, fazendo com que o Poder Judiciário tenha que se confrontar com sua quota de responsabilidade na efetivação das promessas que o próprio ordenamento traz em seu interior.37 Contudo e paralelo às transformações trazidas pelo modelo regulatório com pretensões abrangentes do Estado Providência – a leveza proliferatória do extravio do jurídico em todos os níveis - percebe-se nitidamente, com uma complexificação social em progressão geométrica (a deixa para as teorizações de matriz luhmanina adotarem o conceito de complexidade como vetor epistemológico principal de análise), uma verdadeira perda do espaço do direito como pólo privilegiado e central de controle social, fenômeno diagnosticado por Bobbio, em 1971, como tendo já suas origens depositadas no período decimonônico.38 (...) Mientras que los escritores iluministas poniam al derecho en el centro del estudio de las distintas civilizaciones, iban a buscar la natureza y las lineas de desarrollo de un pueblo en el ―espiritu de las leyes‖ y creíam que para cambiar la sociedad bastaba com cambiar el derecho, en el siglo XIX, poco a poco e a medida que se iba tomando conciencia del gran cambio histórico producido poe el advenimiento de la sociedad industrial en la ‗sociedad civil‘, antes incluso que en la sociedad política, el Derecho se fue considerando cada vez más como un epifenómeno, como un momento secundário del desarrollo histórico, y 37 FERRAZ JR. op. cit. p. 12. ―(...) Com base em condições sociopolíticas do séc. XIX, sustentou-se por muito tempo a neutralização política do Judiciário como conseqüência do princípio da divisão dos poderes. A transformação destas condições, com o advento da sociedade tecnológica e do Estado Social parece envolver exigências no sentido de uma desneutralização, posto que o juiz é chamado a exercer uma função sócio-terapêutica, liberando-se do apertado condicionamento de uma estrita legalidade e da responsabilidade exclusivamente retrospectiva que ela impõe, obrigando-se a uma responsabilidade prospectiva, preocupada com a consecução de finalidades políticas das quais ele não mais se exime em nome do princípio da legalidade (dura lex sed lex). Não se trata, nessa transformação, de uma simples correção da literalidade da lei no caso concreto por meio de eqüidade ou da obrigatoriedade de, na aplicação contenciosa da lei, olhar os fins sociais a que ela se destina. A responsabilidade do juiz alcança agora a responsabilidade pelo sucesso político das finalidades impostas aos demais poderes pelas exigências do Estado Social.‖ Ibidem. 38 No texto ―Derecho e ciencias sociales‖, incluído na reunião de textos traduzida para o espanhol como ―Contribucion a la teoria del derecho‖. fue mirado cada vez con más desconfianza como instrumento de cambio social.39 Entretanto, se a crise da centralidade política do Estado já era percebida nos idos do séc. XIX, passa a ser um lugar comum - na segunda metade do séc. XX e principalmente nas últimas décadas do séc. XX - o entendimento de que esse sistema político aglutinado através do(s) aparato(s) estatal(is) representa apenas mais um dos tantos subsistemas presentes e coexistentes na sociedade (mais deixas para Luhman), constituindo-se, no entender de Bobbio, que a grande ilusão das teorias políticas-jurídico-institucionais do séc. XIX consistia em analisar o subsistema político (estatal) como autosuficiente, tendo, por conseguinte, independência e, simultaneamente, controle sobre o restante do sistema global.40 Análise semelhante pode ser encontrada em Habermas: De acordo com as ideias normativas da nossa tradição política, o aparelho de Estado, legitimado democraticamente, transposto da soberania dos príncipes para a do povo, deveria expressar a opinião e a vontade do público dos cidadãos do Estado. Os próprios cidadãos do Estado participam na formação colectiva da consciência, eles não podem agir colectivamente. Mas será que o Estado o pode? Agir colectivamente significaria que o Estado transformaria, por si mesmo e de um modo organizacional, o saber da sociedade constituído colectivamente numa autodeterminação da sociedade. Temos, porém, já por razões da teoria dos sistemas, de duvidar desta possibilidade. A política tornou-se hoje, de facto, num assunto de um sistema parcial funcionalmente des39 BOBBIO, Norberto. Contribucion a la teoria del derecho. (Tradução: Afonso Ruiz Miguel). Madri : Fernando Torres – Editor, 1980. Observe-se, nesse sentido, as observações de Carl Schmitt, lançadas em sua Teologia Política: ―Hoje, nada é mais moderno do que a luta contra tudo o que é político. Magnatas americanos, técnicos industriais, socialistas, marxistas e revolucionários anarco-sindicalistas juntam-se ao exigir a eliminação da dominação nãoobjetiva da política sobre a objetividade da vida econômica. Não deverão mais existir problemas políticos, só tarefas técnico-organizacionais e econômico-sociológicas. A espécie de pensamento técnico-econômico hoje dominante pode até nem aceitar mais um idéia política. O Estado moderno parece realmente ter se transformado naquilo que Max Weber previu: uma grande empresa. Uma idéia política geralmente só é assimilada quando o círculo de pessoas que tem algum interesse plausível nela consegue provar que pode usá-la em vantagem própria. O político desaparece no econômico ou no técnico organizacional e, por outro lado, se desfaz no eterno discurso das generalidades histórico-filosóficas e culturais, que com caracterizações estéticas degustam uma época como clássica, romântica ou barroca. Em ambos, a essência da idéia política, a decisão moral exigente, é desviada.‖ SCHMITT, Carl. Teologia Política. In: A crise da democracia parlamentar. (Tradução de Inês Lohbauer). São Paulo, Scritta, 1996. 129-130. 40 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da política: a filosofia política e a lição dos clássicos. Tradução: Daniela Bersiani. Rio de Janeiro : Campus, 2000. p. 255. diferenciado; e este não pode, face a outros sistemas parciais, dispor da quantidade de autonomia que é exigida para um controlo geral, i.e., para uma auto-influência que parta da sociedade como totalidade e que retorne a esta.41 A perda de uma localização privilegiada do direito no campo de sociedades complexas, levando a uma fragmentação estrutural com objetivos de abrangência funcional dos ordenamentos nacionais (num contexto específico do modelo e Estado Providência com sua promessas e de um capitalismo tardio), foi atravessada paulatinamente, entretanto, por uma roupagem regulatória diferenciada, não mais dependente de políticas contextualizadas num plano de interesses nacionais. Aí já entramos num âmbito de reestruturação desterritorializada (ou, re-territorialização em outras escalas)42 do capitalismo de viés financeiro transnacional. Sem adentrar nos aspectos da irreversibilidade ou reversibilidade da crise do Estado de Bem-Estar Social, pode-se afirmar que, a partir do final da década de 70 e início da década de 80 no séc. XX, iniciavam-se os primeiros sinais manifestos deste ocaso, que se prolongou por toda a década de 80 até os dias atuais (falando-se isto no plano dos países centrais).43 41 HABERMAS, Jürgen. O Discurso filosófico da modernidade. Lisboa : Dom Quixote, 1998. p. 330. 42 ―O território é tão inseparável da desterritorialização quando o era o código em relação à descodificação.‖ DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Vol. 5. (Tradução: Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa). São Paulo : Ed. 34, 1997. p. 220. 43 MARQUES, Maria L.; et. al. Op. Cit. p.15. Pode-se afirmar que nas regiões intituladas como periféricas, a exemplo da localização brasileira no circuito econômico mundial do presente, os arremedos de consolidação de um Estado Providência, concentrados principalmente numa produção legislativa voltada a este perfil de Estado (num aspecto meramente formal), foram desde logo colapsados pela emergência do credo neo-liberista de não intervenção. Ou seja, na medida em que tardiamente se configura em termos formais um projeto de Estado Social (v.g., a Constituição brasileira de 1988), visualizam-se quase na concomitância os processos inversos de des-regulamentação ou re-regulamentação liberatória. No caso brasileiro, podem ser citadas as paradigmáticas medidas desregulamentadoras operadas no próprio texto constitucional no contexto do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, pormenorizadas pelo jurista Celso A. Bandeira de Mello. ―(a) Emenda Constitucional na 6 de 15.08.95, por força da qual de um lado, foram eliminados o conceito de empresa brasileira de capital nacional e a preferência que o Poder Público lhe deveria dar quando pretendesse adquirir bens e serviços, e de outro, permitiu-se, assim, que a exploração mineral do subsolo brasileiro pudesse ser feita por empresas controladas e dirigidas por pessoas não residentes no País, o que dantes era vedado. O atual projeto de privatizar a Companhia Vale do Rio Doce, empresa governamental lucrativa, é uma concretização da sobredita Emenda; (b) A Emenda Constitucional nº 7, também de 15 de Múltiplos foram os fatores desencadeadores de tal crise, podem ser colocados em relevo a incapacidade financeira do Estado para atender despesas sempre crescentes da intervenção estatal (tanto mais necessária quanto piores forem as condições para a financiar),44 os impactos trazidos pelas alterações drásticas nos sistemas produtivos e no universo do trabalho pelas revoluções tecnológicas, a difusão do modelo ultraliberal, o protagonismo de agências financeiras internacionais e a própria globalização da economia como um todo, a sujeição, a clientelização e normalização dos indivíduos ao cargo de agências burocraticamente despersonalizadas, levando-se em consideração que (...) Em uma burocracia plenamente desenvolvida não há ninguém a quem se possa inquirir, a quem se possam apresentar queixas, sobre quem exercer as pressões do poder. A burocracia é a forma de governo no qual todas as pessoas estão privadas de liberdade política, do poder de agir, pois o domínio de Ninguém é um não-domínio, e onde todos são igualmente impotentes temos uma tirania sem tirano.45 Enfim, temos uma breve enumeração daqueles componentes que darão margem às interpretações de Negri e Hardt sobre a categoria de Império (envolvendo uma nova ordem mundial acêntrica, administrada pelas maiores potências estatais do planeta e instituições transnacionais como a OMC e o FMI, seguindo um viés globalizatório) aplicada à contemporaneidade no Ocidente.46 agosto do mesmo ano, veio extinguir a garantia de que a navegação de cabotagem e interior no Brasil fosse, salvo caso de necessidade pública, privativa de embarcações nacionais, pelo que não há mais óbice constitucional a que seja feita por embarcações estrangeiras; além disto, suprimiu a exigência de que os armadores, os proprietários, o comandante e pelo menos dois terços dos tripulantes de nossas próprias embarcações fossem brasileiros (espantosa a minúcia dos interesses alienígenas em excluir até mesmo a cláusula que estabelecia devessem ser brasileiros dois terços dos tripulantes de nossas próprias embarcações); (c) A de nº 8, da mesma data das anteriores, veio para eliminar a previsão de que a exploração de serviços telefônicos, telegráficos, de transmissão de dados e demais serviços públicos de telecomunicações fossem explorados diretamente pela União ou por concessão a pessoa sob controle acionário estatal; (d) A de nº 9, também da mesma data, para flexibilizar as disposições relativas ao monopólio estatal do petróleo.‖ DE MELLO, Celso Antônio Bandeira. A democracia e suas dificuldades contemporâneas. In : Revista JurisPlenum. 84 ed. Vol. 1. Caxias do Sul : Ed. Plenum, agosto de 2005. 44 MARQUES, Maria L., et. al. Op. Cit.. p. 17. 45 ARENDT, Hannah. Sobre a Violência. (Tradução: André Duarte). Relume Dumará : Rio de Janeiro, 1994. p. 59. 46 Cf.: HARDT, Michael, NEGRI, Antônio. Império. (Tradução de Clóvis Marques) Rio de Janeiro : Record, 2001. Reforça-se, a partir da reflexão desses dois teóricos, que ―(...) a construção dos caminhos e limites desses novos fluxos globais tem sido acompanhada por André-Noël Roth assinala no mundo contemporâneo um acentuado debilitamento das especificidades que permitiram à regulação levada a cabo pelo Estado moderno diferenciar-se da existente no período feudal: distinção entre esfera privada e esfera pública, dissociação entre poderio político e econômico, separação entre as funções administrativas, políticas e a sociedade civil.47 A perda da coerência, previsibilidade, centralidade e unidade do sistema jurídico iniciada no período do Welfare State permanece - entretanto metamorfoseada - dando lugar a uma múltipla ordenação plural que ultrapassa a esfera dos territórios nacionais, principalmente os da periferia, como no caso da tão citada lex mercatória. Por outro lado, facilitada pela juridificação maciça levada a cabo num contexto estatal de índole promocional (principalmente no sentido de publicizar esferas privadas), será cada vez mais aprofundada a indistinção, ou des-diferenciação, entre as esferas públicas e privadas no mundo contemporâneo (inicialmente a publicização do privado e posteriormente a privatização do público), uma imensa zona de penumbra se forma entre estes dois pólos, tendendo a degluti-los, fagocitá-los. Um conceito fantásmico de mercado invade em progressão geométrica os espaços da política estatal. Esta instância da modernidade sólida (como no dizer de Bauman)48 se torna combalida frente ao esfacelamento do espaço público e da ascensão de uma bureau-cracia dos custos-benefícios/meiosfins, o governo de ninguém, impessoal, quase virtual, atravessando os espaços uma transformação dos próprios processos produtivos dominantes" (Op. Cit. p. 17.) ; e, dos mesmos autores, Multidão: Guerra e democracia na era do Império. (Tradução de Clóvis Marques) Rio de Janeiro : Record, 2005. 47 ROTH, André-Noël. O direito em crise: fim do Estado moderno? In: FARIA, José Eduardo C. (org) Direito e Globalização econômica. Op. Cit. p. 24. 48 ―Volume e tamanho deixam de ser recursos para se tornar riscos. Para os capitalistas que preferem trocar maciços prédios de escritório por cabines em balões, flutuar é o mais lucrativo e desejado dos recursos, e a melhor maneira de garantir a flutuação é jogar pela amurada todo peso não-vital, deixando os membros não-indispensáveis da tripulação em terra. Um dos itens mais embaraçosos do lastro de que é preciso livrar-se é a onerosa tarefa da administração e supervisão de uma equipe grande – tarefa que tem a tendência irritante de crescer incessantemente e aumentar de peso com a adição de camadas sempre novas de compromissos e obrigações.‖ BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. (Tradução Plínio Dentzien). Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 2000. p. 141. carcomidos dos Estados, num mundo onde o tipo médio do homem-massa (Ortega y Gasset) consumidor é seu representante-mor antropológico (o fiel rebanho da religião capitalista de nosso tempo), um arquétipo previsto para a humanidade contemporânea.49 Nesse sentido, enquanto se visualizava uma proeminência do poder legislativo no modelo do Estado Liberal, a hipertrofia do poder executivo num contexto de Welfare State (que efetivamente não rompe, pelo menos em seus pressupostos, com vários postulados da tradição liberal), na estatalidade contemporânea (que realmente não sabemos como chamar, para certos juristas estamos diante de um Estado Regulador), temos um acentuado crescimento do local do poder judiciário na funcionalidade intrínseca a essa estatalidade (até como forma gestão das aporias do segundo modelo).50 Nesse sentido, a maior parte dos debates sobre teoria do direito contemporâneo tomam o judiciário, e particularmente, a construção da decisão, como foco privilegiado de estudos. O Estado contemporâneo, a teoria do direito contemporâneo, está às voltas com a questão da decisão, ou seja, da decidibilidade de conflitos. (Fenômeno que será debatido com mais pormenorização no item 4 deste capítulo, onde serão tratadas das reconfigurações estruturais e funcionais do direito nas sociedades de consumo contemporâneas). Sintoma dessa localização privilegiada do judiciário nas atenções da política institucional contemporânea é o simples fato de que seriam impensáveis, nos modelos anteriores, os intermináveis debates sobre a judicialização da política e sobre a politização do judiciário. 49 ―Às vezes imagino o que dirão de nós os futuros historiadores. Uma só frase lhes bastará para definir o homem moderno: fornicava e lia jornais. Depois desta forte definição, o assunto ficará, se assim posso me expressar, esgotado.‖ Albert Camus. A Queda. (Tradução: Valerie Rumjanek). São Paulo : Círculo do Livro, s/d. p. 6. 50 Como no dizer de Pietro Barcellona, ―estamos atribuindo tudo à política e ao direito: desde o nascimento à morte. Estamos nos dirigindo para uma maciça objetivação e institucionalização e, contemporaneamente, a uma jurisdição‖. BARCELLONA, Pietro. O egoísmo maduro e a insensatez do capital. (Tradução José Sebastião Roque). São Paulo : Ícone,1995. p. 96. Uma aporia incontornável está contida nesse estado de coisas: esse judiciário que chega até nosso presente já não tem a seu dispor o modelo de legalidade até então configurado na tradição ocidental. Terá que se respaldar em uma legalidade flexível, dúctil,51 extraviada entre inúmeros horizontes muitas vezes conflitantes (como o político e o econômico), e indeterminada em sua própria configuração ôntica. Fácil de verificar é o descolamento metonímico, cada vez maior, do conceito de lei para seus componentes específicos (como conceituar um carro pela simples existência de um motor), exemplo é a mutação semântica ocorrida na transformação de normas técnicas em normas jurídicas (leis), portarias de agências reguladoras em normas jurídicas (leis), decretos com força de lei em leis. O conceito de lei passa a não ser mais um dado nuclear do direito contemporâneo. Mais próximo a isso estaria o sintagma força de lei agambeniano, por analiticamente melhor contemplar todas as entidades que passam a gravitar em torno da sintaxe jurídica, mesmo não sendo afetas (em termos tradicionais) a ela. A sintaxe do direito contemporâneo foi explodida e sua semântica abarca um mundo. Extravio é uma categoria que pode representar adequadamente tal configuração, por contemplar tanto os aspectos da deriva, quanto a dimensão da perda, do abandono. Por isso, podemos afirmar que o estar-do-direito e o local da teoria do direito do presente – talqualmente desdobrado, disseminado, debatido pelos mais variados teóricos do direito e juristas do ocidente contemporâneo, 52 na forma 51 ZAGREBELSKY, El derecho dúctil: ley, derechos, justicia. (Traducción de Marina Guascón). Madrid : Trotta, 1995. 52 Reportamo-nos às teorizações, v.g, contidas em, DWORKIN, Ronald. Freedom's law - the moral reading of the American constitution. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1996; DWORKIN, Ronald. Law's empire. The Belknap Press of Harvard University Press. Massachusetts: Cambridge, 1986 (Edição brasileira: O império do direito. (Tradução Jefferson Luiz Camargo). São Paulo: Martins Fontes, 1999); DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Massachussets: Harvard University Press, 1978; ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. 3. ed. Frankfurt: Suhrkamp, 1996 (edição espanhola, ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. (Tradução Ernesto Garzón Valdés). Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997); ALEXY, Robert. Teoria em que é manifestado cotidianamente nos tribunais de todas as paragens – apresenta-se desde o início (topologicamente) capturado pelo dispositivo da exceção. Esse estado de arte do direito contemporâneo (uma configuração vazia de legalidade), percebido mesmo pela Weltanschauung mais tradicional das teorizações sobre o direito (as referências constantes a Bobbio, e outros autores de teoria do direito correntes nos manuais jurídicos, não são gratuitas), nada mais representa que sintomas de tal captura. Não é à toa que tratamos do extravio do jurídico partindo da crise estrutural do ideário do Estado Providência, e isso de uma forma epidérmica, ou seja, naquilo que a historiografia do direito e a teoria européia hegemônica revela (exigindo, não raro, a leitura nos lapsos das entrelinhas), na medida em que o acesso imediato, a própria pré-compreensão, no sentido gadameriano do termo, ao conceito de estatalidade existente na contemporaneidade do ocidente é forjada a partir do modelo regulatório weimariano e de seu fenecimento. De certa maneira entendemos, contudo, que o próprio debate (sem derivar-se para o palavrório estéril) sobre a(s) topologia(s) do direito do presente implica o questionar crítico dos elementos anteriores a essa conjuntura estrutural e espacialmente delimitada - seja a do Welfare State europeu ou norte americano, seja de suas caricaturas nas paragens periféricas - exigindo, portanto, as reflexões que terão local nos próximos tópicos. 2. As investigações que tratem de enfrentar as principais aporias que a teoria do direito passa a apresentar em seu devircontemporâneo terão, irremediavelmente, que criticamente confrontar-se de la Argumentacion Juridica. La Teoria del Discruso Racional como Teoria de la Fundamentacion Juridica. (Traducción de Manuel Atienza e Isabel Espejo). Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1989. ALEXY, Robert. Idée et Structure d'un Système du Droit Rationnel. Archives de Philosophie du Droit. Ed. Sirey. Tomo 33, 1988; além de boa parte daquilo que hoje se convencionou chamar de estudos neoconstitucionalistas. com os escombros da tradição normativista, tomando como paradigma53 o legado de Hans Kelsen, procurando paleontologicamente inventariar os recônditos desse corpus teórico-metodológico, principalmente o locus da decisão no interior da arquitetura kelseniana. Só assim serão abertas as brechas necessária para poder entender em que medida as ruínas dessa construção influenciaram e influenciam o atual estado de coisas (imersas na exceção) vivenciadas juridicamente e politicamente no presente. Assumindo esta tarefa, entretanto, será imprescindível ao investigador ter em mente que os estilhaços (Splitter) em sua volta não representam a manifestação atual do direito (por mais que as aparências do cotidiano dos tribunais e a maior parte da dogmática manualesca corrente possa dizer ao contrário), mas podem representar pistas - peças arqueológicas - para melhor compreendêlo. 53 Ultrapassando o debate sobre as acepções de paradigma na epistemologia da ciência normal de T. Kuhn (em seu opúsculo ― A Estrutura das revoluções científicas‖), temos as considerações de Agamben sobre esta categoria, acepção por nós utilizada no decorrer deste trabalho: ―the problem of the paradigm is strictly linked to the problem of analogy, whose relations to logic have always been controversial. So the locus classicus for the epistemological problem of the paradigm is Aristotle‘s Analytica Prioria. Philosophy very rarely refers to the problems of paradigm and analogy; Aristotle is perhaps the first, however briefly. Aristotle says that the paradigm, the example, does not concern a part with respect to the whole, nor the whole with respect to the part, it concerns a part with respect to the part. This is a very interesting definition. This means that the paradigm does not move from the particular to the universal, nor from the universal to the particular, but from the particular to the particular. In other words, we first have deduction which goes from the universal to the particular, we have induction which goes from the particular to the universal and then the third we have the paradigm and the analogy which go from the particular to the particular. But what does this mean? What kind of movement is this, and how can a paradigm, which is a singularity, create a new analogical context, a new generality, as we saw in Foucault? To understand how a paradigm works, we first have to neutralize traditional philosophical oppositions such as universal and particular, general and individual, and even also form and content. The paradigm analogy is depolar and not dichotomic, it is tensional and not oppositional. It produces a field of polar tensions which tend to form a zone of undecidability which neutralizes every rigid opposition. We don‘t have here a dichotomy, meaning two zones or elements clearly separated and distinguished by a caesura, we have a field where two opposite tensions run. The paradigm is neither universal nor particular, neither general nor individual, it is a singularity which, showing itself as such, produces a new ontological context‖. AGAMBEN, Giorgio. What is a Paradigm?. Trecho da conferência pronunciada na European Graduate School EGS, em Nova Iorque, em agosto de 2006. encontrada em http://www.egs.edu/faculty/agamben-what-isa-paradigm-2002.html, com pesquisa na data de 26 de novembro de 2006. O objetivo principal da propositura desta hipótese de trabalho é desvencilhar-se da imagem do normativismo jurídico como sendo um contraponto adequado à idéia de arbitrariedade, exceção (no sentido vulgar do termo), ou mesmo uma concepção estável que possa imunizar a aplicação jurídica contra os desvios da insegurança e do irracional. Penetrar nessa questão, no atual desenrolar da teoria do direito, apresenta-se como tarefa não despida das mais inumeráveis dificuldades, posto que a tradição normativista (inaugurada a partir do opúsculo da Teoria Pura do Direito, de Kelsen) representa, para muitos dos estudiosos do direito, não apenas uma teoria entre outras, passível de falseamento, porém um corpus teórico-metodológico erigido à posição de verdadeira Weltanschauung, ou seja, uma ―visão, intuição, (um) abarcar compreensivo do mundo.‖54 O que necessitaria - referencial que infelizmente não possuímos - até mesmo de uma aproximação teológica à crítica de tal modelo (não esquecendo da provocação schmittiana de que todos os conceitos expressivos da moderna doutrina de estado são conceitos teológicos secularizados).55 Giorgio Agamben lembra que Carl Schmitt, no ensaio de 1933 intitulado ―Estado, Movimento, Povo‖, foi um dos primeiros juristas a debruçar-se sobre as ―cláusulas gerais e indeterminadas‖ que paulatinamente foram imiscuindo-se (e de forma profunda) na legislação alemã e européia dos Novecentos, isso, em Schmitt, na fundamentação do conceito biopolítico de raça 54 NANCY, Jean-Luc; Lacoue-Labarthe, Philipe. O mito nazista. (Tradução de Márcio Seligman Silva). São Paulo : Iluminuras, 2002. p. 23. 55 SCHMITT, Carl. Op. cit. p. 109. Em trecho da Teologia Política, publicada no Brasil juntamente com ―A crise da democracia parlamentar‖, escrito que dá nome ao livro. Nesse capítulo é lembrado que ―Kelsen possui o mérito de ter apontado, em 1920, com sua acentuação própria, o parentesco metódico da teologia com a jurisprudência. Em seu último escrito sobre o conceito sociológico e jurídico do Estado ele apresenta um monte de analogias difusas, mas que numa observação mais profunda, sob o enfoque do histórico das idéias, revelam a heterogeneidade interna do ponto de partida da compreensão teórica, do seu resultado democrático e relativo à visão de mundo. Pois como base dessa identificação do Estado com a ordem jurídica, que identifica a legalidade natural com a normativa, há uma metafísica. Ela surgiu de um pensamento exclusivamente científico-natural, baseia-se no repúdio a toda arbitrariedade e procura afastar toda exceção do espírito humano‖. Ibidem. p.112. (incluída pelo jurista alemão como sendo a categoria sem a qual o Estado nazista não poderia ter existido, nem pensável sua estrutura jurídica).56 Tais conceitos, exemplificados em sintagmas como ―bom costume‖, ―interesse público‖, ―ordem pública‖, ―motivo imperante‖, ―caso de necessidade‖, ―legítima defesa‖, ―estado de perigo‖, que, para Agamben, ―não remetem a uma norma, mas a uma situação, penetrando invasivamente na norma‖, tornaram ultrapassada, no entender do filósofo italiano, a ―ilusão de uma lei que possa regular a priori todos os casos e todas as situações, e que o juiz deveria simplesmente limitar-se a aplicar.‖57 Sob a ação dessas cláusulas, que deslocam certeza e calculabilidade para fora da norma, todos os conceitos jurídicos se indeterminam. ‗Desse ponto de vista - ele (Carl Schmitt) escreve num tom inconscientemente kafkiano – ‗hoje em dia existem apenas conceitos jurídicos ‗indeterminados‘... Dessa maneira toda a aplicação da lei está entre Cilas e Caribdes. O caminho à frente parece condenar a um mar sem limites e afastar-se sempre mais do terreno firme da certeza jurídica e da adesão à lei, que é, também, ao mesmo tempo, o terreno da independência dos juízes: o caminho para trás, em direção a uma formalística superstição da lei, que foi considerada sem sentido e historicamente superada há muito tempo, também não é merecedor de consideração‘ (Schmitt, 1933, p. 227-229).58 Não se pode esquecer que, em Schmitt, o deslocamento da certeza e da calculabilidade da norma encontra-se desde o início vinculado a uma decisão soberana que se faça valer a partir da vagueza, nesse sentido, o aplicador não mais se vincula à norma ou mesmo à situação fática, porém transitará em um terreno de indistinção (―a comunidade de raça com o povo alemão e o Führer”)59 entre vida e política, questi facti e questi jure. Indiscernibilidade capturada e vinculada à decisão soberana. Outra rota - oposta - de análise se abre a partir da indecidibilidade de viés benjaminiano, que, de certa forma, representa o melhor contraponto a Schmitt (é em resposta à tese de Benjamin da indecidibilidade 56 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. (Tradução Henrique Burigo). Belo Horizonte : Ed. UFMG, 2002. p. 178. 57 Ibidem. p. 179. 58 Ibidem. Idem. 59 AGAMBEN, Giorgio. Ibidem. p. 179. última de todos os problemas jurídicos que Schmitt estrutura sua teoria da decisão).60 Giorgio Agamben lembra que, para Walter Benjamin, o direito ―reconhece a decisão espacial e temporalmente determinada como uma categoria metafísica.‖61 Benjamin expressa taxativamente, em sua Crítica da Violência, a (...) experiência singular e em princípio desanimadora de que, em última instância, é impossível ‗decidir‘ qualquer problema jurídico - aporia que talvez só possa ser comparada com a impossibilidade de uma decisão taxativa sobre o que é ‗certo‘ ou ‗errado‘ em linguagens que têm evoluções históricas.62 A indecidibilidade benjaminiana, ou mesmo (em certos matizes) as estratégias políticas foucaultianas, exigem-nos pensar uma forma de indistinção sem nenhum vínculo com os dispositivos de poder, ou que possa se subtrair à captura de um poder de vida e morte, o que exigiria a reflexão sobre o estado de exceção efetivo que será travada posteriormente. Contudo, podemos pensar também na indecidibilidade no campo da linguagem e do próprio conhecimento (da impossibilidade de fixar aprioristicamente qualquer tipo de conhecimento), entendida no sentido ativado pela vertente desconstrutiva de Jacques Derrida,63 principalmente analisando-se a partir do terreno privilegiado da literatura, onde as relações fluídas no interior do horizonte lingüístico apresentam-se em tal estado de liquefação que atravessam destruindo - a clautrofóbica dicotomia estruturalista entre significantes e significados. Dispersão belissimamente desenvolvida, por exemplo, nos textos de Maurice Blanchot, sintomática nesse enxerto retirado de sua interpretação de ―Um lance de dados”, de Mallarmé: 60 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. (Tradução Iraci Poleti). São Paulo : Boitempo, 2004. p. 86. 61 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p. 85. 62 BENJAMIN, Walter. Crítica da Violência – Crítica do Poder. In: Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie. Escritos escolhidos. (Tradução Willi Bolle). São Paulo, Editora USP/Cultrix, 1986. p 171. 63 ―(...) O horizonte semântico que comanda habitualmente a noção de comunicação é excedido ou fendido pela intervenção da escrita, quer dizer, de uma disseminação que não se reduz a uma polissemia. A escrita lê-se, não dá lugar, ‗em última instância, a uma descodificação hermenêutica, a uma descriptagem de um sentido ou de uma verdade‖. DERRIDA, Jacques. Margens da Filosofia. (Tradução: Joaquim Torres Costa, Antônio M. Magalhães. Campinas : Papirus, 1991. p. 372. Um lance de dados nasceu de um entendimento novo do espaço literário, um espaço onde podem ser engendradas, por meio de novas relações de movimento, novas relações de compreensão. Mallarmé sempre teve consciência do fato, mal conhecido até ele e talvez depois dele, de que a língua era um sistema de relações espaciais infinitamente complexas, cuja originalidade nem o espaço geométrico ordinário nem o espaço da vida prática ordinária nos permite captar. Nada se cria e nada se diz de maneira criativa senão pela aproximação prévia do lugar de extrema vacância onde, antes de ser falas determinadas e expressas, a linguagem é o movimento silencioso das relações, isto é, ‗a escansão rítmica do ser‘. As palavras só estão ali para designar a extensão de suas relações: o espaço em que elas se projetam e que, mal é designado, se dobra e redobra, não estando em nenhum lugar onde está. O espaço poético, fonte e ‗resultado‟ da linguagem, nunca existe como uma coisa, mas sempre se ‗escapa e se dissemina. 64 Qual seria a resposta da teorização normativista, a partir de Kelsen, se é que realmente ela exista, para a irrupção da indeterminação (sempre em estado de latência) e da indecidibilidade no âmbito das normas jurídicas (constatada, por exemplo, por Walter Benjamin), ou, em outros termos e referenciais, para essa ―escansão rítmica do ser‖ representada pelo espaço de disseminação da própria linguagem (também pensada no ângulo da indecidibilidade) ou poderemos considerar que, desde o seu aparecimento como teoria, o normativismo caracteriza-se justamente ao mascarar tal indeterminação? Diferentemente do que se pode deduzir da vulgata disseminada sobre o normativismo, evidencia-se lícito dizer que há (mesmo que discreto), no interior da arquitetura kelseniana, um atentar-se para tal condição. Localiza-se sobretudo no último capítulo da Teoria Pura do Direito, onde Kelsen trata das questões relacionadas à interpretação. De certa forma, toda a concepção kelseniana de teoria do direito (mais precisamente, em Kelsen, ciência do direito, cuja teoria é indissociável de um projeto de cientificização,65 guardando afinidades eletivas com os propósitos 64 BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. (Tradução: Leyla Perrone-Moisés). São Paulo : Martind Fontes, 2005. p. 346. 65 Norberto Bobbio, reconhecido como um dos maiores intérpretes de Kelsen, assevera que duas causas convergentes e concorrentes norteiam a concepção da ciência do direito kelseniana, uma social e outra ideológica: ―a) la gradual monopolización del Derecho por parte de la ley com exclusión de todas lás demás fuentes de derecho, situación acogida y consagrada por el positivismo jurídico, en el que Kelsen se inspia constantemente; b) la ética de la Wertfreiheit, es decir, de la indiferencia a los valores como carácter específico de la epistemológicos do Círculo de Viena) é assentada nesse capítulo, de maneira que se evidencia imprescindível sua pormenorização.66 Kelsen não nega aquilo que conceitua como a plurisignificação das normas jurídicas. Na existência de tal situação, caberia ao aplicador fixar, a partir das múltiplas possibilidades de aplicação previstas, uma moldura ou quadro-limite aceitável e, no âmbito de incidência dessa moldura, decidir sobre o caso concreto. (...) a norma do escalão superior regula – como já se mostrou - o ato através do qual é produzida a norma do escalão inferior, ou o ato de execução, quando já deste apenas se trata; ela determina não só o processo em que a norma inferior ou o ato de execução são postos, mas também, eventualmente, o conteúdo da norma a estabelecer ou do ato de execução a realizar. Esta determinação, porém, nunca é completa. A norma do escalão superior não pode vincular em todas as direções (sob todos os aspectos) o ato através do qual é aplicada. Tem sempre de ficar uma margem, ora maior, ora menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior tem sempre em relação ao ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato. Mesmo uma ordem o mais pormenorizada possível tem de deixar àquele que a cumpre ou executa uma pluralidade de determinações a fazer.67 Entretanto, Kelsen entende a natureza da decisão como um ato de vontade, não de conhecimento. Ato de vontade que é respaldado pela autoridade (lembre-se do brocardo positivista hobbesiano auctoritas, non veritas facit legem, ―é a autoridade, e não a verdade, que faz as leis‖).68 ciencia, que impone al científico em cuanto tal, y por tanto, al jurista em quanto que quiera ser científico y no quiera ser confundido com um político o con un moralista, uma actitud de neutralidad frente su objeto de estudio. No se puede entender la teoría kelseniana de la ciencia del Derecho sin darse cuenta de que se apoya tanto en una teoría de Derecho como en una teoría de la ciencia. BOBBIO, Norberto. Contribucion a la teoria del derecho. (Tradução: Afonso Ruiz Miguel). Madri : Fernando Torres – Editor, 1980. p. 207. 66 A análise será baseada na presente tradução. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. (tradução João Baptista Machado). 3.ed. São Paulo : Martins Fontes,1991. p. 363370. 67 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Op. cit. p. 364. 68 Reportamo-nos, relativo a esse tópico, à teorização que pode ser considerada canônica para a política e o direito ocidentais, o proto-texto da tradição positivista, corporificada no capítulo XXVI de ―O Leviatã, ou matéria, forma e poder de um Estado Eclesiástico e Civil‖; do qual extraímos o presente trecho: ―Todas as leis, escritas ou não, têm necessidade de uma interpretação. A lei de natureza, que não é escrita, embora seja fácil para aqueles que sem parcialidade ou paixão fazem uso de sua razão natural, deixando portanto sem desculpa seus violadores, tornou-se agora apesar disso, devido ao fato de haver poucos, ou talvez ninguém que em alguns casos não se deixe cegar pelo amor de si ou qualquer outra Caberia à ciência do direito o papel de descrever as múltiplas possibilidade de aplicação de uma determinada norma, sem apresentar opinião sobre uma ou outra alternativa (de maneira que, em agindo assim, estaria extravasando do direito para o horizonte da política, inaceitável numa proposta de ciência pautada pelo Wertfreiheit ). Kelsen distingue, nesse capítulo, entre uma intitulada interpretação autêntica, i.e., quando um órgão oficial (por exemplo o juiz a decidir um caso concreto), determina o sentido de uma norma, produzindo um enunciado normativo vinculante; e a interpretação doutrinária, cujas interpretações, a contrario sensu, não possuiriam poder suficiente para estipular um mandamento de dever-ser. O jusfilósofo alemão não nega de forma peremptória que atos de cognição (como o conhecimento doutrinário) possam influenciar a decisão do paixão, a mais obscura de todas as leis, e por isso é a que tem mais necessidade de intérpretes capazes. Quanto às leis escritas, se forem breves facilmente serão mal interpretadas, por causa da diversidade de significações de uma ou duas palavras, e se forem longas ainda serão mais obscuras, devido à diversidade de significações de muitas palavras. De modo que nenhuma lei escrita, quer seja expressa em poucas ou em muitas palavras, pode ser bem compreendida sem uma perfeita compreensão das causas finais para as quais a lei foi feita, e o conhecimento dessas causas finais está com o legislador. Para este, portanto, nenhum dos nós da lei pode ser insolúvel, seja achando-lhe as pontas e por aí desatando-o, seja fazendo quantas pontas lhe aprouver (como Alexandre fez com sua espada ao nó górdio), através do poder legislativo, coisa que nenhum intérprete pode fazer. Num Estado, a interpretação das leis de natureza não depende dos livros de filosofia moral. Sem a autoridade do Estado, a autoridade de tais filósofos não basta para transformar em leis suas opiniões, por mais verdadeiras que sejam. Tudo o que escrevi neste tratado sobre as virtudes morais, e sua necessidade para a obtenção e preservação da paz, embora seja evidentemente verdadeiro não passa por isso a ser lei. Se o é, é porque em todos os Estados do mundo faz parte das leis civis. Embora seja naturalmente razoável, é graças ao poder soberano que é lei. Caso contrário, seria um grande erro chamar lei não escrita à lei de natureza, sobre a qual tantos volumes foram publicados, com tão grande número de contradições, uns dos outros, e de si mesmos. A interpretação da lei de natureza é a sentença do juiz constituído pela autoridade soberana, para ouvir e determinar as controvérsias que dela dependem, e consiste na aplicação da lei ao caso em questão. Porque no ato de judicatura o juiz não faz mais do que examinar se o pedido de cada uma das partes é compatível com a eqüidade e a razão natural, sendo portanto sua sentença uma interpretação da lei de natureza, interpretação essa que não é autêntica por ser sua sentença pessoal, mas por ser dada pela autoridade do soberano, mediante a qual ela se torna uma sentença do soberano, que então se torna lei para as partes em litígio.‖ HOBBES, Thomas. Leviatã. (Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva). São Paulo : Martin Claret, 2002. p. 94. aplicador, entretanto, em existindo conflito entre a cognição e a vontade, prevalecerá a última. Por outro lado, para Kelsen, afirmar a possibilidade da interpretação doutrinária chegar a uma única solução adequada seria admitir a ilusão da univocidade dos enunciados normativos. A interpretação doutrinária é rigorosa - científica - quando se resume a apresentar a equivocidade da linguagem legal, limitando-se a apontar todas as dimensões de tal plurivocidade. A ciência jurídica kelseniana reduz-se a um papel eminentemente descritivo. Norberto Bobbio lançará inúmeras críticas a tal concepção de ciência do direito, mesmo mantendo inúmeros cânones do positivismo (porém com um viés mais analítico) em sua teorização. Assevera o filósofo italiano que se pudéssemos resumir a teoria kelseniana da ciência do direito em uma única fórmula, poderíamos simplesmente dizer que ela prescreve descrever. Ou seja, obtém-se uma ciência neutra do direito ao preço de uma ideologização epistemológica (―se obtiene uma ciencia del Derecho neutral al precio de uma metajuriprudencia ideologizada.‖)69 Não podemos esquecer que temos, em Kelsen, uma separação taxativa entre a dimensão do sollen (dever-ser) e a do sein (o ser), para ele caberia à ciência do direito descrever o ser do direito70 (porém Kelsen, como constatado por Bobbio, utiliza, para isso, de um imperativo epistemológico ―descreva!‖, pautado essencialmente num dever-ser prescritivo), enquanto apenas aos aplicadores - com respaldo estatal - seria possível passar do plano dos fatos, do sein, para o sollen. A dicotomia entre sein e sollen (kantiana por excelência), fundante viga da construção kelseniana, não deixa de estar conectada com 69 outras BOBBIO, Norberto. Op. cit., p. 208. Bobbio ainda aponta que, enquanto a metajurisprudência prescritiva, própria da concepção positivista, propõe o ideal de uma jurisprudência puramente descritiva, a metajurisprudência descritiva da época pós-positivista volta a descobrir a função prescritiva do jurista na sociedade. Ibidem, p. 209. 70 Lembrando que o direito, em Kelsen, resume-se a se apresentar como um conjunto de normas, ou melhor, o direito depurado kelseniano corresponde à dimensão da normatividade jurídica. dicotomias biunívocas que presidem à estruturação do pensamento político e filosófico da modernidade ocidental, guardando inúmeras convergências com binarismos (metafísicos) como o de natureza/cultura, biós/zoé, racional/irracional, humano/inumano, tendo a decisão como um elemento de cisão e demarcação constante entre as duas dimensões, lembrando-se da provocação de Jacques Derrida de que ―uma oposição de conceitos metafísicos (por exemplo, fala/escrita, presença/ausência, etc.) nunca é um face-a-face de dois termos, mas uma hierarquia e a ordem de uma subordinação.‖71 Por um lado, concomitante à tentativa kelseniana de preservar a ciência do direito das ambigüidades incontornáveis da linguagem humana, e mesmo do caráter de indecidibilidade do direito em meio a indeterminações não apenas normativas, mas também fáticas, ou melhor, situações de indistinção entre ambas, tem-se, no outro lado, uma decisão como puro ato de vontade que mergulha a construção kelseniana no terreno nebuloso da indiscernibilidade, o revestimento normativo entendido como pura forma de um ato de autoridade, principalmente se analisado a partir de um jurídico extraviado que torna toda pretensão de univocidade um exercício estéril de vã metafísica. Na configuração do direito contemporâneo, as molduras kelsenianas representam zonas de penumbra não mais confinadas a casos excepcionais - com alternativas circunscritas a um campo controlável - porém disseminam-se ao infinito. A decisão como ato de vontade procura dar conta, por intermédio da pura força institucional da auctoritas, de uma situação indecidível em sua própria configuração fenomênica. Hans Kelsen, mesmo que implicitamente, leva em consideração a impossibilidade de escolha entre alternativas conflitantes (sobre os proclamados métodos de interpretação do campo do direito, assevera que ―não há absolutamente qualquer método – capaz de ser classificado como de direito positivo – segundo o qual, das várias significações verbais de uma norma, apenas 71 DERRIDA, Jacques. Op. Cit. p. 372. uma pode ser destacada como ‗correta‘‖)72 principalmente envolvendo valores.73 A decisão como um ato de vontade, fundado na auctoritas, reatando com arcanos imemoriais de nossa tradição de pensamento político,74 pode também representar um válvula de escape discursivo para essa labiríntica situação. Visualiza-se que a teoria da decisão no âmbito da Jurisprudência (na acepção de ciência do direito) sempre esteve às voltas com a busca de um absoluto que pudesse fundamentar de forma inequívoca os atos de poder emanados. A presença da Grundnorm, a norma fundamental, na teoria kelseniana, mesmo se levada para o espaço epistemológico (como uma norma pressuposta de fechamento do sistema), não deixa de acenar para essa constatação. Choca, aos aplicadores jurídicos de todos os níveis e instâncias, estar frente a frente com um conflito a ser decidido sem ter (pelo menos a ilusão) de possuir instrumentos controláveis, seguros, unívocos, de solução. No contexto da racionalidade intrínseca do Estado liberal, onde o normativismo foi formatado, 72 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Op. cit. p. 367. É preciso lembrar que, assim como para Weber e Pareto, Kelsen entende o espaço científico como uma ―cidadela em face à irracionalidade dos valores‖. Não há, nessa concepção, uma hierarquia superior entre os fatos merecedores de atenção científica (juízos de fato, para tal tradição) e os juízos de valor, apenas considera que os valores não podem ser submetidos a um controle racional (são irracionais e subjetivos). Isso fica muito claro na interpretação kelseniana sobre a justiça como valor (e aí já temos uma afirmação discutível) não suscetível de controle racional e empírico, e como tal, deixada de fora do horizonte da ciência do direito. Tais concepções ficam explícitas no seu prefácio à primeira edição da Teoria Pura do Direito, onde esclarece que ―Desde o começo foi meu intento elevar a jurisprudência, que – aberta ou veladamente – se esgotava quase por completo em raciocínios de política jurídica, à altura de uma genuína ciência, de uma ciência do espírito. Importava explicar. Não as suas tendências endereçadas à formação do Direito, mas as suas tendências exclusivamente dirigidas a conhecimento do Direito, e aproximar tanto quanto possível os seus resultados do ideal de toda a ciência: objetividade e exatidão‖. KELSEN, Hans. Op. cit. p. 01. Ou no prefácio à sua Teoria Geral do Direito e do Estado, onde se lê: ―Al llamar a tal douctrina ‗teoria pura del derecho‘ se pretende decir que debe mantenerse libre de todos los elementos extraños al método específico de uma ciencia, cuyo único objetivo es el conocimiento del Derecho e no su formación. Uma ciencia debe describir su objeto como efectivamente es y no prescribir como debería o no debería ser en base a algunos juicios específicos de valor. Este último es un problema politico y, como tal, compete al arte del gobierno, una actividad que se ocupa de los vaores y no es objeto de la ciencia, que se ocupa de la realidad‖. Apud. BOBBIO, Norberto. Contribuición a la teoria del derecho. Op. cit. p. 247. Textualmente, portanto, Kelsen esquiva-se de enfrentar a dimensão dos valores, relegando-a ao universo do irracional, ou seja, do indecidível. 74 Remetemos o debate ao importantíssimo capítulo sexto - tratando das categorias Auctoritas e Potestas na tradição de pensamento jurídico-político ocidental - do ―Estado de Exceção‖ de Giorgio Agamben. 73 pode-se dizer que o recurso da intrumentalização máxima da linguagem possivelmente tenha resguardado, por longas décadas, a teoria do direito de confrontar-se com essa espinhosa aporia. A normatividade caósmica contemporânea abalou as frágeis fortalezas da tão proclamada segurança jurídica forjada a partir da pretensão de exclusão da equivocidade. Portanto, em meio à sintaxe extraviada do jurídico contemporâneo, mesmo a tradição normativista, com seu correlato da decisão com pura vontade respaldada na autoridade (que, de certo modo, também se torna um conceito fantásmico),75 está imersa, de forma constitutiva, no terreno da exceção, entendido não apenas como o limiar que garante a articulação entre um dentro e um fora, entre anomia e contexto jurídico, entretanto como um campo de própria indiscernibilidade entre anomia e direito.76 Um umbral que não deixa de capturar, nos flancos que revela, mesmo a teorização normativista mais empedernida. Nesse ponto, por mais que se apresentem historicamente como posições radicalmente divergentes no campo da teoria do direito, combate teórico que emanou inúmeros textos na Alemanha da década de 30, Kelsen e Schmitt mantém obscuras (porém encontráveis) correspondências. No tocante à antinomia entre norma e decisão, ―Schmitt mostra que elas são irredutíveis, no sentido que a decisão nunca pode ser deduzida da norma sem deixar um resto (restlos).‖77 A irredutibilidade kelseniana entre norma e decisão fica marcadamente posta na deriva da decisão com um ato de vontade (reconhecendo 75 ―(...) A autoridade tal como a conhecemos outrora, e que se desenvolveu a partir da experiência romana e foi entendida à luz da Filosofia Política grega, não se restabeleceu em lugar nenhum, quer por meio de revoluções, ou pelos meios ainda menos promissores da restauração, e muito menos através do clima e tendências conservadoras que vez por outra se apossam da opinião pública. Pois viver em uma esfera política sem autoridade nem a consciência concomitante de que a fonte desta transcende o poder e os que detêm, significa ser confrontado de novo, sem a confiança religiosa em um começo sagrado, e sem a proteção de padrões de conduta tradicionais e portanto auto-evidentes com os problemas elementares da convivência humana.‖ ARENDT, Hannah. O que é a autoridade?. In: Entre o passado e o futuro. (Tradução: Mauro Barbosa de Almeida). São Paulo: Perspectiva, 1968. p. 187. 76 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Op. Cit. p. 89. 77 Ibidem. p. 58. também restos), a decisão entendida, de certo modo, como movimento78 dinâmico frente à estática de uma moldura interpretativa instrumental/mediatizada. Nesse sentido, a localização da auctoritas na estrutura da decisão kelseniana está em plena convergência com as conclusões de Agamben sobre a estrutura topológica dos sistemas jurídicos ocidentais (após ter feito um levantamento da díade auctoritas/potestas na tradição política e jurídica do ocidente), de maneira que, para o filósofo italiano (...) o sistema jurídico do ocidente apresenta-se como uma estrutura dupla, formada por dois elementos heterogêneos e, no entanto, coordenados: um elemento normativo, jurídico em sentido estrito – que podemos inscrever aqui, por comodidade, sob a rubrica de potestas, e um elemento anômico e metajurídico – que podemos designar pelo nome de auctoritas. O elemento normativo necessita do elemento anômico para poder ser aplicado, mas, por outro lado, a auctoritas só pode se afirmar numa relação de validação ou suspensão da potestas. Enquanto resulta da dialética entre esses dois elementos em certa medida antagônicos, mas funcionalmente ligados, a antiga morada do direito é frágil e, em sua tensão para manter a própria ordem, já está sempre num processo de ruína e decomposição. O estado de exceção é o dispositivo que deve, em última instância, articular e manter juntos os dois aspectos da máquina jurídico-política, instituindo um limiar de indecidibilidade entre anomia e nomos, entre vida e direito, entre auctoritas e potestas.79 Para Agamben, a maquinaria jurídico política ocidental (fundada na exceção) se estabelece na ficção pela qual a anomia - corporificada na auctoritas, na lei viva ou na força de lei – relaciona-se com a ordem jurídica e o poder de suspender a norma está diretamente relacionado com a vida.80 78 Trataremos, no terceiro item do segundo capítulo da presente dissertação, das reflexões sobre o movimento a partir de Arendt e Agamben (com as referências a C. Schmitt), tópico para o qual reportamos. 79 AGAMBEN, Giorgio. Op. Cit. p. 130 80 Ibidem. Idem. Sobre a relação entre auctoritas e suas relações com a própria zoé: ―Ainda em 1947, o velho romanista Pietro de Francisci publica Arcana imperii, que dedica um grande espaço à análise do ‗tipo primário‘ de poder que ele, procurando com uma espécie de eufemismo tomar distância em relação ao fascismo, define como ductus ( e ductor, o chefe em que se encarna). De Francisci transforma a tripartição weberiana do poder (tradicional, legal, carismático) em uma dicotomia calcada sobre a oposição autoridade/poder. A autoridade do ductor ou do Führer nunca pode ser derivada, mas é sempre original e deriva de sua pessoa; além disso, não é em sua essência, coercitiva, mas se baseia, como Triepel já havia mostrado, no consenso e no livre reconhecimento de uma ‗superioridade de valores‘. Nem Triepel, nem De Francisci, os quais, no entanto, tinham diante dos olhos as técnicas de governo nazistas e fascistas, parecem perceber que o aparente caráter originário do poder A norma pode ser aplicada porquanto, sob a forma de auctoritas, refere-se diretamente à vida e dela deriva. Este é o conteúdo de verdade latente na construção da decisão kelseniana. Importante frisar qual o conceito (filosófico) de decisão que fundamenta nossa análise. Agamben, em seu ―Estado de Exceção‖, apresenta as seguintes considerações sobre a categoria da aplicação na teoria jurídica: O conceito de aplicação é certamente uma das categorias mais problemáticas da teoria jurídica, e não apenas dela. A questão foi mal colocada devido à referência à doutrina kantiana do juízo enquanto faculdade de pensar o particular como contido no geral. A aplicação de uma norma seria, assim, um caso de juízo determinante, em que o geral (a regra) é dado e trata-se de lhe subsumir o caso particular (no juízo reflexivo, em contrapartida, o particular é dado e trata-se de encontrar a regra geral). Ainda que Kant estivesse, de fato, perfeitamente consciente do caráter aporético do problema e da dificuldade de decidir concretamente entre os dois tipos de juízo (sua doutrina do exemplo como caso de uma regra que não é possível enunciar é prova disso), o equívoco, aqui é que a relação entre caso e norma apresenta-se como uma operação meramente lógica.81 que descrevem deriva da suspensão ou da neutralização da ordem jurídica – isto é, em última instância, do estado de exceção. O ‗carisma‘ – como sua referência (perfeitamente consciente em Weber) à charis paulina teria podido sugerir – coincide com a neutralização da lei e não como uma figura mais original do poder. De todo modo, o que os três autores parecem ter como certo, é que o poder autoritário-carismático emana quase magicamente da pessoa do Führer. A pretensão do direito de coincidir num ponto eminente com a vida não poderia ser afirmada de forma mais intensa. Neste sentido, a doutrina da auctoritas converge, pelo menos em parte, com a tradição de pensamento jurídico que via o direito, em última análise como idêntico à vida ou imediatamente articulado com ela‖. AGAMBEN, Giorgio. Op. Cit. p. 129. 81 Ibidem. p. 61-62. De certa forma, percebemos um marcante contraste entre a interpretação agambeniana e a interpretação que Hannah Arendt estabelece sobre a Crítica do Juízo de Kant. Ao referir-se às diferenças e liames entre a Crítica da Razão Prática e a Crítica do Juízo, em suas lições sobre a Filosofia Política de Kant, texto publicado a partir das aulas que Arendt ministrou na New School for Social Research, no outono de 1970, a filósofa assevera que ―a mais decisiva diferença entre a Crítica da Razão Prática e a Crítica do Juízo é que as leis morais da primeira são válidas para todos os seres inteligíveis. Enquanto as regras da segunda são estritamente limitadas em sua validade aos seres humanos na Terra. O segundo liame reside no fato de que a faculdade do juízo lida com particulares que, ‗enquanto tais, contêm algo de contingente em relação ao universal‘ com que lida normalmente o pensamento. Esses particulares são novamente de dois tipos; a primeira parte da Crítica do Juízo lida com os objetos do juízo propriamente dito; tais como um objeto a que chamamos ‗belo‘ sem que estejamos aptos a subsumi-lo à categoria geral da beleza enquanto tal; não temos regra que possa ser aplicada. (Se você diz: ‗Que bela rosa!‘, não chegou a esse juízo dizendo, primeiramente, ‗todas as rosas são belas, esta flor é uma rosa, logo esta rosa é bela‘. Ou inversamente, ‗o belo são as rosas, esta flor é uma rosa, logo ela é bela‘.) O outro tipo de particular, tratado na segunda parte da Crítica do Juízo, é o da impossibilidade de derivar qualquer produto particular da natureza de causas gerais: ‗Absolutamente nenhuma razão De certa forma, seja influenciada em Kant, seja na lógica aristotélica, temos, no que concerne à aplicação do direito no âmbito da Jurisprudência, uma longa tradição da lógica formal silogística que procura dar conta da complexidade dos atos decisórios no direito. Desnecessário dizer as aberrações a que se chegou a partir de tais quimeras naturalizantes (como o enquadramento de casos como premissas menores tendo normas como premissas maiores até se chegar à decisão como conclusão lógica, e assim por diante). Na teoria do direito contemporâneo existem várias vertentes 82 que procuram superar os limites da lógica apofântica no âmbito da aplicação jurídica, principalmente a partir da dialética aristotélica (não mais a dimensão apodíctica do pensamento do Estagirista), que, de certa forma, apresentou-se como teoria-base para os estudos a partir da Tópica e da Nova Retórica,83 mesmo que estas, em humana (na verdade nenhuma razão finita em qualidade, como a nossa, embora possa ultrapassá-la em grau), pode esperar compreender a produção, mesmo de uma folha de grama, por meio de meras causas mecânicas.‘ (na terminologia kantiana, ‗mecânico‘ refere-se a causas naturais; seu oposto é ‗técnico‘, que significa ‗artificial‘, isto é, algo fabricado com um fim. A distinção é entre as coisas que vêm a ser por si mesmas, e as que são fabricadas visando a um fim ou desígnio específicos). Aqui, a ênfase recai sobre o ‗compreender‘: como posso compreender (e não apenas explicar) que haja grama em geral, e portanto, esta folha de grama particular?‖ ARENDT, Hannah. Lições sobre a filosofia política de Kant. (Tradução André Duarte). Rio de Janeiro : Relume Dumará, 1993. p . 21-22. Giorgio Agamben, portanto, nessa citação, resume a toda a Crítica do Juízo kantiana ao segundo tipo de particulares, onde Kant introduzirá o conceito de teleológico para pensá-los ―como princípio heurístico para investigação das leis particulares da natureza‖, e, como bem demonstra o enunciado, voltados apenas para o mundo da natureza (embora Kant compreenda a história humana – grife-se, como espécie - estando inserida no mundo natural, na medida em que também pertence à espécie animal na terra. No que Arendt, sobre esse segundo tipo de particulares kantianos, complementa: ―Sua intenção é encontrar um princípio de cognição, e não um princípio para o juízo. Mas vocês deveriam notar que, desde que se levanta a questão – por que é necessário que os homens existam? – pode-se continuar perguntando por que é necessário que as arvores existam, ou as folhas de grama, e assim por diante.‖ Ibidem, p. 22. 82 Viehweg, Perelman, Toulmin, Atienza, Siches, Ferrajolli, para exemplificar apenas em alguns autores. 83 Cf.: VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. (Tradução de Tércio Sampaio Ferraz Jr.). Brasília: Imprensa Nacional, 1979. PERELMAN, Chaim; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação. A nova retórica. (Tradução de Maria Ermantina Galvão G.Pereira). São Paulo: Martins Fontes, 1996. suas respectivas críticas, tenham reduzido todo o campo da lógica ao horizonte fechado da lógica formal.84 Em resumo, evidencia-se corrente nas mais diversas teorias da aplicação jurídica contemporânea que o ato decisório não se resume às esferas da lógica, contemplando também elementos argumentativos (persuasivos), retóricos, ou mesmo de uma lógica que passa a ser chamada de substancialista (ou do razoável, como na teorização de R. Siches),85 ou fundada, obviamente com diferentes matizes, numa razão discursiva (como em Robert Alexy,86 a partir do modelo teórico habermasiano), porém, a decisão colocada como simples ponto temporal final a um conflito de interesses, que tenha obtido trânsito em julgado, ou seja, esgotamento das instâncias decisórias ou inexistência de recursos - esteja ela representada em um ato de vontade ou num ato de cognição, esteja corporificada num ato performativo ou argumentativo - não supre aquilo que se apresenta imprescindível debater no âmbito do direito e sua teoria contemporânea. É chegado o momento de conectar o debate sobre a decisão no horizonte jurídico com a teoria da linguagem - no mínimo em termos de compreensão - não apenas no viés da retórica ou da teoria da argumentação (dimensões que sempre estiveram relacionadas ao discurso jurídico, porém obscurecidas com o florescimento das tradições cientificistas como modelos para 84 Para tanto, tem-se a críticas levantadas por Manuel Atienza, no sentido de que ―as noções de lógica e de sistema, que na obra de Viehweg funcionam como os principais termos de contraste para caracterizar a tópica, também suscitam muitos problemas. O mínimo que se pode dizer é que Viehweg exagera na contraposição entre pensamento tópico e pensamento sistemático (quer dizer, lógico dedutivo), que sua noção de sistema axiomático ou de dedução é mais estreita que as utilizadas pelos lógicos e que estes não parecem ter maior inconveniente em reconhecer a importância da tópica no raciocínio (concretamente, no raciocínio jurídico), mas sem que isto signifique prescindir da lógica. (...) Por outro lado, é interessante considerar que a ruptura da tradição tópica ou retórica na época moderna parece ter sido acompanhada pelo afastamento da lógica. Na opinião de Lorenzen, a lógica formal caiu no esquecimento precisamente em nome da ciência; isso porque a nova ciência não partia de um modelo axiomático, que é o que está mais intimamente ligado à lógica formal.‖ ATIENZA, Manuel. As razões do direito. Teorias da argumentação jurídica. (Tradução Maria Cristina G. Cupertino). São Paulo: Landy, 2003. pp. 52-53. 85 Cf.: SICHES, Luis Recaséns. Nueva filosofia de interpretación del derecho. México: Edit. Porrúa, 1973. 86 C.f: ALEXY, R. Teoria de la argumentación jurídica. (Tradução de Manuel Atienza e Isabel Espejo). Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1989. os estudos jurídicos, o que Viehweg e Perelman realizam nada mais representa do que uma trabalho de resgate de uma tradição jurídica esquecida) - porém à própria questão fulcral da enunciação, no cerne daquilo que Benveniste propõe como os âmbitos do sintático e do semiótico, ou da langue à parole, no que mais uma vez seguimos as pistas agambenianas para tal tarefa, no sentido de que, como entre linguagem e mundo, também entre norma e sua aplicação não há nenhuma relação lógica, auto-referente, que permita ―fazer decorrer diretamente uma da outra.‖87 O que está em questão na enunciação é a passagem de uma dimensão puramente virtual (forjada) à referência concreta a um segmento de realidade. (...) essa passagem da langue à parole, ou do semiótico ao semântico, não é de modo algum uma operação lógica, mas implica sempre uma atividade prática, ou seja, a assunção da langue por parte de um ou vários sujeitos falantes e a aplicação do dispositivo complexo que Benveniste definiu como função enunciativa e que com freqüência os lógicos tendem a subestimar.88 Em se tratando do aparato normativo, explicando-se o porquê das analogias estruturais com o horizonte da linguagem, a referência ao mundo (e, portanto, ao conflito) supõe sempre um processo, envolvendo todo um desenrolar de etapas, um controle temporal, uma pluralidade sujeitos e instâncias, até culminar numa sentença, ou seja, um enunciado operativo com referência ao mundo respaldada pelos aparatos institucionais de poder. Agamben lembra que Schmitt teorizava acertadamente que ―a aplicação de uma norma não está de modo algum contida nela e nem pode ser dela deduzida, pois, de outro modo, não haveria necessidade de se criar o imponente edifício do direito processual.‖89 A união impossível entre norma e realidade - assim como os elementos lingüísticos que existem na língua sem nenhuma denotação real - é operada, para Agamben, através da exceção, ou seja, pelo simples pressuposto de sua relação. O dispositivo do estado de exceção revela nada mais que essa 87 AGAMBEN, Giorgio. Op. Cit. p. 63. Ibidem. p. 62 89 Ibidem. Idem 88 fratura constitutiva, onde a figura de uma força de lei insere-se nesse vácuo realizando uma norma cuja aplicação foi suspensa. Para aplicar qualquer norma é necessário instaurar uma exceção. Dimensões da normatividade e da facticidade, logos e práxis se indeterminam, onde ―uma pura violência sem logos pretende realizar um enunciado sem nenhuma referência real.‖90 Porém, é necessário lembrar que enquanto essas duas dimensões (de uma estática normativa e uma dinâmica da auctoritas) permaneceram em convergência (mesmo sendo distintas) - como no exemplo de Agamben, a díade Senado/Povo na Roma republicana, ou Poder espiritual/Poder temporal na Europa medieval, ou mesmo, em termos mais atuais, a Interpretação/Decisão kelseniana – a dialética entre ambas, mesmo fundada numa ficção constitutiva, pôde zelar para que a operatividade da maquinaria jurídico-política pudesse funcionar, de certa forma, num ritmo próximo da normalidade. Não obstante, quando tais lugares amalgamam-se, tornam-se indiscerníveis, coincidindo na mesma topografia, quando o estado de exceção torna-se a regra (sintoma revelado num jurídico extraviado, na decisão como pura força-de-lei despida de elementos de referência exteriores), o sistema jurídicopolítico, na provocação agambeniana, pode metamorfosear-se em máquina mortífera de difícil desativação. Constata-se, portanto, a necessidade de ultrapassar a ideologia mistificatória do normativismo kelseniano - um discurso com pretensões liberais hoje estilhaçado – anular a operatividade catastrófica de seus fragmentos, não para louvar o local próximo ao real (no sentido lacaniano do termo) que ele nos lança (a partir de um viés próximo ao schmttiano), porém, num sentido benjaminiano, pensar em que medida a deposição das dimensões do jurídico, a desativação, a inoperância de suas engrenagens, o novo uso de um resíduo de direito (subtraído à mística de uma força de lei), expresso na parábola do ―novo advogado‖ de Kafka (o direito apenas estudado), ou mesmo do ―novo direito‖ do qual nos falava Foucault (livre de toda relação com a soberania), pode levar 90 Ibidem. aquela imagem, que Benjamin se refere ao comentar Kafka, de uma salvação não como uma recompensa outorgada à vida, mas a última oportunidade de evasão, ou de liberação de um fardo, oferecida a um homem. ‗Ensina-se em toda parte‘, diz Plutarco, ‗em mistérios e sacrifícios, tanto entre gregos quanto entre bárbaros... que devem existir duas essências distintas duas forças opostas, uma que leva em frente, por um caminho reto, e outra que interrompe o caminho e força a retroceder‘. É para trás que conduz o estudo, que converte a existência em escrita. O professor é Bucéfalo, o ‗novo advogado‘, que sem o poderoso Alexandre – isto é – livre do conquistador, que só queria caminhar para frente – toma o caminho de volta. ‗Livre, com seus flancos aliviados da pressão das coxas do cavaleiro, sob uma luz calma, longe do estrépito das batalhas de Alexandre, ele lê e vira as páginas dos nossos velhos livros‘ (...). É verdadeiramente o direito que em nome da justiça é mobilizado contra o mito? Não; como jurista, Bucéfalo permanece fiel à sua origem: porém ele não parece praticar o direito, e nisso, no sentido de Kafka, está o elemento novo, para Bucéfalo e para a advocacia. A porta da justiça é o direito que não é mais praticado e sim estudado.91 3. Articular criticamente nossa tradição de pensamento jurídico hegemônico (versões normativistas ou mesmo as ditas pósnormativistas, sistêmicas ou reflexivas) é, acima de tudo, denunciar e escancarar analiticamente a concepção temporal homogênea, linear e vazia que lhe dá suporte. Seguindo a provocação benjaminiana, é preciso escovar também a história reluzente do direito - não esquecendo de tais discursos palradores - a contrapelo. Os debates envolvendo a temporalidade - amiúde explorados no horizonte da filosofia ocidental - foram, lastimavelmente, esquecidos no plano da teoria do direito e dos estudos sócio-jurídicos. Prevaleceu, nesse sentido, no interior das versões hegemônicas da teoria do direito (como na tradição inaugurada por Kelsen), uma caricatura automático-mecanicista de tempo, forjada a partir de um ideário cientificista de controle voltado a intervenções técnicas na dimensão fenomênica. Fundamentou-se tal controle na hipóstase de uma Grundnorm entendida também como fechamento temporal de um sistema normativo, 91 sistema cuja dialética entre nomostática e nomodinâmica BENJAMIN, Walter. Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte. (1934). In: Magia, técnica, arte e política: ensaios sobe literatura e história da cultura. (tradução Sérgio P. Rouanet). 7.ed. São Paulo : Brasiliense, 1994. p. 163-164. (remanescentes, na Teoria Pura, da sincronia/diacronia do estruturalismo saussureano) zelaria para a entrada da temporalidade - no âmbito de uma pretensa auto-referencialidade do direito - apenas nos aspectos de modificação legislativa (a dimensão do poder constituinte derivado insere-se nesse debate), numa mirada voltada exclusivamente para o futuro (as modernas categorias históricas de processo e progresso protagonizam tal estruturação).92 Conceito chave para pensar tais concepções temporais é o de cumulatividade, algo próximo a uma aglutinação qualitativa (positiva) de saberes, conceitos, conquistas civilizacionais, representadas, por exemplo, no mantra das gerações de direito garantidos através da história, ou das hierarquias etnocêntricas estabelecidas entre realidades com ordenamentos jurídicos institucionalizados e cientificizados e as chamadas realidades imersas em convivências (ditas) pré-jurídicas regidas por costumes, autoridades tradicionais ou elementos teológicos. Podemos alegorizar a (ocidental) concepção jurídica tradicional do tempo com a imagem do Anjo Olímpico da História, trazida por Schiller em um texto representativo da Aufklärung européia, intitulado ―O que é a história universal e com que finalidade é estudada?‖, datado de 1789 (numa proposta diametralmente oposta ao Angelus Novus da história, a alegoria de Benjamin citada na célebre Tese IX de suas ―Teses sobre a filosofia da história‖): Como o Zeus homérico, a História observa com um olhar igualmente alegre os trabalhos sanguinários das guerras assim como a atividade dos povos pacíficos que se alimentam inocentemente do leite de seus rebanhos. Por mais desordenado que pareça o confronto da liberdade humana com o desenvolvimento do mundo, a História observa com tranqüilidade esse jogo confuso; porque seu olhar, que tem um longo alcance, já descobre, de longe, o objetivo para o qual essa liberdade sem regras é conduzida pela cadeia da necessidade.93 92 Ênfase de análise sintomática em trechos como da definição da constituição em Hans Kelsen: ―A constituição no sentido formal é certo documento solene, um conjunto de normas jurídicas que pode ser modificado apenas com a observância de prescrições especiais cujo propósito é tornar mais difícil a modificação das normas‖ KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. (Tradução Luiz Carlos Borges). São Paulo : Martins Fontes, 1990. p. 130. 93 SCHILLER, F. Was heiβt und zu welchen Ende studiert man Universalgeschichte? Apud: LÖWI, Michael. Walter Benjamin : Aviso de incêndio. Uma leitura das teses ―Sobre o Apresenta-se quase como desnecessário afirmar que tal concepção limita-se a reproduzir a concepção vazia e unidimensional (com passado, presente e futuro estanques, espacializados94 num continuum irretornável) de temporalidade que passou a presidir o devir-mundo ocidental a partir da revolução industrial, nada mais que uma micro versão da monumental história celebratória e bem acomodada da versões vencedoras, para falar em termos benjaminianos. A concepção do tempo na idade moderna é uma laicização do tempo cristão retilíneo e irreversível, dissociado, porém, de toda a idéia de um fim e esvaziado de qualquer sentido que não seja o de um processo estruturado conforme o antes e o depois. Esta representação do tempo como homogêneo, retilíneo e vazio nasce da experiência dos trabalhos nas manufaturas e é sancionada pela mecânica moderna, a qual estabelece a prioridade do movimento retilíneo uniforme sobre o movimento circular. A experiência do tempo morto e subtraído à experiência, que caracteriza a vida nas grandes cidades modernas e nas fábricas, parece dar crédito à idéia de que o instante pontual em fuga seja o único tempo humano. O antes e o depois, essas noções tão incertas e vácuas para a antiguidade, e que, para o cristianismo, tinham sentido apenas em vista do fim do tempo, tornam-se agora em si e por si o sentido e este sentido é apresentado como o verdadeiramente histórico.95 Giacomo Marramao propõe que, mais do que mero debate recente, as relações entre ―poder e tempo‖, ―norma jurídica e temporalidade‖, representam, ―em termos estruturais, uma constante do racionalismo ocidental‖, asseverando que: (...) é no horizonte temporal da experiência humana e do agir que encontram seu fundamento as profundas e duradouras conexões entre direito e sociedade investigadas pelas diversas teorias do direito e do conceito de história‖. (Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brand, et. al.). São Paulo : Boitempo, 2005. p. 90-91. 94 ―(...) essa aparente espacialidade de um fenômeno temporal é um erro causado pelas metáforas que usamos habitualmente na terminologia que trata do fenômeno do Tempo. Como nos diz Bergson, que descobriu isso, são todos termos ‗tomados de empréstimo à linguagem espacial. Se desejamos refletir sobre o tempo, é o espaço que responde‘. Assim, a ‗duração é sempre expressa como extensão, e o passado é entendido como algo que fica atrás de nós, o futuro fica em algum lugar à nossa frente.‖ ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. O pensar, o querer, o julgar. (Tradução Antônio Abranches, Cezar Augusto R. Almeida, Helena Martins). 5º ed. Rio de Janeiro : Relume Dumará, 2002. 95 AGAMBEN, Giorgio. Tempo e História – Critica do instante e do contínuo. In: Infância e História. Destruição da experiência e origem da história.(tradução Henrique Burigo). Belo Horizonte : Ed. UFMG, 2005. p. 117. poder (da relação clássica entre νομοξ [nomos] e πολιτιχηχοινωμια [politiké koinomía] aos atuais sistemas de inter-relação entre ordenamento jurídico e ―social system‖). A íntima relação que se estabelece entre temporalidade e norma se acha inserida no caráter de ‗estrutura de expectativas‘ que é própria ao direito, independentemente do grau de consciência subjetiva dos ‗atores sociais‘.96 Pode-se afirmar, portanto, a partir de Marramao, que o dispositivo jurídico também representa um operador de modalidade temporal no contexto (mesmo que difuso no cotidiano) das realidades culturais formadas na matriz ocidental.97 Operador temporal que não deixa de revelar a dicotomia constitutiva do direito ocidental entre uma estática do nomos e a dinâmica da politiké koinomía (usando as categorias do teórico). Onde o segundo pólo da díade possuiria a incumbência de inserir a sincronicidade - a própria imersão temporal efetiva – para o plano da diacronia normativa (formando uma aparente convergência entre essas duas dimensões, ativando aquilo que na teoria tradicional do direito se entende por eficácia da norma), ou seja, a diacronia normativa (potestas) inserindo-se temporalmente apenas por intermédio da sincronia de uma actoritas (v.g., a decisão de um soberano), algo que possivelmente Carl Schmitt tinha em mente ao lançar seu famoso brocardo de que ―o tempo exige uma decisão‖. Reflexão que, de certa forma, nos reporta às últimas reflexões do segundo tópico deste trabalho. 96 MARRAMAO, Giacomo. Poder e secularização. Op. cit. p. 73. Sobre o topos ocidente, reflete Marramao: ―Como notou Karl Jaspers, filósofo que, no período entre duas guerras soube tirar proveito da lição de Weber, a deriva é inerente à forma originária da autocompreensão do ocidente: com efeito, este último entende a si próprio não como um centro, mas sim como parte, como apêndice que se destacou da matriz asiática por meio de uma diáspora dilacerante. (...) O sentido da ausência faz sim que no próprio logos se produza o desejo se produza o desejo do choque como o a-logon, o impulso de levar-se continuamente em direção ao naufrágio. A idéia da verdade como um infinito que não pode ser preenchido está, portanto, toda implícita na gênese do Ocidente como destacamento do centro, do ventre materno asiático: marca da ratio produtivo-decisória enquanto aventura da marginalidade e da excentricidade. Aventura todavia constantemente ameaçada pela catástrofe que, para o ‗racionalismo ocidental‘, significa perda da autonomia decisória, da vontade construtiva e individualizante. A ‗Terra do entardecer‘ (Abelland, Ocidente) possui uma identidade inexoravelmente parcial, assediada pela angústia da perda dos contornos, pelo temos do abismo e do retorno ao grande ventre asiático, ao mundo do improdutivo e da sedução‖ MARRAMAO, Giacomo. Op. cit. p. 160. Poderíamos lançar uma hipótese do direito como aparato estrutural e funcionalmente voltado ao atendimento dessa ratio assecuratória de eixos estáveis para a própria excentricidade e deriva ocidentais. Ao lado da ciência, os instrumentos de navegação da náufraga-jangada ocidental. 97 Porém, o objetivo principal de nossa terceira hipótese de trabalho é analisar as concepções temporais subjacentes às teorias do direito hegemônicas na contemporaneidade (despontando, in casu, as versões normativistas e sistêmicas), bem como apresentar uma reflexão sobre o modelo de historiografia corrente nos estudos jurídicos (sem pretensões de aprofundamento, mantemos o intuito heurístico, principalmente pelas limitações espaciais do trabalho dissertativo),98 a partir de uma rota de estudos circunscrita aos autores elegidos. Convergindo nesse sentido, evidencia-se imperioso argüir que as teorias sistêmicas, inauguradas sobretudo com a obra de Luhmann - cuja reflexão procura dar conta dos novos fenômenos de juridicidade no mundo contemporâneo (tendo grande aceitação e disseminação nas teorizações jurídicas do presente) de certa forma, assim como a tradição normativista, também reproduzem a versão temporal linear-evolutiva, além de (especificamente a primeira) manter vínculos diretos com matrizes biológicas (trazidas pelas obras de Maturana e Varela), conectando-se assim com a longa tradição organicista no imaginário político ocidental, remotamente associada, em seu início, a Platão. Para Niklas Luhmann, a dimensão temporal do direito nas sociedades modernas está diretamente associada ao modo futuro, reflexão trazida, por exemplo, no presente trecho de sua Sociologia do Direito: Em todos esses casos o futuro substitui o passado enquanto horizonte temporal predominante. O passado perde sua determinação predominante. Ele é levado ao futuro apenas enquanto capital ou conhecimento histórico, enquanto história. O direito não é mais o ‗bom direito antigo‘. Ele vige não mais por causa de sua invariância baseada no passado que simboliza sua constância. Ao contrário, a vigência do direito descansa agora sobre sua função. Esta é interpretada tendo em vista o futuro.99 Em uma proposta teórica resignada com o fenecimento do político, ou melhor, cujo político é escamoteado frente à hipertrofia do administrativo- 98 Ressalte-se que o debate sobre a temporalidade será travado de forma mais pormenorizada no item 3 do terceiro capítulo. 99 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito – II. (Tradução Gustavo Bayer). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. p. 170. funcional100 (mesmo rompendo em alguns postulados a clássica teleologia da história como rumo à realização do Espírito do Mundo ou ao desenvolvimento da Humanidade como um todo, substituindo os critérios tradicionais de legitimação política por meio do que Marramao irá intitular ―critérios de performatividade‖, relações input/output, binarismos mecânicos de lícito/ilícito, etc.)101 temos, em Luhmann, um conceito de futuro (privilegiadamente) delimitado perante o passado e mesmo perante o presente, ou melhor, para o teórico sistêmico, ―(...) a positividade, isto é, o princípio da variabilidade estrutural do direito, só se torna compreensível quando se vê o presente como conseqüência do futuro, ou seja, como decisão.‖102 Com essa abertura a um futuro supercomplexo e com o aumento da seletividade da experiência e da ação respectivamente atuais, modificase o caráter presente do direito, a experiência jurídica atual. Enquanto preparação para o futuro, enquanto passado ainda disponível de um futuro que se deseja, o presente se submete a um direito que ainda não é seu. 103 Ou seja, para a Systemtheory o passado nada mais representa que um despojo (capital, conhecimento histórico) neutralizado que resta a um presente com olhos compulsivamente voltados para o futuro (presente como mero instante de trânsito, não-lugar de intermezzo), acedia combatida de forma mordaz na tese VII (das ―Teses sobre o conceito de história‖), de Walter Benjamin, que - ressaltese, de 1940 - lança fulminantes críticas que poderiam, indubitavelmente, também ser dirigidas à versão temporal sistêmica luhmanniana: Ao historiador que quiser reviver uma época, Fustel de Coulanges recomenda banir de sua cabeça tudo o que saiba do curso ulterior da história. Não se poderia caracterizar melhor o procedimento com o qual 100 ―A teoria social sistêmica é, sob este perfil, não apenas uma configuração da sociedade, mas uma verdadeira e própria estratégia operativa. Quer-se dizer que a ‗complexificação‘ é ao mesmo tempo uma representação da fenomenologia social mas também um potente instrumento de neutralização do conflito no modo em que vinha colocado pela doutrina política e social tradicional. A teoria da complexidade social, nesta ótica, é uma teoria que representa eficazmente os processos de massificação e de integração das sociedades contemporâneas, que parecem dominadas por um individualismo atomístico em que vêm progressivamente se obscurecendo‖. BARCELLONA, Pietro. O egoísmo maduro e a insensatez do capital. (Tradução José Sebastião Roque). São Paulo : Ícone,1995. p. 24. 101 MARRAMAO, Giacomo. Op. cit. p. 209. 102 LUHMANN, Niklas. Op. cit. p. 168. 103 LUHMANN, Niklas. Op. cit. p. 169. o materialismo histórico rompeu. É um procedimento de identificação afetiva. Sua origem é a indolência do coração, a acedia, que hesita em apoderar-se da imagem histórica autêntica que lampeja fugaz. Para os teólogos da Idade Média ela contava como o fundamento originário da tristeza. Flaubert, que bem a conhecera, escreve: ‗Peu de gens devineront combien il a fallu être triste pous ressusciter Carthage‘. A natureza dessa tristeza torna-se mais nítida quando se levanta a questão de saber com quem, afinal, propriamente o historiador do Historicismo se identifica afetivamente? A reposta é, inegavelmente, com o vencedor. Ora, os dominantes de turno são os herdeiros de todos os que, algum dia, venceram. A identificação afetiva com o vencedor ocorre, portanto, sempre em proveito dos vencedores de turno. Isso diz o suficiente para o materialismo histórico. Todo aquele que, até hoje, obteve a vitória, marcha junto no cortejo de triunfo que conduz os dominantes de hoje [a marcharem] por cima dos que hoje jazem por terra. A presa, como sempre de costume, é conduzida no cortejo triunfante. Chamam-na bens culturais. Eles terão de contar, no materialismo histórico, com um observador distanciado, pois o que ele, com seu olhar, abarca como bens culturais atesta, sem exceção, uma proveniência que ele não pode considerar sem horror. Sua existência não se deve somente aos grandes gênios, seus criadores, mas à corvéia sem nome de seus contemporâneos. Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie. E, assim com ele não está livre da barbárie, também não o está o processo de sua transmissão, transmissão na qual ele passou de um vencedor a outro. Por isso, o materialista histórico, na medida do possível, se afasta de sua transmissão. Ele considera como sua tarefa escovar a história a contrapelo.104 Em outro ângulo, mais uma vez em Marramao - que pode ser considerado um dos mais lúcidos teóricos a se confrontar criticamente com a ―teoria dos sistemas‖ e seu pano de fundo epistêmico - temos o questionar de que ―na impostação dos atuais ‗teóricos dos sistemas‘ ecoa aquele caráter de neutralização do eventual - da imprevisibilidade do evento – que constitui a tonalidade de fundo dos modelos pós-weberianos de racionalidade normativa‖ Para o filósofo italiano: Com a passagem da constelação protomoderna das relações Estadosociedade civil a um ‗sistema social‘ caracterizado por uma crescente variabilidade estrutural e ‗diferenciação funcional‘, a ‗contingência do mundo‘ e a ‗seletividade da estruturas‘ deixam de ser prerrogativas ontológicas latentes para tornarem-se manifestas. Como conseqüência, tempo e direito não podem mais ser concebidos ‗na base de uma 104 Os trechos das teses benjaminianas citadas neste trabalho estão incluídas na tradução feita a partir do livro de Michael Löwi. Cf.: LÖWI, Michel. Op. cit. 70. continuidade estrutural da ‗natureza‘, ou seja, na base de um passado que não poderia ter outras possibilidades.105 Em certo matiz, o discurso da Systemtheory guarda afinidades nucleares com a vertiginosa experiência temporal contemporânea (comumente chamada de aceleração) e, consequentemente, com todas as implicações inerentes a tal condição (como o fim da experiência trágica no presente), ao termos em mente as reflexões de Marramao de que, na teoria dos sistemas, (...) opera aquele dispositivo de neutralização do futuro, de sua tradução simultânea em ‗futuro passado‘, que desempenha um papel central na economia deste trabalho. Dele depende – no âmbito de uma consideração filosófico-política – a íntima conexão que, na situação de ‗‘hipermodernidade‘, vem a se estabelecer entre experiência da aceleração (como experiência constitutivamente ‗indireta‘ ou seja, mediada por dispositivos da racionalização seletiva e de ‗serialização‘ do eventual) e obsolescência do trágico: ‗O movimento do trágico é inconciliável com a sucessão sem duração devida a um ritmo excessivamente acelerado, e a desorientação no que diz respeito à morte se encontra em relação direta com a transformação do conceito de tempo; supressão de todo acontecido por um acontecer em curso‘ (E. Castelli, Il tempo Esaurito, Milano-Roma, 1954, p.121.).106 Chegando a este ponto da análise, ultrapassada a crítica da temporalidade normativista e sistêmica, é chegado o momento de lançar reflexões ao conceito de história que dá revestimento a tais concepções. Giorgio Agamben pontua que ―toda concepção da história é sempre acompanhada de uma certa experiência do tempo que lhe está implícita.‖107 Se o tempo latente nas teorizações jurídicas hegemônicas é o tempo morto retilíneo e irreversível da secularização da escatologia cristã na modernidade ocidental, a historiografia jurídica que lança mão de tal temporalidade pode muito bem ser incluída no rol que Michel Foucault estabelece no início de sua ―Arqueologia do Saber‖: Há dezenas de anos que a atenção dos historiadores se voltou, de preferência, para longos períodos, como se, sob as peripécias políticas e seus episódios, eles se dispusessem a revelar os equilíbrios estáveis e difíceis de serem rompidos, os processos irreversíveis, as regulações constantes, os fenômenos tendenciais que culminam e se invertem após 105 MARRAMAO, Giacomo. Op. cit. p. 73. MARRAMAO, Giacomo. Poder e secularização. Op. cit. p. 209. 107 AGAMBEN, Giorgio. Infância e história. Op. cit. p. 110. 106 continuidades seculares, os movimentos de acumulação e as saturações lentas, as grandes bases imóveis e mudas que o emaranhado das narrativas tradicionais recobrira com toda uma densa camada de acontecimentos.108 Entretanto, o fluxo de descontinuidades e imprevisibilidades que irrompe nas sociedades ocidentais, principalmente após as últimas décadas do séc. XX, coloca em xeque o relato monumental da historiografia jurídica tradicional. Tal constatação, ao mesmo tempo que dará lugar às chamadas teorias sistêmicas como abarcar explicativo para os novos fenômenos de juridicidade109 (não que as descontinuidades nunca estivessem presentes, mas passaram a ser um componente indissociável da estrutura político-jurídica-institucional do ocidente, colocando em risco muitas de suas categorias matriciais), abre também a oportunidade de pensar o direito a partir de outros critérios historiográficos e temporais, ou mesmo denunciar muitas das ficções juridicamente encarnadas, que passam a exigir ultrapassamento pela deflagração de seus próprio ocaso (ou dos estertores deste ocaso). Hannah Arendt, em ensaio intitulado ―O conceito de História – Antigo e Moderno‖, irá debruçar-se sobre os componentes de percepção da história (e, consequentemente, de temporalidade) envolvidos na tradição da antiguidade clássica grega e dos tempos modernos, esboçando elementos distintivos entre ambos. Entre os gregos, assevera Arendt, percebe-se uma concepção de história entendida como a rememoração visando salvar a fragilidade das ações humanas frente ao esquecimento. A natureza, no horizonte cultural grego, insere-se numa dimensão sempiterna de circularidades, exemplificada na procriação, eterna repetição. A mortalidade passa a ser a marca distintiva de seres humanos incrustados num horizonte permanente de devir circular. ―A mortalidade do homem repousa no fato de que a vida individual, uma bíos com uma história de vida 108 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. (Tradução de Luis Felipe Baeta Neves). 7.ed. Rio de Janeiro : Forense, 2004. p. 03. 109 Teorias que seguem na convergência da hegemonia temporal do modelo de capitalismo fluído do presente. identificável do nascimento à morte, emerge da vida biológica, [sic] dzoé.‖110 A vida humana seria caracterizada por um curso retilíneo, seccionando ―transversalmente os movimentos circulares da vida biológica‖111. Atos, ações, palavras, os elementos mais frágeis da condição humana perante o fluxo incontornável do tempo (e, portanto, da mortalidade), poderiam receber a imortalidade ao - emprestando artefatos de relativa permanência do ser-para-sempre da natureza - serem transferidos e recordados na poiesis de poetas e historiadores.112 Contudo, tal configuração altera-se, para Arendt, Quando, na antiguidade tardia, iniciaram-se especulações acerca da natureza da história num sentido de um processo histórico e a respeito de um destino histórico das nações, sua ascensão e seu declínio, onde ações e eventos particulares seriam engolfados em um todo, admitiu-se imediatamente que esses processos teriam que ser circulares. O movimento histórico começou a ser construído à imagem da vida biológica. Nos termos da Filosofia antiga, isso podia significar que o mundo da história fora reintegrado no mundo da natureza, o mundo dos mortais no universo que existe para sempre. Mas em termos de poesia e Historiografia antiga isso significou que o primitivo sentido da grandeza dos mortais, como algo distintivo da grandeza indubitavelmente maior dos deuses e da natureza, se perdera.113 Como próprio tema da história visualizavam-se (helenicamente) os assuntos humanos, sempre manifestados em aparições isolados, situações únicas, inconfundíveis, que interrompem o movimento circular da vida diária (tal como Arendt pontua sobre uma biós que secciona de forma retilínea a circularidade da zoé). A história grega era representada por essas interrupções, o 110 ARENDT, Hannah. O conceito de História – Antigo e Moderno. In: Entre o passado e o futuro. (Tradução: Mauro Barbosa de Almeida). São Paulo: Perspectiva, 1968. p. 71. 111 Ibidem. Idem. 112 ―As obras das mãos humanas devem parte de sua existência à matéria oferecida pela natureza, portando assim dentro de si, em alguma medida, permanência emprestada do ser-para-sempre da natureza. Mas o que se passa diretamente entre os mortais, a palavra falada e todas as ações e feitos que os gregos chamaram de prákseis ou prágmata, em oposição à poiesis, fabricação, não pode nunca sobreviver ao momento de sua realização e jamais deixaria qualquer vestígio sem o auxílio da recordação. A tarefa do poeta e do historiador (posto por Aristóteles na mesma categoria, por ser o seu tema comum práksis ) consiste em fazer alguma coisa perdurar na recordação. E o fazem traduzindo práksis e léksis, ação e fala, nessa espécie de poiesis ou fabricação que por fim se torna a palavra escrita‖. ARENDT, Hannah. Ibidem. p. 74. 113 ARENDT, Hannah. O conceito de História – Antigo e Moderno. Op. cit. p. 72. extraordinário, por assim dizer. Ou, nas palavras de Jean-Luc Nancy, ―in Greek, the meaning of historia is a collection or recollection of occurrences.‖114 Não obstante, tal precariedade constitutiva passa pouco a pouco a ser engolfada numa concepção historicista fundada processualmente, as singularidades inseridas na totalidade, nos fluxos abrangentes e teleológicos.115 De certo modo, a concepção cristã de tempo, ao associar uma alma imortal temporariamente transitando em um mundo transitório, em absoluto contraste com os gregos, influenciou em muitos aspectos tal configuração histórica.116 Por outro lado, um tipo específico de ciência que intervém na natureza, desencadeando, por experimentação, processos antes tidos como possíveis apenas à imanência do universo natural (v.g. a fissura do átomo), acaba trazendo o aspecto da imprevisibilidade da ação humana para o âmbito natural,117 114 NANCY, J. The Technique of The Present. In: www.egs.edu/faculty/nancy/thetechnique-of-the-present.html. Pesquisa realizada em 28.12.2006. 115 Guy Debord parte de constatação semelhante ao analisar a história correspondente ao espetáculo contemporâneo: ―O fim da história da cultura manifesta-se por dois lados opostos: o projeto de sua superação na história total e sua manutenção organizada como objeto morto, na contemplação espetacular‖. DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Op. cit. Tese 184. 116 ―Para a exígua duração de suas existências, grandes feitos e palavras era, em sua grandeza, tão reais como uma rocha ou uma casa, aí estando para serem vistos e ouvidos por todas as pessoas presentes. A grandeza era facilmente identificável como o que por si mesmo aspirava à imortalidade, - isto é, negativamente falando, como um heróico desprezo por tudo o que meramente sobrevém e se extingue, por toda a vida individual, inclusive a própria. Esse senso de grandeza não poderia absolutamente sobreviver intacto na era cristã, pela simples razão de que, segundo os ensinamentos cristãos, a relação entre vida e mundo é o exato oposto da existência da antiguidade grega e latina: no Cristianismo, nem o mundo nem o recorrente ciclo da vida são imortais, mas apenas o indivíduo vivo singular. É o mundo que se extinguirá; os homens viverão para sempre. A reviravolta cristã baseia-se, por sua vez, na doutrina completamente diferente dos hebreus, que sempre sustentaram que a própria vida é sagrada, mais sagrada que tudo mais no mundo, e que o homem é o ser supremo sobre a terra‖. ARENDT, Hannah. Ibidem. p. 82-83. 117 ―Nosso moderno conceito de história é não menos ligado intimamente ao moderno conceito de natureza que os conceitos correspondentes e bem diferentes que se encontram no início de nossa História. Também eles só podem ser vistos em seu pleno significado quando sua raiz comum é descoberta. A oposição do séc. XIX entre as ciências naturais e históricas, juntamente com a pretensa objetividade e absoluta precisão dos cientistas naturais, é hoje coisa do passado Os cientistas naturais admite agora que, com o experimento, que verifica processos naturais sob condições prescritas, e com o observador, que, ao observar o quebrando a distinção estanque entre os universos da cultura e da natureza (os espaços kantianos do homem cindido entre os âmbitos do homo noumenon e do homo phoenomenon), estabelecendo outro paradigma histórico na tradição ocidental, que passa a ser proeminente na historiografia da modernidade. O objetivo de tais reflexões não é adentrar no debate espinhoso da historicidade e da temporalidade moderna,118 porém, seguindo os rastros do pensamento arendtiano, é possível afirmar que o mundo moderno tem como centro histórico seu próprio processo de vida (nas palavras de Droysen: ―aquilo que é a espécie para os animais e plantas, é a história para os seres humanos‖),119 aquela zoé que, para os gregos, configurava elemento distintivo entre humanos e animais, passa a estabelecer a própria condição histórica humana. Ausência de permanência, processos englobantes, afogamento da singularidade e do simbólico, são sintomas diretos de tal versão. O direito moderno, contemporâneo (no período de principalmente no seu desdobramento aceleramento, ao ponto da vertigem, de tal fluidade) não deixa de ser engolfado nessa tradição, repercutindo para um estado de escassez de significado no interior do jurídico bem como na sua re-localização funcional no mundo das sociedades massas, o que dá o mote para o que será explorado na nossa próxima hipótese. Antes, porém, é preciso lembrar que será a partir de tal horizonte de projeção do saber histórico ocidental que as contemporânea(s) teoria(s) do direito transitará(ão). O que nos conecta novamente com a hipótese do jurídico extraviado (tendo como correlato a crise da legalidade vivenciada no presente) lançada no primeiro item deste capítulo. Ou seja, a crise da legalidade como um sintoma da erosão do simbólico operada por uma história pautada por fluxos experimento se torna uma de suas condições, introduz-se um fator ―subjetivo‖ nos processos objetivos da natureza‖. ARENDT, Hannah. Ibidem. p. 78. 118 O debate sobre a temporalidade será novamente travado no tópico 3 do último capítulo. 119 DROYSEN, Joannes Gustav. Historik. (1882). Munique e Berlim, 1937. Apud: ARENDT, Hannah. Op. cit. p. 110. biológicos, a história como processo vital global da sociedade, ou seja, a vida, na acepção da zoé na Grécia antiga, no centro do devir humano moderno.120 4. Ao direito correspondente às democracias massivas espetacularizadas temos reservado um local de mero produto consumível, sem permanência e deslocado de referências simbólicas. O espaço do “animal laborans” disseminado para todos os locais contemporâneos da condição humana prevê um direito resumido a descartável “valor de uso”, bem de consumo, lançado ao fluxo mercadológico da necessidade e do gozo incontido. Resta à tarefa da crítica deslocar a captura do jurídico pelas instância do capitalismo financeiro desterritorializado, ou tão-somente limitar-se a demonstrar o vínculo indissociável entre eles. Guy Debord estabelece na tese 37 de sua ―Sociedade do espetáculo‖ que ―o mundo presente e ausente que o espetáculo faz ver é o mundo da mercadoria dominando tudo o que é vivido. E o mundo da mercadoria é assim 120 ―A cultura de massas passa a existir quando a sociedade de massas se apodera dos objetos culturais, e o perigo é que o processo vital da sociedade (que como todos os processos biológicos arrasta insaciavelmente tudo o que é disponível para o ciclo de seu metabolismo) venha literalmente a consumir os objetos culturais, que os consuma e os destrua. Não estou me referindo, é óbvio, à distribuição em massa. Quando livros ou quadros em forma de reprodução são lançados no mercado a baixo preço e atingem altas vendagens, isso não afeta a natureza dos objetos em questão. Mas sua natureza é afetada quando esses mesmo objetos são modificados – reescritos, condensados, resumidos (digested), reduzidos a kitsch na reprodução ou adaptação para o cinema. Isso não significa que a cultura é difundida para as massas, mas que a cultura é destruída para produzir entretenimento. O resultado não é a desintegração, mas o empobrecimento, e os que o promovem ativamente não são os compositores da Tin Pan Alley, porém um tipo especial de intelectuais, amiúde lidos e informados, cuja função exclusiva é organizar, disseminar e modificar objetos culturais com o fim de persuadir as massas de que o Hamlet pode ser tão bom entretenimento quando My Far Lady, e, talvez, igualmente educativo. Muitos autores do passado sobreviveram a séculos de olvido e desconsideração, mas é duvidoso que sejam capazes de sobre viver a uma versão para entretenimento do que eles têm a dizer. A cultura relaciona-se com objetos e é um fenômeno do mundo; o entretenimento relaciona-se com pessoas e é um fenômeno da vida. (...) A cultura é ameaçada quando todos os objetos e coisas seculares, produzidos pelo presente ou pelo passado, são tratados como meras funções para o processo vital da sociedade, como se aí estivessem somente param satisfazer uma necessidade (...).‖ ARENDT, Hannah. A crise da cultura. In: Entre o passado e o futuro. Op. cit. p. 248 mostrado como ele é, pois seu movimento é idêntico ao afastamento dos homens entre si e em relação a tudo que produzem.‖121 Lembremo-nos do palácio de cristal de Hiden Park122 (para Agamben, pesadelo no qual o séc. XIX sonhou o XX), centro imaterial, símbolo decimonônico de prenúncio de um tipo de capitalismo que se torna imagem (Debord, tese 34), uma versão de capitalismo que pode ser alegorizado na leveza de uma construção de vidro transparente, em um nada de revelação, usando de uma expressão de Scholem. ―Não é por acaso que o vidro é um material tão duro e tão liso, no qual nada se fixa. É também um material frio e sóbrio. As coisas de vidro não têm nenhuma aura. O vidro é em geral o inimigo do mistério. É também o inimigo da propriedade.‖123 De fato, há muito a transparência tomou o lugar das aparências; desde o início do séc. XX a profundidade de campo das perspectivas clássicas foi renovada pela profundidade de tempo das técnicas avançadas. O desenvolvimento da indústria cinematográfica e da aeronáutica seguiu de perto a abertura dos grande bulevares. Ao desfile haussmaniano sucedeu-se o desfile acelerado de imagens dos irmão Lumière, a esplanada dos Invalides sucedeu-se a invalidação do plano urbano, a tela bruscamente tornou-se o local, a encruzilhada de todos os meios de comunicação em massa. Da estética da aparição de uma imagem estável, presente por sua própria estática, à estética do desaparecimento de uma imagens instável, presente por sua fuga (cinemática ou cinematográfica), assistimos a um transmutação das representações. À emergência de formas e volumes destinados a persistir na duração de seu suporte material, sucederam-se imagens cuja única duração é o da persistência retineana.124 121 DEBORD, Guy, Op. cit. p. 28. ―Marx encontrava-se em Londres quando, em 1851, a primeira Exposição Universal foi inaugurada com grande repercussão em Hyde Park. Dentre os diferentes projetos propostos, os organizadores escolheram aquele de Paxton, que previa um imenso palácio inteiramente de cristal. No catálogo da exposição, Merrifield escreveu que o Palácio de Cristal ‗é sem dúvida o único edifício do mundo cuja atmosfera é perceptível... para um espectador situado na galeria da extremidade oriental ou ocidental, as partes mais alinhadas do edifício aparecem aureoladas por uma auréola azulada‘ O primeiro grande triunfo do mercado aconteceu, dito de outra forma, sob o signo da transparência e da fantasmagoria‖. AGAMBEN, Giorgio. Moyens sans fins. Notes sur la politique. (Tradução para o português Vinícius Nicastro Honesko). Paris : Éditions Payot & Rivages. p. 27. 123 BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Magia, técnica, arte e política. Obras escolhidas I. (Tradução Sérgio Paulo Rouanet). 7 ed. São Paulo : Brasiliense, 2004. p. 117. 124 VIRILIO, Paul. O espaço crítico. (Tradução Paulo Roberto Pires). Rio de Janeiro : Ed. 34, 1993. p. 19. 122 Um tipo de capitalismo da obsolescência (das invalidações), do movimento tornado vertigem, onde nada pode ser constante salvo a constância do torvelinho de processos ligados à sua própria manutenção (fluxos financeiros livres, a imagem espetacular, a tecnociência instrumentalizada, o dispositivo do consumo...), fluxos cuja única persistência é a superfície retineana, ou a metáfora de sinais eletrônicos em telas planas. Aliada a esta descartabilidade temos um elemento importante a ser levado em conta na análise contemporânea, uma espécie de niilismo do qual trata Walter Benjamin em um dos fragmentos de seu Projeto das Passagens: Baudelaire teve a felicidade de ser contemporâneo de uma burguesia que ainda não tinha necessidade de aliciar como cúmplice de sua dominação um tipo tão associal quanto o que ele representava. A incorporação no niilismo em seu aparelho de dominação estava reservada à burguesia do séc. XX.125 Um niilismo amorfo, narcotizado, muito distante do niilismo criador nietzscheano, algo próximo do que Dany-Robert Dufour apresenta em sua descrição do novo homem do neo-capitalismo atual: Com efeito, estamos na época da fabricação de um ‗novo homem‘, de um sujeito a-crítico e psicotizante, por uma ideologia também conquistadora, mas provavelmente muito mais eficaz do que o foram as grandes ideologias (comunistas e nazistas do século passado). O que o neoliberalismo quer é um sujeito dessimbolizado, que não esteja mais nem sujeito à culpabilidade, nem suscetível de constantemente jogar com um livre-arbítrio crítico. Ele quer um sujeito incerto, privado de toda ligação simbólica. (....) Sendo recusada toda referência simbólica suscetível de garantir as trocas humanas, há apenas mercadoria que são trocadas num fundo ambiente de venalidade e de niilismo generalizado no qual somos solicitados a tomar. O neoliberalismo está realizando o velho sonho do capitalismo. Não apenas ele estende o território da mercadoria até os limites do mundo (o que está em curso sob o nome de mundialização), no qual tudo se tornou passível de ser mercadoria (a água , o genoma, o ar, as espécies vivas, a saúde, os órgãos, os museus nacionais, as crianças...) Ele também está recuperando velhas questões privadas, até agora deixadas à maneira de cada um 125 BENJAMIN, Walter. Passagens (Organização Willi Bolle; tradução Irene Aron, et. al.). Belo Horizonte/São Paulo : Editora UFMG/Imprensa Oficial, 2006. p. 430. (subjetivação, personação, sexuação...) para fazê-las entrar na órbita da mercadoria.126 O direito moderno, com a ascensão de tais transformações estruturais e de significado operadas na baixa modernidade do Ocidente, não ficou ileso nem mesmo em sua conformação conceitual. Para enveredar-se para tal análise serão utilizadas como trilhas de pensamento as categorias da ação (action), da fabricação (work), e do labor (labor), expostas por Arendt em sua obra ―A Condição Humana‖, de 1958. O trabalho (work) vincula-se à categoria de meios e de fins, ao critério da utilidade - o espaço antropológico do homo faber - voltado à construção do artefato humano (ou o mundo cultural) frente à natureza. Insere-se na busca de permanências emprestando ao ―artifício humano a estabilidade e a solidez sem as quais não se poderia esperar que ele servisse de abrigo à criatura mortal e instável que é o homem.‖127 A permanência funda-se na reificação daquilo que é produzido pelo trabalho humano, não que tal produção tenha uma durabilidade absoluta (até mesmo ela está sujeita às atividades consumíveis do metabolismo humano e do devir temporal da natureza), porém tem como fim a consolidação de uma dimensão objetiva que se interponha entre homens e natureza, incutindo (nos limites do humanamente possível) ao menos uma interrupção do eterno movimento da zoé. O trabalho tem, em sua manifestação, uma carga de violência, no sentido de arrancar, ou até mesmo suprimir, relações da imanência natural, portando-se, o homo faber, como amo e senhor de toda a terra. Como a sua produtividade era vista à imagem de um Deus Criador- de sorte que, enquanto Deus cria ex nihilo, o homem cria a partir de determinada substância -, a produtividade humana, por definição, resultaria fatalmente numa revolta prometéica, pois só se pode construir um mundo humano após destruir parte da natureza criada por Deus.128 126 DUFOUR, Dany-Robert. A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. (Tradução Sandra Regina Felgueiras). Rio de Janeiro : Companhia de Freud, 2005. p. 208. 127 ARENDT, Hannah. A condição Humana. (Tradução Roberto Raposo). 10. ed. Rio de janeiro : Forense Universitária, 2001. p. 149. 128 ARENDT, Hannah. A condição Humana. op. cit. p. 152. Apesar de tomadas por equivalentes na tradição de pensamento ocidental, em contraste com o homo faber está a condição do animal laborans.129 A atividade que, na concepção da Grécia antiga, os seres humanos compartilhariam com o restante dos animais,130 porquanto estritamente vinculada ao atendimento de processos metabólicos, tendo como critério único a necessidade. Labor sem permanências, voltado ao consumo que não sobrevive ao ato de sua realização, confinado (na Grécia antiga) ao universo do oikos, a dimensão privada (de privus, ―estar privado de‖). No centro do labor está a própria vida, a zoé talqualmente entendida pelos gregos (diferentemente do trabalho, que tem o mundo como centro). A ação, por sua vez, é a atividade que ultrapassa os critérios da necessidade e da utilidade, helenicamente ligou-se à esfera de liberdade como participação nos assuntos da pólis, através do discurso. Enquanto labor e trabalho realizam-se no isolamento, desnecessitando de outros sujeitos, a ação só se dá na condição de pluralidade, na condição que Arendt tornou célebre com a caracterização do espaço público com sendo o espaço formado pelo encontro paradoxal de singularidades na pluralidade.131 129 ―A distinção de Locke entre as mãos que trabalham e o corpo que labora, é, de certa forma, reminiscente da antiga distinção grega entre o cheirotechnes, o artifície, ao qual corresponde ao Handwerker alemão e aqueles que, ‗como escravos, e animais domésticos, atendem às necessidades da vida‘‖ ARENDT, Hannah. A condição Humana. Op. cit. p. 90. 130 ―Ao contrário do que ocorreu nos tempos modernos, a instituição da escravidão na antiguidade não foi uma forma de obter mão-de-obra barata nem instrumento de exploração para fins de lucro, mas sim as tentativas de excluir o labor das condições da vida humana. Tudo o que os homens tinham em comum com as outras formas de vida animal era considerado inumano. (Esta também era, por sinal, a razão da teoria grega, tão mal interpretada, da natureza inumana do escravo. Aristóteles, que sustentou tão explicitamente sua teoria para depois, no leito de morte, alforriar seus escravos, talvez não fosse tão incoerente como tendem a pensar os modernos. Não negava que os escravos pudessem ser humanos; negava somente o emprego da palavra ‗homem‘ para designar membros da espécie humana totalmente sujeito à necessidade). E a verdade é que o emprego da palavra ‗animal‘ no conceito de animal laborans, ao contrário do outro uso, muito discutível, da mesma palavra na expressão animal rationale, é inteiramente justificado. O animal laborans é, realmente, apenas uma das espécies animais que vivem na terra – na melhor das hipóteses a mais desenvolvida‖. ARENDT, Hannah. A condição Humana. Op. cit. p. 95. 131 ―Se a ação, como início, corresponde ao fato do nascimento, se é a efetivação da condição humana da natalidade, o discurso corresponde ao fato da distinção e é a efetivação da condição humana da pluralidade, isto é, do viver como ser distinto e singular entre iguais.‖ ARENDT, Hannah. A condição humana. Op. cit. p. 191. Em resumo (deixaremos para analisá-la mais pormenorizadamente em espaço oportuno do segundo capítulo), a ação, para Arendt, vincula-se diretamente ao princípio da natalidade nos assuntos humanos, ao termos em mente o fato de que É com palavras e atos que nos inserimos no mundo humano; e esta inserção é como um segundo nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato original e singular de nosso aparecimento físico original. Não nos é imposta pela necessidade, como o labor, nem rege-se pela utilidade, como o trabalho. Pode ser estimulada, mas nunca condicionada, pela presença dos outros em cuja companhia desejamos estar; seu ímpeto decorre do começo que vem ao mundo quando nascemos, e ao qual respondemos começando algo novo por nossa própria iniciativa.132 Trazendo tais conceitos para a análise do jurídico, pode-se afirmar, a partir das reflexões de Tércio Sampaio Ferraz Jr., que na antiguidade clássica grega ―a legislação enquanto trabalho do legislador não se confundia com o direito enquanto resultado da ação.‖133 Ou seja, jus e lex diferenciavam-se na exata medida correspondente entre as distinções entre ação e trabalho. Nas palavras de Ferraz Jr., ―o que condicionava o jus era a lex, mas o que conferia estabilidade ao jus era algo imanente à ação: a virtude do justo, a justiça.‖134 Portanto, a concepção grega de justiça como virtude, tal como defendida, v.g., por Aristóteles,135 diverge radicalmente da concepção moderna, que, principalmente a partir do referencial kelseniano, tende a reduzir a justiça a simples valor136 (ou seja, valor passível de troca entre outros disponíveis no 132 ARENDT, Hannah. A condição humana. Op. cit. p. 189. FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. Técnica, decisão, dominação. 3.ed. São Paulo : Atlas, 2001. p. 25. 134 Ibidem. Idem. A lex era representada na metáfora das muralhas da cidade, aquela 133 concretude que tornava possível a distinção da pólis do terreno dos campos – sua fortaleza, estabilidade - a própria presença física da praça pública dando suporte aos debates que aí se realizavam. 135 ―Seja como for, o objeto de nossa investigação é aquela justiça que constitui uma parte da virtude, pois sustentamos que tal espécie de justiça existe. Do mesmo modo, estamos examinando a injustiça no sentido particular‖. Aristóteles. Ética a Nicômaco. Livro V. (Tradução Pietro Nassetti). São Paulo : Martin Claret, 2002. p. 106. 136 Para tanto, ver notas nº 65 e 73, do segundo item desta dissertação. mercado, caracterizado por uma relatividade intrínseca).137 Reducionismo diretamente relacionado à substituição dos critérios da ação (o conceito antigo de liberdade na tradição grega) pelos critérios da fabricação (e o respectivo local privilegiado da categoria significância em tal atividade), em convergência com o equacionamento, operado pelo homo faber, de tudo que transcenda à estrita corporeidade a simples valores ou pelo utilitarismo sistemático do qual nem mesmo Kant, com sua paradoxal afirmação do homem como um ―fim em si mesmo‖ não conseguiu escapar.138 137 ―O trabalho de nossas mãos, em contraposição ao labor de nosso corpo - o homo faber que ‗faz‘ e literalmente ‗trabalha sobre‘ os materiais, em oposição ao animal laborans, que labora e ‗se mistura com‘ eles- fabrica a infinita variedade de coisas cuja soma total constitui o artefato humano. Em sua maioria, mas não exclusivamente, essas coisas são objetos destinados ao uso, dotados da durabilidade de que Locke necessitava para estabelecimento da propriedade, do ‗valor‘ que Adam Smith precisava para o mercado de trocas, e comprovam a produtividade que Marx acreditava ser o teste da natureza humana. ARENDT, Hannah. A condição humana. Op. cit. p. 149. 138 ―Assim, o ideal de serventia, que orienta a sociedade de artífices – como o ideal de conforto numa sociedade de operários ou o ideal de aquisição que governa as sociedades comerciais -, já não é, realmente, uma questão de utilidade, mas de significância. É ‗em nome da‘ serventia em geral que o homo faber julga e faz tudo em termos de ‗para quê‘. O ideal de serventia, em si, como os ideais de outras sociedades, já não pode ser concebido como algo de que se necessita para que se obtenha outra coisa; sua serventia não admite discussão. È obvio que não há resposta à pergunta que Lessing, certa vez, dirigiu aos filósofos utilitários de seu tempo: ‗E para que serve a serventia?‘ A perplexidade do utilitarismo é que se perde na cadeia interminável de meios e fins sem jamais chegar a algum princípio que possa justificar a categoria de meios e fins, isto é, a categoria da própria utilidade. O ‗para que‘ torna-se conteúdo do ‗em nome de quê‘; em outras palavras, a utilidade, quando promovida a significância, gera a ausência de significado. (...) O utilitarismo antropocêntrico do homo faber encontrou sua mais alta expressão na fórmula de Kant: nenhum homem deve jamais tornar-se um meio para um fim, todo ser humano é um fim em si mesmo. Antes de Kant – por exemplo, na insistência de Locke em que não se deve permitir que um homem seja dono do corpo de outro ou use a força de seu corpo – encontramos a percepção das funestas conseqüências que o raciocínio em termos de meios e fins, sem peias e em orientação , invariavelmente tem na esfera política; mas é somente em Kant que a filosofia das primeiras fases da era moderna liberta-se inteiramente das trivialidades do bom senso, encontradas sempre que o homo faber dita os critérios da sociedade. Naturalmente, o motivo disto é que Kant não pretendia formular ou conceitualizar os princípios do utilitarismo de seu tempo, mas ao contrário, desejava antes de mais nada por em seu devido lugar a categoria de meios e fins e evitar que fosse empregada no campo da ação política. Não obstante, é inegável que sua fórmula tem origem no pensamento utilitário – como é o caso, também de sua outra famosa e igualmente paradoxal interpretação da atitude do homem em relação aos únicos objetos que não se destinam ao ‗uso‘ ou seja, as obras de arte, das quais ele nos disse que proporcionam ‗prazer destituído de interesse‘. Pois a mesma operação que faz do homem o ‗fim supremo‘ permitelhe ‗submeter, se puder, toda a natureza a esse fim, isto é, reduzir a natureza e o mundo a simples meios, privando-os de sua dignidade independente.‖ ARENDT, Hannah. A condição Humana. Op. cit. pp. 167-169. Sobre disseminação dos valores e seu respectivo elemento (tão ―pranteado‖, segundo Arendt) de relatividade universal, a filósofa alemã irá asseverar que ―(...) a relatividade universal – o fato de que uma coisa só existe em relação a outras – e a perda da valia intrínseca – o fato de que tudo deixa de possuir valor ‗objetivo‘, independente da avaliação mutável da oferta e da procura – são inerentes ao próprio conceito de valor.‖139 A tão pranteada desvalorização de todas as coisas, isto é, a perda de toda valia intrínseca, começa com sua transformação em valores ou mercadorias, uma vez que, desse momento em diante, elas passam a existir somente em relação a alguma outra coisa que pode ser adquirida em seu lugar. (...) O motivo pelo qual estes eventos, que parecem inevitáveis numa sociedade comercial, deram azo a tão profunda inquietação e chegaram a constituir o principal problema da ciência da economia, não foi nem mesmo a relatividade em si, mas antes do fato de que o homo faber cujas atividades são aferidas pelo uso constante de réguas, normas e padrões, não podia suportar a perda de medidas e padrões ‗absolutos‘. Pois o dinheiro, que obviamente serve de denominador comum a todo tipo de coisa, de sorte que uma possa ser trocada por outra, não possui, de algum modo, a existência independente e objetiva, capaz de sobreviver a todo uso e a toda manipulação, que a régua ou qualquer outro instrumento de medição possui em relação à coisa que deve medir e aos homens que a manuseiam. É esta perda de padrões e normas universais, sem os quais o homem jamais poderia ter construído um mundo, que Platão já pressentia na proposta protagórica de estabelecer o homem, fabricante de todas as coisas, e o uso que delas ele faz, como a suprema medida destas últimas. Isto mostra o quanto a relatividade do mercado de trocas tem a ver com o instrumento que resulta do mundo do artífice e da experiência da fabricação. Na verdade, a primeira advém, sistematicamente e sem quebra de continuidade, do segundo.140 139 ARENDT, Hannah. A condição Humana. Op. cit. p. 177. ARENDT, Hannah. A condição humana. Op. cit. p. 178-179. Para Arendt ―a proeminente confusão na economia clássica e a confusão maior que resultou no uso do termo ‗valor‘ (value) na filosofia foram originalmente causadas pelo fato de que a palavra mais antiga, ‗valia‘ (worth), que ainda encontramos em Locke, foi suplantada pela expressão ‗valor de uso‘ (use value), aparentemente mais científica. Marx também aceitou essa terminologia; e fiel à sua repugnância em relação à esfera pública, viu sistematicamente o pecado original do capitalismo na mudança de valor de uso para valor de troca. No entanto, contra tal pecado de uma sociedade comercial, onde realmente o mercado de trocas é o lugar público mais importante e onde, conseqüentemente, tudo se torna valor cambiável, ou seja, mercadoria, Marx não invocou a valia objetiva ‗intrínseca‘ à própria coisa. Em seu lugar, colocou a função que as coisas exercem no processo vital do consumidor, que tanto desconhece valia objetiva intrínseca quanto valor subjetivo determinado pela sociedade. (...) esta confusão verbal, porém, é somente parte da história. O motivo pelo qual Marx reteve teimosamente a expressão ‗valor de uso‘, bem como a razão das inúmeras e vãs tentativas de encontrar alguma fonte objetiva – como o trabalho, a terra ou o lucro – para o surgimento dos valores, 140 Ou seja, tais manifestações nada mais representam, em termos arendtianos, que a paulatina substituição, ocorrida no mundo moderno, da ação pelos critérios da fabricação - do trabalho - como centro da vida ativa humana (algo que poderia, no horizonte da tradição de pensamento ocidental, ser remotamente associado a Platão), permeando, de certo modo, toda a tradição teórico-política da modernidade, tanto que se pode afirmar que Toda a terminologia da teoria e do pensamento político atesta claramente o quanto foi persistente e bem sucedida a transformação da ação em modalidade da fabricação, e torna quase impossível discutir esses assuntos sem que se empregue a categoria de meios e fins e se raciocine em termos de instrumentalidade.141 No direito, mais uma vez seguindo as interpretações de Ferraz Jr., a perda do antigo sentido de ação e sua redução à esfera do trabalho corresponderá a uma ―redução progressiva do jus à lex, do direito à norma‖ (e, consequentemente, o deslocamento da justiça enquanto virtude à dimensão dos valores relativos). O fabricar dos antigos, isto é, o trabalho, era porém, um domínio sobre coisas, não sobre homens. Transportado o fabricar para o mundo político, o trabalho fará do agir humano uma atividade produtora de bens de uso e o direito reduzido a norma, isto é, o jus como igual a lex, será então encarado como comando, como relação impositiva de uma vontade sobre outra vontade, um meio para atingir certos fins: a paz, a segurança, o bem-estar, etc. Nesse quadro, a legitimidade do direito comando passa a depender dos fins a que ele serve.142 No mundo pautado pelos critério do homo faber, o direito despersonaliza-se, sendo entendido na ótica de um ordenamento (ou sistema jurídico) formal, abstrato, formado por um conjunto de normas e respectivamente um conjunto de direitos subjetivos, constituído independentemente das situações reais e tornado meio de coercibilidade sobre outros seres humanos, ou liame intersubjetivo de direitos e obrigações (aquilo que semanticamente abarca, na dogmática jurídica, o conceito de bilateralidade atributiva da norma), assegurando os fins, que o direito, em sua neutralidade instrumental, deverá assegurar. foram que ninguém achava fácil aceitar o simples fato de não existirem ‗valores absolutos‘ no mercado de trocas, que é a esfera própria dos valores e de que procurar um valor absoluto equivalia a tentar a quadratura do círculo.‖ Ibidem. Idem. 141 ARENDT, Hannah. Op. cit. p. 241. 142 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Op. cit. p. 25. Entretanto, a diluição desta arquitetônica de meios - do direito entendido como um grande aparato instrumental, abstrato e formal de coação, que se utiliza da violência institucionalizada para o atendimento de suas finalidades (lembremos que a violência, para Arendt, por seu caráter instrumental, vincula-se diretamente à dimensão do homo faber, correlata também do equacionamento do poder à violência), e o próprio direito sendo entendido no viés da coação – será operada no mundo contemporâneo com a substituição dos critérios do homo faber pela assunção do animal laborans, o plano da oikia disseminado para todas as esferas da vida humana. O último estágio de uma sociedade de operários, que é a sociedade dos detentores de emprego, requer de seus membros um funcionamento puramente automático, com se a vida individual realmente tivesse sido afogada no processo vital da espécie e a única decisão ativa do indivíduo fosse deixar-se levar, por assim dizer, abandonar a sua individualidade, as dores e as pena de viver ainda sentidas individualmente, e aquiescer num tipo funcional de conduta entorpecida e tranqüilizada.143 A ausência de permanências do labor - o que surge de sua atividade é logo absorvido no processo de sobrevivência da vida - ganhando predominância no mundo contemporâneo (a sociedade de consumidores como um sintoma direto de tal centralidade), trará uma nova mutação semântica para o conceito de direito: compreendido a partir da ação na antiguidade (jus), trabalho legislativo no mundo moderno (lex), na contemporaneidade o direito é cada vez mais associado a um bem de consumo, ou objeto de consumo.144 143 ARENDT, Hannah. Op. cit. p. 335. Em correlação direta com a redução do direito à estrita prestação jurisdicional e tal prestação, por sua vez, reduzida a fruível objeto de consumo, temos a política entendida como ―a ‗grande administradora do existente‘, (...), a outra face do processo de mercadorização, já que a política está a ponto de tornar esse sistema onívoro, atingindo os ângulos mais remotos, reduzindo tudo à sua visibilidade, apenas porque se transforma de um projeto metapolítico da cidade, modelo de cidade, à tecnologia da alocação dos recursos econômicos, à racionalidade da eficiência, essencialmente à atividade atributiva do dinheiro. A expansão da política como resolubilidade técnica dos problemas, como resposta às necessidades, é a outra face da lógica da extrema manipulosidade da natureza, da mercadorização de tudo o que está expresso pelo indivíduo, da idéia (que enfim domina) da ilimitada confiança na técnica (a tecnologia até como grande conferente do sofrimento humano, como instrumento que define os limiares do sofrimento tolerável).‖ BARCELLONA, Pietro. O egoísmo maduro e a insensatez do capital. (Tradução José Sebastião Roque). São Paulo : Ícone,1995. p. 96. 144 A implicação direta de tal fixação é a crise de legalidade que vivenciamos no presente145 (novamente nos conectamos, em outros matizes, com o extravio do jurídico no mundo contemporâneo), o direito que perde sua localização como referencial simbólico (v.g., normativo) na regulação de condutas, contudo torna-se um dispositivo maleável, sujeito às vicissitudes da necessidade (as decisões prêt-à-porter) e ao atendimento dos imperativos de um mercado, que (diferentemente do mercado de trocas do homo faber) se pauta pela fluidez, pela velocidade e pelo extremo isolamento de seus destinatários. Não há mais um mundo – objetivo - entre os homens, mas a própria vida, que toma conta de todas as esferas, não mais a produção fabril de coisas voltadas à permanência (ao exemplo das normas), porém a própria força laboral como atividade ininterrupta, sendo o próprio pensamento - que foi reduzido à mera razão instrumental cognitiva no contexto do homo faber - transformado paulatinamente em atividade voltada para prever conseqüências, dirigido para um horizonte técnico dessimbolizado e circunscrito ao atendimento do processo vital (onde se vive para laborar e se labora para viver). O direito reduzido a um saber tecnologicizado, de aprendizado manualesco, preparado para ser manipulado pelos seus operadores (operários estatais ou privados que não realizam outra atividade em suas áreas que não seja ―ganhar a vida‖; estéril horizonte solipsista do modelo de consumidor proliferado para todos os cantos do planeta). As implicações diretas do advento da sociedade de consumidores para o universo jurídico, no dizer de Ferraz Jr., podem ser visualizadas na ―contingência de todo e qualquer direito, que não apenas é posto por decisão, mas também vale em virtude de decisões, não importa quais‖. Ou seja, (...) na concepção do animal laborans, criou-se a possibilidade de uma manipulação de estruturas contraditórias, sem que a contradição afetasse a função normativa. Por exemplo, rescisão imotivada de um contrato de 145 ―A perda da forma é o sinal da crise da política e o sinal também da crise da justiça. Perder a forma, para a política, significa perder o modelo da cidade, do projeto. O modelo da cidade era a trama das relações que, de qualquer modo, aludia a uma ‗além‘ da política. E, para o direito, significava perder a regra da convivência. A forma é o espaço da mediação e da polaridade‖. BARCELLONA, Pietro. Op. cit. p. 95. locação é permitida, amanhã passa a ser proibida, depois volta a ser permitida, e tudo é permanentemente reconhecido como direito, não incomodando a esse direito sua mutabilidade. A filosofia do animal laborans assegura ao direito, enquanto objeto de consumo, enorme disponibilidade de conteúdos, tudo é passível de ser normado para a enorme disponibilidade de interessados, pois o direito já não depende do saber, do status, do sentir de cada um, das diferenças de cada um, da personalidade de cada um. Ao mesmo tempo continua sendo aceito por todos e cada um em termos de uma terrível uniformidade. Em suma, com o advento da sociedade do animal laborans, ocorre radical reestruturação do direito, pois sua congruência interna deixa de assentar-se sobre a natureza, sobre o costume, sobre a razão, sobre a moral, e passa reconhecidamente a basear-se na própria uniformidade da própria vida social, da vida social moderna, com sua enorme capacidade para a indiferença. Indiferença quanto a tudo que valia e passa a valer, isto é, aceita-se tranquilamente qualquer mudança. Indiferença quanto à incompatibilidade de conteúdos, isto é, aceita-se tranquilamente a inconsistência e convive-se com ela. Indiferença quanto às divergências de opinião, isto é, aceita-se uma falsa idéia de tolerância, como a maior de todas as virtudes. Este é afinal o mundo jurídico do homem que labora, para o qual o direito é tão-somente um bem de consumo.146 Em síntese, o direito contemporâneo apresenta-se assolado pela permissividade conteudística (sem que isso afete a função normativa) e ausência de critérios rígidos de decisão, um direito flexível que dá margem a decisões contraditórias e aos mais diversos tipos de normatizações.147 O Estado é reconfigurando como prestador de serviços, fornecedor de objetos de consumo, tendo a decisão como centro principal para a conceituação do próprio jurídico (em 146 FERRAZ JR., Tércio S. Op. cit. p 28. Na tendência de um direito a serviço do mercado, no contexto brasileiro temos as declarações de Nelson Jobim, dadas em 2004 ao Jornal ―valor Econômico‖ (na época em que era presidente do Supremo Tribunal Federal), argumentando no sentido de que os juízes deveriam levar em conta e avaliar as possíveis conseqüências econômicas do ato decisório, v.g., em processos envolvendo agências reguladoras, nos quais estaria em jogo o desenvolvimento econômico do país. Ao ser questionado se o judiciário deveria julgar ―de olho nas contas públicas‖, afirmou o atual ex-presidente e ex-ministro do STF: ―Quando só há uma interpretação possível, acabou a história. Mas quando há um leque de interpretações, por exemplo cinco, todas elas são justificáveis e são logicamente possíveis. Aí, deve haver outro critério para decidir. E esse outro critério é exatamente a conseqüência. Qual é a conseqüência, no meio social, da decisão A, B ou C? Você tem de avaliar, nesses casos muito pulverizados, as conseqüências. Você pode ter uma conseqüência no caso concreto eventualmente injusta, mas que no geral seja positiva. E é isso que eu chamo da responsabilidade do Judiciário das conseqüências de suas decisões. Entrevista ao jornal Valor Econômico, de 13 dezembro de 2004. Apud. CARVALHO, Lucas Borges. Constituição, Democracia e Integridade: a legitimidade política da jurisdição constitucional do Brasil. Dissertação apresentada no Centro de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis : CPGD-UFSC, 2006. p. 67. 147 convergência com a análise, realizada no primeiro tópico, da centralidade do judiciário perante os demais poderes estatais no presente). Presenciamos, no presente, uma era espetacular na qual, a partir das reflexões de Giorgio Agamben (seguindo os rastros de Deleuze e Debord), ―o Estado do niilismo realiza-se. É por isso que o poder estabelecido sobre a suposição de um fundamento vacila hoje sobre todo o planeta, e os reinos da terra encaminham-se uns após os outros para o regime democrático-espetacular que é a realização da forma Estado.‖148 Antes de encerrar as reflexões neste tópico, ainda na rota na análise da categoria valor na modernidade (e sua indissolúvel conexão, ao menos na hipótese arendtiana, com a supremacia moderna do homo faber) seria importante conjecturar (ou, no mínimo, apresentar uma interpretação possível) sobre a atual utilização, em Agamben, da categoria valor de uso como estratégia visando à profanação (a restituição ao uso comum dos homens) dos objetos tornados sacros por dispositivos ritualísticos como o espetáculo. Talvez possa ser possível afirmar que, no mundo da diluição contemporânea (permeado pelo labor), tanto a valia objetiva ‗intrínseca‘ à própria coisa, quanto o valor subjetivo determinado pela sociedade (com descritos por Arendt), apresentam-se como conceitos indetermináveis. Por outro lado, parece claro que o conceito de uso, em Agamben, está muito distante daquilo que Arendt imputava à categorização de Marx, como sendo uma idéia da ―função que as coisas exercem no processo vital do consumidor‖, ou seja, a funcionalidade constitutiva (despida de um ―valor de troca‖) da própria coisa. Evidencia-se necessário reforçar o caráter de novo que Agamben adjetiva a dimensão do uso, uso não vinculado a uma esfera de consumo, no sentido de fruição e descarte, mas na acepção do jogo (aí temos explicitamente a influência benjaminiana), como o novo uso que a criança faz dos objetos que lhe caem às mãos - caixas velhas transformando-se em moradas, objetos de uso 148 AGAMBEN, Giorgio. Moyens sans fins. Op. cit. p. 31. convencional solene transformados em brinquedos lúdicos, desativados.149 Algo que possivelmente a arte de vanguarda tivesse em mente, como nos ready-mades de Marcel Duchamp, nas armações de Max Ernst, ou nas montagens como o Parangolé de Hélio Oiticica. Porventura, numa saída melancólica, tal estratégia seja a única possível para um mundo que já não reconhece ―valias intrínsecas‖; ou que não mais consiga desvencilhar-se das esferas dos valores (hoje tomados pela vacuidade, pela ausência de critérios mínimos), necessitando, portanto, recriá-los sempre; quiçá nosso tempo tenha simplesmente esquecido (numa realidade onde tudo tornou-se possível, mesmo o improvável) da funcionalidade - ou da valia específica de cada coisa (no que também podemos distinguir uma faceta de liberação de fardos, porém trazida pelo fenecimento mesmo daquele espaço público de trocas, incutidor de valores, no modelo do homo faber; lembre-se que o incutir novo uso através do jogo evidencia-se sempre uma atribuição individual, operada ainda no isolamento ), como muito bem lembra um aforismo de Oscar Wilde, ao alertar que ―hoje em dia conhecemos o preço de tudo e o valor de nada.‖150 Feito este pequeno desvio, a conclusão provisória, ao final desta primeira trajetória, é a de que o direito contemporâneo apresenta-se estrutural e 149 ―(...) Il passagio dal sacro al profano può, infatti, avvenire anche attraverso un uso (o, piuttosto, un riuso) del tutto incongruo del sacro. Si tratta del gioco. È noto che la sfera del sacro e quella del gioco sono strettamente conesse (...). Ciò significa che il gioco libera e distoglie l‘umanità dalla sfera del sacro, ma senza semplicemente abolirla. L‘uso a cui il sacro è restituito è un uso speciale, che non coincide con il consumo utilitaristico. La ‗profanazione‘ del gioco non riguarda, infatti, soltanto la sfera religiosa. I bambini, che giocano com qualunque anticaglia capiti loro sottomano, tranformano in giocattolo anche ciò che appartiene alla sfera del‘economia, della guerra, del diritto e delle altre attività che siamo abituati a considerare come serie.(...) Comune, tanto in questi casi come nella profanazioni del sacro, è il passagio da una religio, che è ormai sentita come falsa e oppressiva, alla negligenza come vera religio. E questa non significa trascuratezza (nessuna attenzionne regge il confronto com quella del bambino que gioca), ma una nuova dimensione dell‘uso, che bambini e filosofi consegnano all‘umanità. È un uso del genere che doveva avere in mente Benjamin, quando scribe, ne Il nuovo avvocato, che il diritto non più applicato, ma soltanto studiato, è la porta della giustizia. Come la religio non più osservata, ma giocata, apre la porta dell‘uso, cosí le potenze dell‘economia, del diritto e della politica, disattivate in gioco, diventano la porta di una nuova felicità‖. AGAMBEN, Giorgio. Profanazioni. Roma : Nottetempo, 2005. p. 85-87. 150 WILDE, Oscar. Aforismos. (Tradução de Ricardo Reim). Pólo Editorial do Paraná. 1997. p.84 funcionalmente inserido nos dispositivos de poder que presidem o devir-mundo espetacular e consumidor. A própria temporalidade implícita e a construção mesma da teorias do direito hegemônicas no presente - tradição normativista e sistêmica - vinculam-se nesse sentido. Seria possível pensar num resgate de um direito não capturado pela sociedade do consumo (o direito como objeto de consumo) ou mesmo não restrito à estrutura da lex (estritamente normativa, dogmaticamente niilista), porém no sentido grego do jus, de um direito vinculado à ação, tendo como correlato aquele tipo de liberdade tal qual imaginada pelos gregos na antiguidade? A recuperação da categoria da ação, como é apresentada classicamente no contexto grego, parece estar confinada aos limites da revisão crítica de nossas categorias de pensamento (como na elaboração do pensamento arendtiano), não tendo correlação direta na busca de fundamentar um agir político pautado naqueles critérios (o saudosismo de uma Ur-histórica), apesar de sempre termos em mente a capacidade humana de quebrar automatismos e começar algo novo (a dimensão da natalidade da condição humana). Por outro lado, está aberto o debate para pensar um novo uso desse direito que nos resta, o que também exige inúmeras confrontações (aporéticas) no local da teoria (seja jurídica, seja política), distanciando-se de uma abordagem ingênua que veja o direito como um neutro instrumento disposto a satisfazer qualquer fim desejado151 (algo que apenas reforça o que já está posto na nossa tradição), porém que procure pensar num resíduo de direito não capturado (se é que realmente possa ser possível encontrá-lo) pelas instâncias de poder ocidentais, ou numa proposta que procure desativar a própria vinculação do jurídico com tais instâncias. Lembrando de uma provocação de Badiou, ―es mejor 151 Aqui dirigimos nossas críticas ao que se convencionou intitular uso alternativo do direito, a partir da magistratura italiana nos períodos após o fascismo, e transplantada no Brasil através de um grupo de juízes no Rio Grande do Sul. no hacer nada que contribuir a la invención de vías formales para volver visible lo que el Império reconoce ya como existente.‖152 Mesmos labirínticas, não deixam de ser urgentes tarefas à teoria do direito que vem (para usar de um termo muito apreciado por Agamben), cujas veredas não são possíveis de perscrutar nesse momento. Talvez, o que em nosso tempo nos é dado realizar possa estar representado na metáfora dos assistentes de arqueólogos que preparam o campo, retirando os destroços e estilhaços que obstam a entrada nas muralhas de investigação, fazendo, de certa forma, um trabalho de seleção do que pode representar vestígios ou pistas de pensamento, daquilo que representa nada mais que entulho a despistar os caminhos da observação. Empreitada, portanto, que exige, no modestos limites deste trabalho, as reflexões que terão local nos próximos capítulos. 152 BADIOU, Alain. Quince tesis sobre el arte contemporâneo. In: Ramona – revista de artes visuales. nº 41. Buenos Aires, Junho de 2004. INTERVALO O local do jurídico como um não-lugar. Cinzenta zona de indistinção da auto-referencialidade que dá lugar ao nivelamento. Fatos e normas e disciplinas alquebradas, mescla de fragmentos. Seu tempo oficial como rio caudaloso trazendo o que restou das vilas, rio sem margens, transbordado, sem lugares próprios. A estatalidade à deriva: representará ponto de apoio na tormenta? O vazio proliferante de formas e rituais e o niilismo das autopistas. No meio do torvelinho, sujeitos dispersos. 2. OCASO DO POLÍTICO 1. É preciso se desvencilhar das metáforas privatistas, como as da tradição contratualista, para pensar a política que vem. Tais conceitos nada mais exprimem que a redução do espaço político à dicotomia binária de uma esfera estatal tendo como contraponto uma dimensão estrita (e doméstica) de liberdade negativa (moderna, de não-intervenção) que afoga outras versões (seja da política, seja da própria liberdade) encontráveis na história. Este imaginário político está em consonância (apesar de não ser possível incluí-lo como único acusado) com a burocratização e a supressão dos espaços públicos no mundo contemporâneo. A questão, ainda em aberto, é a formulação de teorias, seguindo uma iluminação arendtiana, que partam não do labor nem do trabalho, mas da ação como possibilidade de começar algo novo no horizonte político humano - portanto assumindo a dimensão de uma irremediável contingência - e de uma concepção de poder que não se limite ao simplismo juridicista como sendo aquele conceito representativo do “meio de monopólio da violência supostamente legítima em determinado território”. A celebrantes metáfora atomizados do – contrato, metáfora fantasmagóricos privatista homúnculos pressupondo solipsistas que isoladamente lançam suas vontades com vistas à formação de um pacto comum mereceu grande prestígio na consolidação de um imaginário político moderno ocidental, aspirando, em certos matizes, a estabelecer-se com domínio e como fundamento na teoria política moderna. Mesmo com a existência de diferenças entre as mais heteróclitas concepções componentes do que se convencionou chamar a tradição contratualista, constatam-se nada mais que diversas tonalidades, diferentes conteúdos do que se estipula como móvel central do contrato, porém os fundamentos latentes são os mesmos e, podemos afirmar - a partir de um local de análise específico - contribuíram para o estabelecimento concreto de estruturas institucionais jurídico-políticas que, com seu esfacelamento contemporâneo, exigem o revisitar de suas construções teóricas, ou a busca de outras versões outrora esquecidas na vigência dominante daquelas. Implícita a todas as concepções contratualistas visualiza-se o conceito moderno de liberdade, ou seja, a liberdade entendida como não intervenção, espaço de não ingerência do Estado nos assuntos privados do indivíduo, ou mesmo garantia de abstenção mínima visando tutelar a integridade dos sujeitos submetidos a uma determinada localização territorial. Nesse ponto, inúmeras divisões se sobressaem na caracterização das facetas desta liberdade moderna: de locomoção, de pensamento, de propriedade, etc. Porém não deixam de evidenciar sua raiz comum.153 153 ―Alguns filósofos dotados de visão otimista a respeito da natureza humana e da crença na possibilidade de harmonização dos interesses humanos, tais como Locke ou Adam Smith e, sob certos aspectos, Mill, acreditavam que o progresso e a harmonia social podiam existir lado a lado com a manutenção de ampla área para a vida privada além de cujos limites nem o Estado nem qualquer autoridade deveriam ter permissão de passar. Hobbes e aqueles que concordavam com ele, sobretudo pensadores de tendência conservadora ou reacionária, argumentavam que, se os homens quisessem evitar destruir-se uns aos outros e evitar transformar a vida social em uma selva ou deserto, seria necessário que se instituíssem maiores salvaguardas para mantê-los em seus lugares. Desejavam, assim, ampliar a área de controle centralizado e reduzir a do indivíduo. Mas ambas as partes estão de acordo quanto ao fato de que uma parcela da existência humana precisa continuar sendo independente da esfera do controle social. Invadir essa reserva, por menor que seja, constituiria despotismo. (...) temos de preservar uma área mínima de liberdade pessoal se não quisermos ‗degradar ou negar nossa natureza‘. Não podemos permanecer livres em termos absolutos e precisamos deixar de lado uma parcela da nossa liberdade para preservar o restante. Mas a submissão total constitui autoderrota. Qual, então, deverá ser esse mínimo?. Deverá ser aquele que um homem não pode abandonar, sem causar prejuízos à essência de sua natureza humana. O que constitui essa essência? Quais são os padrões que ela origina? São questões que sempre representaram – e provavelmente sempre representarão – ilimitado campo de discussões. Mas, qualquer que seja o princípio segundo o qual deva ser traçada a área de não-interferência, seja ele o do direito objetivo natural ou o dos direitos subjetivos naturais, da utilidade ou dos termos de um imperativo categórico, da sacralidade do contrato social ou de qualquer outro conceito com o qual os homens tem procurado esclarecer e justificar suas convicções, a liberdade nesse sentido significa liberdade de: nenhuma interferência além da fronteira móvel, mas sempre identificável. ‗A única liberdade que merece tal nome é a de perseguir nosso próprio bem a nosso próprio modo‘ - disse o mis celebrado de seus defensores. Se é isso o que ocorre, poder-se-á justificar a compulsão? Mill não tinha dúvidas que sim. Desde que a justiça exige que todos os indivíduos tenham direito a um mínimo de liberdade, todos os indivíduos necessariamente teriam de sofrer restrições, até por meio da Em outras variantes, é possível visualizar aquilo que Foucault denunciava como sendo o ―economicismo‖ na teoria do poder, encontrável seja na concepção jurídica e liberal do poder político (presente, por exemplo, nos filósofos do séc. XVIII) ou mesmo na concepção que, em traços gerais, tornou-se corrente para caracterizar o marxismo (ou diríamos, seus estratos mais ortodoxos): E, com isso, quero dizer o seguinte: no caso da teoria jurídica clássica do poder, o poder é considerado um direito do qual se seria possuidor como de um bem, e que se poderia, em conseqüência, transferir ou alienar, de uma forma total ou parcial, mediante um ato jurídico ou um ato fundador de direito – pouco importa, por ora, que seria da ordem da cessão ou do contrato. O poder é aquele, concreto, que todo indivíduo detém e que viria a ceder, total ou parcialmente, para constituir um poder, uma soberania política. A constituição do poder político se faz, portanto, nessa série, nesse conjunto teórico a que me refiro, com base no modelo de uma operação jurídica que seria da ordem da troca contratual. Analogia, por conseguinte, manifesta, e que corre ao longo de todas estas teorias, entre o poder e os bens, o poder e a riqueza.154 Ou seja, a partir de tais considerações provisórias, pode-se afirmar que o aparelho do Estado (no sentido deleuziano/guatarriano do termo) institui-se e, a partir dele, isto é, a partir da dicotomia nuclear estabelecida com a sua proeminência (direito privado/direito público; governantes/governados, liberdade dos súditos/atuação estatal, etc.) é que se formam as narrativas de fundamentação do nascimento deste mesmo Estado. Pode-se dizer que a própria concepção moderna de liberdade é ínsita a este binarismo constitutivo (a metafísica encarna-se e narra um antes de constituição desde sua ótica; o que fica explícito nas construções de um Estado de Natureza correspondente a uma Sociedade Civil; ou de uma Liberdade natural indômita correspondente a uma Liberdade Civil). Do interior do Estado – das dicotomias biunívocas inerentes à proeminência da estatalidade política – retirar- força, se necessário fosse, para que não despojassem ninguém da liberdade. O fato é que a função integral do direito era evitar exatamente tais conflitos: o Estado ficava reduzido ao que Lassale desdenhosamente descrevia como as funções como as funções de um vigia noturno ou de um guarda de trânsito‖. BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília : Ed. UnB, 1981. pp. 139-140. 154 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France (19751976). (Tradução Maria Ermantina Galvão). São Paulo : Martins Fontes, 1999. pp. 19-20. se-á o transplante que será, tal qual enxerto de árvores, posto como ponto de nascimento de toda sua estrutura (prestidigitação teórica que, a despeito de sua manifesta inconsistência, manteve e mantém posição privilegiada, principalmente entre os juristas, como explicação das origens do poder político ocidental). Seguimos Clastres quando ele mostra que o Estado não se explica por um desenvolvimento das forças produtivas, nem por uma diferenciação das forças políticas. É ele, ao contrário, que torna possível o empreendimento das grandes obras, a constituição dos excedentes e a organização das funções públicas correspondentes. É ele que torna possível a distinção entre governantes e governados. Não há como explicar o Estado por aquilo que o supõe, mesmo recorrendo à dialética.155 Hannah Arendt, no belo ensaio intitulado ―O que é a Liberdade?‖ trará reflexões importantes para este debate, seguindo uma rota que poderíamos considerar oposta frente aos convencionalismos disseminados no pensamento político hegemônico na modernidade. Para a pensadora alemã, a liberdade aparece justamente no campo da política e dos assuntos humanos. ―A raison d‟être da política é a liberdade, e seu domínio de experiência é a ação.‖156 Alerta Arendt que, historicamente, a liberdade como grande questão metafísica (onde tradicionalmente se incluem, v.g., o ser, o tempo, o nada, a eternidade...) foi, de forma tardia, um dos últimos temas para onde se direcionou a reflexão filosófica, ou seja, apenas com a dissolução dos significados políticos greco-romanos (na Antiguidade tardia),157 a partir de onde se converge para tentativas filosóficas de formulação de uma liberdade dissociada do político, onde fosse possível pensar ser livre mesmo na condição de escravo. A liberdade, vivenciada como experiência concreta para os Gregos, é deslocada para os planos da cidadela interior, da vontade (para boa parte da tradição filosófica), do livre-arbítrio no cristianismo, do pensamento no diálogo de mim-comigo-mesmo, ou mesmo dos interesses privados no horizonte do liberalismo. 155 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Vol. 5. (Tradução Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa). São Paulo : Ed. 34. 1997. p. 21. 156 ARENDT, Hannah. O que é a liberdade? In: Entre o passado e o futuro. (Tradução Mauro W. Barbosa de Almeida). São Paulo : Perspectiva, 1968. p. 192. 157 ARENDT, Hannah. O que é a liberdade? Op. cit. p. 191. Nesse sentido, a liberdade negativa postulada com tamanha veemência pelos liberais coloca-se, para Hannah Arendt, em um domínio antinômico ao próprio campo de aparecimento da liberdade. Liberdade, conforme visto no conceito de ação, é um atributo que se exerce em relação aos outros homens, num espaço de igualdade (conceito de igualdade arendtiano localizado numa dimensão política, não social, como é corrente no presente), sendo o espaço privado, dimensão privilegiada no discurso na modernidade como o locus da liberdade negativa, uma realidade pré-política (dentro da própria tradição grega). No entanto, na rota de contribuição para o obscurecimento de uma liberdade ligada à política e à ação, temos, além das concepções tardias de liberdade nos prelúdios da modernidade, a novidade sombria dos totalitarismos na contemporaneidade. O ascenso do totalitarismo, sua pretensão de ter subordinado todas as esferas da vida às exigências da política, e seu conseqüente descaso pelos direitos civis, entre os quais, acima de tudo, os direitos à intimidade e à isenção à política, fazem-nos não apenas duvidar da coincidência da política com a liberdade como de sua própria compatibilidade.158 O pertencimento ao espaço público grego pressupunha sujeitos que saíssem do estado sujeito às necessidades para a participação na condução dos rumos da polis. A oikia e o âmbito público político são termos em nenhum momento coincidentes e impossibilitada a própria sintonia entre ambos (o porquê da contradição em termos, se analisada de uma perspectiva grega antiga, do conceito Economia Política). Para Arendt, o fato de tentar situar a liberdade no campo das aparências (nos remetemos à concepção arendtiana da supremacia das aparências no campo político),159 na esfera extra-volitiva do mundo exterior, não 158 ARENDT, Hannah. O que é a liberdade?. Op. cit. p.195 ―Neste mundo em que chegamos e aparecemos vindos de lugar nenhum, e do qual desaparecemos em lugar nenhum, Ser e Aparecer coincidem. A matéria morta, natural e artificial, mutável e imutável, depende em seu ser, isto é, em sua qualidade de aparecer, da presença de criaturas vivas. Nada e ninguém existe neste mundo cujo próprio ser não pressuponha um espectador. Em outras palavras, nada do que é, à medida que aparece, existe no singular; tudo o que é, é próprio para ser percebido por alguém. Não o Homem, mas 159 implica aceitar a concepção reducionista da liberdade como mera liberação, seja das necessidades, seja dos impedimentos externos.160 Arendt entende tais condições como etapas pré-políticas. A liberdade, em seu sentido autêntico, jamais se apresenta num caráter totalmente liberto de alguma limitação, não é plena porquanto o espaço público em que se manifesta reveste-se do caráter de pluralidade. Diferentemente do que ocorreria se estivesse inscrita no plano da vontade, a liberdade propriamente dita refere-se ao eu posso e não ao eu quero. Por outro lado, no que diz respeito à concepção de liberdade presente no imaginário liberal, pode-se afirmar que as concepções liberais tradicionais apologéticas à depuração de caracteres políticos da liberdade (quanto mais política, menos liberdade; quanto mais liberdade, menos política) os homens é que habitam este planeta. A pluralidade é a lei da Terra.‖ ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. Op. cit. p. 17. 160 Neste sentido é o conceito hobbesiano de liberdade, debatido no capítulo XXI de seu ―Leviatã‖, representativo, v.g., no presente fragmento: ―Liberdade significa, em sentido próprio, a ausência de oposição (entendendo por oposição os impedimentos externos do movimento); e não se aplica menos às criaturas irracionais e inanimadas do que às racionais. Porque de tudo o que estiver amarrado ou envolvido de modo a não poder mover-se senão dentro de um certo espaço, sendo esse espaço determinado pela oposição de algum corpo externo, dizemos que não tem liberdade de ir mais além. E o mesmo se passa com todas as criaturas vivas, quando se encontram presas ou limitadas por paredes ou cadeias; e também das águas, quando são contidas por diques ou canais, e se assim não fosse se espalhariam por um espaço maior, costumamos dizer que não têm a liberdade de se mover da maneira que fariam se não fossem esses impedimentos externos. Mas quando o que impede o movimento faz parte da constituição da própria coisa não costumamos dizer que ela não tem liberdade, mas que lhe falta o poder de se mover; como quando uma pedra está parada, ou um homem se encontra amarrado ao leito pela doença. Conformemente a este significado próprio e geralmente aceite da palavra, um homem livre é aquele que, naquelas coisas que graças a sua força e engenho é capaz de fazer, não é impedido de fazer o que tem vontade de fazer. Mas sempre que as palavras livre e liberdade são aplicadas a qualquer coisa que não é um corpo, há um abuso de linguagem; porque o que não se encontra sujeito ao movimento não se encontra sujeito a impedimentos. Portanto, quando se diz, por exemplo, que o caminho está livre, não se está indicando qualquer liberdade do caminho, e sim daqueles que por ele caminham sem parar. E quando dizemos que uma doação é livre, não se está indicando qualquer liberdade da doação, e sim do doador, que não é obrigado a fazê-la por qualquer lei ou pacto. Assim, quando falamos livremente, não se trata da liberdade da voz, ou da pronúncia, e sim do homem ao qual nenhuma lei obrigou a falar de maneira diferente da que usou. Por último, do uso da expressão livre arbítrio não é possível inferir qualquer liberdade da vontade, do desejo ou da inclinação, mas apenas a liberdade do homem; a qual consiste no fato de ele não deparar com entraves ao fazer aquilo que tem vontade, desejo ou inclinação de fazer‖. HOBBES, Thomas. Leviatã. (Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva). São Paulo : Martin Claret, 2002. p. 73. contribuíram para a configuração moderna da política como o espaço para a garantia da segurança, dos imperativos da manutenção da vida e da sobrevivência, e não a condição de possibilidade da própria liberdade.161 Fatos que convergiram inexoravelmente para a transformação do espaço público em uma vultosa oikia, com a elevação das atividades privadas ao âmbito público e a respectiva conseqüência das relações econômicas açambarcarem o objeto de debate nos assuntos públicos e no interesse coletivo. O que Arendt propõe é uma política vinculada não à ação entendida como fabricação (onde o fim direto é o produto final saído do processo), onde o agir é menosprezado frente a este fim – útil - ou uma ação vinculada ao processo vital de sobrevivência – necessária - porém uma ação ligada ao virtuosismo próprio da ação (que não objetiva fins que a ultrapassam, sejam os voltados à necessidade no labor, sejam aqueles decorrentes da utilidade do trabalho), sujeita à imprevisibilidade inerente ao agir humano e guiada por princípios que permanecem ao ato. A ação, na medida em que é livre, não se encontra nem sob a direção do intelecto, nem debaixo dos ditames da vontade – embora necessite de 161 Michel Foucault, em resumo do seminário dado no Collège de France entre 1978 e 1978, sob o título de ―Nascimento da biopolítica‖, apresenta as seguintes reflexões sobre o liberalismo, que poderíamos colocar em certa convergência com a abordagem arendtiana: ―(...) Daí o fato de que a crítica liberal não se separa, de jeito algum, de uma nova problemática nova na época, a da ‗sociedade‘: é em nome dela que se vai procurar saber por que é necessário que haja um governo, mas em que se pode privar-se dele, e sobre o que é inútil e prejudicial que ele intervenha. A racionalização da prática governamental, em termos de razão de Estado, implicava sua maximização em condições otimizadas, na medida em que a existência de Estado supõe imediatamente o exercício de governo. A reflexão liberal não parte da existência do Estado, encontrando no governo essa finalidade que ele seria para si mesmo, mas da sociedade que vem a estar numa relação complexa de exterioridade e de interioridade em relação ao Estado. É ela - ao mesmo tempo a título de condição e de fim último – que permite não mais colocar a questão: como governar o mais possível e pelo menor custo possível?, mas esta: por que é preciso governar? Ou seja: o que torna necessário que haja um governo e que fim ele deve ter por meta em relação à sociedade, para justificar sua existência? É a idéia de sociedade que permite desenvolver uma tecnologia de governo a partir do princípio que ele já está em si mesmo ‗em demasia‘, em excesso – ou, pelo menos, que ele vem acrescentar como um suplemento ao qaul se pode e se deve sempre perguntar se é necessário e para que é útil‖. FOUCAULT, Michel. Resumo dos cursos do Collège de France ( 1970-1982). (Tradução Andréa Daher). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997. p. 91. Sobre a questão da ascensão moderna do social, em Arendt, cf., ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Op. cit., p. 47. e ARENDT, Hannah. On revolution. New York, 1963, no seu segundo capítulo. ambos para a execução de um objetivo qualquer – ela brota de algo inteiramente diverso que, seguindo a famosa análise das formas de governo por Montesquieu, chamarei de um princípio. Princípios não operam no interior do eu como fazem os motivos – a ‗minha própria perversidade‘, o meu ‗justo equilíbrio‘ -, mas como que inspiram do exterior, e são demasiado gerais para prescreverem metas particulares, embora todo desígnio possa ser julgado à luz do seu princípio uma vez começado o ato. Pois,ao contrário do juízo do intelecto que precede a ação e do império da vontade que a inicia, o princípio inspirador torna-se plenamente manifesto somente nó próprio ato realizador; e contudo, ao passo que os méritos do juízo perdem sua validade e o vigor da vontade imperante se exaure, no transcurso do ato que executam em colaboração, o princípio que o inspirou nada perde em vigor e em validade através da execução.162 Virtuosismo que liga a ação política, por metáfora, às artes de realização (como o teatro, a dança), à diferença das artes de fabricação (como a pintura), onde o centro está no próprio desempenho e não em um produto final. Liga-se a algo muito próximo àquilo que Maquiavel trata como o campo da virtú, o virtuosismo com que o homem responde às deixas inesperadas da fortuna, sendo a coragem uma das virtudes cardeais da política, em Arendt, no sentido de exigir um desprendimento, o lançar-se para fora dos interesses voltados à vida (da oikia), numa esfera de amor mundi que tem como centro o próprio mundo dos assunto dos humanos. É que este nosso mundo, que existiu antes de nós e está destinado a sobreviver aos que nele vivem, simplesmente não pode se dar ao luxo de conferir primariamente sua atenção às vidas individuais e aos interesses a ela associados; o âmbito político como tal contrasta na formam mais aguda possível como nosso domínio privado, em que, na proteção da família e do lar, tudo serve e deve servir para a segurança do processo vital.163 O que se busca ressaltar nas características da ação é sua possibilidade de quebrar automatismos, trazer o inusitado e o inesperado para situações de congelamento, processos tornados mecanismos autonomizados A verdade é que o automatismo é inerente a todos os processos, não importa qual possa ser sua origem: é por isso que nenhum ato, nenhum evento isolado, podem, jamais, de uma vez por todas, libertar ou salvar um homem, uma humanidade. É da natureza dos processos automáticos a que o homem está sujeito, porém no interior dos quais e contra os 162 163 ARENDT, Hannah. Op. Cit. p .198. ARENDT, Hannah. Op. cit. p. 203 quais se pode firmar através da ação, só poderem significar ruína para a vida humana. Uma vez que processos históricos e artificiais se tenham tornado automáticos, não são menos destruidores que os processos vitais naturais que dirigem nosso organismo e que em seus próprios parâmetros, isto é, biologicamente, conduzem do ser pra o não-ser, do nascimento para a morte.164 A ação, considerada não do ângulo do sujeito que age, mas dos processos automatizados em cujas referências ela surge e cujo automatismo rompe, é considerada um milagre, algo que foge à previsibilidade do mecanismo (do retorno do mesmo), trazendo, em si, a marca da espontaneidade. É inerente à natalidade um emergir factualmente como uma ―improbabilidade absoluta‖ (para o bem ou para o mal), sendo a leveza deste improvável a ―verdadeira trama de tudo o que denominamos de real‖, no que Arendt assevera que ―se é verdade que a ação e começo são essencialmente idênticos, segue-se que uma capacidade de realizar milagres deve ser incluída também na gama das faculdades humanas.‖165 Toda nossa existência se assenta, afinal, em uma cadeia de milagre, para usar desta expressão - o aparecimento da terra, o desenvolvimento da vida orgânica sobre ela, a evolução do gênero humano a partir das espécies animais. Pois, do ponto de vista dos processos do universo e natureza, e de suas probabilidades estatisticamente esmagadoras, a formação de vida orgânica a partir de processos inorgânicos, e finalmente, o aparecimento da terra a partir de processos cósmicos e a evolução do homem a partir dos processos da vida orgânica constituem todos ‗improbabilidades infinitas‘, são milagres na linguagem do dia-a-dia. É em virtude desse elemento miraculoso presente em toda realidade que os acontecimentos por mais que sejam antecipados com temor ou esperança, nos causam comoção e surpresa uma vez se tenham consumado. O próprio impacto de um acontecimento nunca é inteiramente explicável, sua fatualidade transcende em princípio qualquer explicação. A experiência que nos diz que os acontecimentos são milagres não é arbitrária nem artificial; ao contrário, ela é naturalíssima. E quase, na verdade, um trivialidade na vida ordinária. Sem essa experiência, o papel que a religião atribui milagres sobrenaturais seria quase incompreensível.166 Sobre a relação entre política e liberdade e sua conexão direta com a expectativa de milagres que essa correlação traz em sua constituição, lê-se no texto arendtiano, quando instado a perquirir pelos sentidos da política, que, sendo a liberdade o sentido da política, 164 Ibidem. p.217. ARENDT, Hannah. O que é a liberdade?. Op. cit. p. 218. 166 Ibidem. p. 219. 165 (...) então isso significa que nós, nesse espaço e nenhum outro, temos o direito de fato de ter a expectativa de milagres. Não porque acreditemos (religiosamente) em milagres, mas porque os homens, enquanto puderem agir, são aptos a realizarem o improvável e o imprevisível, e realizam-no continuamente, quer saibam disso quer não. A questão de se a política ainda tem da algum modo um sentido remete-nos necessariamente de volta a questão do sentido da política; e isso ocorre exatamente quando ela termina em uma crença nos milagres – e em que outro lugar poderia terminar? 167 E em um dos trechos que poderíamos considerar em correspondência direta com a imagem, de seu amigo Walter Benjamin, da revolução como a interrupção da trajetória do trem da história rumo ao abismo da catástrofe, ou seja, a ação também como um puxar os ―freios de emergência‖, em convergência com o conceito contemporâneo de inoperância, temos um dos mais belos fragmentos dos textos arendtianos, em seu arremate ao ensaio ―O que é a liberdade‖, onde é lançada a seguinte iluminação: A história, em contraposição com a natureza, é repleta de eventos; aqui, o milagre do acidente e da infinita improbabilidade ocorre com tanta freqüência que parece até estranho falar em milagres. Mas o motivo desta freqüência está simplesmente no fato de que os processos históricos são criados e constantemente interrompidos pela iniciativa humana, pelo initium, que é o homem enquanto ser que age. Não é pois, nem um pouco supersticioso, e até mesmo um aviso de realismo, procurar pelo imprevisível e pelo impredizível, estar preparado para quando vierem e esperar ‗milagres‘ na dimensão da política. E, como quanto mais força penderem os pratos da balança em favor do desastre, mais miraculoso parecerá o ato que resulta da liberdade, pois é o desastre e não a salvação que acontece sempre automaticamente e que parece sempre portando irresistível. Objetivamente, isto é, vendo do lado de fora e sem levar em conta que o homem é um início e um iniciador, as possibilidades de que o amanhã seja como o hoje são sempre esmagadoras. Não exatamente tão esmagadoras, é verdade, mas quase tanto como as possibilidades de que não surgisse nunca uma terra dentre as ocorrências cósmicas , de que nenhuma vida se desenvolvesse a partir de processos inorgânicos, e de que não emergisse homem algum da evolução da vida animal. A diferença decisiva entre as ‗infinitas probabilidades sobre as quais se baseia a realidade de nossa vida terrena e o caráter miraculoso inerente aos eventos que estabelecem a realidade histórica está em que, na dimensão humana, conhecemos o autor dos milagres. São os homens que o realizam – homens que, por 167 ARENDT, Hannah. A dignidade da política. Ensaios e conferências. (Tradução André Duarte). Rio de Janeiro : Relume Dumará, p. 122. terem recebido o dúplice dom da liberdade e da ação, podem estabelecer uma realidade que lhes pertence de direito.168 Deslocar, teoricamente, a análise da liberdade moderna entendida enquanto vinculada a um suporte contratual, com a liberdade vista no terreno da ação e da política. Desocultar a kairologia implícita e capturada como necessidade no dispositivo dicotômico do contrato político (e seus pólos estado X sociedade civil, política X liberdade privada), e livrar-se dos automatismos que tomam conta da política institucional do presente, parecem ser as rotas que se colocam nas tentativas de pensar o ocaso do político no mundo contemporâneo, onde se observa o fenecimento de um modelo que sobrevive enquanto dissimulação mística, maquinaria acéfala seguindo (vertiginosamente superior a uma simples locomotiva oitocentista) rumo ao abismo. Giorgio Agamben, na conclusão de seu Homo Sacer I, explicita, como primeira das três teses conclusivas da obra, a proposição de que ―a relação política originária é o bando (o estado de exceção como zona de indistinção entre externo e interno, exclusão e inclusão)‖. Esta tese, para o filósofo, põe em questão as teorias da origem contratual do poder estatal e toda possibilidade de estabelecer um fundamento de pertencimento para as comunidades políticas.169 Deixaremos para enfrentar, mesmo que epidermicamente, o estado de exceção em outro local, porém, na convergência da provocação agambeniana é que se estabelece a premência de ultrapassar tanto a origem contratual do poder político ocidental quanto a ficção de um pertencimento (seja de origem teológica, geográfica ou étnica). Implica, portanto, de certa forma, também desativar a maquinaria nacionalista. É preciso, em nosso tempo, denunciar o vazio constitutivo que toma conta da política tradicional, o grau zero de significado que mantém sua operacionalidade concreta apenas na ficção de referências (o povo, os direitos humanos, o interesse público, a democracia, ad nausean). 168 169 ARENDT, Hannah. O que é a liberdade? Op. cit. p. 220. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 188. É nesse matiz que, no nosso entender, devem ser lidas as recomendações foucaultianas de se abandonar as matrizes jurídicas de soberania para pensar o poder no ocidente.170 Tais matrizes revelam nada mais que o obstar de entulhos que o pensamento é fadado a escavar e abrir clareiras para que não fique preso à obsessiva repetição do mesmo, o mesmo automático de processos que, em sua vigência, fazem-nos desacreditar nos milagres, trazendo a resignação de seu prosaico e cotidiano inexistir. Por outro lado, evidencia-se também preciso abandonar a concepção de poder como sendo uma relação de mando-obediência (como correlata à relação de poder surgida do cano de um revólver). Algo inerente à construção weberiana do poder como sendo ―o domínio do homem pelo homem baseado nos meios da violência legítima, quer dizer, supostamente legítima‖ em um determinado território. Arendt, ao distinguir - em seu opúsculo ―Sobre a violência‖ - os conceitos de poder, violência, vigor e autoridade, vai refutar toda a tradição baseada na concepção do poder como o meio do domínio, que se conecta diretamente com a tradição de contratantes atomizados como pólo distinto de um poder soberano. Poder, para Arendt, possui uma dimensão intersubjetiva e comunicativa (capacidade para agir em conjunto), diretamente relacionado com o conceito de ação e à própria idéia de liberdade, entendendo a violência como um fenômeno instrumental (vinculado à perspectiva do homo faber e sua razão utilitária, sendo distante do campo da ação, o âmbito político) que nada pode legitimar. ―A forma extrema de poder é o Todos contra Um, a forma extrema da 170 ―Para que seja a análise concreta das relações de poder, é preciso abandonar o modelo jurídico da soberania. Esse, de fato, pressupõe o indivíduo como sujeito de direitos naturais ou de poderes primitivos; tem como objetivo das gênese ideal do Estado; enfim, faz da lei a manifestação fundamental do poder. Seria preciso estudar o poder não a partir dos termos primitivos da relação, mas a partir da própria relação, uma vez que é ela que determina os elementos dos quais trata: mais do que perguntar a sujeitos ideais o que puderam ceder deles mesmos ou de seus poderes para se deixar sujeitar, é preciso procurar saber como as relações de sujeição podem fabricar sujeitos‖. FOUCAULT, Michel. ―É preciso defender a sociedade.‖ In: Resumos dos Cursos do Collège de France. Op. cit. p. 71. violência é o Um contra Todos. E essa única nunca é possível sem instrumentos.‖171 A violência tem como expressão maior de sua concreção o caráter instrumental (necessitando, muitas vezes de implementos). Apesar de apresentar similitudes com a força, evidencia-se em uma atividade especificamente humana e se funda na lógica utilitarista de meios e fins. Um elemento de violência, consoante asseverado no conceito de trabalho já apresentado, ocasiona-se inelutavelmente inerente às atividades do fazer, do fabricar, atividades de confronto direto do homem com a natureza, em contraste com a ação e com o discurso, os quais têm como destinatários imediatos outros seres humanos. De maneira que, como já asseveramos, a violência está relacionada com a dimensão do homo faber, e a própria concepção do poder (e do Estado) como invólucro-repositório da violência utilizada para outros fins, fundamenta-se nesta perspectiva. O poder se apresenta como um conceito basilar para realizar uma leitura da idéia de legitimidade implícita no texto arendtiano. Um homem só ou um grupo diminuto de pessoas, sem outros para apoiá-los, nunca terão poder suficiente para usar da violência com sucesso, como nunca existiu, na história da humanidade, por um período de tempo considerável, um governo exclusivamente baseado nos meios de violência. A violência, por seu caráter instrumental, como um meio, sempre depende da justificação para o fim a que almeja (diferentemente do poder, que, em Arendt, necessita de legitimação) e, de certo modo, ―aquilo que necessita de justificação por outra coisa não pode ser a essência de nada.‖172 Pode-se referir, ademais, que o referencial semântico da categoria de poder que prevaleceu na modernidade está também atrelado à localização da liberdade na dimensão do livre-arbítrio e da vontade (e da soberania, v.g., como 171 ARENDT, Hannah. Sobre a violência. (Tradução André Duarte). Rio de Janeiro : Relume Dumará, p. 199. 172 ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Op. cit. p. 22. vontade de poder) no plano da própria tradição de pensamento político ocidental, no que demonstra Arendt ao se contrapor à noção rousseauniana do poder soberano como vontade indivisível: Essa identificação de liberdade com soberania é talvez a conseqüência política mais perniciosa e perigosa da equação filosófica de liberdade com livre-arbítrio. Pois ela conduz à negação da liberdade humana – quando se percebe que os homens, façam o que fizerem, jamais serão soberanos -, ou à compreensão de que a liberdade de um só homem, de um grupo ou de um organismo político só pode ser adquirida ao preço da liberdade, isto é, da soberania, de todos os demais. Dentro do quadro conceitual da Filosofia tradicional, é de fato muito difícil entender como pode coexistir liberdade e não-soberania, ou para expressá-lo de outro modo, como a liberdade poderia ter sido dada a homens em estado de não-soberania. Na verdade, é tão pouco realista negar a liberdade pelo fato da não-soberania humana como é perigoso crer que somente se pode ser livre – como indivíduo o um grupo – sendo soberano. A famosa soberania dos organismos políticos sempre foi uma ilusão, a qual, além do mais, só pode ser mantida pelos instrumentos de violência, isto é, com meios essencialmente não políticos. Sob condições humanas, que são determinadas pelo fato de que não é o homem, mas são os homens que vivem sobre a terra, liberdade e soberania conservam tão pouca identidade que nem mesmo podem existir simultaneamente. Onde os homens aspiram a ser soberanos, como indivíduos ou como grupos organizados, devem se submeter à opressão da vontade, seja esta a vontade individual com a qual obrigo a mim mesmo, seja a ‗vontade geral‘ de um grupo organizado. Se os homens desejam ser livres, é precisamente à soberania que devem renunciar.173 Não entraremos na problemática do poder na teoria política arendtiana, porém é preciso lembrar sua recomendação de que a díade mandoobediência (e todo o vocabulário a ela correlato) deve ser deixada de lado a fim de uma melhor compreensão do horizonte significativo do poder político.174 Argumento que se aproxima dos debates realizados do primeiro capítulo, na medida em que a concepção tradicional de poder e de política (calcada nos parâmetros do homo faber) funda uma concepção específica de ordenamento jurídico (o ordenamento como meio neutro e abstrato de coação visando a fins específicos), que paulatinamente, entretanto, foi atravessado pelas dimensões de um poder entendido no sentido fluidamente pastoral175 e extraviado de dispositivos 173 ARENDT, Hannah. O que é a liberdade? Op. cit. p. 212-214. Cf.: ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Op. cit. Capítulo 2. 175 De certo modo, assistimos no presente uma recuperação (em um sentido espetacularmente majorado e descentrado) do conceito de poder pastoral que Foucault dizia 174 pós-nacionais e dúcteis de regulação jurídico-política (a partir de um núcleo estruturado nos critérios do animal laborans). Novamente uma exigência à teoria do presente, no sentido emergencial de confrontar criticamente estas novas configurações. 2. Procurar captar a política contemporânea é inevitavelmente pensar sua redução à biopolítica (também pensar a política sendo absorvida paulatinamente ao conceito de polícia), exigindo pensar a inscrição da vida nua, matável e insacrificável, nos dispositivos de poder ocidentais. Uma das conclusões tiradas por Arendt de sua obra ―A Condição Humana‖ é a de que a vida, no sentido da zoé entendida pelos gregos (confinada no privatismo do oikos), e todas as implicações trazidas pelos seus critérios, passa a ser disseminada para todas as esferas da condição humana no mundo moderno,176 adquirindo centralidade, v.g., nas dimensões históricas, jurídicas e políticas. Esta é uma das facetas da biopolítica que chega ao presente por intermédio de um hipertrofiado dispositivo espetacular que possui como núcleo nada mais que o processo vital de toda a sociedade (conceito este que passa a ascender na denominação de todo e qualquer coletivo). ter se desenvolvido no Oriente e, principalmente, na sociedade hebraica, porém tendo entrado em crise nos séc. XV e XVI, em processo que acompanhou ―o fim da feudalidade, o nascimento de novas formas de relações econômicas e sociais e as novas estruturações políticas.‖ Sobre os traços gerais deste poder, ressalta o filósofo francês: ―(...) o poder do pastor se exerce menos sobre o território fixo do que sobre uma multidão em deslocamento em direção a um alvo; tem o papel de dar ao rebanho sua subsistência, de cuidar cotidianamente dele e de assegurar sua salvação (...). É esse tipo de poder que foi introduzido no Ocidente pelo cristianismo e que tomou uma forma institucional no pastorado eclesiástico: o governo das almas se constitui na Igreja cristã como uma atividade central e douta, indispensável à salvação de todos e de cada um.‖ FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. In: Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982). Op. cit. p. 82. 176 Evidencia-se preciso alertar para o fato de que Arendt distingue os termos era moderna de mundo moderno, conceitos não coincidentes muitas vezes utilizados indiscriminadamente como equivalentes. Para esta pensadora, cientificamente a era moderna começou no séc. XVII e terminou no limiar do séc. XX; politicamente o mundo moderno surgiu com as primeiras explosões atômicas e se mantém até os dias de hoje. Cf. ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Op. Cit. p. 14. Multidões isoladas cujo único vínculo e mediação está no processo de absorção de suas necessidades metabólicas - e outros aspectos inerentes à própria vida-zoé - por instâncias que, assumindo tais exigências como imperativo, devolvem no entorno (circularmente) elementos que desencadeiam a continuidade acelerada destes mesmos processos: a captura-captação da vida biológica humana na ultra-reprodutibilidade do fetiche tecno-video-digital da imagem; a sacralização cotidiana da vida como tal (como exemplifica Zizek, na ênfase, da contemporânea biopolítica da sobrevivência, no argumento de que hoje não há nada por que valha a pena morrer, sendo o valor mais elevado a continuação da própria vida),177 representada, v.g., na ideologia do politicamente correto (higienizador) da saúde e do corpo em boa forma;178 ou mesmo a busca disseminada de uma bios intrínseca à zoé, seja na publicização de dimensões privadas, exemplificada em reality shows que dão abertura à apresentação, para milhões de telespectadores, de pessoas imersas unicamente nas esferas mais comezinhas da vida privada, v.g., alimentação, relações sexuais, subsistência e exercícios corporais, seja na própria busca de uma bíos que esteja inscrita na imanência da forma de vida animal, muito presente nos movimentos contemporâneo de defesa dos direitos dos animais ou no utilitarismo pseudofilosófico como o de Peter Singer; ou seja, animalização do humano - todo o deslocamento de conceitos como instinto, comportamento, para analisar o 177 ZIZEK, Slavoj; DALY, Glyn. Arriscar o impossível. (Tradução Vera Ribeiro). São Paulo : Martins Fontes, 2006. p. 130. 178 Um aparente paradoxo inscrito nos dispositivos econômicos midiáticos de nosso tempo, que veiculam a provocação repetitiva do ―goze a qualquer preço‖ mas, ao mesmo tempo, ―que seja um gozo em segurança e que não coloque riscos à saúde‖ (a ideologia da domesticação asséptica), algo que - para Zizek - está muito bem representado na proliferação de produtos light, soft, despidos de suas características ―nocivas‖, v.g, café descafeinado, fastfood sem gordura, doces sem açúcar, sexo virtual, o uso da maconha tornado corrente (por se tratar de uma ―droga‖ sem os componentes destruidores da própria droga‖)...etc. Percebe-se, entre as últimas décadas do séc. XX e início do séc. XXI, um ―tempo sem gravidade‖, domesticado, de baixas intensidades, de aparente permissividade representada no gozo, porém um ―gozo‖ desde sempre inserido nas esferas dos simulacros e das simulações. O que não quer dizer que tal mediocridade ―cultural‖ fique apenas restrita à dimensão de um controle interno voltado ao embotamento do pensamento, à pedagogia da obtusidade e à docilidade dos corpos. Tem-se cada vez mais a hipertrofia do outro lado obscuro e perverso desta cultura, exemplificado nas guerras virtuais (a morte em massa e a violência permanente mascarada na sua veiculação pela hiper-indústria do entretenimento) e na própria banalização espetacular da catástrofe. humano (ou, um humano entendido como aquilo que se qualifica frente ao nãohumano extraído de si mesmo), ou mesmo o agir humano simbolicamente reduzido aos aspectos metabólicos – e humanização dos animais; isso permanecendo em alguns exemplos. De certo modo a existência da biopolítica passa a se evidenciar como um truísmo não apenas nos círculos acadêmicos, mas no próprio senso comum das sociedades ocidentais. Por isso, portanto, da urgência de ultrapassar as próprias caricaturas celebratórias do biopolítico da baixa modernidade.179 Deixando o aspecto do imaginário cotidiano para adentrar na dimensão da própria estrutura intrínseca da política ocidental (não que não estejam conectados, porém a segunda exige procedimentos mais acurados de análise), evidencia-se imperioso abordar, na rota da análise agambeniana, a inscrição da chamada vida nua nos cálculos do poder ocidental. A zoé, na forma em que era entendida na antiguidade grega, vista como a dimensão da vida intrinsecamente relacionada às dimensões biológicas ou orgânicas, era atinente à caracterização da condição humana apenas ao estrito aspecto da vivência, ou seja, o fato de que os seres humanos compartilhariam com os animais o aspecto de também estarem corporalmente no mundo, tendo que cumprir implicações e exigências biológicas da vida enquanto tal, simples dimensão biológica. Porém, pode-se falar propriamente que caberia, helenicamente, ao estar-no-mundo humano uma vida qualificada, como plus ao aspecto da vivência, pelo entendimento, principalmente, de que os seres humanos possuiriam uma vida intrinsecamente qualificada pela linguagem. Aristóteles irá diferenciar três formas de vida (bios) qualificada: a bíos theoretikos ou bios xénicos180 (relacionada à vida contemplativa do filósofo, a 179 Tal postura celebratória pode ser encontrada em certos matizes, por exemplo, em Toni Negri, no conjunto de textos intitulado Exílio. Cf. NEGRI, Toni. Exílio. (Tradução Ana Teixeira). São Paulo : Iluminuras, 2001. 180 Em relação ao uso do termo xênicos, relacionado a estrangeiro, como adjetivo específico da atividade do filósofo, Hannah Arendt lembra que Aristóteles foi o único grande filósofo cônscio dessa condição de não se ter um lar como própria à atividade de pensar. O Estagirista louvava o bios xénicos porquanto desnecessita de ―implementos ou lugares bíos apolausticós (a vida dedicada ao prazer) e principalmente uma bíos políticos (uma vida qualificada pelo agir político), espaço onde as ações poderiam ser diferenciadas entre justas e injustas, virtuosas ou não virtuosas, etc.181 Giorgio Agamben, em seu Homo sacer I, irá argumentar que a biopolítica ocidental já tem seus germes depositados nesse período, pelo simples fato desta bíos política ter em seu interior inscrita a própria zoé. Ou melhor, a biós entendida como um suplemento desde sempre anexado ao suporte da zoé, a zoé sendo incluída na polis através de sua exclusão (ex-capere, captura de fora). Agambenianamente falando, a cisão constitutiva do político - ou da política ocidental - já está calcada nesta estrutura. Tal cisão, corporificada no nexo entre vida nua e política, é exemplificada pelo filósofo italiano na articulação entre phoné e lógos (a passagem da voz à linguagem), ou seja, na definição metafísica do homem como ―vivente que possui a linguagem‖. A pergunta: ‗de que modo o vivente possui a linguagem?‘ corresponde exatamente àquela outra: ‗de que modo a vida nua habita a polis?‘ O vivente possui o lógos tolhendo e conservando nele a própria voz, assim como ele habita a pólis deixando excluir dela a própria vida nua. A política então se apresenta como a estrutura, em sentido próprio fundamental, da metafísica ocidental, enquanto ocupa o limiar em que se realiza a articulação entre ser vivente e o lógos. A ‗politização‘ na vida nua é a tarefa metafísica por excelência, na qual se decide da humanidade do vivente homem, e, assumindo esta tarefa, a modernidade não faz mais do que declarar a própria fidelidade à estrutura essencial da especiais para se realizar; em qualquer lugar da terra onde alguém se devote ao pensamento, ele atingirá a verdade onde quer que esteja, como se ela estivesse presente‖. Em Aristóteles, novamente citado por Arendt, os filósofos amam esse ―lugar nenhum‖ como o seu país (philocorein), onde se preserva o scholazein (o não fazer nada), vivendo-se apenas a ―doçura inerente ao próprio pensar ou filosofar‖. Cf. ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. Op. cit. p. 151. 181 ―A natureza, como se afirma frequentemente, não faz nada em vão, e o homem é o único animal que tem o dom da palavra. E mesmo que a mera voz sirva para nada mais que uma indicação de prazer ou de dor, e seja encontrada em outros animais (uma vez que a natureza deles inclui apenas a percepção de prazer ou de dor, a relação entre elas e não mais que isso), o poder da palavra tende a expor o conveniente e o inconveniente, assim como o justo e o injusto. Essa é uma característica do ser humano, o único a ter noção do bem e do mal, da justiça e da injustiça. E é a associação dos seres que têm uma opinião acerca desses assuntos que faz uma família ou uma cidade‖. Aristóteles. A Política. (Tradução Terezinha M. Deutsch e Baby Abrão). In: Aristóteles. Coleção os Pensadores. São Paulo : Nova Cultural, 2004. p. 164. metafísica. A dupla categorial fundamental da política ocidental não é aquela amigo-inimigo, mas a vida nua-existência política, zoé-bíos, exclusão-inclusão. A política existe porque o homem é o vivente que, na linguagem, separa e opõe a si a própria vida nua e, ao mesmo tempo, se mantém em relação com ela numa exclusão-inclusiva.182 A figura da vida nua (bloβ Leben), conceito extraído por Agamben de Walter Benjamin, ou da zoé, em termos gregos, politicamente indiferente no Antigo Regime e confinada ao limites do oikos na Grécia Antiga, será inscrita no núcleo de fundamentação do moderno Estado-nação, representando, para Agamben, ―o local em que se efetua a passagem da soberania régia de origem divina à soberania nacional.‖183 O simples fato do nascimento dos seres humanos passa a ser considerado o nexo de pertencimento fundamental às comunidades políticas do ocidente, o porquê da proliferação das metáforas nativas (nacional, nacionalismo, natural de), para referir-se à cidadania moderna (e como adjetivação do seu próprio modelo de Estado), ―le principe de toute souverainneté réside essentiellementdans la nation‖, lê-se no artigo 3º da Déclaration des droits de l‟homme et du citoyen.184 182 16. 183 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Op. cit. pp. 15- AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 135. De certo modo, mesmo a antropogeografização do Estado europeu moderno, ocorrida no período decimonônico, não deixa de estar conectada com os princípios da natividade, da vida entendida como centro da política, já inscrita nos moldes da declaração francesa de 1789. Observa-se, na Europa - a partir das análises de Richard Sennett - a elevação de aspectos antropológicos específicos (algo que a metáfora do Volkgeist tentou exprimir), e mesmo geográficos, a elementos políticos de primeira grandeza. Cita Sennett que, ―en 1848, la idea de la nación como un códice político fue rechazada por los nacionalistas revolucionarios en la medida en que creían, contrariamente, que una nación se fundaba en la costumbre, en los hábitos e leyes no escritas del Volk; la comida de un pueblo, su manera de bailar, los dialectos que habla, las formas de sus oraciones, serían los elementos constituyentes de la vida de la nación. Ni la ley pude legislar sobre los placeres de la comida ni las constituciones pudem ordenar una creencia en ciertos santos: es decir, el poder no puede producir cultura. La douctrina del nacionalismo que cristaliza en 1848 proporciona un imperativo geográfico al concepto de cultura: hábitos, fe, placeres, ritual, todo se vincula y se funda en un territorio particular. Más aún, quienes sustentan esos rituales sono gentes del mismo lugar, que se entinenden entre sí sin necessitar explicaciones. El territorio, entonces, se vuelve sinônimo de identidad. (...) Esta imagen antropológica del Volk constituye un acontecimiento de época en la imaginería y la retórica sociales modernas. El nacionalismo del siglo XIX establece lo que podemos considerar la regla fundamental moderna de la identidad. La identidad es tanto más fuerte cuanto no se es consciente de ‗tenerla‘, simplemente se es. (...) Em mismo sentido, um estado moderno puede también obtener benefícios de esa virtud antropológica. Sus instituciones pueden verse legitimadas como reflejos del impulso popular 184 Não se pode olvidar que o sintagma nazista ―Blut und Boden”, enunciado por Rosenberg, está, de certo modo, estruturado numa fórmula que obscuramente se assemelha aos dois principais critérios identificadores da cidadania nos Estados-nação modernos (definidos na própria tradição jurídica ocidental): o jus soli e o jus sanguinis.185 Nesse sentido, a passagem constitutivamente moderna, referida por Agamben, de uma soberania régia a uma soberania nacional, está calcada principalmente no conceito moderno de direitos humanos, ou melhor, as principais declarações de direitos humanos nada mais representam que inscrições da nuta vita no cerne do Estado-nação ocidental. (...) é chegado o momento de cessar de ver as declarações de direitos como proclamações gratuitas de valores eternos metajurídicos, que tendem (na verdade sem muito sucesso) a vincular o legislador ao respeito pelo princípio éticos eternos, para então considera-las de acordo com aquela que é sua função histórica real na formação do Estadonação. As declarações dos direitos representam aquela figura original da inscrição da vida natural na ordem jurídico-política do Estado-nação. Aquela vida nua natural que, no antigo regime, era politicamente indiferente e pertencia, como fruto da criação, a Deus, e no mundo clássico era (ao menos em aparência) claramente distinta como zoé da vida política (bíos), entra agora em primeiro plano na estrutura do estado e torna-se aliás o fundamento terreno de sua legitimidade e de sua 186 soberania. antes que como construcciones problemáticas sometidas a un debate permanente.‖ SENNET, Richard. El extranjero. In: Punto de Vista. nº 51. Buenos Aires, 1995. p. 41. Seguindo nessa mesma rota de análise, a vinculação da idéia de povo ao suporte vazio de uma identidade estatal traz, no esfacelamento contemporâneo da própria estatalidade, paradoxos como o fato do próprio conceito de povo não poder subsistir se não implicado na recodificação da cidadania estatal, como nos exemplos, citados por Agamben, das grandes potências mundiais utilizarem da guerra para defender um Estado sem povo (o Kwait) ao mesmo tempo em que povos sem Estado (v.g., kurdos, armênios, palestinos) são massacrados impunemente. Exemplos que pode ser retirado também das línguas sem dignidade estatal, tratadas pelos lingüistas como línguas, que não obstante acabam sendo analisadas (em termos geopolíticos) como meros dialetos e têm, na maioria dos casos, significações políticas diretas para sua comunidade de falantes, ou seja, a expressão do idioma carregando consigo também uma dimensão política (ex. catalão, basco, gaélico). Cf. AGAMBEN, Giorgio. Moyens sans fins. Op. cit. pp. 23-26. 185 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 136. 186 AGAMBEN, Giorgio Homo sacer. Op. cit. p. 134; Cf. Também: AGAMBEN, Giorgio. Política del exilio. (Tradução Dante Bernardi) In: Archipielago, nº 26-27, Barcelona, 1996. pp.41-52. Partindo do texto citado, boa parte da controvérsia entre Agamben e Arendt sobre a localização na vida nua na Grécia Antiga está no comentário, aparentemente prosaico, ―ao menos em aparência”, sobre a hipótese de ser a zoé claramente distinta da pólis no contexto Tal inscrição se revela de forma exemplar na questão dos refugiados, ou dos apátridas, no contexto pré-segunda guerra mundial. Pela primeira vez na história se vê a aparição do ―homem dos direitos‖, indivíduos sem nenhum vínculo com Estados nacionais e tendo exclusivamente como pertencimento mundano apenas suas vidas, a vida sem máscaras. Esta aparição, segundo Arendt, não deixa de representar uma manifestação macabra, porquanto totalmente atrelada ao que se seguiu no contexto do Terceiro Reich nazista, a solução final então intitulada (campos de concentração, produção em massa de morte e descartes). Ou seja, a desnacionalização como etapa prévia aos procedimentos realizados pelos movimentos totalitários do período. Para Arendt, aquele que deveria encarnar o ―homem dos direitos‖ o indivíduo que, pelo simples fato do nascimento, teria de ver preservados seus direitos humanos enumerados, v.g., na solene Déclaration des droits de l‟homme et du citoyen - o refugiado, o apátrida, estabelece uma fissura, ou o próprio estilhaçamento da estrutura intrínseca do paradigma do Estado-nação (como descrito no último capítulo destinado à questão do Imperialismo, intitulado ―O declínio do Estado-nação e o fim dos direitos do Homem‖, em ―As origens do Totalitarismo‖), porquanto demonstra que tais direitos, diferentemente de serem a priori a-históricos, não podem ser pensados na independência de um aparato estatal, e quando estes aparatos demonstram total inaptidão para defendê-los, ambas as categorias (Estado nação e direitos humanos) entram em uma situação de esfumaçamento que tende a levá-las seja ao declínio, seja ao seu próprio fim. Com o surgimento das minorias da Europa oriental e meridional e com a incursão dos povos sem Estado na Europa central e ocidental, um elemento de desintegração completamente novo foi introduzido na Europa do após-guerra. A desnacionalização tornou-se uma poderosa arma da política totalitária, e a incapacidade constitucional dos Estadosnações europeus de proteger os direitos humanos dos que haviam perdido os seus direitos nacionais permitiu aos governos opressores da Grécia antiga. Comentário nem um pouco gratuito e que releva boa parte da implicações e da particularidade do pensamento de Agamben na revisão dos fundamentos mesmos dos conceitos constitutivos da política ocidental. impor sua escalada de valores até mesmo sobre os países oponentes. Aqueles a quem haviam escolhido como refugo da terra – judeus, trotskistas, etc. – era realmente recebidos como o refugo da terra em toda parte; aqueles a quem a perseguição havia chamado de indesejáveis tornaram-se de fato os indésirables da Europa. O jornal oficial da SS, o Schwartze Korps, disse explicitamente em 1938 que, se o mundo ainda não estava convencido de que os judeus eram o refugo da terra, iria convencer-se tão logo, transformados em mendigos sem identificação, sem nacionalidade, sem dinheiro e sem passaporte, esses judeus começassem a atormenta-los em suas fronteiras. E o fato é que esse tipo de propaganda factual funcionou melhor que a retórica de Goebbels, não apenas porque fazia dos judeus o refugo da terra, mas também porque a incrível desgraça do número crescente de pessoas inocentes demonstrava na prática que eram certas as cínicas afirmações dos movimentos totalitários de que não existiam direitos humanos inalienáveis, enquanto as afirmações das democracias em contrário revelam hipocrisia e covardia ante a cruel majestade de um mundo novo. A própria expressão ‗direitos humanos‘ tornou-se para todos os interessados – vítimas, opressores e espectadores – uma prova de idealismo fútil ou de tonta e leviana hipocrisia.187 Pode-se afirmar, a partir do referencial arendtiano, que a figura do apátrida - e de sua conseqüente exceptio concreta à normalidade jurídica - tornase disseminada a partir do final da primeira guerra mundial.188 Tal exceção à normalidade pode ser representada na condição paradoxal de que muitas vezes, para um refugiado, a condição de criminoso - o fato de ter cometido ou vir a cometer um pequeno furto, por exemplo - poder representar uma melhor condição jurídica, ou mais adequadamente, a própria inclusão na normalidade jurídica (dada através de uma infração).189 187 ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. (Tradução Roberto Raposo). São Paulo: Cia. das Letras, 1989. p. 302. 188 ―Muito mais persistentes na realidade e muito mais profundas em suas conseqüências têm sido a condição de apátrida, que é o mais recente fenômeno de massas da história contemporânea, e a existência de um novo grupo humano, em contínuo crescimento, constituído de pessoas sem Estado, grupo sintomático do mundo após a Segunda Guerra Mundial. A culpa da sua existência não pode ser atribuída a um único fator, mas, se considerarmos a diversidade grupal dos apátridas, parece que cada evento político, desde o fim da Primeira Guerra Mundial, inevitavelmente acrescentou uma nova categoria aos que já viviam fora do âmbito da lei, sem que nenhuma categoria, por mais que se houvesse alterado a constelação original, jamais pudesse ser devolvida à normalidade.‖ ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Op. cit. p. 310. 189 ―A melhor forma de determinar se uma pessoa foi expulsa do âmbito da lei é perguntar se, para ela, seria melhor cometer um crime. Se um pequeno furto pode melhorar sua posição legal, pelo menos temporariamente, podemos estar certos de que foi destituída de direitos humanos. Pois o crime passa ser, então, a melhor forma de recuperação de certa Por outro lado, a falência do modelo de direitos humanos inseridos no ocidente através das principais declarações internacionais - fica explícita na excisão cada vez maior entre o direito do cidadão e o direitos do homem, bipolaridade já inscrita na declaração de direitos francesa - declaração dos direitos do homem e do cidadão – não ficando claro se ―os dois termos denominam duas realidades autônomas ou formam em vez disso um sistema unitário, no qual o primeiro já está desde o início contido e oculto no segundo; e neste caso, que tipo de relações existe entre eles.‖190 Debates antes relegados às antropologias filosóficas, distantes de serem considerados problemas políticos, as perguntas pelo ―ser francês, alemão, brasileiro, etc.‖ passam a redefinir a política moderna - e a própria política passa também a redefinir constantemente estes pertencimentos. Esta função demarcatória se tornou política par excellence, de modo até então inaudito, no nacional-socialismo (no sentido de que ele estabeleceu como problema político fundamental a busca de uma resposta à pergunta ―o que é ser alemão?‖), de forma que, para Agamben Fascismo e nazismo são, antes de tudo, uma redefinição das relações entre o homem e o cidadão e, por mais que isto possa parecer paradoxal, eles se tornam plenamente inteligíveis somente se situados sobre o pano igualdade humana, mesmo que ela seja reconhecida como exceção à norma. O fato – importante – é que a lei prevê essa exceção. Como criminoso, mesmo um apátrida não será tratado pior que outro criminoso, isto é, será tratado como qualquer pessoa nas mesmas condições. Só como transgressor da lei pode o apátrida ser protegido pela lei. Enquanto durem o seu julgamento e o pronunciamento da sentença, estará a salvo daquele domínio arbitrário da polícia, contra o qual não existem advogados nem apelações. O mesmo homem que ontem estava na prisão devido à sua mera presença no mundo, que não tinha quaisquer direitos e vivia sob ameaça de deportação, ou era enviado sem sentença e sem julgamento para algum tipo de internação por ter tentado trabalhar e ganhar a vida, pode tornar-se quase um cidadão completo graças a um pequeno roubo. Mesmo que não tenha um vintém, pode agora conseguir um advogado, queixar-se contra os carcereiros, e ser ouvido com respeito. Já não é o refugo da terra: é suficientemente importante para ser informado de todos os detalhes da lei sob a qual será julgado.‖ ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Op. cit. p. 320. Entretanto a própria situação dos campos de concentração ou mesmo, num exemplo atual, como Guantánamo ou outros não-lugares biopolíticos contemporâneos de total alheamento à normalidade jurisdicional dos Estados-nações, já poria em xeque mesmo esta possibilidade de inclusão antevista no exemplo de Arendt. 190 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 132. de fundo biopolítico inaugurado pela soberania nacional e pelas declarações de direitos.191 Em afinidade eletiva com a fratura entre cidadão e nacional, visualiza-se também a dissociação - que a atual política dos direitos humanos levanta como mote de atuação - entre o político e o humanitário. Para a Agamben, esta separação é sintoma de uma (...) fase extrema do descolamento entre direitos do homem e os direitos do cidadão. As organizações humanitárias, que hoje em número crescente se unem aos organismos supranacionais, não podem, entretanto, em última análise, fazer mais do que compreender a vida humana na figura da vida nua ou da vida sacra, e por isto mesmo mantém consigo a contragosto uma secreta solidariedade com as forças que deveriam combater.192 O que a imagem do refugiado traz consigo, na leitura de Agamben a partir do referencial arendtiano, é a própria manifestação - nem que seja por átimos históricos - da ficção originária da soberania moderna, porquanto os refugiados rompem a ―continuidade entre homem e cidadão, entre nascimento e nacionalidade‖, fazendo surgir na ―cena política aquela vida nua que constitui seu secreto pressuposto.‖193 Os apátridas ou refugiados exibem à luz dos fatos os resíduos entre nascimento e nação, uma descontinuidade (torção) inquietante à estrutura do próprio Estado-nação moderno. Nesse sentido, para Agamben, Es preciso separar netamente los conceptos de refugiado, exiliado, apátrida del de ―derechos humanos‖ y tomar em serio las tesis de H. Arendt, quien ligaba la suerte de los derechos a la de la Nación-Estado, de modo que el ocaso de ésta supone el decaimiento de aquéllos. El refugiado y el exiliado deben considerarse por lo que son, es decir, ni más ni menos que un concepto límite que pone en crisis radical las categorías fundamentales de la Nación-Estado, desde el nexo nacimiento-nación hasta el de hombre-ciudadano, y que por lo tanto permite despejar el camino hacia una renovación de categorías ya improrrogable, que cuestiona la misma adscripción de la vida al ordenamiento jurídico.194 A metáfora operativa que Giorgio Agamben usará para pensar a inscrição da vida nua nos cálculos ocidentais de poder fundados na estatalidade e 191 Ibidem. p. 137. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 140. 193 Ibidem. p. 138. 194 AGAMBEN, Giorgio. Política del exílio. (Tradução de Dante Bernardi) In: Archipielago, nº 26-27, Barcelona, 1996. p. 47. 192 na noção, a esta vinculada, de soberania, será o antigo e obscuro conceito, extraído do direito romano arcaico,195 homo sacer. Agamben investiga a figura enigmática do sacer, apontando que ela concentra em si traços aparentemente contraditórios. Considerado o resultado da pena mais antiga do direito criminal romano que, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que sancionava a sacralidade de uma pessoa, determinava também sua matabilidade, i.e., tornava impunível o homicídio realizado contra esta. Portanto, aquele que qualquer um poderia matar impunemente não poderia ser levado à morte nos meios e formas sancionados pelo rito. Tem-se aí o caráter dúplice do homo sacer, matável e insacrificável. Os homini sacri localizam-se numa zona de indiferenciação, fora do espaço jurídico e ao mesmo tempo capturados por ele. Agamben irá defrontar-se com parte da tradição antropológica que vincula o aspecto da sacralidade ao da ambivalência ou da ambigüidade (o debate sobre o tabu: concomitantemente impuro e sacro, fasto e nefasto, divino e profano), que tem a composição mais acabada em ―Totem e tabu‖ de Freud.196 O homo sacer, para o filósofo italiano, 195 ―Festo, no verbete sacer mons do seu tratado Sobre o significado das palavras, conservou-nos a memória de uma figura do direito romano arcaico na qual o caráter da sacralidade liga-se pela primeira vez a uma vida humana como tal. Logo após ter definido o monte sacro, que a plebe, no momento de sua secessão, havia consagrado a Júpiter, ele acrescenta: At homo sacer is est, quem populus iudicavit ob maleficium; neque fas este eum immolari, sed qui occidit, parricid non damnatur; nam lege tribunicia prima cavetur „si quis eum, qui eo plebei scito sacer sit, occiderit, parricida ne sit.‟ Ex quo quivis homo malus atque improbus sacer appelari solet.‖ (―Homem sacro é, portanto, aquele que o povo julgou por um delito; e não é lícito sacrifica-lo, mas quem o mata não será condenado por homicídio; na verdade, na primeira lei tribunícia se adverte que ‗se alguém matar aquele que por plebiscito é sacro, não será considerado homicida‘. Disso advém que um homem considerado malvado ou impuro costuma ser chamado sacro.‖). AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 77. 196 ―Tabu é um termo polinésio. É difícil para nós encontrar uma tradução para ele, desde que não possuímos mais o conceito que ele conota. A palavra era ainda corrente entre os antigos romanos, cujo ‗sacer‘ era o mesmo que o ‗tabu‘ polinésio. Também o ‗ayos‘, dos gregos, e o ‗kadesh‘ dos hebreus devem ter tido o mesmo significado expressado em ‗tabu‘ pelos polinésios e, em termos análogos, por muitas outras raças da América, África (Madagascar) e da Ásia Setentrional e Central. O significado de ‗tabu‘, como vimos, diverge em dois sentidos contrários. Para nós, por um lado, significa ‗sagrado, ‗consagrado‘, e, por outro, ‗misterioso, ‗perigoso‘, ‗proibido‘, ‗impuro‘. O inverso de ‗tabu‘ em polinésio é ‗noa‘, que significa ‗comum‘, ou geralmente ‗acessível‘. Assim, ‗tabu‘ traz em si o sentido de algo inabordável, sendo principalmente expresso em restrições e proibições. Nossa acepção de ‗temor sagrado‘ muitas vezes pode coincidir em significado com ‗tabu‘.‖ Cf. FREUD, representa um conceito limite do ordenamento romano, que dificilmente pode ser pensado satisfatoriamente no quadro de referências do jus divinum e do jus humanum, porém pode permitir abrir clareiras com vistas ao esclarecimento de seus recíprocos locais e limites.197 Aquilo que define a condição do homo sacer, então, não é tanto a pretensa a ambivalência originária da sacralidade que lhe é inerente, quanto sobretudo o caráter particular da dupla exclusão em que se encontra preso e da violência à qual se encontra exposto. Esta violência – a morte insancionável que qualquer um pode cometer em relação a ele – não é classificável nem como sacrifício e nem como homicídio, nem como execução de uma condenação e nem como um sacrilégio. Subtraindo-se às formas sancionadas do direito humano e divino, ela abre uma esfera do agir humano que não é a sacrum facere e nem a da ação profana, e que se trata aqui de tentar compreender.198 O homo sacer simboliza uma esfera do agir humano que se relaciona politicamente apenas a partir da exceção, aí sua simetria com soberano que suspende a lei no estado de exceção e assim vincula esta vida matável e insacrificável nos dispositivos de poder. De forma que Devemos perguntar-nos, então, se as estruturas da soberania e da sacratio não sejam de algum modo conexas e possam, nesta conexão, iluminar-se reciprocamente. Podemos, aliás, adiantar a propósito uma primeira hipótese: restituído ao seu lugar próprio, além tanto do direito penal quanto do sacrifício, o homo sacer representaria a figura originária da vida presa no bando soberano e conservaria a memória da exclusão originária através da qual se constituiu a dimensão política. O espaço político da soberania ter-se-ia constituído, portanto, através de uma dupla exceção, como uma excrescência do profano no religioso e do religioso no profano, que configura uma zona de indiferença entre sacrifício e homicídio. Soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é matável e insacrificável, é a vida que foi capturada nesta esfera.199 Analisaremos no último capítulo a vinculação desta vida sacra ao bando soberano no dispositivo da exceção fictícia, buscando delinear de uma melhor forma as implicações do pensamento de Giorgio Agamben no desnudamento desta questão. Porém, é preciso asseverar, nesse ponto da Sigmund. Totem e tabu. (Tradução Órizon Carneiro Muniz). Rio de Janeiro: Imago, 1999. p. 28. 197 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 81. 198 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 90. 199 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. pp. 90-91. análise, que a partir da configuração do sacer é que poderá ser descortinada uma rota para pensar a politização da vida operada no horizonte da modernidade jurídico-política ocidental, conectando-nos (de forma nuclear) com a redução da política à biopolítica no ocidente. Conforme visto no debate sobre os direitos humanos, pode-se visualizar que, no mesmo processo em que se vincula (nos objetivos de tutela) a vida dos indivíduos a um poder soberano, tem-se, como face obscura e implícita, a entrega destas mesmas vidas a um poder ilimitado de vida e morte (―Soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício” , nas palavras de Agamben). A sacralidade da vida que se tenta opor, a todo custo, contra a sua cotidiana supressão (seja em um campo de concentração do séc. XX, em um ―não-lugar‖ biopolítico como Guantánamo ou mesmo nas cotidianas mortes em acidentes rodoviários) – fulcrada de forma solene na bandeira dos inalienáveis direitos humanos – nada mais representa que a sacralidade-matabilidade modelada nos termos da figura do homo sacer. Agamben exemplifica tal abordagem na sua reflexão sobre o habeas corpus: O que emerge à luz, das solitárias, para ser exposto apud Westminster é, mais uma vez, o corpo do homo sacer, é mais uma vez uma vida nua. Esta é a força e, ao mesmo tempo, a íntima contradição, da democracia moderna: ela não faz abolir a vida sacra, mas a despedaça e dissemina em cada corpo individual, fazendo dela a aposta em jogo no conflito político. Aqui está a raiz de sua secreta vocação biopolítica: aquele que se apresentará mais tarde como o portador dos direitos e, com um curioso oximoro, como o novo sujeito soberano (subiectus superaneus, isto é, aquilo que está embaixo e, simultaneamente, mais ao alto) pode constituir-se como tal somente repetindo em si a exceção soberana e isolando em si mesmo corpus, a vida nua.200 E no argumento que poderia sintetizar boa parte do horizonte explanatório do debate deste item, lê-se, em conclusão, que ―corpus é um ser bifronte, portador tanto da sujeição ao poder soberano quanto das liberdades individuais.‖201 200 201 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 130. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 130. Se algo caracteriza, portanto, a democracia moderna em relação à clássica, é que ela se apresenta desde o início como uma reivindicação e uma liberação da zoé, que ela procura constantemente transformar a mesma vida nua em forma de vida e de encontrar, por assim dizer, o bíos da zoé. Daí, também, a sua específica aporia, que consiste em querer colocar em jogo a liberdade e a felicidade dos homens no próprio ponto – a ‗vida nua‘ – que indicava a sua submissão. Por trás do longo processo antagonístico que leva ao reconhecimento dos direitos e das liberdades formais está, ainda um vez, o corpo do homem sacro com seu duplo soberano, sua vida insacrificável e, porém, matável. Tomar consciência dessa aporia não significa desvalorizar as conquistas e as dificuldades da democracia, mas tentar de uma vez por todas compreender porque, justamente no instante que parecia haver definitivamente triunfado sobre seus adversários e atingido seu apogeu, ela se revelou inesperadamente incapaz de salvar de uma ruína sem precedentes aquela zoé a cuja liberação e felicidade havia dedicado todos os seus esforços.202 Esta politização - o imbricar-se da zoé no centro do poder nacional baseado no Estado - já havia sido notada por Michel Foucault, em sua história da sexualidade, mais precisamente em ―A vontade de saber‖, em trecho, v.g., constantemente repetido por Agamben: ―Por milênios, o homem permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivente e, além disso, capaz de existência 202 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 17. Em convergência com esta estrutura da biopolítica (de seu tomar para si a tutela da zoé) tem-se cada vez mais aprofundada a absorção semântica do conceito de política pelo de polícia. ―Distinguindo entre política (Politik) e polícia (Polizei), von Justi conferia à primeira uma atribuição meramente negativa (a luta contra os inimigos externos e internos do Estado) e à segunda uma atribuição positiva (a tutela e o crescimento da vida dos cidadãos).Não se compreende a biopolítica nacional-socialista (e, com ela, boa parte da política moderna, mesmo fora do terceiro Reich) se não se entende que ela implica o desaparecimento da distinção entre os dois termos: a polícia torna-se então política, e a tutela da vida coincide com a luta contra o inimigo.‖ AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 154. Antes de Agamben, temos as análises realizadas no seminário ―Segurança, território, população‖, feitas por Foucault entre 1977 e 1978, postulando importantíssimas advertências no sentido de que a emergência do conceito de polícia (dada no séc. XVIII) deve ser reinscrita em um contexto de diretrizes biopolíticas: ―O seminário a alguns dos aspectos daquilo que os alemães chamaram, no séc. XVIII, a Polizeiwissenschaft: a teoria e a análise de tudo aquilo que ‗tende a afirmar a aumentar a potência do Estado, a fazer bom emprego d suas forças, a procurar a felicidade de seus súditos‘ e, principalmente, ‗a manutenção da ordem e da disciplina, os regulamentos que tendem a lhes tornar a vida cômoda e a lhes dar aquilo que necessitam para a subsistência. (...) O desenvolvimento, a partir da segunda metade do século XVIII daquilo que foi chamado Medizinische Polizei, Hygiène publique, social medecine, deve ser reinscrito nos quadros de uma ‗biopolítica‘, que tende a tratar a ‗população‘ com um conjunto de seres vivos e coexistentes, que apresentem traços biológicos e patológicos particulares, e que, por conseguinte, dizem respeito a técnicas e saberes específicos. E a própria ‗biopolítica‘ deve ser compreendida a partir de um tema desenvolvido desde o séc. XVII: a gestão das forças estatais.‖ FOUCAULT. Michel. Segurança, território, população. Op. cit. pp. 85-86. política; o homem moderno é um animal em cuja política está em questão a sua vida de ser vivente.‖203 Todavia, segundo Agamben, resta uma incompletude no conceito de biopolítica em Foucault, em decorrência do filósofo francês não ter transferido suas análises para os mecanismos dos grandes Estados totalitários dos novecentos (―o local por excelência da biopolítica moderna‖),204 centrando-se, por exemplo, na escavação crítica de prisões e hospitais, porém deixando de lado os campos de concentração. Assim como, as indagações de Arendt sobre o totalitarismo guardariam uma lacuna por não contemplarem também uma perspectiva biopolítica205 (algo mantido, em sentido contrário, em seus estudos posteriores, evidenciados principalmente no capítulo sobre o labor - em ―A condição humana‖, de 1958 - que, apesar de não utilizarem a alcunha biopolítica, tocam muito próximo o solo teórico que posteriormente este significante tentará circunscrever, porém não retomam os estudos anteriores sobre o totalitarismo, pelo menos em nosso entendimento). Tem-se em Agamben, após sua leitura de Foucault e Arendt (para ele, ―os dois estudiosos que pensaram talvez com mais acuidade o problema político de nosso tempo‖),206 principalmente nos locais em que estes silenciam, a proposta de que será com o conceito de vida nua que sua teoria fará convergirem os dois pontos de vista. Neste conceito, 203 Cf. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I. A vontade de saber. 17ª ed. (Tradução Maria Tereza C. Albuquerque; J.A. Albuquerque). Rio de Janeiro : Graal, 2006. 204 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 123. 205 ―Arendt percebe com clareza o nexo ente domínio totalitário e aquela particular condição de vida que é o campo (‗O totalitarismo – ela escreve em um Projeto de pesquisa sobre os campos de concentração que permaneceu infelizmente sem seguimento – ‗tem como objetivo último a dominação total do homem. Os campos de concentração são laboratórios para a experimentação do domínio total, porque, a natureza humana sendo o que é, este fim não pode ser atingido senão nas condições extremas de um inferno construído pelo homem‖: Arendt, 1994, p. 240); mas o que ela deixa escapar é que o processo é, de alguma maneira, inverso, e que precisamente a radical transformação da política em espaço da vida nua (ou seja, em um campo) legitimou e tornou necessário o domínio total. Somente porque em nosso tempo a política se tornou integralmente biopolítica, ela pôde constituir-se em proporção antes desconhecida como política totalitária.‖ AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. 126. 206 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. Cit. 126. (...) o entrelaçamento entre de política e vida tornou-se tão íntimo que não se deixa analisar com facilidade. À vida nua e aos seus avatar no moderno (a vida biológica, a sexualidade, etc.) é inerente uma opacidade que é impossível esclarecer sem que se tome consciência de seu caráter político; inversamente, a política moderna, uma vez que entrou em íntima simbiose com a vida nua, perde a inteligibilidade que nos parece ainda caracterizar o edifício jurídico-político da política clássica.207 Pode-se tirar uma conclusão provisória a partir dos textos de Agamben. Para este filósofo, o fundamento constitutivo da biopolítica ocidental centra-se na tentativa de separar, de clivar, uma zoé de uma bíos, uma dimensão inumana do próprio humano (uma vida humana matável que não pode ser colocada nos ritos específicos de supressão sacrificais da vida como, por exemplo, uma pena capital). Paradigmáticos, nesse caso, seriam as figuras do muçulmano no campo de concentração, o além comatoso, o néomort, limiares entre a humanidade e a não humanidade, entre e vida e a própria morte, exemplos de produção da vida nua nos espaços biopolíticos da contemporaneidade.208 207 Ibidem, idem. ―Sobre a origem do termo Muselmann, as visões divergem. De resto, como freqüentemente nas gírias, os sinônimos não faltam: ‗A palavra era usada em Auschwitz, de onde se propagou para outros campos. (...) Em Majdanek, a expressão era desconhecida. Lá, os mortos vivos eram chamados Gamel; em Dachau, Kretiner (‗cretinos‘); em Stutthof, Krüppel (‗estropiados‘); em Buchenwald, müde Scheichs (‗xeiques fadigados‘), e em Ravensbrück, Muselweiber (‗muçulmanos) ou Schmuckstücke (‗joviais‘).‘ (Sofsky, p. 400, n.5). A explicação mais provável envia o sentido literal do termo árabe muslim, significando aquele que se submete sem reservas à vontade divina, e do qual provém as lendas sobre o pretenso fatalismo islâmico, tão disseminado na Europa desde a Idade Média (com aquela nuance pejorativa, o termo é atestado em diversas línguas européias, e particularmente a italiana). Mas, enquanto a resignação do muslim repousa sobre a convicção de que Allá está em toda obra a cada instante no menor evento, o ‗muçulmano‘ de Auschwitz parece ter perdido toda vontade e toda consciência. (...) Alternadamente figura nosogáfica e categoria ética, limite político e conceito antropológico, o muçulmano é um ser indefinido, no seio do qual não somente a humanidade e a não-humanidade, mas ainda a vida vegetativa e a vida de relação, a fisiologia e a ética, a medicina e a política, a vida e a morte passam umas às outras sem solução de continuidade. É porque seu ‗terceiro reino‘ é o sentido obscuro do campo, desse não-lugar em que as barreiras entre os domínios desabam, onde todos os diques se rompem.‖ AGAMBEN, Giorgio. Quel che resta de Auschwitz. L‘arquivio e il testimone. (Tradução do trecho para o português de Vinícius Nicastro Honesco). Torino : Bollati Boringhieri, 1998. pp. 17-19. Em simetria com o muçulmano, estaria o néomort e o além-comatoso. ―A sala de reanimação onde flutuam entre a vida e a morte o néomort, o além comatoso e o faux vivant delimita um espaço de exceção no qual surge, em estado puro, uma vida nua pela primeira vez integralmente controlada pelo homeme e pela sua tecnologia. E visto que se trata, justamente, não de um corpo natural, mas dde uma extrema encarnação do homo sacer (o comatoso pôde ser definido como ‗um ser intermediário entre o homem e o animal‘) a aposta em jogo é, mais uma vez, a definição de uma vida que pode ser morta sem que se cometa 208 A questão que se coloca, pelo menos em Agamben (a partir de nosso local de análise), é o da impossibilidade de separar uma vida entendida como simples zoé (a exemplo da figura do muçulmano no campo de concentração, ou do além comatoso e seu aparelhos de sobrevida em uma sala de emergência), da vida humana enquanto tal, ou mesmo de encontrar uma bíos distinta enquanto vida qualificada (a exemplo da figura do Flamen Diale).209 Tem-se, ao contrário, a advertência da necessidade de se afirmar a indecidibilidade constitutiva entre tais esferas, ou melhor, separar uma vida nua da vida humana; a voz da linguagem (tratar do ser humano como o vivente que possui a linguagem); a natureza da cultura; o humano do inumano, etc., revela-se, teoricamente, um exercício de metafísica e, politicamente, na catástrofe. Nesse sentido, é preciso desnudar a máquina antropológica ocidental que insiste na bipolaridade (e produz concretamente tais bipolaridades), não para assumir um dos pólos (por ex., uma essência especificamente humana dos homens, irredutível à animalidade; ou uma animalização do humano, ―o bípede implume com polegar opositor e cérebro avantajado‖, sem as máscaras de um bíos), porém para colocar em questão a própria relação constitutiva, o próprio funcionamento biunívoco de suas engrenagens. Desde el momento en que lo que en ella está en juego es la producción de lo humano por medio de la oposición hombre/animal, homicídio (e que, como o homo sacer, é ‗insacrificável, no sentido de que obviamente não poderia ser colocado à morte em uma execução de pena capital).‖ AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 171. 209 ―Dumézil e Kerényi descreveram a vida do Flamen Diale, um dos sumos sacerdotes da Roma clássica. A sua vida tem isto de particular, que ela é em cada momento indiscernível das funções cultuais que o Flamen Diale cumpre. Por isto os latinos diziam que o Flamen Diale é quotidie feriatus assiduus sacerdos, ou seja, está a cada instante no ato de uma ininterrupta celebração. Consequentemente, não existe gesto ou detalhe da sua vida, de seu modo de vestir ou caminhar que não tenha um preciso significado e que não esteja preso a uma séria de vínculos e de efeitos minuciosamente inventariados. (...) Na vida do Flamen Diale não é possível isolar algo como uma vida nua; toda a sua zoé tornou-se biós, esfera privada e função pública identificam-se sem resíduos. Por isso Plutarco (com uma fórmula que recorda a definição grega e medieval do soberano como a lex animata) pode dele dizer que é hósper émpsykhon kaì hieròn ágalma, uma estátua sacra animada. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. pp. 188-189. Ítalo Calvino irá apresentar, de uma forma cômica, com seu ―O Cavaleiro Inexistente‖, o exemplo literário de um obscuro personagem que mantém-se apenas enquanto bíos, o cavaleiro inexistente Agilulfo. Cf. CALVINO, Ítalo. O cavaleiro inexistente. (Tradução Nilson Moulin). São Paulo : Cia. Das Letras, 1993. humano/inhumano, la máquina funciona de modo necesario mediante una exclusión (que es siempre también una aprehensión) y una inclusión (que es también y ya siempre una exclusión). Precisamente porque lo humano está ya presupuesto en todo momento, la máquina produce en realidad una suerte de estado de excepción, una zona de indeterminación en que el fuera no es más que la exclusión de un dentro y el dentro, a su vez, no és más que la exclusión de un fuera.210 Agamben diferenciará uma intitulada máquina antropológica dos modernos e dos antigos,211 contudo ambas só podem funcionar a partir da instituição, em seus centros, de uma zona de indiferença em que se produz a articulação entre o humano e o animal, entre o humano e o não-humano, o falante e o vivente. Porém, Como todo espacio de excepción, esta zona está en realidad, perfectamente vacía, y lo que verdaderamente humano que debería realizarse en ella es sólo el lugar de un decisión incesantemente demorada, en que las cesuras y su articulación son siempre de novo dislocadas e desplazadas. Lo que debería ser obtenido así nos es en cualquier caso ni una vida animal ni una vida humana, sino tan sólo una vida separada y excluida de sí misma, nada más que una nuda vida.212 Assevera Agamben, em conclusão, que frente às figuras extremas do inumano e do humano (e da implicação da vida nua que esta relação traz em seu interior), não se trata tanto de perguntar-se qual das máquinas (ou variantes das mesmas) seria mais eficaz – ou menos letal – todavia trata-se de compreender seu funcionamento intrínseco para poder, eventualmente, levá-las à inoperância.213 210 AGAMBEN, Giorgio. Lo abierto. El hombre y el animal. (Tradução Antonio Cuspinera). Valência : Pré-textos, 2005. p. 52. 211 ―Sea la máquina antropológica de los modernos. Funciona, como hemos visto, excluyendo de sí como no humano (todavía) un ya humano, es decir, animalizando lo humano, aislando lo no humano en el hombre: Homo alalus, o el hombre-mono. Ya basta con adelantar algunas décadas nuestro campo de investigación y, en lugar de este inocuo hallazgo paleontológico, encontraremos al judío, es decir, al –no-hombre producto del hombre, o al néomort y el ultracomatoso, es decir, el animal aislado en el propio cuerpo humano. El funcionamiento e la máquina de los antiguos es exactamente simétrico. Si, en la máquina de los modernos, el fuera se produce por medio de la exclusión de un dentro y lo inhumano por la animalización de lo humano, aquí el dentro se obtiene por medio de la inclusión de un fuera y el no hombre por la humanización de un animal: el simio-hombre, el enfant sauvage, u Homus ferus, pero también y sobre todo el esclavo, el bárbaro, el extranjero como figuras de un animal con forma humana.‖ AGAMBEN, Giorgio. Lo abierto. Op. cit. p. 52. 212 AGAMBEN, Giorgio. Lo abierto. Op. cit. p. 53. 213 AGAMBEN, Giorgio. Lo abierto. Op. cit. p. 53. Denunciar a biopolítica moderna, ou mesmo traçar paralelos entre democracia de massas e totalitarismo, é apontar criticamente, acima de tudo, as tentativas - dos mecanismos de poder - de cindir, de separar, uma vida nua da vida humana (aí se tem a questão simbólica prevista nos direitos humanos, com a previsão metafísica da vida nua matável e insacrificável elevada a núcleo central de legitimação política). Ilumina-se assim a tese agambeniana de que o ―rendimento fundamental do poder soberano é a produção da vida nua como elemento político original e como limiar de articulação entre natureza e cultura, zoé e bíos.‖214 A vida nua não deixa de ser produzida pela maquinaria jurídico-política do ocidente, derivando-se desta constatação a hipótese de que uma das peças chave deste mecanismo repousa em uma ficção constitutiva.215 Desdobramento importante deste debate é a urgência de ultrapassar seja um humanismo reducionista que não contemple, v.g., a figura do muçulmano (entendido como forma não humana, o que a maquinaria nazista também aceitou, respaldando a matança de seres humanos ―como piolhos‖), seja uma redução biologicista, que veja nos seres humanos nada mais que animais portando um suplemento à pura zoé (em certos matizes, Bataille e sua concepção de soberania). Toda forma de separar no homem o animal, e vice versa, fundamenta-se em um pressuposto metafísico que caberia à crítica do presente desnudar. A proposta de revisão de conceitos biunívocos como humano- inumano, bíos-zoé, natureza e cultura, fica muito bem explicitada na interpretação agambeniana do conceito de práxis marxista (conceito que, para o filósofo italiano, Walter Benjamin seria quem melhor compreendeu e metodologicamente aplicou em seus escritos): 214 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 187. Itálico não original. ―A biopolítica é, nesse sentido, pelo menos tão antiga quanto à exceção soberana. Colocando a vida biológica no centro de seus cálculos, o estado moderno não faz mais, portanto, do que reconduzir à luz o vínculo secreto que une o poder à vida nua, reatando assim (segundo uma tenaz correspondência entre moderno e arcaico que nos é dado verificar nos âmbitos mais diversos) com o mais imemorial dos arcana imperii.‖ AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 14. 215 A práxis não é, na realidade, algo que tenha necessidade de uma mediação dialética para reapresentar-se depois como positividade na forma da superestrutura, mas é desde o início ‗aquilo que é verdadeiramente‘, possui desde o início integridade e concretude. Se o homem se descobre ‗humano‘ na práxis, isto não ocorre porque, além de realizar primeiro uma atividade produtiva, ele transpõe esta atividade e a desenvolve em uma superestrutura e, deste modo, pensa, escreve poesias etc.; se o homem é humano, se ele é um Gattungswesen, um ser cuja essência é o gênero, a sua humanidade e o seu ser genérico devem estar integralmente presentes no modo como ele produz sua vida material, a saber na práxis. Marx abole a distinção metafísica entre animal e ratio, entre natureza e cultura, entre matéria e forma para afirmar que, na práxis, a animalidade é humanidade, a natureza é cultura, a matéria é a forma. Sendo assim, a relação entre estrutura e superestrutura não pode ser nem de determinação causal nem de mediação dialética, mas de identidade imediata.216 Para Agamben - ao comentar217 o texto-testamento de Deleuze, ―L‘immanence: une vie...‖ – será preciso, no que concerne ao conceito de vida, iniciar-se uma busca genealógica sobre a qual só se pode antecipar que ela Não se trata de uma noção médico-científica, mas de um conceito filosófico-político-teológico e que, portanto, muitas categorias de nossas tradição filosófica deverão ser repensadas por conseqüência. Nesta nova dimensão, não terá muito sentido distinguir não só entre a vida orgânica e vida animal, mas até mesmo entre vida biológica e vida contemplativa, entre vida nua e vida da mente. À vida como contemplação sem conhecimento corresponderá pontualmente um pensamento que se soltou de toda cognitividade e de toda intencionalidade. A theoria e a vida 216 AGAMBEN, Giorgio. Infância e história. Op. cit. pp. 144-145. Cf. AGAMBEN, Giorgio. A imanência absoluta. (Tradução Cláudio W. Veloso). In: ALLIEX, Éric. Gilles Deleuze. Op. cit. pp. 169-192. Comentário que traz inúmeros rastros de uma aproximação agambeniana para o conceito vida a partir de um plano de imanência (conectando-se a uma tradição que tem em Espinosa um marco fundamental). ―Se uma clara definição do conceito de ‗vida‘ parece faltar tanto a Foucault quanto a Deleuze, muito mais urgente será então captar a articulação que ele dá ao ‗testamento‘. É decisivo aqui o fato de sua função se revelar exatamente contrária à que a vida nutritiva desempenhava no dispositivo aristotélico. Ao passo que este agia como o princípio que permitia atribuir a vida a um sujeito (‗é através deste princípio que o viver pertence aos viventes‘), ‗uma vida...‘, enquanto figura da imanência absoluta, é aquilo que não pode em caso algum ser atribuído a um sujeito, matriz de de-subjetivação infinita. Em outras palavras, o princípio da imanência funciona em Deleuze como um princípio antitético à tese aristotélica sobre o fundamento. E mais: enquanto a prestação específica do isolamento da vida nua e crua era operar uma divisão do vivente, que permitia distinguir nele uma pluralidade de funções a articular ma série de oposições(vida vegetativa/vida de relação; animal exterior/animal interior; planta/homem e, eventualmente, zoe/bíos, vida nua e crua e vida politicamente qualificada), ‗uma vida...‘ marca a impossibilidade radical de traçar qualquer hierarquias e separações. O plano de imanência funciona, em outros termos, como um princípio de indeterminação virtual em que o vegetal e o animal, o dentro e o fora e, até mesmo, o orgânico e o inorgânico, se neutralizam e transitam de um para o outro‖. Ibidem. pp. 183-184. 217 contemplativa, nas quais a tradição filosófica identificou por séculos seu fim supremo, deverão ser deslocadas para um novo plano de imanência, no qual não está escrito que a filosofia política e a epistemologia poderão manter sua fisionomia atual e sua diferença em relação à ontologia.218 Reflexão que abre espaço à pormenorização do próximo argumento-síntese deste trabalho. 3. O pensamento político contemporâneo enfrenta uma situação de encruzilhada. De um lado uma tradição que delimita a esfera do agir político nos horizontes da estatalidade ocidental e, do outro lado, o fenecimento próprio deste modelo de estatalidade. Resta-lhe às mãos fragmentos que terá de escolher (ou lançar fora) para pensar a política que vem. Mas, com maior urgência ainda, coloca-se-lhe a oportunidade de pensar fora dos binarismos e dicotomias biunívocas que presidiram a estruturação de nossa tradição (oikos-pólis, bíos-zoé, público-privado, universal-particular, natureza-cultura, humano-inumano, rural-urbano.. ad nausean). Um pensamento não-dicotômico, depolar (e não bipolar), que aceite as ambivalências e a contingência – assumidamente kairológico. Rotas de fuga de uma teoria para nosso tempo.219 218 AGAMBEN, Giorgio. A imanência absoluta. Op. cit. p. 192. De forma deliberada optamos, nas veredas desse fragmento, por uma técnica de apresentação eminentemente citacional. É preciso ter em mente um aforismo (uma quinquilharia) de Walter Benjamin, lançado em seu ―Rua de mão única‖, que ―citações em meu trabalho são como salteadores no caminho, que irrompem armados e roubam ao passeante a convicção‖. BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. (Obras escolhidas II). (tradução Rubens Rodrigues Torres Filho; José Carlos M. Barbosa). 5º ed. São Paulo: Brasiliense, 1995. p.61. Arendt, ao comentar tal metodologia, aduz que Benjamin tornou-se mestre ao descobrir que a transmissibilidade do passado fora substituída por sua citabilidade e que, no lugar de sua autoridade, surgira um estranho poder de se assentar aos poucos no presente e de privá-lo da paz mental, a paz descuidada da complacência. (...) Essa descoberta da função moderna das citações, segundo Benjamin, que a exemplificava com Karl Kraus, nascera do desespero – não o desespero de um passado que recusa ‗lançar sua luz sobre o futuro‘ e deixa a mente humana ‗vaguear na escuridão‘, como em Tocqueville, mas o desespero do presente e o desejo de destruí-lo; daí que seu poder seja ‗não a força para preservar, mas para limpar, arrancar do contexto, destruir (Schriften, vol. II, p. 192).‖ ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. (Tradução Denise Bottmann). São Paulo : Companhia das Letras,1987. p. 142 219 Assumidamente nos defrontamos com uma proposta que mantém, em si, apenas os aspectos supositivos do termo. Falar de um pensamento que desloque as dicotomias é simplesmente pensar (de/em) um exterior de toda e qualquer forma de tradição, limite apeleseano entre a lucidez e a loucura, entre a (deleuziana) saúde e o estado clínico, buscando desestabilizar a própria fronteira entre eles. Experiência nos limites da própria linguagem, buscando, porém, novas topologias na linguagem. O limite não está fora da linguagem, ele é seu fora: é feito de visões e audições não-linguageiras, mas que só a linguagem torna possíveis. Por isso há uma pintura e uma música própria da escrita, como efeitos de cores e de sonoridades que se elevam acima das palavras. É através das palavras, entre as palavras, que se vê e se ouve. Beckett falava em ‗perfurar buracos‘ na linguagem para ver e ouvir ‗o que está escondido atrás‘. (...) Essas visões, essas audições não são um assunto privado, mas formam as figuras de uma história e de uma geografia incessantemente reinventadas. É o delírio que as inventa, como processo que arrasta as palavras de um extremo a outro do universo. São acontecimentos na fronteira da linguagem. Porém quando o delírio recai no estado clínico, as palavras em nada mais desembocam, já não se ouve nem se vê coisa alguma através delas, exceto uma noite que perdeu sua história, suas cores e seus cantos. A literatura é uma saúde.220 Tal aproximação só se torna viável em termos de fugidia enumeração de figuras e metáforas. O tatear enunciativo. Neutro. Neu-ter. Nem um nem outro. A figura da ambivalência e da quebra das dicotomias. ―A contingência é a figura do ambivalente‖, Barthes, nos seminários ministrados no Collège de France, entre 1977 e 1978, sobre ―O Neutro‖: 1) Kairós: de kairós em kairós, espécie de apetite da contingência: pode exprimir o ‗vazio‘, em sua desolação, a inação, a pusilanimidade, a mundanidade. (...) Digo derrisório como imagem endoxal, sem julgamento, pois a mundanidade, ou seja, a submissão à exaltação do kairós, pode ter valor de radicalismo: fazer paralelo com o que Baudelaire diz do H: ‗causa no homem uma exasperação da personalidade e um sentimento muito intenso das circunstâncias e dos ambientes‘: a mundanidade funciona como uma Droga. -} Radical, também, pois ela pode ter o valor de: ―Nada a dizer (a escrever)‖ = sentido de Paludes. Ora, nada diz (está aí, creio, uma posição do Neutro) que escrever é um 220 DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. (Tradução Peter Pál Pelbart). São Paulo : Ed. 34, 1997. p. 09. bem supremo – e há formas de mundanidade que são escritas: em Proust, é preciso toda uma obra (O tempo perdido) para que a mundanidade seja superada e desclassificada pela escrita: é uma revelação que só se produz no fim extremo: a escrita expulsa a mundanidade (o kairós), mas ao cabo de uma longa iniciação, de um drama com novos episódios.221 O Neutro, como ambivalência-contingente ou contingência- ambivalente, ou nos termos barthesianos, a contingência como imagem elevada do Neutro, o Neutro como permanente esquiva (mesmo ao kairós) e o confronto com estruturas sistemáticas: Em face (mas não propriamente contrário): do kairós, a contingência, uma imagem elevada do Neutro, como não-sistema, como não-lei ou arte da não-lei, do não sistema -} o estado Neutro do kairós é o esquivar-se à sistematização mesma da contingência, à mundanidade como sistema, como arrogância -} seria possível dizer, o Neutro escuta a contingência, não se submete à ela -} pode portanto haver por fim inversão do kairós: o ‗É tempo‘ vira ‗Já não é tempo‘ -} Tales (um dos sete sábios),‘A mãe exortava-o a casar-se, ele respondeu: ‗Não, por Zeus, ainda não está na hora‘. Ela o convidou outra vez, quando ele tinha mais idade, porém ele disse: ‗Já passou da hora‘. -} esquiva perfeita do sistema, o próprio kairós não funda um sistema, como nos sofistas,. Muito menos do objeto que ele expunge: nenhum sistema do casamento ou do celibato, nem mesmo pessoal (muito difícil chegar a isso, muito mais faze-lo ouvir).222 Neutro como karúmi e muga, mui-i (nos ideogramas japoneses, lembrados pela ensaística leminskiana); um haikai de Bashô ou uma canção de John Cage: KARÚMI (a leveza) ‗karui‘, adjetivo, é ‗leve‘. Como uma pluma. Em seus últimos anos, dizem, Bashô insistia muito neste conceito. ‗Karúmi‘ é não pesar a mão. Não deixar a arte aparecer, na obra de arte. ‗Karúmi‘ é fazer as coisas de tal forma que o necessário e o arbitrário, que estão sempre indissoluvelmente ligados na obra de arte, não possam ser distinguidos. É conseguir dar a impressão que um haikai que levou muito tempo para atingir sua forma final pareça nascido na hora, ‗espontaneamente‘. É ocultar a arte, fazer desaparecer o processo, fazer a arte parecer nãoarte. ‗Karúmi‘ é a qualidade que, dissolvendo e dissipando a fronteira entre natureza e cultura, faz o artefato cultura parecer e aparecer como um produto da natureza. ‗Heiter ist die Kunst‟ límpida é a arte, disse o poeta alemão Schiller. 221 BARTHES, Roland. O Neutro. Anotações de aulas e seminários ministrados no Collège de France, 1977/1978. Texto estabelecido por Thomas Clerc. (Tradução Ivone Castilho Benedetti). São Paulo : Martins Fontes, 2003. p. 353-354. 222 BARTHES, Roland. Op. cit. p. 354. MU-GA, MU-I (o não-Eu, o não-fazer) Intimamente ligados ao conceito de ‗karúmi‘ os conceitos artísticos, mas religiosos na base, de ‗muga‘ e ‗mu-i‘. ‗Mu-ga‘ é ‗não-Eu‘. ‗Mu-i‘ é nãoFazer‘. São conceitos taoístas incorporados pelo Zen Budismo. ‗Mu-ga‘ é ‗despersonalização‖, a condição para a verdadeira criação artística, que se dá, pura, quando a ‗persona‘, a máscara convencional do nosso eu cai e aflora a força original e indeterminada da nossa natureza, genérica e coletiva, impessoal e anônima. A arte ocidental (principalmente a poesia) sempre colocou ênfase exagerada na expressão do ‗eu‘, tendência exacerbada pelo romantismo. ‗Mu-i‘, ‗não-fazer‘, é um conceito tipicamente taoísta. E é um princípio dinâmico. Um fazer taoísta é um fazer conforme o Tao, conforme a lógica intima do processo das coisas, (...) vale dizer, um não-fazer. No terreno da criação artística, ‗mu-i‘ favorece a espontaneidade sábia, a entrega ao processo, a obliteração e anulação de um ego que quer fazer algo, dando lugar a um criar que se assemelha mais aos processos da natureza, um deixar-se ir, uma Abertura. Tributário desta concepção, o músico de vanguarda americano John Cage, que usa as indeterminações aleatórias do I-Ching, como método de disciplinamento (a mortificação) do Ego. A obra é um fruto de conjunções e conjunturas que independem de um eu que quer e, como quer, faz. Disse um sábio chinês: ‗faça as coisas como elas mesmas fariam, se pudessem.223 Neutro como gesto, a partir de uma reflexão estética de Giorgio Agamben: A comédia dell‟arte forneceria aos atores das telas as instruções que os permitiria realizar situações nas quais um gesto humano subtraído às potências do mito e do destino poderiam enfim existir. Não se compreende nada da máscara cômica a partir do momento em que se compreende como um personagem diminuído e indeterminado. Arlequim ou o Doutor não são personagens, no sentido em que Hamlet e Édipo o podem ser; as máscaras não são personagens, mas gestos representados segundo um tipo, uma constelação de gestos. Na situação em ato, a destruição da identidade do papel vai de par com a destruição da identidade do autor. É a ligação mesma entre texto e execução que é colocada aqui em causa. Pois entre o texto e sua execução insinua-se a máscara, como mistura indiferenciada de potência e ato. E o que ocorre – sobre a cena, na situação construída – não é atualização de um potência, mas a liberação de uma potência posterior. Gesto é o nome desta cruzada na qual se reencontram vida e arte, o ato e a potência, o geral e o particular, o texto e a execução. Fragmento de vida subtraído do contexto da biografia individual e fragmento de arte subtraído do contexto da neutralidade estética: pura práxis. Nem valor de uso, nem valor de troca, nem experiência biográfica, nem evento impessoal, o gesto é o 223 LEMINSKI, Paulo. Ventos ao vento. Rabiscos em direção a uma estética. In: Ensaios e anseios crípticos. (Organização e seleção Alice Ruiz e Áurea Leminski). Curitiba : Pólo editorial do Paraná : 1997. pp. 87-88. inverso do mercado, que deixa precipitar na situação ‗os cristais desta substancia social comum‘.224 Neutro como síntese-disjuntiva, à maneira deleuziana de pensar: Desde Aristóteles, a lógica não tem sido senão a cifragem das categorias, o triunfo da propriedade contra a impropriedade. Seria preciso obter da univocidade deleuziana uma outra lógica; uma lógica na qual, em relação às distribuições categoriais, não podemos nos contentar com as conexões usuais. O ‗e‘, o ‗ou... ou‘, o ‗nem... nem‘: tudo isso extenua, dilapida, a poderosa neutralidade do ser. Seria preciso pensar uma sobreposição móvel do e, do ou, e do nem, para que se pudesse dizer: o ser é neutro, porque toda conjunção é uma disjunção, porque toda negação é uma afirmação. Esse conector de neutralidade, esse ‗e-ounem‘, Deleuze o nomeou síntese disjuntiva. E é preciso dizer: o ser, como potência neutra, merece o nome de vida porque ele é, enquanto relação, o ‗e-ou-nem‘, a síntese disjuntiva. Ou ainda, igualmente, a análise conjuntiva, o ‗ou-e-nem‘. A vida, com efeito, é especificante e individuante, ela separa e desliga; mas ela também incorpora, virtualiza e junta. A vida é o nome do ser-neutro segundo sua lógica divergente, segundo o ‗e-o-nem‘. Ela é a neutralidade criadora que se mantém no meio da síntese disjuntiva e da análise conjuntiva.225 Tais posturas, ao menos nos parece, conectam-se com o contemporâneo ultrapassamento (própria reorganização da economia simbólica no ocidente), diagnosticado por Raúl Antelo, da cultura da materialidade e da produção de sentido (―ainda regulada pela dialética entre gestão e recepção, o amo e o escravo‖) para a entrada naquilo que o teórico intitula como a ―cultura das supersensações ou da produção de presença‖. O Neutro como pharmakon possível (e também como reflexo da) à vertigem das supersensações Por presença entenda-se prioritariamente uma junção espacial, efetiva colagem de descontinuidades físicas, e só secundariamente uma aproximação ou montagem temporal, já explorada pela alta modernidade. O que muda, decisivamente, neste presente, é a inexistência ou esgotamento de qualquer tipo de presença ou plenitude, substituída agora por uma aproximação ou distância de presença, que torna qualquer essere – mesmo o qualquer um, qualunque, como argumentaria Agamben – mera questão de interessere. Poderíamos nos valer de uma ficção, como Smoke, de Paul Auster, para dar conta da mínima mudança no cotidiano desenvolvido; porém, Clarice Lispector também nos oferece variados e abundantes exemplos desse processo em âmbito brasileiro. Aquilo que a autora de A hora da estrela chama de supersensações é a 224 AGAMBEN, Giorgio. . Moyens sans fins. Notes sur la politique. (Tradução para o português Vinícius Nicastro Honesko). Paris : Éditions Payot & Rivages. p. 29. 225 BADIOU, Alain. Da vida como nome do ser. (tradução de Paulo Nunes) In: ALLIEZ, Éric. Gilles Deleuze. Uma vida filosófica. São Paulo : Ed. 34, 2000. p. 162. inversão pontual da imagem modernista de Drummond, impugnação efetiva da técnica como religião do Estado: ‗são instantâneos fotográficos das sensações-pensadas, e não a pose imóvel dos que esperam que eu diga: olhe o passarinho! Pois não sou fotógrafa de rua‘. A supersensação é o avesso do signo, explicação e implicação simultâneas do mesmo e do outro, discordia concors ou dissonância irresolvida dos interstícios da própria representação. Nessa dramática do suportável e do insuportável, a supersensação afiança a condição larval do sujeito. (...) Não se confunda, portanto, a supersensação com a vivência do mistério. Ela ultrapassa inclusive a experiência de ruptura modernista e poderia ser mais cabalmente entendida como experiência interior, maléfica, pósmetafísica, que se coloca além do princípio iluminista da festa para redefinir a comunidade virtual como a da profanação e da desolação. A supersensação, como modo original e, no entanto, repetível da individuação, filia-se ao conceito de haecceitas (Duns Scot) a partir do qual Deleuze imagina uma individuação não mais da forma, porém, na forma, individuação intensiva e eventural, em que a ocorrência magnificase até atingir o nada.226 Errática combustão de dicotomias (des-dicotomização), as supersensações nos fazem pensar na subtração às esferas do universal e do particular, do interior e do exterior, do dentro e do fora. ―(...) O texto é, simultaneamente, interior e exterior, anterior e posterior, já que a linguagem, eternamente dividida, interioriza a sensação em sua articulação.‖227 Resta unicamente como singularidade definida tão somente pelo ser-dito. O exemplo, em Agamben: Um conceito que escapa à antinomia do universal e do particular é-nos desde sempre familiar: é o exemplo. Qualquer que seja o âmbito em que faça valer a sua força, o que caracteriza o exemplo é o facto de valer para todos os casos do mesmo género e, simultaneamente, estar incluído entre eles. Ele é uma singularidade entre as outras, que está no entanto em vez de cada uma delas, vale por todas. Por um lado, todo exemplo é tratado, de facto, como um caso particular real, por outro, reconhece-se que não pode valer na sua particularidade. Nem particular nem universal, o exemplo é um objecto singular que, digamos assim, se dá a vê como tal, mostra a sua singularidade. Daí a pregnância do termo que em grego exprime o exemplo: para-deigma, o que se mostra ao lado (como o alemão Bei-spiel, o que joga ao lado). Por que o lugar próprio do exemplo é sempre ao lado de si próprio, no espaço vazio em que se desenrola a sua vida inqualificável e inesquecível. Esta vida é a puramente lingüística. Só a vida na palavra é inqualificável e inesquecível. O ser exemplar é o ser puramente lingüístico. Exemplar é aquilo que não é definido que não é definido por nenhuma propriedade, excepto o ser-dito. Não é o ser226 ANTELO, Raúl. O percurso da supersensações. Modernidade. Ponta Grossa: Ed. UEPG, 2001. p. 184-185. 227 ANTELO, Raúl. Op. Cit. p. 187. In: Transgressão & vermelho, mas o ser-dito-vermelho, não é o ser Jakob, mas o ser-ditoJakob, que define o exemplo. Daí sua ambigüidade a partir do momento que decidimos levá-lo verdadeiramente a sério. O ser-dito – a propriedade que funda todas as possíveis pertenças (o ser-dito italiano, comunista) – é, de facto, também o que pô-las radicalmente em questão. Ele é o Mais Comum, que se subtrai a toda comunidade real. Daí a impotente omnivalência do ser qualquer. Não se trata nem de apatia nem de promiscuidade ou resignação. Estas singularidades puras comunicam apenas no espaço vazio do exemplo, sem estarem ligadas por nenhuma propriedade comum, por nenhuma identidade. Expropriaram-se de toda identidade, para se apropriarem da própria pertença, do sinal Є. Tricksters ou vagabundos, ajudantes ou cartoons, eles são os exemplares da comunidade que vem.228 É a partir de locais como o exemplo, e conseqüentemente, da singularidade, é que, possivelmente, estejam abertas as brechas para pensar e confrontar as zonas de indiscernibilidade que se disseminam para todos locais simbólicos do ocidente (indistinções entre dentro e fora, exclusão inclusão, como a figura do bando colocado como relação política originária). Ou melhor, emerge como exigência pensar o próprio simbólico como trama formada pela dança aleatória dos singulares, sendo tanto condição-condicionada quanto mediummaleável para estes. Um simbólico subtraído desde sempre das estruturas coaguladas, um simbólico do devir, a tudo permeando como condiçãocontingencial do possível (tendo como núcleo não um arcabouço de enunciados pairando externamente aos sujeitos, mas que esteja inscrito na enunciação mesma destes). Um simbólico como ponto de cruzamento – inter-secção, intervalo - ―o com‖, o ―entre‖, a sintaxe de uma irremediável con-temporização, e não uma presumida matéria livre da relação, fora do tempo.229 228 AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. (Tradução Antônio Guerreiro). Lisboa : Editorial Presença, 1993. p. 16-17. 229 C.f: ANTELO, Raúl. Propostas do curso ―Políticas do anacronismo‖, primeiro semestre de 2007. In: www.cce.ufsc.br/pgl. Pesquisa realizada em 25 de fevereiro de 2007. De certa maneira, tais reflexões avizinham-se da proposta deleuziana de devir. ―Devir não é atingir uma forma (identificação, imitação, Mimese), mas encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou indiferenciação tal que já não seja possível distinguir-se de uma mulher, de um animal, de uma molécula: não imprecisos nem gerais, mas imprevistos, nãopreexistentes, tanto menos determinados numa forma quanto se singularizam numa população. (...) O devir está sempre ‗entre, ou ‗no meio‘: mulher entre as mulheres, ou animal do meio dos outros. Mas o artigo indefinido só efetua sua potência se o termo que ele faz devir é por seu turno despojado das características formais que fazem dizer o, a (o animal que aqui está). DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Op. cit. pp. 11-12. Seguindo tal reflexão, Jean-luc Nancy afirma que a ―gênese‖ deleuziana nada mais é do que um devir, ―que se move no meio As experiências radicais vivenciadas no ocidente (e suas margens) no séc. XX, atingindo os mais variados campos e as mais diversas práticas de saber, arremessam sua própria condição espacial-temporal no magma (Castoriadis) da indeterminação. Torna-se um truísmo afirmar que toda forma de auto-referência – presentemente - está fadada ao fracasso (boa parte das hipóteses lançadas no primeiro capítulo dizem respeito à urgência de pensar o direito não mais na segmentação de uma auto-referência, como na tradição normativista). A própria dimensão factual, por exemplo, das grandes metrópoles contemporâneas, impõe um nivelamento daqueles saberes e significados antes compartimentalizados em regionalidades. O embaralhamento de locais, a supressão de fronteiras: epistemológicas, existenciais. Porém, partimos de um confronto como o nivelamento caricato, que guarda saudosismos dos locais postos e reconhecidamente afirmados (mesmo ao preço do silenciamento e da imposição), ou que pense na indeterminação subordinada a instâncias ou dispositivos de poder (num sentido foucaultiano do termo), a exceção fictícia. É preciso, a partir e na oportunidade das zonas de penumbra, buscar pensar outras veredas (não apenas utopias, u-topos, porquanto caminhos pensados nesses mesmos locais, não em outros), interromper a catástrofe sempre iminente - ou simplesmente não a coonestar - no mínimo salvando-se das frias e tétricas regiões infernais da resignação. Lembrando de uma provocação de Agamben: ―É a partir destes terrenos incertos e sem nome, destas ásperas zonas de indiferença, que deverão ser pensadas as vias e os modos de uma nova política.‖230 Na convergência deste argumento, do mesmo filósofo, temos uma provocação heurística de aproximação às nossas questões: Na perspectiva arqueológica, que é a de minha pesquisa, as antinomias (por exemplo, a da democracia versus totalitarismo) não desaparecem, das coisas, não em sua origem em nem seu fim.‖ NANCY, Jean-luc. Dobra deleuziana do pensamento. In: ALLIEZ, Eric. Gilles Deleuze. Uma vida filosófica. Op. cit. p. 112. 230 Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. (Tradução de Henrique Burigo). Belo Horizonte, ed. UFMG, 2002. p.192 mas perdem seu caráter substancial e se transformam em campos de tensões polares, entre as quais é possível encontrar uma via de saída. Não se trata, então, de distinguir o que é bom do que é mal em Heidegger ou em Schmitt. Deixemos isto aos bem pensantes. O problema, sobretudo, é que se não se compreende o que se põe em jogo no fascismo, não se chega a observar sequer o sentido da democracia. (...) Meu método é arqueológico e paradigmático num sentido muito próximo ao de Foucault, mas não completamente coincidente com ele. Trata-se, diante das dicotomias que estruturam nossa cultura, de ir além das exceções que as têm produzido, porém não para encontrar um estado cronologicamente originário, mas, ao contrário, para poder compreender a situação na qual nos encontramos. A arqueologia é, nesse sentido, a única via de acesso ao presente. Porém, superar a lógica binária significa, sobretudo, ser capaz de transformar cada vez as dicotomias em bipolaridades, as oposições substanciais num campo de forças percorrido por tensões polares que estão presentes em cada um dos pontos sem que exista alguma possibilidade de traçar linhas claras de demarcação. Lógica do campo contra lógica da substância. Significa, entre outras coisas, que entre A e A se dá um terceiro elemento que não pode ser, entretanto, um novo elemento homogêneo e similar aos anteriores: ele não é outra coisa que a neutralização e a transformação dos dois primeiros. Significa, enfim, trabalhar por paradigmas, neutralizando a falsa dicotomia entre universal e particular. 231 A condição de possibilidade de serem questionadas as relações mesmas que estruturam o pensamento político tradicional não deixa de estar relacionada ao que Arendt diagnosticava como a quebra da autoridade da tradição no mundo contemporâneo (a quebra da tradição como abertura ao questionar das relações mesmas que a balizavam), o que não significa a perda da dimensão do passado, porém daquelas coordenadas tidas como seguras a seu acesso, seja no sentido de referências genericamente aceitas como tais, seja daquela cadeia que aguilhoou ―cada sucessiva geração a um aspecto predeterminado do passado‖. Isso tanto pode representar um horizonte exploratório de novos usos do passado (novos usos das bipolaridades, ou o atravessamento delas) ou o ressurgir do que ficou silenciado, ―poderia ocorrer que somente agora o passado se abrisse para nós com inesperada novidade e nos dissesse coisas que ninguém teve ouvidos ainda para ouvir‖, mas ao mesmo tempo, como ônus correlato à perda da tradição, tem-se como presente um risco para a própria dimensão do passado, a ameaça da amnésia, o que para Arendt significa a perda da ―dimensão 231 Entrevista com Giorgio Agamben. In: Revista do Departamento de psicologia da UFF. vol.18 n.1. Niterói, Janeiro/Junho de 2006. de profundidade na existência humana‖, algo que estaria muito explícito na chamada abordagem desconstrucionista derridiana (e seu apego à categoria da differánce) ou em boa parte daquilo que se convencionou intitular (abrangendo certas conotações pejorativas) como estudos pós-modernistas. Resta-nos perguntar: existirão saídas para amnésia e para o anacronismo menardiano em nosso tempo?232 Ou melhor, saídas que não impliquem um saudosismo pela figura de Funes?233 Estaríamos, como contemporâneos, em busca da profundidade perdida entendida como projeto 232 Referimo-nos ao personagem Pierre Menard, do conto ―Pierre Menard – autor de Quixote‖, de Borges. ―Não queria compor outro Quixote - o que é fácil -, mas o Quixote. Inútil acrescentar que nunca enfrentou uma transcrição mecânica do original; não se propunha a copiá-lo. Sua admirável ambição era produzir algumas páginas que coincidissem – palavra por palavra e linha por linha – com as de Miguel de Cervantes. ‗Meu propósito é simplesmente assombroso‘, escreveu-me em 30 de setembro de 1934, de Bayonne. ‗O termo final de uma demonstração teológica ou metafísica – o mundo externo, Deus, a causalidade, as formas universais – não é menos anterior e comum que meu divulgado romance. A única diferença é que os filósofos publicam em agradáveis volumes as etapas intermediárias do seu trabalho e eu resolvi perdê-las. De fato, não resta um único rascunho que ateste esse trabalho de anos. O método inicial que imaginou era relativamente simples. Conhecer bem o espanhol, recuperar a fé católica, guerrear contra os mouros e contra o turco, esquecer a história da Europa entre os anos de 1602 e 1918, ser Miguel de Cervantes. Pierre menard estudou esse procedimento (sei que conseguiu um manejo bastante fiel do espanhol do séc. XVII), mas o afastou por considerá-lo fácil. Na realidade, impossível! - dirá o leitor. De acordo, porém o projeto era de antemão impossível e, de todos os meios impossíveis para levá-lo a cabo, este era o menos interessante. Ser no séc. XX um romancista popular do séc. XVII pareceu-lhe uma diminuição. Ser, de alguma maneira, Cervantes e chegar ao Quixote pareceu-lhe menos árduo – por conseguinte menos interessante – que continuar sendo Pierre Menard e chegar ao Quixote mediante as experiências de Pierre Menard.‖ BORGES, Jorge Luis. Ficções. (Tradução Carlos Nejar). São Paulo: Ed. Globo, 2001. p. 58. 233 Referimo-nos ao personagem Irineu Funes, de ―Funes, el memorioso‖ de Borges. ―Nós, de uma olhadela, percebemos três taças em uma mesa; Funes, todos os rebentos e cachos e frutos que compreende uma parreira. Sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer do trinta de abril de mil oitocentos e oitenta e dois e podia compará-las na lembrança aos veios de um livro encadernado em couro que vira somente uma vez e às linhas da espuma que um remo levantou no Rio Negro na véspera da batalha do Quebracho. Essas lembranças não eram simples; cada imagem visual estava ligada às sensações musculares, térmicas, etc. Podia reconstruir todos os sonhos, todos os entresonhos. Duas ou três vezes havia reconstruído um dia inteiro; nunca havia duvidado, porém cada reconstrução já tinha requerido um dia inteiro. Disse-me: ‗Mais recordações tenho eu sozinho que as que tiveram todos os homens desde que o mundo é mundo‘. E também: ‗Meus sonhos são como a vigília de vocês‘. E, igualmente, próximo do amanhecer: ‗minha memória, senhor, é como um despejadouro de lixos‘. Uma circunferência num quadrado negro, um triângulo retângulo, um losango são formas que podemos intuir plenamente; o mesmo acontecia a Irineu com as emaranhadas crinas de um potro, com uma ponta de gado numa coxilha, com o fogo mutável e com a inumerável cinza, com os muitos rostos de um morto em um longo velório. Não sei quantas estrelas via no céu. (...)‖. BORGES, Jorge Luis. Ficções. Op. Cit. p. 125. político e teórico principal? Em que medida o anacronismo pode ser uma rota possível de travessia? Não obstante, seja qual for a resposta a tais perguntas, mais do que nunca estamos imersos num tempo em que basta nos inclinarmos para selecionar e catar fragmentos entre um monte de destroços. Em meio à destruição da tradição (destruição prévia que todo colecionador precisa para retirar seu precioso objeto do contexto maior onde se inseria) somos chamados, como Arendt metaforiza, a pensar como pescadores de pérolas. Todavia, como o pescador que desce ao fundo do oceano não para ―escavá-lo e trazê-lo a luz‖, mas ―para extrair o rico e o estranho, as pérolas e o coral das profundezas, e trazê-los à superfície‖. Ou seja, esse pensar sonda as profundezas do passado - mas não para ressuscitá-lo tal como era e contribuir para a renovação das eras extintas. O que guia esse pensar é a convicção de que, embora o vivo esteja sujeito à ruína do tempo, o processo de decadência é ao mesmo tempo um processo de cristalização, que nas profundezas do mar, onde afunda e se dissolve aquilo que outrora era vivo, algumas coisas ‗sofrem uma transformação marinha‘ e sobrevivem em novas formas e contornos cristalizados que se mantêm imunes aos elementos, como se apenas esperassem o pescador de pérolas que um dia descerá até elas e as trará ao mundo dos vivos – como ‗fragmentos de pensamento‘, como algo ‗rico e estranho‘ e talvez mesmo como um perene Urphänomene.234 234 ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. Op. cit. p. 176. O conceito de Urphänomene será retomado, a partir de Benjamin, no terceiro fragmento do capítulo III. INTERVALO Estertores da estatalidade: destroços na decisão. Fenecimento do político: destroços no remanescente biopolítico. Decisão sobre o vivente e o não vivente: mecanismos e resultados da máquina antropológica que se estilhaça no presente - não mais se confina nas estritas fronteiras da Ágora, do dispositivo estatal, ou do campo de concentração – dissemina-se... De maneira vertiginosa até então desconhecida, porém, mantém sua operacionalidade. Indecidibilidade... Indiscernibilidades: aprofundamento e não retorno. Uma ação que não tenha como resto uma vida nua, que não se manifeste na exclusão-inclusiva: insalvável e irremediavelmente profana práxis. “A partir de um certo ponto não há mais retorno. Esse é o ponto que deve ser alcançado.” Franz Kafka. Aforismos. 3. UBIQÜIDADE DA EXCEÇÃO 1. O extravio do jurídico e o fenecimento do político no presente do ocidente representam, de certa maneira, nada mais que aspectos sintomáticos de uma indicernibilidade entre direito e política, e indiferenciação destes com a própria vida. Algo que o sintagma vigência sem significado (a Geltung ohne Bedeutung de Scholem), ou força de lei sem lei (ou força de lei) de Agamben, representam com paradigmática perspicácia. Força de lei. Categoria proposta por Agamben a partir de uma conferência que Jacques Derrida pronunciou em 1989, em Nova York.235 O texto consistia numa leitura do ensaio de Walter Benjamin, ―Para uma Crítica da Violência‖. O sintagma força de lei, para o filósofo italiano, apóia-se em uma tradição que pode ser remotamente associada ao direito romano e medieval, referindo a um descolamento entre a eficácia da lei e sua essência formal, podendo ser aludido à política moderna no fato - que se torna disseminado a partir da primeira guerra mundial -236 de se dar força de lei a atos que não se revestem dos qualificativos inerentes ao predicado legal, como decretos do poder executivo. Agamben lembra que na Revolução Francesa, precisamente no art. 6º da Constituição de 1791, esta expressão designava o valor supremo dos atos expressos pela assembléia representante do povo, demonstrando um caráter 235 Force de loi: le fondement mystique de l‟autorité. Proferida na Cardozo School of Law. Cf: AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p. 59. 236 ―De fato, a progressiva erosão dos poderes legislativos do Parlamento, que hoje se limita, com freqüência, a ratificar disposições promulgadas pelo executivo sob a forma de decretos com força de lei, tornou-se desde então uma prática comum. A Primeira Guerra Mundial – e os anos seguintes – aparece, nessa perspectiva, como o laboratório em que se experimentaram e se aperfeiçoaram os mecanismos e dispositivos funcionais do estado de exceção como paradigma de governo.‖ AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p. 19. intangível da lei, que nem mesmo o soberano poderia sequer modificar. 237 Não obstante, para Agamben, é em Kant que pela primeira vez na modernidade a forma pura de lei, como ―vigência sem significado‖, é inscrita. ―Uma lei reduzida ao ponto zero de seu significado e que, todavia, vigora como tal‖. Uma lei não determinada por nenhum conteúdo específico (fundamentando sua ―pretensão universal de aplicação prática em qualquer circunstância‖) seria uma antecipação profética, em Agamben, dos regimes totalitários do séc. XX e das sociedades espetacularizadas de massa. Onde ―a potência vazia da lei vigora a tal ponto que se torna indiscernível da vida.‖238 Agamben pontua, nesse sentido, que o estado de exceção (em seu livro homônimo, segunda parte da trilogia do Homo sacer) apresenta-se como um dispositivo de difícil definição (aí seu não enquadramento nas referências da cultura jurídica tradicional, que tende a relegar o estado de exceção a mera questi facti), pois topograficamente encontra-se nos limites entre direito e política (na ―franja ambígua e incerta na intersecção do jurídico e do político‖; ―um ponto de desequilíbrio entre o direito público e fato político‖), sendo – em uma das hipóteses principais da teoria agambeniana – ―o dispositivo original graças ao qual o direito se refere à vida e a inclui em si por meio de sua própria suspensão‖, ou seja, corporifica-se em uma ―terra de ninguém, entre o direito público e o fato político e entre a ordem jurídica e a vida.‖239 Situação que impõe - e Agamben assumirá o papel de cartógrafo nesta rota - a urgência de determinar tais fronteiras. Antes, porém, de analiticamente confrontar o conceito de estado de exceção (a partir, principalmente, das referências a Agamben, Schmitt e Benjamin), o que será realizado no próximo tópico, buscaremos lançar algumas problematizações a fim de pensar o conceito de força de lei e sua conexão indissolúvel com a configuração da política e do direito contemporâneo (ou da condição de amálgama a que estas dimensões foram lançadas no presente). 237 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p. 60. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. pp. 50-60. 239 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p. 12. 238 O estado de exceção, para Agamben, possui como aporte específico o isolamento desta força de lei em relação à lei propriamente dita, esta cesura, (...) define um ‗estado da lei‘ em que, de um lado, a norma está em vigor, mas não se aplica (não tem ‗força‘) e em que, de outro lado, atos que não têm valor de lei adquirem sua ‗força‘. No caso extremo, pois, a ‗força de lei‘ flutua como um elemento indeterminado, que pode ser reivindicado tanto pela autoridade estatal (agindo como ditadura comissária) quanto por uma organização revolucionária (agindo como ditadura soberana). O estado de exceção é um espaço anômico onde o que está em jogo é uma força de lei sem lei (que deveria, portanto, ser escrita; força de lei ). Tal força de lei, em que potência e ato estão separados de modo radical, é certamente algo como um elemento místico, ou melhor, uma fictio por meio da qual o direito busca se atribuir sua própria soberania. Como se pode pensar tal elemento ‗místico‘ e de que modo ele age no estado de exceção é o problema que se deve tentar esclarecer.240 Uma aproximação visando compreender este elemento místico da força de lei, ou da vigência sem significado a ela implícita, pode ser retirada das interpretações de Walter Benjamin e Gershom Scholem (em seu debate epistolar) da parábola kafkiana ―Diante da lei‖, inserida no penúltimo capítulo de ―O Processo‖.241 240 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p. 61. ―Diante da Lei está um porteiro. Um homem do campo dirige-se a este porteiro e pede para entrar na Lei. Mas o porteiro diz-lhe que, por enquanto, não pode autorizar lhe a entrada. O homem do campo reflete e depois pergunta se então poderá entrar mais tarde. — ‗É possível‘ – diz o porteiro. — ‗Mas não agora!‘. O porteiro afasta-se então da porta da Lei, aberta como sempre, e o homem curva-se para olhar lá dentro. Ao ver tal, o porteiro ri-se e diz. — ‗Se tanto te atrai, experimenta entrar, apesar da minha proibição. Contudo, repara sou forte. E ainda assim sou o último dos porteiros. De sala para sala estão porteiros cada vez mais fortes, de tal modo que não posso sequer suportar o olhar do terceiro depois de mim.‘ O homem do campo não esperava tantas dificuldades. A Lei havia de ser acessível a toda a gente e sempre, pensa ele. Mas, ao olhar o porteiro envolvido no seu casaco forrado de peles, o nariz agudo, a barba a tártaro, longa, delgada e negra, prefere esperar até que lhe seja concedida licença para entrar. O porteiro dá-lhe uma banqueta e manda-o sentar ao pé da porta, um pouco desviado. Ali fica, dias e anos. Faz diversas diligências para entrar e com as suas súplicas acaba por cansar o porteiro. Este faz-lhe, de vez em quando, pequenos interrogatórios, perguntando-lhe pela pátria e por muitas outras coisas, mas são perguntas lançadas com indiferença, à semelhança dos grandes senhores, no fim, acaba sempre por dizer que não pode ainda deixá-lo entrar. O homem, que se provera bem para a viagem, emprega todos os meios custosos para subornar o porteiro. Esse aceita tudo mas diz sempre: — ‗Aceito apenas para que te convenças que nada omitiste.‘ Durante anos seguidos, quase ininterruptamente, o homem observa o porteiro. Esquece os outros e aquele afigura ser-lhe o único obstáculo à entrada na Lei. Nos primeiros anos diz mal da sua sorte, em alto e bom som e depois, ao envelhecer, limita se a resmungar entre dentes. Torna-se infantil e como, ao fim 241 Scholem, na interpretação desta parábola, referirá o conceito de ―vigência sem significado‖ (Geltung ohne Bedeutung); a lei - em cuja porta aberta espera o camponês - expressa um ―nada de revelação‖, significando ―um estágio em que ela afirma ainda a si mesma pelo fato de que vigora (gilt), porém não significa (bedeutet). Onde a riqueza do significado falha e o que aparece reduzido, por assim dizer, ao ponto zero do próprio conteúdo, todavia não desaparece (e a revelação é algo que aparece) lá emerge o nada.‖242 Para Scholem, tal lei apresenta-se sobretudo na forma de sua inexeqüibilidade: O mundo de Kafka é o mundo da revelação, embora naquela perspectiva que se volta para o seu vazio, para o nada. (...) A inexeqüibilidade do revelado fornece a chave para a compreensão do mundo kafkiano e nisso coincide com uma teologia entendida corretamente. (...) O problema, caro Walter, não é sua ausência num mundo pré-animista, não. O problema é sua inexeqüibilidade. É sobre estes aspectos que teremos de nos pôr de acordo. E aqueles estudantes, a que você se refere no final, não são os que perdem o texto – embora não seja tanto no mundo de Bachofen que uma coisa dessas possa acontecer! – mas sim estudantes que não conseguem decifrá-lo.243 Georges Didi-Huberman, em um dos capítulos de seu opúsculo ―Ce que nous voyons, ce qui nous regard‖ - onde comenta Scholem e a parábola kafkiana - afirma que O motivo da porta é, por certo, imemorial: tradicional, arcaico, religioso. Perfeitamente ambivalente (como lugar para passar além e como lugar de tanto examinar o porteiro durante anos lhe conhece até as pulgas das peles que ele veste, pede também às pulgas que o ajudem a demover o porteiro. Por fim, enfraquece-lhe a vista e acaba por não saber se está escuro em seu redor ou se os olhos o enganam. Mas ainda apercebe, no meio da escuridão, um clarão que eternamente cintila por sobre a porta da Lei. Agora a morte está próxima. Antes de morrer, acumulam-se na sua cabeça as experiências de tantos anos, que vão todas culminar numa pergunta que ainda não fez ao porteiro. Faz lhe um pequeno sinal, pois não pode mover o seu corpo já arrefecido. O porteiro tem de se inclinar até muito baixo porque a diferença de alturas acentuou-se ainda mais em detrimento do homem do campo. — ‗Que queres tu saber ainda?‘, pergunta o porteiro. — ‗És insaciável.‘ — ‗Se todos aspiram a Lei‘, disse o homem. — ‗Como é que, durante todos esses anos, ninguém mais, senão eu, pediu para entrar. O porteiro da porta, apercebendo se de que o homem estava no fim, grita-lhe ao ouvido quase inerte. — ‗Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar, porque só para ti era feita esta porta. Agora vou me embora e fecho-a." KAFKA, Franz. O Processo. (Tradução de Modesto Carone). São Paulo: Brasiliense, 1998. p.230-232. 242 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 58. BENJAMIN, Walter; SCHOLEM, Gershom. Correspondência. (Tradução Neusa Soliz). São Paulo : Perspectiva, 1993. 243 Em correspondência de Scholem a Benjamin, datada de 17.07.1943. In: BENJAMIN, Walter; SCHOLEM, Gershom. Correspondência. Op. cit. p. 178. para não poder passar), utilizado assim em cada peça, em cada recanto das construções míticas (...). Sempre juízes ou guardiões se mantêm diante delas; sempre elas se tornam estreitas nos ritos de passagem; os próprios deuses se dizem portas por onde entrar na mais infinita fruição (...) É que a porta é uma figura da abertura – mas da abertura condicional, ameaçada ou ameaçadora, capaz de tudo dar ou de tudo tomar de volta. Em suma, é sempre comandada por uma lei geralmente misteriosa. Sua própria batida é a figura do double mind. Os livros poéticos ou sapienciais, os livros proféticos da bíblia hebraica, incansavelmente comentados, não cessam de tecer os motivos de portas fechadas ou então abertas à força de lágrimas, de arrependimentos, de feridas ou de assombros diante da lei divina. E a derrelição humana, a busca desesperada do ‗sentido dos sentidos‘, ou da ‗presença real‘, tudo isso terá com freqüência a figura das portas a passar, de portas a abrir.‖244 Didi-Huberman lembrará que foi Scholem quem remontou à escola rabínica de Cesaréia o motivo (também trazido por Orígenes) de um ―sentido dos sentidos‖ (ou um Tabernáculo) onde se chegaria através de uma ―extensão espacial de infinitas portas a abrir‖, em locais, porém, onde ―as chaves foram perdidas, misturadas‖, e não na forma de uma ―revelação ascensional‖, vulgarmente entendida como acesso à revelação mística. Eis o trecho de Scholem, referido por Didi-Huberman: Orígenes relata, em seu comentário dos Salmos, que um sábio ‗hebraico‘, certamente um membro da academia rabínica de Cesaréia, lhe disse que as Escrituras sagradas se assemelhavam a uma grande casa com muitas, muitas peças; diante de cada peça se encontra uma chave, mas não é a certa. As chaves de todas as peças foram misturadas, e é preciso (tarefa ao mesmo tempo enorme e difícil) encontrar as chaves que abrirão as peças. 245 Para o teórico francês, em tal alegoria da exegese sagrada, ―a abertura da porta – o acesso do desejo ao seu objeto, o acesso do olhar à ‗sua‘ coisa enfim desvelada – permanecerá virtual e, num certo sentido, interdita. Pois é preciso primeiro o tempo para recompor todas as correspondências das chaves às 244 DIDI-HUBERMAN, Georges. O interminável limiar do olhar. In: O que vemos, o que nos olha. (Tradução Paulo Neves). São Paulo : Ed. 34, 1998. pp. 234-236. 245 DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos o que nos olha. Op. cit. p. 236. Trecho citado da versão francesa ―La Kabbale et as symbolique‖, Payot, 1966, p. 20, tradução brasileira, A cabala e seu simbolismo. 2º ed. (Tradução Hans Borger e J. Guinsbourg). São Paulo: Editora Perspectiva, 1988. fechaduras, e é fácil imaginar o aspecto propriamente labiríntico, infinito, de tal trabalho.‖246 Tal análise está em estreita correspondência com a perspectiva scholemniana. Inexeqüibilidade representada no grau zero de uma lei irremediavelmente interditada (tem-se a porta, a abertura - mas a chave está perdida). As lendas judaicas, que formariam - para Gershom Scholem – o único quadro de referências para interpretar a parábola kafkiana, não seriam nada mais que variações ou versões desta alegoria rabínica citada por Orígenes. É inegável que a parábola de Kafka está permeada por motivos mítico-judaicos, Didi-Huberman lembra que o camponês - o homem do campo - ―é a figura tradicional do am ha harets, o iletrado, aquele que jamais se dedicou ao estudo talmúdico; e o desenvolvimento geral da parábola poderá de fato ser visto como a versão suplementar de um corpus exegético e assídico já construído.‖ Porém, (...) o que soa ‗estranhamente‘ nessa narrativa, o que faz sua intensidade absolutamente singular, é em primeiro lugar a ironia trágica pela qual, longe de continuar uma tradição, Kafka a rompe e a despedaça – exatamente porque a revela, exatamente porque revela toda sua coerção. É o que mostra uma belíssima passagem consagrada à narrativa kafkiana por Massimo Cacciari, em seu livro sobre os Ícones da Lei: ‗Trágica é a ironia que o reconhecimento do naufrágio suscita nesse lugar jamais alcançado; irônica é a situação dessa exegese desesperada que visa o desvelamento da tradição.‘ O que isso quer dizer? Que Kafka rompe nessa narrativa os elementos do mito – como fez com freqüência, por exemplo quando inventa o ‗silêncio das Sereias‘ - mesmo que a história seja aqui contada por um abade, no capítulo intitulado ‗na catedral‘; mesmo que a porta permaneça aberta até o fim, contrariamente a todas as versões tradicionais – aberta até que o homem do campo morra em sua aura silenciosa.247 Nesse sentido, em rota oposta à interpretação scholemniana, Walter Benjamin irá opor, frente à vigência sem significado - a interdição e a inexeqüibilidade a ela vinculada (o permanecer da lei como pura forma) - a imagem da lei que se torna indistinguível da própria vida, ou seja, temos, em Benjamin, a deposição do misticismo da força de lei na afirmação de que ela é 246 247 Ibidem. Idem. DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos o que nos olha. Op. cit. p.239. indiscernível da vida (se vige, vige enquanto mera dissimulação mística da lei). A derrelição frente à porta é aparente, porquanto estamos desde sempre abandonados à consumação de uma lei que se tornou – integralmente – vida. O que estaria sintomaticamente presente (para Agamben) no fato de que, no Processo kafkiano, ―a existência e o próprio corpo de Josef K. coincidem, no fim, com o Processo, são o Processo.‖248 Walter Benjamin, que assumidamente utiliza e assume os arranjos teológicos em seus textos, refere, em uma das cartas a Scholem, que se volta contra ―essa insuportável teologia profissional que domina a interpretação de Kafka‖, contrariedade que fica explícita em sua interpretação sobre o sentido da projeção do Juízo Final (no decurso da vida) na escritura kafkiana (análise que melhor delineia sua singular posição frente aos enigmas que a parábola kafkiana lança): Essa projeção transforma o juiz em acusado? O processo, em pena? Visa elevar ou enterrar a lei? Na minha opinião, Kafka não tinha resposta a essas questões. No entanto, a forma em que as colocou e que procurei determinar nas minhas explanações sobre o papel dos elementos cênicos e gestuais nos seus livros, aponta para um estado do mundo onde não há mais espaço para tais perguntas porque as respostas, muito ao invés de nos esclarecer, nos distanciam delas. É essa estrutura, da resposta distanciando da pergunta, que Kafka buscou, encontrando-a por vezes na deslocação ou no sonho. De qualquer modo, não se pode dizer que ele a tenha encontrado. E, por isso, o entendimento de sua produção está ligado, entre outras coisas, ao simples reconhecimento de que ele fracassou. ‗Ninguém conhece um caminho ao todo / e cada parte já nos cega. Mas se você escreve: ‗E o teu Nada é a única é a única vivência que lhe restou‘, acoplo a minha tentativa de interpretação precisamente neste ponto e digo: tentei mostrar como Kafka procurou, tateando, a salvação no reverso deste ‗nada‘, no seu forro, se é que posso expressar-me nesses termos.249 É nesse sentido - do reverso, do forro deste nada – que Benjamin irá se opor à vigência sem significado scholemniana (e, conseqüentemente, a todo corpus exegético remotamente associado a Orígenes e sua imagem da Escritura como múltiplas portas com chaves embaralhadas), ao argüir que a perda da chave 248 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p.60. Carta de Benjamin a Scholem, datada de 20.06.1934. In: BENJAMIN, Walter; SCHOLEM, Gershom. Correspondência. Op. cit. p. 180. 249 da escritura - uma escritura sem sua respectiva chave - deixa de ser escritura, torna-se vida: Isto tem a ver com a questão da escritura. Se os estudantes a perderam ou se não conseguem decifrá-la, o resultado é o mesmo, porque a Escritura sem sua respectiva chave não é escrita, e sim vida. Vida como a que transcorre junto ao castelo no monte. Na tentativa de tentar transformar a escrita em vida, vejo o sentido da ‗inversão‘ a que apontam insistentemente várias parábolas de Kafka, entre as quais escolhi ‗a próxima aldeia‘ e Kübelreiter (‗montado no balde‘).250 Giorgio Agamben pontuará que estamos diante de dois tipos de niilismo no debate Scholem-Benjamin: um niilismo imperfeito (Scholem), e um niilismo messiânico (Benjamin); representando, cada qual, pólos interpretativos que podem ser dirigidos à análise do estado de exceção (cujo confronto parece ser uma tarefa emergente à política do presente e do por vir). Para Agamben, Se, conforme nossas análises precedentes, vimos na impossibilidade de distinguir a lei da vida – ou seja, na vida tal como é vivida na aldeia ou no pé do castelo – o caráter essencial do estado de exceção, então a confrontar-se estão aqui duas diversas interpretações deste estado: de um lado aquela (é a posição de Scholem) que nele vê uma vigência sem significado, um manter-se da pura forma da lei além do seu conteúdo; do outro, o gesto benjaminiano, para o qual o estado de exceção transmutado em regra assinala a consumação da lei e o seu tornar-se indiscernível da vida que deveria regular. A um niilismo imperfeito, que deixa subsistir indefinidamente o nada na forma de uma vigência sem significado, se opõe o niilismo messiânico de benjamin, que nulifica até o nada e não deixa valer a forma de lei para além do seu conteúdo.251 Entre a vigência sem significado com seu Nada que permanece como pura forma, temos, em Benjamin, a nadificação do próprio Nada, sua inoperância (profanação) e transmutação (restituição) em vida. Há aí um importante referencial para pensar a relação entre direito e vida - política e direito cuja relação está em correspondência direta com a teoria do estado de exceção expressa em Benjamin (e no desdobramento analítico agambeniano), principalmente nas categorias de estado de exceção fictício e estado de exceção efetivo lançadas na oitava das teses ―Sobre o conceito de história‖. 250 Carta de Benjamin a Scholem, datada de 11.08.1934. In: BENJAMIN, Walter; SCHOLEM, Gershom. Correspondência. Op. cit. p.188. 251 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 61. Algo mais sobre a parábola. Evidencia-se importante assinalar que a metáfora (ou, por assim dizer, a imagem) da porta é, segundo Didi-Huberman, ―estruturada como um diante-dentro: inacessível e impondo sua distância, por próxima que seja - pois é a distância de um contato suspenso, de uma impossível relação de carne a carne. Isso quer dizer exatamente - e de maneira que não é apenas alegórica – que a imagem é estruturada como um limiar.‖252 Agamben lembra, em um dos ensaios de ―A comunidade que vem‖, que a noção de ―exterior‖ é expressa, em muitas línguas européias, com uma palavra que significa ―à porta‖ (fores, em latim, significa a ―porta da casa‖, o que em grego significaria, literalmente, ―na soleira‖). Portanto, para Agamben, ―o exterior não é um outro espaço situado para além de um espaço determinado, mas é a passagem, a exterioridade que lhe dá acesso – numa palavra: o seu rosto, o seu eidos.‖253 A soleira não é outra coisa além, em relação ao limite (um Nada, uma pura forma, etc.); é a experiência no próprio limite, o ―ser-dentro de um exterior.‖254 Ek-stasis, ek-sistência. A ex-ceção benjaminiana, em seu matriz não fictício (para dizer de outra forma, pensada na integralidade da práxis), nos aponta para esta soleira (a porta aberta que é um limite onde já estamos, onde se dá nossa vida). Limiar interminável, estreita porta por onde entram os estilhaços do tempo messiânico. E messiânico, nesse contexto, ―(...) não é uma outra figura, um outro mundo: é a passagem da figura deste mundo‖: (...) no tempo messiânico, o mundo salvo coincide exatamente com o mundo perdido, que, nas palavras de Bonhoefer, ele deve viver agora realmente no mundo sem Deus e que não lhe é permitido de modo algum camuflar o ser-sem-Deus do mundo, pois o deus que o salva é o deus que o abandona – que a salvação das representações (do como se) não pode pretender salvar também a aparência da salvação. O sujeito messiânico não contempla o mundo como se fosse salvo. Antes – nas 252 ―Um quadro de porta aberta, por exemplo. Uma trama singular de espaço aberto e fechado ao mesmo tempo. Uma brecha, ou uma rasgadura, mas trabalhada, construída, como se fosse preciso um arquiteto ou um escultor para dar forma a nossas feridas mais íntimas. Para dar, à cisão do que nos olha no que vemos, uma espécie de geometria fundamental.‖ DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos o que nos olha. Op. cit. p. 243. 253 AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Op. cit. p. 54. 254 Ibidem. Idem. palavras de Benjamin – contempla a salvação somente quando se perde no insalvável (naquilo que não pode ser salvo).255 Como o condenado liberto da colônia penitenciária kafkiana, que sobreviveu à destruição da máquina que deveria destruí-lo, o que resta, após a deposição da lei, não é um vestígio místico de culpa e expiação. É uma iluminação profana, diria Benjamin, que se derrama na testa daqueles que sobrevivem ao Juízo final, aqueles que chegam à ―novissima dies‖ pós Juízo. ―Mas a vida que começa na terra depois do último dia é simplesmente a vida humana.‖ 256 O tempo messiânico nada mais é do que esta - irreparável, insalvável, profana – vida que nos resta.257 Encaminhando-nos para a conclusão deste fragmento, é preciso lembrar da proposta agambeniana, equiparável ao teor de um ―aviso de incêndio‖, de que A tarefa que o nosso tempo propõe ao pensamento não pode consistir simplesmente no reconhecimento da forma extrema e insuperável da lei como vigência sem significado. Todo pensamento que se limite a isso não faz mais que repetir a estrutura ontológica que definimos como o paradoxo da soberania (ou do bando soberano). A soberania é, de fato, precisamente esta ‗lei além da lei à qual somos abandonados‘, ou seja, o poder autopressuponente do nómos, e somente se conseguirmos pensar o ser do abandono além de toda idéia de lei (ainda que seja na forma vazia de uma vigência sem significado), poder-se-á dizer que saímos do paradoxo da soberania em direção a um política livre de todo bando. Uma pura forma de lei é apenas uma forma vazia da relação; mas a forma vazia da relação não é mais uma lei, e sim uma zona de indiscernibilidade entre lei e vida, ou seja, um estado de exceção.258 255 AGAMBEN, Giorgio. Il tempo che resta. (Tradução para o português Vinícius Nicastro Honesko). Torino : Bollati Bolinguieri, 2000. p. 16. 256 AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Op. cit. p. 14. 257 ―Revelação não significa revelação do caráter sagrado do mundo, mas apenas revelação de seu caráter irremediavelmente profano.(O nome nomeia sempre e unicamente coisas). A revelação confia o mundo à profanação e à coisalidade – e não é justamente isso o que se passou? A possibilidade da salvação começa só neste ponto – é salvação do caráter profano do mundo, do seu ser-assim. [Por isso, os que procuram voltar a sacralizar o mundo e a vida são tão ímpios quanto os que desesperam por causa da sua profanação. Por isso, a teologia protestante, que separa nitidamente o mundo profano do mundo divino, tem razão e não tem, simultaneamente: tem razão porque o mundo foi irrevogavelmente confiado pela revelação (pela linguagem) à esfera profana; não tem razão porque é precisamente enquanto profano que ele será salvo.‖ AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Op. cit. p. 72. 258 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 66. Comentário que abre caminho, portanto, às análises que serão lançadas nos próximos tópicos. 2. Avizinhar-se da política e do direito ocidental evidencia-se, acima de tudo, refletir sobre um conceito de exceção não só compreendido como a excepcio a uma regra geral, mas uma exceção constitutiva da própria regra (o “estado de exceção” como verdade do “estado normal”, do paradoxo como verdade da própria regra). Além disso, é pensar que tal constitutividade, no mundo contemporâneo saído da experiência totalitária e imerso no dispositivo do espetáculo, manifesta-se não só em lapsos historicamente fugazes de revelação (como os campos de concentração no Terceiro Reich), mas de forma ubíqua e permanente. Sören Kierkegaard é o teólogo citado por Carl Schmitt, quando o jurista tratará de sua definição da exceção soberana. (...) a exceção explica o geral e a sim mesma. E se desejamos estudar corretamente o geral, é preciso aplicarmo-nos somente em torno de uma real exceção. Esta traz tudo à luz muito mais claramente do que o próprio geral. Lá pelas tantas ficaremos enfadados com o eterno lugar-comum do geral; existem as exceções. Se não podem ser explicadas, nem mesmo o geral pode ser explicado. Habitualmente não nos apercebemos da dificuldade, pois se pensa no geral não com paixão, mas com uma tranqüila superficialidade. A exceção ao contrário pensa o geral com enérgica passionalidade.259 Nessa mesma ocasião, Carl Schmitt proporá que ―a filosofia da vida concreta não pode subtrair-se à exceção e ao caso extremo, mas deve interessar-se ao máximo por ele.‖ Nessa filosofia, A exceção pode ser mais importante do que a regra, não por causa da ironia romântica do paradoxo, mas porque deve ser encarada com toda a seriedade de uma visão mais profunda do que as generalizações das repetições medíocres. A exceção é mais interessante que o caso normal. O normal não prova nada, a exceção prova tudo; ela não só confirma a 259 Cf.: SCHMITT, Carl. Teologia política. Quatro capítulos sobre a doutrina da soberania. In: A crise da democracia parlamentar. Op. cit. p. 94. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. Cit. 24. regra, mas a própria regra vive da exceção. Na exceção, a força da vida real rompe a crosta da mecânica cristalizada na repetição.260 ―A força da vida real‖ que estilhaça, na exceção, a crosta da ―mecânica cristalizada na repetição‖. Uma sentença que, não fosse do local de onde é proferida, estaria em simetria direta com boa parte dos postulados até aqui analisados no presente trabalho. As razões destas simetrias e, principalmente, das diferenças de matizes entre elas (por exemplo, entre Carl Schmitt e Walter Benjamin), serão analisadas neste item. Giorgio Agamben estabelece que a declaração de um ―estado de emergência permanente‖ - a sua criação deliberada, independentemente de uma declaração no sentido técnico-jurídico do termo - tornou-se, de medida excepcional fruto de períodos de crise política, umas das práticas correntes e essenciais dos Estados contemporâneos (inclusive os intitulados democráticos).261 O dispositivo da exceção torna-se a regra. E temos, no presente, uma exceção ubíqua e permanente, hipótese que tentaremos ainda desenvolver. Contudo, no aprofundamento da análise de Agamben, pode-se referir (para usar de uma aproximação kierkegaardiana) que a categoria da exceção é a chave para pensarmos a própria normalidade da política ocidental, seu fundamento constitutivo. Abre-se, nessa rota, a inescapável contigüidade entre soberania e exceção, tal como Schmitt a delineia, e cuja íntima proximidade o filósofo italiano tentará problematizar. A exceção é uma espécie de exclusão. Ela é um caso singular, que é excluído da norma geral. Mas o que caracteriza propriamente a exceção é que aquilo que é excluído não está, por causa disto, absolutamente fora de relação com a norma; ao contrário, esta se mantém em relação com aquela na forma da suspensão. A norma se aplica à exceção desaplicando-se, retirando-se desta. O estado de exceção não é, por tanto, o caos que precede a ordem, mas a situação que resulta da sua 260 SCHMITT, Carl. Teologia política. Quatro capítulos sobre a doutrina da soberania. Op. cit. p. 94. 261 Elucidativa, nesse sentido, é a ―Breve história do estado de exceção‖ traçada por Agamben no Homo sacer II, que diacronicamente abrange desde a origem do estado de sítio durante a Revolução Francesa, às medidas legislativas tomadas pelo presidente estadunidense George W. Bush, pós atentados de 11 de setembro. Cf. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. pp. 24-38. suspensão. Neste sentido, a exceção é verdadeiramente, segundo o étimo, capturada fora (ex-capere) e não simplesmente excluída.262 A partir de tal configuração da exceção é que surge, na teoria jurídico-política de Schmitt, a soberania como forma de exterioridade decisionista sobre a própria exceção, estabelecendo a relação entre a vida e o direito, questi facti e questi juri. Para Agamben: A decisão não é aqui a expressão da vontade de um sujeito hierarquicamente superior a qualquer outro, mas representa a inscrição, no corpo do nómos, da exterioridade que o anima e lhe dá sentido. O soberano não decide entre ilícito e lícito, mas a implicação originária do ser vivente na esfera do direito, ou, nas palavras de Schmitt, a ‗estruturação normal das relações de vida‘, de que a lei necessita. A decisão não concerne nem a uma questi juris nem a uma questi facti, mas à própria relação entre direito e fato.263 A profunda e obscura significação do estado de exceção como dispositivo original pelo qual o direito inclui em si o vivente, por meio de sua própria suspensão, revelou-se contemporaneamente, segundo Agamben, em toda sua nudez, na military order que o presidente dos Estados Unidos decretou em 13 de novembro de 2001 (motivadas como reação os atentados de 11 de setembro de 2001). Tratou-se, nestas disposições executivas, de submeter os não-cidadãos suspeitos pela atribuição genérica de atividade terrorista a jurisdições especiais que previam inclusive sua indefinitive detention (detenção ilimitada) e o processo perante comissões militares. O USA Patriot Act, de 26 de outubro de 2001, autorizou o Attorney General a deter todo alien (estrangeiro) suspeito de colocar 262 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 25. Agamben lembrará que a exceção está em posição estruturalmente simétrica à do exemplo. Porém, enquanto a exceção é uma exclusão inclusiva (inclui o elemento que é expulso) o exemplo se trata de uma inclusão exclusiva (―o paradoxo aqui é que o enunciado singular, que não se distingue em nada dos outros casos do mesmo gênero, é isolado deles justamente por pertencer ao mesmo número‖). Cf. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 29. Sobre a categoria do exemplo, Agamben pontua, em ―A comunidade que vem‖ que ele escapa à antinomia do universal e do particular. ―Qualquer que seja o âmbito que faça valer a sua força, o que caracteriza o exemplo é o facto de valer para todos os casos do mesmo género e, simultaneamente, estar incluído entre eles. Ele é uma singularidade ente outras, que está no entanto em vez de cada uma delas, vale por todas.Por um lado, todo exemplo é tratado, de facto, como um caso particular real, por outro reconhece-se que não pode valer na sua particularidade. Nem particular nem universal, o exemplo é um objeto singular que, digamos assim, se dá a ver como tal, mostra a sua singularidade. Daí a pregnância do termo que em grego exprime o exemplo; para-deigma, o que se mostra ao lado. ( como o alemão Bei-spiel, o que joga ao lado).‖ AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Op. cit. p. 16. 263 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 33. em risco a segurança nacional ianque (sendo exigido, entretanto, que em sete dias o estrangeiro fosse expulso ou então acusado de violar a lei de imigração ou outro delito).264 Para Agamben, ―a novidade da ‗ordem‘ do presidente Bush está em anular radicalmente todo estatuto jurídico do indivíduo, produzindo, desta forma, um ser juridicamente inominável e inclassificável.‖ Os indivíduos submetidos a estas disposições não gozam do estatuto legal de prisioneiros de guerra (PWO, segundo a Convenção de Genebra) ou de acusados perante as leis estadunidenses. Meros detainnes submetidos a uma dominação de fato, indefinida num sentido temporal e quanto à sua caracterização jurídica.265 O filósofo esloveno Slavoj Zizek, sobre este assunto, lembra que Num debate transmitido pela NBC, dois anos atrás, sobre o destino dos detentos em Guantánamo, um dos argumentos esdrúxulos para justificar a aceitabilidade ético-legal do status deles era que ‗eram aqueles a quem as bombas deixaram de matar‘: já que tinham sido alvos de bombardeios americanos e tinham sobrevivido a eles acidentalmente e como esses bombardeios faziam parte de uma operação militar legítima, então não se podia condenar o que foi feito com eles depois de terem sido feito prisioneiros, após o combate -fosse qual fosse sua situação, era melhor, e menos grave, do que estarem mortos. Esse raciocínio revela mais do que pretende revelar: ele coloca o prisioneiro quase literalmente na posição de morto-vivo, alguém que, de certa maneira, já está morto (tendo sido destituído de seu direito à vida pelo fato de ter sido alvo legítimo de um bombardeio assassino). (....) Assim, ele (Khalid Shaikh Mohammed, acusado pelos atentados de 11 de setembro) e outros prisioneiros semelhantes hoje são casos do que o filósofo político italiano Giorgio Agamben descreveu como ‗homo sacer‘, aquele que pode ser morto com impunidade, já que, aos olhos da lei, sua vida já deixou de ter validade. Se os prisioneiros de Guantánamo estão situados no espaço ‗entre duas mortes‘, ocupando a posição de ‗homo sacer‘, legalmente mortos (ou seja, privados de um status legal determinado) enquanto ainda estão biologicamente vivos, as autoridades americanas que os tratam dessa maneira também estão numa espécie de status legal intermediário que forma a contrapartida ao ‗homo sacer‘. Agindo como potência legal, seus atos deixaram de ser cobertos e limitados pela lei - operam num espaço vazio que é sustentado pela lei, mas não é regulamentado pelo Estado de Direito.266 264 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p. 14. Ibidem. Idem. 266 ZIZEK, Slavoj. A volta dos mortos vivos. In: Caderno Mais (Folha de São Paulo). São Paulo, 08 de abril de 2007. 265 Assevera Agamben que a única comparação possível da situação de tais detainnes é a dos hebreus nos Lager nazistas, porquanto, ―juntamente com a cidadania, haviam perdido toda a identidade jurídica, mas pelo menos conservavam a identidade de judeus. Como Judith Butler mostrou claramente, no detainne de Guantánamo a vida nua atinge sua máxima indeterminação.‖267 A partir deste exemplo recente pode(m) ser descortinada(s) a(s) topografia(s) da exceção a partir de Agamben (principalmente na rota de sua escavação arqueológica do conceito), ficando explícito, contudo, que ―o estado de exceção não é um direito especial (como o direito da guerra), mas, enquanto suspensão da própria ordem jurídica, define seu patamar ou seu conceito limite.‖268 Na verdade, o estado de exceção não é nem exterior nem interior ao ordenamento jurídico e o problema de sua definição diz respeito a um patamar, a uma zona de indiferença, em que dentro e fora não se excluem, mas se indeterminam. A suspensão da norma não significa sua abolição e a zona de anomia por ela instaurada não é (ou, pelo menos, não pretende ser) destituída de relação com a ordem jurídica.269 A tentativa mais rigorosa, segundo Agamben, de estabelecer uma teoria do estado de exceção é a própria obra de Carl Schmitt (principalmente ―A Ditadura‖ e a ―Teologia Política‖, ambas publicadas no início da década de 20, do séc. XX), porquanto estabelece para a análise da exceção uma complexa relação topológica (e não meramente topográfica) - e a própria compreensão deste dispositivo, para o filósofo italiano, vincula-se à determinação de sua localização (ou, deslocalização): seu topos relacional específico (sendo o conflito básico sobre o estado de exceção a disputa sobre este local que lhe é inerente). O objetivo dos dois livros de Carl Schmitt é inscrever, vincular, o estado de exceção a um contexto jurídico. Schmitt reconhece que o estado de exceção, à medida que instala uma suspensão do ordenamento jurídico, traz a aparência de subtrair-se a toda consideração a partir do direito, todavia, a questão 267 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. pp. 14-15. Ibidem. p. 15. 269 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p. 39. 268 que se coloca para o jurista alemão é justamente assegurar uma relação entre estado de exceção e direito.270 Havendo a possibilidade de circunscrever os poderes conferidos nos casos de exceção por meio de um controle mútuo ou de uma restrição temporal ou, finalmente, como na regulamentação feita pelo Estado de direito para o Estado de sítio, por meio da enumeração dos poderes extraordinários – então a dúvida sobre a soberania recua um pouco mas não é afastada. Um jurisprudência que se orienta pelas questões do diaa-dia e dos negócios correntes não tem interesse prático na soberania. Para ela, só o normal pode ser compreendido, e o resto é só é uma ‗perturbação‘. Diante de um caso extremo ela se sente confusa, pois nem toda atribuição excepcional, nem toda medida ou ordem emergencial policial é um estado de exceção. É preciso muito mais do que isto para a atribuição de um poder em princípio ilimitado, isto é, capaz de suspender toda a ordem vigente. Assim que esta condição se instala, torna-se claro que o Estado continua existindo, enquanto o direito recua. Como o estado de exceção é ainda algo diferente da anarquia e do caos, no sentido jurídico a ordem continua subsistindo, mesmo sem ser uma ordem jurídica. A existência do estado mantém, nesse caso, uma indubitável superioridade sobre a validade da norma jurídica. A decisão liberta-se de qualquer ligação normativa e torna-se, num certo sentido, absoluta. No caso da exceção o Estado suspende o direito em função, por assim dizer, do direito à auto-preservação. 271 Paradoxal articulação - dirá Agamben - porquanto o que se inscreve no direito revela-se essencialmente exterior a ele, haja vista que corresponde à própria suspensão da ordem jurídica. Seja qual for o operador desta inscrição (a distinção entre normas do direito e normas de realização do direito, em ―A ditadura‖; ou a distinção entre norma e decisão, em ―Teologia Política‖) – do estado de exceção na ordem jurídica – trata Schmitt de tentar comprovar que a suspensão da lei ainda pertence ao domínio do direito, não sendo apenas um exterior a-nômico.272 Compreende-se agora porque, na Politische Theologie, a teoria do estado de exceção pode ser apresentada como doutrina da soberania. O soberano, que pode decidir sobre o estado de exceção, garante sua 270 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p. 54. SCHMITT, Carl. Teologia Política. Quatro capítulos sobre a doutrina da soberania. Op. cit. p. 92. 272 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. 54. Lê-se, nesse sentido, na teologia Política: ―Como no caso normal, em que o momento independente da decisão pode ser reduzido a um mínimo, no caso da exceção a norma é eliminada. Mesmo assim, o caso de exceção continua acessível ao reconhecimento jurídico, porque ambos os elementos, tanto da norma quanto a decisão, permanecem no âmbito jurídico.‖ SCHMITT, Carl. Op. cit. Idem. 271 ancoragem na ordem jurídica. Mas, enquanto a decisão diz respeito aqui à própria anulação da norma, enquanto, pois, o estado de exceção representa a inclusão e a captura de um espaço que não está fora nem dentro (o que corresponde à norma anulada e suspensa) ‗o soberano está fora [steht ausserhalb] da norma jurídica normalmente válida e, entretanto, pertence [gehört] a ela, porque é responsável pela decisão quanto à possibilidade da suspensão in totto da constituição. Estar-fora e, ao mesmo tempo, pertencer; tal é a estrutura topológica do estado de exceção, e apenas porque o soberano que decide sobre a exceção é, na realidade, logicamente definido por ela em seu ser, é que ele pode ser definido pelo oximoro êxtase-pertencimento.273 Para Schmitt, portanto, o estado de exceção introduziria uma zona de anomia no jurídico, que tornaria possível a ordenação efetiva do real.274 Nesse sentido, para Agamben, o estado de exceção não seria uma ditadura, ou o domínio arbitrário de um soberano, mas um espaço vazio de direito (aí explicando as correlações entre estado de exceção e o iustitium do direito romano, correspondência desenvolvida por Agamben do capítulo terceiro de seu ―Estado de Exceção‖)275, espaço vazio que, em Schmitt, caberia à decisão soberana suturar. É preciso, entretanto, lançar aqui alguns pontos principais do debate esotérico (segundo Agamben) que travaram, sobre o estado de exceção, Carl Schmitt e Walter Benjamin (iniciado em 1925 e com desdobramentos até 1956).276 273 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. pp. 56-57. Em convergência com este argumento, lembrará Agamben que ―o direito tem caráter normativo, é ‗norma‘ (no sentido próprio de ‗esquadro‘) não porque comanda e prescreve, mas enquanto deve, antes de mais nada, criar o âmbito da própria referência na vida real, normalizá-la. Por isto – enquanto, digamos, estabelece as condições desta referência e, simultaneamente, a pressupõe – a estrutura originária da norma é sempre do tipo: ‗Se (caso real, p. ex.: si membrum rupsit), então (conseqüência jurídica, por ex.: talio est)‘, onde um fato é incluído na ordem jurídica através da sua exclusão e a transgressão parece preceder e determinar o caso lícito.‖ Cf.: AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 33. 275 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. pp. 65-80. 276 Para Agamben, o dossiê de tal discussão estaria corporificado na citação, por parte de Benjamin, da ―Teologia Política‖ schmittiana em ―Origem do drama barroco alemão‖; o curriculum vitae benjaminiano, de 1928; e a carta de Benjamin a Schmitt, de dezembro de 1930 (que Taubes chegou a definir como ―uma bomba que podia detonar nosso modo de representar nossa história intelectual do período de Weimar); as referências a Benjamin no livro Hamlet ed Ecuba, de Schmitt (dezesseis anos após a morte de Benjamin) além de seu livro sobre Hobbes, de 1938 (que o próprio Schmitt declarou, em carta a Viesel, tratar-se de uma resposta a Benjamin). Entretanto, conforme Agamben procura demonstrar, deve-se levar 274 Uma das partes mais importante deste dossiê diz respeito às leituras e comentários que Schmitt fará do ensaio benjaminiano ―Crítica da violência, crítica do poder‖,277 de 1920. Trata-se, para Benjamin, de estabelecer (nesse ensaio) uma violência-poder no exterior (ausserhalb) ou além do direito (jenseits), rompendo a dialética da violência que instaura e conserva o direito. É preciso lembrar que o termo que Benjamin se refere, Gewalt, pode ser utilizado tanto no significado de violência quando no de poder. Esta violência pura ou poder puro (reine278 Gewalt) simplesmente deporia (entsetzt) o direito. O termo schmittiano decisão (Entscheidung) surge também em Benjamin, mas ele é relacionado à indecidibilidade dos conflitos jurídicos, não sendo nada mais que uma categoria de contornos metafísicos (vide tópico II do primeiro capítulo). A hipótese agambeniana sobre o debate Benjamin-Schmitt é a de que toda a construção da soberania, na Teologia Política schmittiana, será uma resposta à categoria da violência pura/poder puro de Benjamin, que escaparia tanto ao poder constituinte quanto ao poder constituído. E a definição benjaminiana do soberano barroco na ―Origem do Drama Barroco Alemão‖ representaria uma tréplica ao conceito de soberania de Schmitt. Lá está exposta a teoria de uma ―indecisão soberana‖ (Benjamin usará o termo Ernsfall para se referir à exceção, que em Schmitt aparecerá como Ausnahmezustand). ―Se, para em consideração como primeiro documento do dossiê a leitura Schmittiana do ensaio de Benjamin - ―Crítica da Violência‖ - e analisar a própria concepção de soberania em Schmitt como uma contraposição e resposta à proposta benjaminiana. Como extrato importantíssimo no debate não se pode esquecer, finalmente, da oitava das teses benjaminianas sobre a filosofia da história. Cf. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. pp. 83-84. 277 Edição brasileira publicada em: BENJAMIN, Walter. Crítica da Violência – Crítica do Poder. In: Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie. Escritos escolhidos. (Tradução Willi Bolle). São Paulo, Editora USP/Cultrix, 1986. 278 Em uma carta de Benjamin a Stifer, em janeiro de 1919, em cuja fonte Agamben encontra o conceito de pureza (Reinheit), que pressupõe um significado não substancial, mas relacional de pureza: ―É um erro pressupor, em algum lugar, uma pureza que consiste em si mesma e que deve ser preservada [...] A pureza de um ser nunca é incondicionada e absoluta, é sempre subordinada a uma condição. Essa condição é diferente segundo o ser de cuja pureza se trata, mas nunca reside no próprio ser. Em outros termos, a pureza de todo ser (finito) não depende do próprio ser. [...] Para a natureza, a condição de sua pureza que se situa fora dela é a linguagem humana.‖ AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p. 94. Schmitt, a decisão é o elo que une soberania e estado de exceção, Benjamin, de modo irônico, separa o poder soberano de seu exercício e mostra que o soberano barroco está, constitutivamente, na impossibilidade de decidir.‖279 De tal modo que a exceção, na abordagem benjaminiana do barroco alemão, se configura unicamente como catástrofe. Essa drástica redefinição da função da soberania implica uma situação diferente do estado de exceção. Ele não aparece mais como limiar que garante a articulação entre um dentro e um fora, entre anomia e contexto jurídico em virtude de uma lei que está em vigor na sua suspensão: ele é, antes, uma zona de absoluta indeterminação entre anomia e direito, em que a esfera da criação e a ordem jurídica são arrastadas em uma mesma catástrofe.280 Enquanto, em Schmitt, a maquinaria jurídico-política é mantida no elo entre soberania e exceção (sua celebérrima e constantemente repetida afirmação, que abre sua Teologia Política, de que ―soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção‖281), em Benjamin temos a afirmação de que entre Macht e Vermögen, o poder e seu exercício, abre-se um fosso irrecuperável, mesmo para uma decisão soberana. O paradigma do estado de exceção benjaminiano não é o milagre, mas a catástrofe, não há correspondência entre soberania e transcendência (agambenianamente falando, o poder autopressuponente do soberano é desativado). Agamben lembrará que, em Benjamin, o soberano fica fechado no âmbito da criação, é o senhor das criaturas, mas permanece criatura‖,282 não sendo uma extensão do poder divino na terra, não conduzindo a humanidade para um ―além redimido‖, local previsto para o soberano em Schmitt.283 279 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p. 87. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p. 88. 281 SCHMITT, Carl. Teologia política. Quatro capítulos sobre a doutrina da soberania. Op. Cit. p. 86. 282 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p. 89. 283 ―Se apenas Deus é soberano, isto é, aquele que na realidade terrena age indiscriminadamente como seu representante – o imperador, o proprietário de terras ou o povo (aqueles que podem identificar-se com o povo) -, é uma pergunta sempre dirigida ao sujeito da soberania, a aplicação do conceito numa situação concreta.‖ SCHMITT, Carl. Teologia política. Quatro capítulos sobre a doutrina da soberania. Op. Cit. p. 90. 280 O ponto culminante do debate, entretanto, será a oitava das teses benjaminianas ―Sobre o conceito de história‖, onde se lê: A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção no qual vivemos é a regra. Precisamos chegar a um conceito de história que dê conta disso. Então surgirá diante de nós nossa tarefa, a de instaurar o real estado de exceção; e graças a isso, nossa posição na luta contra o fascismo tornar-se-á melhor.284 Além de uma nítida proposta temporal, de acordo com os propósitos das teses, mas também diretamente vinculada a ela, temos uma exceção que se torna a regra (transmuta-se, ademais, em vida) e torna o funcionamento do dispositivo (o estado de exceção fundado na decisão transcendente do soberano, e na própria distinção entre normalidade e exceção) impossível. De maneira que, tal proposta, para Agamben, coloca em questão a teoria schmittiana, porquanto ―a decisão soberana não está mais em condições de realizar a tarefa que a Politische Theologie lhe confiava: a regra, que coincide agora com aquilo de que vive, se devora a si mesma.‖285 Um pequeno parêntesis deve ser interposto nesse ponto do debate. Analisando-se os principais movimentos totalitários que emergiram no séc. XX, pode-se afirmar que estes se caracterizam justamente por solapar as antigas formas de governo (que estariam ainda representadas em seus desvios ditatoriais e autoritários), e, de certo modo, tornam regra a exceção (que conceitos como domínio total, ou mesmo totalitarismo, tentaram abarcar). Imprescindível é lembrar das advertência de Arendt ao iniciar, v.g., o quarto capítulo sobre o Totalitarismo ―Ideologia e Terror, uma nova forma de governo‖ - em sua investigação sobre ―As origens do totalitarismo‖: Nos capítulos precedentes, reiteramos o fato de que os métodos de domínio total não são apenas mais drásticos, mas que o totalitarismo difere essencialmente de outras formas de opressão política que conhecemos, como o despotismo, a tirania e a ditadura. Sempre que galgou o poder, o totalitarismo criou instituições políticas inteiramente novas e destruiu todas as tradições sociais, legais e políticas do país. Independentemente da tradição especificamente nacional ou da fonte 284 BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de história. In: LÖWI, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Op. cit. p. 83. 285 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p. 91. espiritual particular de sua ideologia, o governo totalitário sempre transformou as classes em massas, substitui o sistema partidário não por ditaduras unipartidárias, mas por um movimento de massa, transferiu o centro do poder do exército para a polícia e estabeleceu uma política exterior que visava abertamente ao domínio mundial. Os governos totalitários de nosso tempo evoluíram a partir de sistemas unipartidários; sempre que estes se tornaram realmente totalitários passavam a operar segundo um sistema de valores tão radicalmente diferentes de todos os outros que nenhuma das nossas tradicionais categorias utilitárias – legais, morais, lógicas ou de bom senso – podia mais nos ajudar a aceitar, julgar ou prever o seu curso de ação.286 Apresenta-se com obviedade o fato - que Michel Löwi apresentará como defesa a Benjamin - de que as manifestações mais drásticas destas funestas novidades no campo da história ocidental - consubstanciadas nas experiências totalitárias – somente serão desenvolvidas após a morte do filósofo judeu, no período entre 1941-1945.287 Por outro lado, não se pode negar que o próprio debate entre Benjamin e Schmitt288 – e a correlata teoria da exceção a ele compreendido – parecia ser, nas palavras de Taubes, uma bomba prestes a irromper no mundo intelectual weimariano (posteriormente Derrida, na conferência sobre o ensaio benjaminiano, textualmente equipara a reine Gewalt à ―solução final‖ nazista). Mais do que nunca, contudo, é preciso evidenciar a singularidade da teoria benjaminiana, principalmente na aproximação entre seus conceitos de estado de exceção efetivo e estado de exceção fictício (ou tout court), tentando perceber em que medida ela propõe o ultrapassamento mesmo da exceção fictícia totalitária (na medida em que esta, mais do que nunca, depende da máquina antropológica jurídico-política ocidental, mesmo que dos estertores mortíferos dos seus mecanismos - fenecimento, não raro, que ela mesma provoca; ou ela traria à luz o fundamento constitutivo da máquina, que a normalidade não permitiria ver, para falar em termos agambenianos). 286 ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Op. cit. p. 512. Cf. LÖWI, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Op. Cit. p. 84. 288 Em dezembro de 1930, juntamente com um exemplar de ―Origem do Drama Barroco Alemão‖ Benjamin envia uma carta a Carl Schmitt, manifestando sua admiração (Hochshätzung) e reconhecendo sua influência sobre o Trauerspielbuch. Cf. Ibidem. Idem. 287 Talvez possa ser possível afirmar que a exceção efetiva benjaminiana representa nada mais que uma luminescência teórica (extremamente heurística) – facho de luz relampejante em um momento de perigo (para usar de uma metáfora atrelada ao filósofo, dita no mesmo contexto das teses, seus últimos escritos) – para pensar o próprio local do político na ocasião da exceção que se torna a regra, o local onde o político manifestar-se-ia instantaneamente, fora dos ocultamentos de uma tradição irrevogavelmente subtraída, porém correndo o risco de ser afogado de maneira súbita pela maquinaria em colapso. Tal proposta será melhor explicitada a partir da análise benjaminiana da modernidade vazia que emerge após primeira guerra mundial, onde o filósofo tratará de uma nova barbárie que acompanha o fim da experiência (Erfahrung), ou da transmissibilidade de toda e qualquer experiência (baseada na narrativa) que acompanhará as gerações saídas das drásticas rupturas vivenciadas pelo mundo nas primeiras décadas do séc. XX.289 289 Cf.: BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza (1933). In: Magia, técnica, arte e política: ensaios sobe literatura e história da cultura. (tradução Sérgio P. Rouanet). 7.ed. São Paulo : Brasiliense, 1994. pp. 114-119. Jeanne Marie Gagnebin apresenta as três condições de realização da transmissibilidade da experiência que, para Benjamin, já não existiriam no mundo moderno capitalista das primeiras décadas do séc. XX. Seriam as seguintes: ―a) a experiência transmitida pelo relato deve ser comum ao narrador e ao ouvinte. Pressupõe, portanto, uma comunidade de vida e de discurso que o rápido desenvolvimento do capitalismo, da técnica, sobretudo, destruiu. A distância entre os grupos humanos, particularmente entre as gerações, transformou-se hoje em abismo porque as condições de vida mudam em um ritmo demasiado rápido para a capacidade humana de assimilação.Enquanto no passado o ancião que se aproximava da morte era o depositário privilegiado de uma experiência que transmitia aos mais jovens, hoje ele não passa de um velho cujo discurso é inútil. b) Esse caráter de comunidade entre vida e palavra apóia-se ele próprio na organização pré-capitalista do trabalho, em especial na atividade artesanal. O artesanato permite, devido a seus ritmos lentos e orgânicos, em oposição à rapidez do processo de trabalho industrial, e devido ao seu caráter totalizante, em oposição ao caráter fragmentário do trabalho em cadeia, por exemplo, uma sedimentação progressiva das diversas experiências e uma palavra unificadora. O ritmo do trabalho artesanal se inscreve em um tempo mais global, tempo onde ainda se tinha, justamente, tempo para contar. Finalmente, de acordo com Benjamin, os movimentos precisos do artesão, que respeita a matéria que transforma, têm uma relação profunda com a atividade narradora: já que esta também é, de certo modo, uma maneira de dar forma à imensa matéria narrável, participando assim da ligação secular entre a mão e a voz, entre o gesto e a palavra. c) A comunidade da experiência funda a dimensão prática da narrativa tradicional. Aquele que conta transmite um saber, uma sapiência, que seus ouvintes podem receber com proveito. Sapiência prática, que muitas vezes toma a forma de uma moral, de uma advertência, de um conselho, coisas que, Ao lado da nova forma de miséria surgida com o vertiginosamente monstruoso desenvolvimento da técnica que se sobreporá ao homem (este sujeito que passa a estar ―nu, deitado como um recém nascido nas fraldas sujas de nossa época‖), entre outros aspectos de uma barbárie catastrófica e galvanizadora sinônimo de uma irrecuperável perda de profundidade para a experiência humana - tem-se também, como outro lado da moeda e relacionada a esta mesma devastação (para Benjamin), um conceito novo e positivo de barbárie, onde estariam incluídos ―os homens implacáveis que operaram a partir de uma tabula rasa‖, tendo como característica ―uma desilusão radical com o século mas ao mesmo tempo uma total fidelidade a este mesmo século‖, aqueles ―que fizeram do novo uma coisa essencialmente sua, com lucidez e capacidade de renúncia.‖290 No conceito de estado de exceção efetivo novamente nos defrontamos com um nada - um vazio - a ser nulificado, deposto; uma forma de ação inoperante não inscrita nas estruturas do dispositivo. É preciso não esquecer que uma das premissas elementares do pensamento de Schmitt é a crítica à equiparação, operada na modernidade jurídico-política ocidental, entre estatalidade e política, ou o reducionismo da política à estatalidade (redução que para Schmitt não seria nada mais que sintomas de uma normalidade sempre instável e provisória, mantendo-se adequadamente quando ―Estado e as instituições estatais puderem ser pressupostas como algo evidente e sólido‖).291 Entretanto, esta equivalência (sempre fundada em pressuposições), além de ilusória, haverá necessariamente de ser revista quando esta ―normalidade― jurídica hoje, não sabemos o que fazer de tão isolados que estamos, cada um em seu mundo particular e privado. Ora, diz Benjamin, o conselho não consiste em intervir do exterior na vida de outrem, como interpretamos muitas vezes, mas em ‗fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada.‘ Esta bela definição destaca a inserção do narrador e do ouvinte dentro de um fluxo narrativo comum e vivo, já que a história continua, que está aberta a novas propostas e ao fazer junto. Quando este fluxo se esgota porque a memória e a tradição comuns já não existem, o indivíduo isolado, desorientado e desaconselhado (o mesmo adjetivo em alemão: ‗ratlos‘), reencontra então o seu duplo no herói solitário do romance, forma diferente de narração que Benjamin, após a ‗Teoria do Romance‘ de Lukács, analisa como forma da sociedade burguesa moderna.‖ GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin ou a história aberta. (Prefácio). In: Magia, técnica, arte e política: ensaios sobe literatura e história da cultura. Op. Cit. pp. 10-11. 290 BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. Op. Cit. pp. 115-118. 291 SCHMITT, Carl. O conceito do político. (Tradução Álvaro Valls). Petrópolis : Vozes: 1992. p. 47. passa a representar nada mais que uma ficção genericamente aceita, surgindo, de tal modo, o conceito da exceção e da soberania a ela atrelada na concepção schmittiana. Benjamin, mesmo que de maneira implícita, compartilha com Schmitt a negação da equivalência entre estatal e político. Porém a busca deste político (efetivo, não mistificatório) - de seu locus não relacional (integralmente práxis) - não estará mais vinculada a um poder transcendente que decidirá a partir da indeterminação. Seu conceito de reine Gewalt tentará dar conta deste local. Agamben, tratando da proposta benjaminiana, refletirá que Uma vez excluída qualquer possibilidade de um estado de exceção fictício, em que exceção e caso normal são distintos no tempo e no espaço, efetivo agora é o estado de exceção ‗em que vivemos‘ e que é absolutamente indiscernível da regra. Toda ficção entre um elo de violência e direito desapareceu aqui: não há senão uma zona de anomia em que age uma violência sem nenhuma roupagem jurídica. A tentativa do poder estatal de anexar-se à anomia por meio do estado de exceção é desmascarada por Benjamin por aquilo que ela é: uma fictio iuris por excelência que pretende manter o direito em sua própria suspensão como força de lei. Em seu lugar aparecem agora a guerra civil e violência revolucionária, isto é, uma ação humana que renunciou a qualquer relação com o direito. O estado de exceção fictício será diretamente atrelado ao conceito de força de lei, e todas as implicações nele compreendidos. Resta pensar, entretanto, esta ação humana (pura) totalmente desvinculada do direito e de toda metafísica (o factum político não mais inscrito na forma de um relacionamento categorial pressuposto) – a exceção efetiva - uma práxis materialista que Benjamin tentará opor aos mitologemas jurídico-políticos schmittianos, tais como decisão X nomos; soberano X vida nua; cultura X natureza; logos X phisis; normalidade X estado de exceção. Contudo, para pensar adequadamente o reine Gewalt benjaminiano será importante despi-lo da interminável e circular vinculação ao domínio dos meios e dos fins (que Agamben, insistentemente, chega a levar ao paroxismo, com sua idéia de meio puro, ou meio-sem-fim). É preciso lembrar da advertência arendtiana de que ―a perplexidade do utilitarismo é que se perde na cadeia interminável de meios e fins sem jamais chegar a algum princípio que possa justificar a categoria de meios e fins, isto é, a categoria da própria utilidade‖ 292, cadeia que nem mesmo conceitos como fim-em-si-mesmo ou meio-puro (meiosem-fim) conseguem quebrar (ressalte-se, v.g., a crítica arendtiana à concepção antropológica kantiana do homem como fim-em-si-mesmo). Pensar uma política não obscurecida (arendtianamente falando) pelas categorias do homo faber (que tanto impregna a tradição política ocidental) é simplesmente abolir a terminologia dos meios e dos fins (e das conseqüências faticamente funestas e teoricamente entorpecedoras da compreensão que elas acarretam). E por conseqüência óbvia, tal proposta necessariamente exige que se interprete o termo Gewalt com tendo, prioritariamente, o referencial semântico voltado à dimensão do poder, e não à estrita violência (que, conforme já visto, embrenha-se quase totalmente na esfera utilitária), mesmo que isso repercuta em teratologia filológica na hermenêutica do ensaio benjaminiano.293 Agamben, com todo seu vigor e obstinação em desativar os dispositivos de nosso tempo, acaba, ao interpretar a ação política benjaminiana, simplesmente reativando a maquinaria utilitária do homo faber (em franca obsolescência no presente).294 292 ARENDT, Hannah. A condição humana. Op. cit. p. 168. Seguimos uma interessante provocação de Jacques Rancière, no sentido de que ―compreender um pensador não é chegar a coincidir com seu centro. É, ao contrário, deportálo, conduzi-lo a uma trajetória em que suas articulações se afrouxam e permitem um jogo. É então possível des-figurar esse pensamento para refigurá-lo de outro modo, sair da restrição de suas palavras para enunciá-lo nessa língua estrangeira que, para Deleuze, depois de Proust, constitui a tarefa do escritor‖. RANCIÈRE, Jacques. Existe um estética deleuziana? In: ALLIEZ, Éric (org.) Gilles Deleuze, uma vida filosófica. Op. cit.. p. 505. 294 Abordagem sintomática em trechos como este: ―Como no ensaio sobre a língua, pura é a língua que não é instrumento para a comunicação, mas que comunica imediatamente ela mesma, isto é, uma comunicabilidade pura e simples; assim também é pura a violência que não se encontra numa relação de meio quanto a um fim, mas se mantém em relação com sua própria medialidade.‖ AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p. 96. Ora, frente a uma linguagem instrumentalizada resta opor a linguagem tal qual é, sem necessitar recorrer às categorias (ou esquema pré-formatado) de meios e fins que acarretam justamente o enquadramento de um língua como simples meio. É preciso denunciar a circularidade deste argumento. O que de modo algum impugna as imprescindíveis análises de Agamben (em quase todos os seus pontos de acerto), filósofo que certamente pode ser considerado um desbravador do labiríntico terreno político contemporâneo. 293 Nesse sentido entendemos como inescapável a iluminação (eminentemente profana) do reine Gewalt benjaminiano com a espontaneidade do agir arendtiano, principalmente no momento em que o pensamento se vê fadado a confrontar-se com uma vigência sem significado hipertrofiada do político institucional - transmutado em máquina mortífera - e na situação de que boa parte do que se convencionou intitular como política está, tradicionalmente, umbilicalmente ligada a este dispositivo que fenece. Mais do que nunca a exigência da ação como possibilidade de trazer algo novo ao mundo dos fatos, imersa na contingência e no irremediável tempo profano humano. Fazer - dos e nos destroços - um lugar, mesmo que seja no sentido do náufrago que usa este último destroço para mandar sinais.295 É preciso, portanto, entender por práxis aquela ―concreta e unitária realidade‖ que não necessita de mediações para ser, tais como natureza e cultura, animal e ratio, bíos e zoé, infraestrutura e superestrutura. Uma forma-de-vida não cindida (no sentido da mônada benjaminiana).296 ―Verdadeiro materialismo é somente aquele que suprime radicalmente esta separação e não vê jamais na realidade histórica concreta a soma de uma estrutura e de uma superestrutura, 295 ―Um náufrago que flutua em cima de um destroço, enquanto sobe para o topo do mastro que já está em pedaços. Mas ele tem chances de fazer um sinal de lá para que o salvem.‖ Extraído de uma das últimas cartas escritas em vida por Walter Benjamin, em correspondência a Scholem datada de 17 de abril de 1931. In: SCHOLEM, Gershom. Walter Benjamin: a história de uma amizade. (Tradução geral do Gerson de Souza, et. al.) São Paulo: Perspectiva, 1975. p. 230. 296 ―Materialista é somente aquele ponto de vista que suprime radicalmente a separação de estrutura e superestrutura, porque toma como objeto único a práxis em sua coesão original, ou seja, como ‗mônada‘ (‗mônada‘, na definição de Leibniz, é uma substância simples, ‗isto é, sem partes‘). A tarefa de garantir a unidade desta ‗mônada‘ é confiada à filologia, cujo objeto se apresenta, precisamente, em uma conversão polar daquilo que, para Adorno, era um juízo negativo, como uma ‗representação estupefata da facticidade‘ que exclui todo processo ideológico. A ‗mônada‘ da práxis apresenta-se, então, primeiramente como um ‗fragmento textual‘, como um hieróglifo que o filólogo deve construir na sua integridade factícia, na qual coexistem originalmente, em ‗mítica rigidez‘, tanto os elementos da estrutura quanto os elementos da superestrutura. A filologia é a donzela que, sem preocupações dialéticas, beija na boca o sapo da práxis.‖ AGAMBEN, Giorgio. O príncipe e o sapo. O problema do método em Adorno e Benjamin. In: Infância e história. Destruição da experiência e origem da história. (Tradução Henrique Burigo). Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005. p. 146. mas a unidade imediata de dois termos na práxis.‖ 297 Materialismo e imanência, veredas possíveis de uma política ainda por vir. Nessa rota - reatando com o debate do tópico anterior - assinalase, a partir de Agamben, que - na exceção fictícia - à pura força de lei de uma vigência sem significado corresponderá a figura de uma vida nua (bloβ Leben). A lei, tornada pura forma, coincide com a vida, mas deixando subsistir a vida matável e insacrificável do sacer, o portador simétrico da violência soberana (como o corpo de Joseph K. no Processo kafkiano). Na exceção efetiva (wirklich), segundo Agamben, ―à lei que se indetermina em vida contrapõe-se, em vez disso, uma vida que, com um gesto simétrico mas inverso, se transforma integralmente em lei‖298 Frente à escritura tornada inexeqüível que deixa restar uma vida nua na exceção fictícia, tem-se, na exceção efetiva, uma vida que se torna escritura (e uma escritura que se torna integralmente vida). Somente assim, segundo Agamben, é que os dois termos biunívocos (força de lei e vida nua) abolir-se-ão mutuamente, ―entrando em uma nova dimensão.‖299 Para Benjamin, ―é para trás que conduz o estudo, que converte a existência em escrita. O professor é Bucéfalo, o ‗novo advogado‘, que sem o poderoso Alexandre – isto é – livre do conquistador, que só queria caminhar para frente – toma o caminho de volta‖, contexto mesmo em que o filósofo levanta uma pergunta que ainda permanece crucial no desvelamento das aporias que cercam a política e o direito no Ocidente: É verdadeiramente o direito que em nome da justiça é mobilizado contra o mito? Não; como jurista, Bucéfalo permanece fiel à sua origem: porém ele não parece praticar o direito, e nisso, no sentido de Kafka, está o elemento novo, para Bucéfalo e para a advocacia. A porta da justiça é o direito que não é mais praticado e sim estudado.300 297 AGAMBEN, Giorgio. O príncipe e o sapo. O problema do método em Adorno e Benjamin. In: Infância e história. Op. cit. p. 145. 298 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 62. 299 Ibidem, p. 63. 300 BENJAMIN, Walter. Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte. (1934). In: Magia, técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.Op. Cit. p. 164. Restam, no entanto, para o presente tópico, alguns comentários sobre a hipótese da contemporânea ubiqüidade da exceção (implícita em muito do que já se apresentou até aqui). Como umas das conclusões ao seu Homo Sacer II, Agamben lembrará que o sistema jurídico ocidental consubstancia-se em uma estrutura biunívoca (ou bipolar, dual) formada por dois elementos heterogêneos que se coordenam respectivamente: o elementos normativo (jurídico em sentido estrito), estático, que o filósofo italiano reportará à dimensão da potestas; e uma dimensão ―anômica e metajurídica‖ inscrita a partir do conceito auctoritas.301 Estaria em simetria com tal estrutura a distinção schmittiana entre Estado e movimento, delineada por Agamben: Segundo Schmitt, a política do Reich nazista se funda sobre três elementos ou membros: Estado, movimento e povo. Por conseguinte, a articulação constitucional do Reich nazista é resultado da articulação e da distinção desses três elementos. O primeiro elemento é o Estado declara Schmitt – e importa prestar atenção na definição que ele dá: o Estado é a parte política estática. Trata-se do aparato das repartições. O povo – preste-se também atenção – é o elemento impolítico, não político, (unpolistisch), que cresce à sombra e sob a proteção do movimento. O movimento, por sua vez, é o verdadeiro elemento político, elemento político dinâmico, que encontra a sua forma específica na relação com o Partido Nacional-Socialista, com a direção (Führung). Importante é que para Schmitt o próprio Führer não é senão a personificação do movimento. 302 O estado de exceção seria o dispositivo que, em última instância, articularia e manteria unidos estes dois pólos da maquinaria jurídico política, ―instituindo um limiar de indecidibilidade entre anomia e nomos, entre vida e direito, entre auctoritas e potestas.‖303 Em outros termos, o direito está, desde sempre, inserido ficcionalmente na própria vida humana (não ultrapassa o estarno-mundo humano) porém pressupõe um além/fora normalizador desta vida (aí o papel da auctoritas e da força ou pura forma de lei e o forjar de uma pura e simples vida nua), aí estando sua fictio por excelência. O estado de exceção é 301 Para tanto, Cf. o segundo fragmento do primeiro capítulo desta dissertação. AGAMBEN, Giorgio. Movimento. (Tradução Selvino José Assman). In: Interthesis (Revista Internacional Interdisciplinar). Vol. 3. n. 01. Florianópolis, Janeiro-Junho de 2006. 303 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p.130. 302 esse ―fora‖ que se auto ―inclui‖.304 Nesse sentido, em continuidade à reflexão agambeniana, o dispositivo da exceção ―se baseia na ficção essencial pela qual a anomia – sob a forma da auctoritas, da lei viva ou da força de lei – ainda está em relação com a ordem jurídica e o poder de suspender a norma está em contato direto com a vida.‖305 Enquanto as dimensões da auctoritas e da potestas estão em relação, mesmo sendo conceitualmente diversas, tem-se a normalidade do dispositivo, mesmo que sua dialética esteja fundada numa ficção. Quando estes dois pólos se amalgamam ou se desconectam, por exemplo, em sua coincidência em uma só pessoa, ou quando a força de lei basta a si mesma como entidade autônoma, flutuando independentemente de qualquer potestas e de qualquer conteúdo normativo, quando a exceção torna-se a regra, então, para Agamben, o sistema jurídico pode metamorfosear-se em máquina letal (a política institucional pode convergir, ou inexoravelmente convergirá, para uma tanapolítica).306 Não é outra a conclusão que se chega ao analisarmos a estruturação da política contemporânea disseminada a partir de seu respectivo modelo de democracia de massas. Vigência sem significado sintomática não apenas da política e do direito, mas a própria tradição ocidental como um todo é engolfada no vácuo de um niilismo que nada revela, que se mantém como pura forma, grau zero de conteúdo cujo nada estaria representado de maneira exemplar na cultura do espetáculo (que, não obstante isso, pretende estar em 304 ―Se é verdade que a articulação entre vida e direito, anomia e nómos produzida pelo estado de exceção é eficaz, mas fictícias, não se pode, porém, extrair disso a conseqüência de que, além ou aquém dos dispositivos jurídicos, se abra em algum lugar um acesso imediato àquilo de que representam a fratura e, ao mesmo tempo, a impossível recomposição. Não existem, primeiro, a vida como dado biológico natural e a anomia como estado de natureza e, depois, sua implicação no direito por meio do estado de exceção. Ao contrário, a própria possibilidade de distinguir entre vida e direito, anomia e nómos coincide com sua articulação na máquina biopolítica. A vida pura e simples é um produto da máquina e não algo que pré-existe a ela, assim como o direito não tem nenhum fundamento na natureza ou no espírito divino. Vida e direito, anomia e nómos, autorictas e potestas resultam da fratura de alguma coisa a que não temos acesso senão por meio da ficção de sua articulação e do paciente trabalho que, desmascarando tal ficção, separa o que tinha pretendido unir. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p. 132. 305 Ibidem. Idem. 306 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p.131. todas as plagas do planeta). Próteses, não-lugares e parques temáticos: metáforas exemplares para representar o atual estádio da cultura ocidental, sua modernidade. Por toda a parte da terra os homens vivem hoje sob o bando de uma lei e de uma tradição que se mantém unicamente como ‗ponto zero‘ do seu conteúdo, incluindo-os em uma pura relação de abandono. Todas as sociedades e todas as culturas (não importa se democráticas ou totalitárias, conservadoras ou progressistas) entraram hoje em uma crise de legitimidade, em que a lei (significando com este termo o inteiro texto da tradição em seu aspecto regulador, quer se trate da Torah hebraica, da Shariah islâmica, do dogma cristão ou do nómos profano) vigora como puro ‗nada da Revelação‘.307 É preciso não esquecer, entretanto, que o outro lado funesto desta vil moeda é a manifestação, de forma proliferada, da vida nua que constitui a produção e fundamento latente deste vazio, aparecimento que se comprova, de maneira flagrante, com uma rápida leitura diária de qualquer periódico jornalístico do presente. Se faz imperioso pensar, portanto, qual a política que resta nos escombros do presente, ou, simplesmente, o que significa agir politicamente no mundo contemporâneo? Como desativar este nada, nulificá-lo? Questão que – inevitavelmente - deve ser pensada quando nos vemos na contingência de um direito e de uma política institucional sem relação com a vida, e de uma vida sem relação com o direito. No interior da fratura entre estes dois pólos, na lacuna aberta por sua desconexão, é preciso (para Agamben) pensar um espaço para a ação humana que ainda possa ser chamado de político (não mais eclipsado pela soberana estatalidade).308 Todavia, antes mesmo de buscar tais respostas (colocadas em termos quase geracionais à teoria política e, por que não, jurídica contemporânea) é preciso esquecer toda e qualquer tentativa nostálgica de tentar reafirmar a prevalência (ou um retorno a) de um pretenso estado democrático de direito, ou de normas e direitos fundamentais estatalizados, buscando confinar assim o estado de exceção nos seus limites temporais e espaciais (fazer novamente da exceção 307 308 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 59. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p.133. uma dimensão marginal da regra). Ora, além de tais conceitos estarem constitutivamente fundamentados na exceção aqui analisada, para falar com Agamben, ―o que está em questão agora são os próprios conceitos de estado e direito.‖309 Chegamos em um tempo onde, ainda mais que outrora, parece ser premente a advertência contida em um aforismo de Kafka, escrito em um tom muito semelhante ao que, posteriormente, Walter Benjamin irá usar em sua oitava tese de seus escritos sobre a história: ―Von einem gewissen Punkt an gibt es keine Rückkehr mehr. Dieser Punkt ist zu erreichen.‖ (―A partir de um certo ponto não há mais retorno. Esse é o ponto que deve ser alcançado.‖)310 Fazer deste exílio irretornável um local onde ainda possam ser possíveis as centelhas da esperança (não por um além redimido, mas pela própria possibilidade do inaudito e do imprevisível) – estacas para a catástrofe eminente – tornar efetivo este estar no mundo tal qual é (despido de mitologemas), singularmente integral, parece representar uma vereda ainda transitável nos obscuros labirintos em que fomos lançados. Constatação que implica, mesmo que de modo provisório, a abordagem do último fragmento desta dissertação. 3. As categorias benjaminianas de um estado de exceção efetivo contraposto ao estado de exceção fictício (v.g., de matriz schimittiana), revelam-se como debate central da teoria política e da própria teoria do direito contemporâneo. É preciso não olvidar, principalmente, de suas implicações temporais (como um combate também de concepções de tempo). Podemos pensar a exceção fictícia como uma temporalidade de miragem que se estabelece dentro do próprio tempo (mesmo ela, instância de 309 310 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. P. 131. KAFKA, Franz. Aforismos. (Tradução Silveira de Souza). Edição Virtual. s/d. exterioridade gelidamente pressuposta, nada mais é que um desdobramento do tempo-vida efetivo... Relegado à dissimulação). Estar na ex-ceção efetiva é estar desde sempre lançado no limiar do tempo que é - estar em sua porta sempre aberta; uma porta, uma soleira, que é sua própria chave. Exige pensar que a própria vida se configura na exceção, é a exceção, na medida em que, ab initio, aleatoriamente vindos do nada de algum lugar, já fomos condenados (a-bando-nados) - em sentença inexorável e irrecorrível - à morte (ao irremediável retorno ao nada de onde viemos), e o tomarse conta - lançar-se frente a frente – desta contingência e deste ser-para-morte, também pode ser o primeiro passo para tornar efetiva a vida que nos resta, sempre vivida diante (ou, em) um insalvável,311 ou melhor, salva apenas em seu ser irreparável. Um ser que não é nunca ele mesmo, mas é só o existente. Não é nunca existente, mas é o existente, integralmente e sem refúgio. Ele não funda, nem destina nem torna nulo o existente: é apenas o seu ser exposto, a sua auréola, o seu limite. O existente já não reenvia para o ser: ele é no meio do ser e o ser é inteiramente abandonado no existente. O existente já não reenvia para o próprio ser: ele é no meio do ser e o ser é inteiramente abandonado no existente. Sem refúgio e, todavia, salvo – salvo no seu ser irreparável. O ser, que é o existente, é para sempre salvo do risco de existir como coisa ou de ser anda. O existente, abandonado no meio do ser, é perfeitamente exposto.312 A exceção fictícia mantém-se nos simulacros temporais de referências: o tempo cronômetro, o tempo relógio, a linearidade, o progresso, o fluxo-processo da história interpretável como destino, desenvolvimento, fim, ponto de chegada, redenção. Na exceção efetiva as referências (externalidades) são abolidas, é este o ensinamento que a tradição dos oprimidos nos traz: a indistinção entre um fora e um dentro; bíos e zoé; tempo e vida; espaço e tempo. 311 ―Apenas podemos ter esperança naquilo que é sem remédio. Que as coisas estejam assim ou de outra maneira – isto é ainda no mundo. Mas que isso seja irreparável, que o assim seja sem remédio, que nós possamos contempla-lo como tal – isto é a única passagem para fora do mundo. (O caráter mais íntimo da salvação: que sejamos salvos só no instante em que já não queremos sê-lo. Por isso, nesse instante, existe salvação – mas não para nós)‖. AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Op. Cit. p. 83. 312 AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Op. Cit. p. 81. Benjaminianamente falando, entretanto, essas não são as únicas implicações da exceção efetiva. Temos aí a advertência para a abolição de uma temporalidade monoliticamente espacializada na tríade de um passado fechado (enrijecido em fatos-cadáveres), um presente homogêneo e vazio, e o não-lugar de um futuro que tudo arrasta em sua trajetória contínua. Para Benjamin, agora em sua sexta tese sobre o conceito de história, ―o dom de atear ao passado a centelha da esperança pertence somente àquele historiador que está perpassado pela convicção de que também os mortos não estarão seguros diante do inimigo, se ele for vitorioso.‖313 Um passado que depende e está no presente (para lembrar de uma citação de Faulkner muito apreciada por Hannah Arendt, ―o passado nunca está morto, ele nem mesmo é passado‖314), que não está incólume em um reduto inatingível, mas os eventos do próprio presente podem afetar o passado (até mesmo suprimi-lo). A catástrofe é possível, como também é possível a capacidade humana, uma profana e débil força messiânica, de evitá-la.315 A ação política, para Benjamin, não pode menosprezar tal relação com a história: 313 BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de história. In: LÖWI, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Op. cit. p. 65. 314 Apud: ARENDT, Hannah. Prefácio. A quebra entre passado e o futuro. In: Entre o passado e o futuro. Op. cit. p. 37. 315 ―‘Pertence às mais notáveis particularidades do espírito humano, [...] ao lado de tanto egoísmo no indivíduo, a ausência geral de inveja de cada presente em face de seu futuro‘, diz Lotze. Essa reflexão leva a reconhecer que a imagem da felicidade que cultivamos está inteiramente tingida pelo tempo a que, um vez por todas, nos remeteu o decurso de nossa existência. Felicidade que poderia despertar inveja em nós existe tão-somente no ar que respiramos, com os homens com quem poderíamos ter podido conversar, com as mulheres que poderiam ter se dado a nós. Em outras palavras, na representação da felicidade vibra conjuntamente, inalienável, a [representação] da redenção. Com a representação do passado, que a história toma por sua causa, passa-se o mesmo. O passado leva consigo um índice secreto pelo qual ele é remetido à redenção.Nos nos afaga, pois, levemente um sopro de ar que envolveu os que nos precederam? Não ressoa nas vozes a que damos ouvido um eco das que estão, agora, caladas? E as mulheres que cortejamos não têm que jamais conheceram? Se assim é, um encontro secreto está marcado entre as gerações passadas e a nossa. Então fomos esperados sobre a terra. Então nos foi dada, assim como a cada geração que nos precedeu, uma fraca força messiânica, a qual o passado têm pretensão. Essa pretensão não pode ser descartada sem uso. O materialista histórico sabe disso.‖ Tese II. BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de história. In: LÖWI, Michel. Op. cit. p. 48. Para o pensador revolucionário, a chance revolucionária própria de cada instante histórico se confirma a partir de cada situação política. Mas ela se lhe confirma não menos pelo poder chave desse instante sobre um compartimento inteiramente determinado, até então fechado, do passado. A entrada nesse compartimento coincide estritamente com a ação política; e é por essa entrada que a ação política, por mais aniquiladora que seja, pode ser reconhecida como messiânica. (A sociedade sem classes não é a meta final do progresso na história, mas, sim, sua interrupção, tantas vezes malograda, finalmente efetuada).316 Ressalte-se que frente à historia objetiva, à história tal qual foi, temos um deslocamento que se volta para a própria narratividade desta história. É nessa rota que se sobressai a categoria, retomada por Benjamin de Goethe, de Ursprung (origem), ou Urphänomene, não como um retorno melancólico a uma Ur pré-histórica ou um saudosismo por uma realidade pré-capitalista artesanal, porém o Ursprung entendido como fragmento que contém, em si, em sua integralidade monadológica, uma centelha relampejante do passado que pode, segundo, Jeanne Marie Gagnebin, representar um ―salto (Sprung) para fora da sucessão cronológica niveladora à qual uma certa forma de explicação histórica nos acomodou.‖ Só assim, através da recuperação, ao estilo de um colecionador, dos cacos da história, estilhaços apresentados em sua “exterioridade e excentricidade” (sem submissão a uma mediação exterior causal), é que o historiador poderá ―quebrar a linha do tempo,‖ operando ―cortes no discurso ronronante e nivelador da historiografia tradicional.‖317 A pesquisa se detém e se mantém no estudo do fenômeno, não para dar dele uma descrição ingenuamente positivista, mas, pelo contrário, para lhe restituir sua dimensão de objeto ‗bruto‘, único e irredutível; ela o imobiliza nessa brutalidade para preservá-lo do esquecimento e da destruição, cujas explicações já prontas são formas correntes. (...) Tratase muito mais de designar, com a noção de Ursprung, saltos e recortes inovadores que estilhaçam a cronologia tranqüila da história oficial, interrupções que querem, também, parar esse tempo infinito e indefinido, como relata a anedota dos franco-atiradores (Tese XV), que destroem os relógios na noite da revolução de Julho: parar o tempo para permitir ao 316 Tese XVII das Teses sobre o cocneito de história. BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de história. In: LÖWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Op. Cit. p. 134. 317 GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2004. p.10. passado esquecido ou recalcado surgir de novo (ent-springen, mesmo radical que Ursprung), e ser assim retomado e resgatado no atual.318 O historiador ―arquetípico‖, na vereda da perspectiva benjaminiana, seria Marcel Proust. Porquanto, segundo Gagnebin A grandeza das lembranças proustianas não vem de seu conteúdo, pois a bem da verdade a vida burguesa nunca é assim tão interessante. O golpe de gênio de Proust está em não ter escrito ‗memórias‘, mas, justamente, uma ‗busca‘, uma busca das analogias entre passado e o presente. Proust não reencontra o passado em si – que talvez fosse bastante insosso –, mas a presença do passado no presente e o presente que já está lá, prefigurado no passado, ou seja, uma semelhança profunda, mais forte do que o tempo que passa e que se esvai sem que possamos segurá-lo. A tarefa do escritor não é, portanto, simplesmente relembrar os acontecimentos, mas ‗subtraí-los às contingências do tempo em uma metáfora‘.319 Um trecho exemplar de Ursprung na escritura proustiana está na figura dos bolinhos (chamados madalenas) com chá que o protagonista, no frio do presente, saboreia (ao pensarmos a integralidade do fragmento monadológico não devemos deixar de lado também sua dimensões tácteis, sensoriais, que a influência platônica certamente ajudou a extirpar da filosofia ocidental), sendo tal fragmento de experiência uma chave que descortinará todo um mundo de sua infância, em Combray, que perdido estava na penumbra do esquecimento... E mal reconheci o gosto do pedaço de madalena molhado em chá que minha tia me dava (embora ainda não soubesse, e tivesse de deixar para muito mais tarde tal averiguação, por que motivo aquela lembrança me tornava tão feliz), eis que a velha casa cinzenta, de fachada para a rua, onde estava o meu quarto, veio aplicar-se, como um cenário de teatro, ao pequeno pavilhão que dava para o jardim, e que fora construído para meus pais ao fundo da mesma (esse truncado trecho da casa que era só o que eu recordava até então); e, com a casa, a cidade toda, desde a manhã ou à noite, por qualquer tempo, a praça para onde me mandavam antes do almoço, as ruas por onde eu passava e as estradas que seguíamos quando fazia bom tempo. E, como nesse divertimento japonês de mergulhar numa bacia de porcelana cheia d‘água pedacinhos de papel, até então indistintos e que, depois de molhados, se estiram, se delineiam, se colorem, se diferenciam, tornam-se flores, casas, personagens consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores do nosso jardim e as do parque do Sr. Swann, e as ninféias do Vivonne, e a 318 10. 319 GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. Op. cit. p. GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin ou a história aberta. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Op. cit. p. 15 boa gente da aldeia e suas pequenas moradias, e a igreja e toda Combray e seus arredores, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha taça de chá.320 O jogo - a dança humana - entre rememoração e esquecimento, mnemon e amnésia, isso é o que está no centro do texto (no sentido romano daquilo que se tece, como a teia de Penélope) de Proust, à luz da reflexão de Benjamin: Sabemos que Proust não descreveu em sua obra uma vida como ela de fato foi, e sim uma vida lembrada por quem a viveu. Porém, esse comentário ainda é difuso, e demasiadamente grosseiro. Pois o importante, para o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência. Ou seria preferível falar do trabalho de Penélope do esquecimento? A memória involuntária, de Proust, não está mais próxima do esquecimento que daquilo que em geral chamamos de reminiscência? Não seria esse trabalho de rememoração espontânea, em que a recordação é a trama e o esquecimento a urdidura, o oposto do trabalho de Penélope, mais que sua cópia?321 Raduan Nassar, em seu belíssimo ―Lavoura Arcaica‖, nas rememorações de André, seu protagonista, lançará uma imagem poética extremamente pertinente sobre o limiares entre memória e vida, memória e esquecimento... Ur-didura górdia que o tempo, como algoz, Cronos-Saturno que deglute seu filhos, submete-nos em cada instante. (...) o tempo, o tempo, esse algoz às vezes suave, às vezes mais terrível, demônio absoluto conferindo qualidade a todas as coisas, é ele ainda hoje e sempre quem decide por isso a quem me curvo cheio de medo e erguido em suspense me perguntando qual o momento, o momento preciso da transposição? que instante, que instante terrível é esse que marca o salto? que massa de vento, que fundo do espaço concorrem para levar ao limite? o limite em que as coisas já desprovidas de vibração deixam de ser simplesmente vida na corrente do dia-a-dia para ser vida nos subterrâneos da memória; (...)322 É preciso ressaltar que o Ursprung, em sua urdidura textual, não está além dos objetos, da materialidade, ao contrário, está indissoluvelmente depositado nesta, em uma ―constelação saturada de tensões‖. Caberia à pesquisa 320 PROUST, Marcel. No caminho de Swann. (Em Busca do Tempo Perdido I). (Tradução Mário Quintana). 3ª ed. Porto Alegre: Globo, 2006. p. 47. 321 BENJAMIN, Walter. A Imagem de Proust. In: Magia e técnica, arte e política. Op. Cit. p. 37. 322 NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica. 3º Ed. São Paulo: Cia das Letras, 1989. p. 99. histórica conferir, a esta constelação, um choque através do qual esta cristalizarse-ia em mônada, conservando – e isso é paradigmático nas análises de Benjamin sobre o séc. XIX a partir de Baudelaire - ―na obra a obra de uma vida, na obra de uma vida, a época, e na época, todo o decurso da história.‖323 O Urphänomen benjaminiano revela-se a partir de uma arché imersa nas aparências, na matéria concreta na qual se abrigam os seres humanos no mundo, matéria constitutiva desta mesma humanidade, sem disjunções. Está em simetria com a idéia temporal do estado de exceção efetivo na medida em que se configura como integralidade onde palavra e coisa; idéia e experiência; corpo e alma; escrita e vida (e mesmo espaço e tempo) conjugam-se, indistinguem-se em uma constelação material de significados que está, desde sempre, presa ao mundo e nele tem sua condição de possibilidade. ―Maravilha da aparência‖ que Hannah Arendt, teórica que certamente recebeu desta metodologia inestimáveis influências, irá sintetizar de uma forma extremamente apropriada em seu ensaio biográfico sobre Benjamin; trecho que, por falar por si mesmo, apresentamos como remate a este fragmento: Quando Adorno criticou a ‗apresentação aberta de atualidades‘ de Benjamin (Briefe, vol. II, p. 793), pegou o ponto exato; era precisamente o que Benjamin fazia e queria fazer. Fortemente influenciado pelo surrealismo, era a ‗tentativa de capturar o retrato da história nas representações mais insignificantes da realidade, por assim dizer em suas raspas‘ (Briefe, vol. II, p. 685). Benjamin tinha paixão pelas coisas pequenas, até minúsculas; Scholem conta de sua ambição de colocar cem linhas escritas na página comum de um caderno de notas, e da sua admiração por dois grãos de trigo na seção judaica do Museu Cluny, ‗onde uma alma irmã inscrevera na íntegra o Shema Israel.‘ Para ele, a dimensão de um objeto era inversamente proporcional à sua significação. E essa paixão, longe de ser um capricho, derivava imediatamente da única concepção de mundo que teve uma influência decisiva sobre ele, a convicção de Goethe sobre a existência fática de um Urphänomen, um fenômeno arquetípico, uma coisa concreta a ser descoberta no mundo das aparências, na qual coincidiriam ‗significado‘ (Bedeutung, a mais goetheana das palavras, é recorrente nos textos de Benjamin) e aparência, palavra e coisa, idéia e experiência. Quanto menor fosse o objeto, tanto mais provável pareceria poder conter tudo sob a mais concentrada forma; daí seu deleite em que dois grãos de trigo 323 Tese XVII, das teses sobre a filosofia da história. BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de história. In: LÖWI, Michel. Op. cit. p. 130. contivessem todo o Shema Israel, a essência mesma do judaísmo, a mais minúscula essência aparecendo na mais minúscula entidade, de onde, em ambos os casos, tudo o mais se origina, embora em significado não possa ser comparado à sua origem. Em outras palavras, o que desde o início fascinou Benjamin nunca foi uma idéia, sempre foi um fenômeno. ‗O que parece paradoxal em tudo que é, com justiça, chamado de belo é o fato de que apareça‘ (Schriften, vol. I, p. 349), e esse paradoxo – ou, mais simplesmente, a maravilha da aparência – sempre esteve no centro de todas as suas preocupações.324 A maravilha da aparência do Urphänomen. Talvez essa seja a vereda de volta, o caminho para trás, que Bucéfalo, o novo advogado livre do conquistador, traça na transfiguração da existência em escrita, e da escrita em existência. Quiçá esteja aí o desatar de um nó górdio ainda pendente de solução para nós, contemporâneos. Nó, porém, não mais rompido com a espada de Alexandre, mas através da eqüestre mordida de Bucéfalo. Lembremo-nos de um provérbio saltimbanco... ―Conselho em forma de enigma. – ‗Se o laço não deve romper – é preciso antes morder.‖325 324 ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. (Tradução Denise Bottmann). São Paulo : Companhia das Letras,1987. p. 142. 325 NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. (Tradução Paulo Cezar de Souza). São Paulo: Cia das Letras, 2005. p. 69. Considerações finais As linhas tecidas nessa dissertação visam, em primeiro lugar, formar uma malha que se mantém unida no propósito principal de compreensão o porquê dos fragmentos heurísticos. O trabalho arma-se em pedaços soltos mosaicos, micro constelações de significados - pela simples razão de que não há mais espaço - na teoria política e jurídica do presente – para os grandes corpus exegético-metodológicos, seja no sentido de uma suposta (ulterior) formação de tais monumentos, seja no sentido da contemporânea (in)existência de tais solidificações como ponto de partida para o caminhar teórico. Não há circunscrição e delimitação no texto, assim como não há pretensão alguma de esgotamento de determinado assunto. Lançamos e esboçamos configurações, nada mais. Aproximamo-nos, nesse sentido, à bela porém trágica postura teórica impressionista,326 muito mais por incapacidade de fechamento – incapacidade de colocar formas no informe das mônadas significativas - que por técnica metodológica deliberada. Algo que não nos impede, porém, de apresentar algumas constantes que permearam o núcleo de justificação deste trabalho, três locais que apresentamos à guisa de provisória conclusão. 326 ―Todo impressionismo é, em sua essência, uma forma de transição e, a esse título, rejeita o fechamento, a modelagem final imposta pelo destino ou impondo-se a ele – não por princípio, mas por incapacidade de chegar a tanto (...). O impressionismo sente e avalia as grandes formas rígidas, prometidas à eternidade, como violências feitas à vida, à sua riqueza e à sua policromia, à sua plenitude e à sua polifonia; ele não cessa de glorificar a vida e pôr toda forma a seu serviço. Mas, com isso, a essência da forma torna-se problemática. A empresa heróico trágica dos grades impressionistas consiste justamente em que essa forma – da qual não pode escapar, pois é único meio possível de sua substancial existência – ele pedem e impõem sempre algo que contradiz sua destinação, ou mesmo a suprime, porque deixando de se fechar, soberana e acabada em si, a forma deixa de ser forma. Uma forma servil, aberta à vida, não poderia existir.‖ LUKÁCS, G. Posfácio à memória de Simmel (1918). In: SIMMEL, Georg. Filosofia do amor. (Tradução Eduardo Brandão). 3º ed. São Paulo : Martins Fontes, 2006. p. 203. 1. No tempo em que o direito ocidental se vê reduzido – no mundo das sociedade espetacularizadas de massa – às derivas da decisão, ou melhor, extravia-se na e para a decisão (de acordo com as rotas e fenômenos tratados no decorrer do texto), imprescindível é a revisão crítica de toda e qualquer tentativa celebratória de ver nesta centralidade decisionista a panacéia para boa parte das aporias jurídico-políticas que acometem, de maneira catastrófica, nosso tempo. Por outro lado, é preciso ter em mente que as reconfigurações da estatalidade não implicam o fim deste modelo até hoje vigente de Estado, trazem, ao contrário, nada mais que novos desafios à sua compreensão (ainda temos aí, de maneira até então inaudita, o imiscuir-se de uma força de lei mortífera). O extravio do jurídico exige primeiramente a revisão do quadro de referências fundado no normativismo positivista e, para as teorias que pretendam não se vincular à temporalidade vazia e homogênea do que está dado nos dispositivos que presidem a máquina antropológica contemporânea, o confronto com as matrizes sistêmicas. 2. A força de lei evidencia-se em categoria chave para pensar o mundo contemporâneo. Não só nos aspectos jurídico-políticos, mas culturais (o que está disseminadamente presente na vigência sem significado - o nada abissal de revelação - dos artefatos do espetáculo). Ou melhor, a política institucional do ocidente se vê pressurizada frente a um espetáculo que já a capturou. Estamos diante, hoje, de uma maquinaria política contaminada (até a mais recôndita de suas peças) por uma hipertrofiada vigência sem significado do sublime dispositivo improfanável espetacular. A biopolítica contemporânea nada mais indica que a produção, em escala hi-tech, da vida nua por esta máquina antropológica. 3. Porém, tal como Agamben insiste em lembrar, não basta o reconhecimento desta vigência sem significado, este niilismo imperfeito que Scholem (e, por que não?, também Schmitt) diagnosticou. É preciso nadificar até mesmo este nada. Benjaminianamente falando, se realmente vivenciamos a ubiqüidade da exceção, se a exceção tornou-se a regra, é preciso criar um estado de exceção efetivo, desativando o misticismo (o embrujamiento, o fetiche-feitiço) corporificado na força de lei; da exceção vinculada a um poder de vida e morte. É nesse momento, no ocaso do político institucional fundado na pura pressuposição dos mitologemas, é que se abre a oportunidade de pensarmos o próprio local autônomo do político, um político não mais eclipsado pelas instâncias soberanas jurídico-estatais nem mesmo pelos dispositivos da oikonomia contemporânea. O que resta é pensar, novamente, o significado do próprio agir humano. Sobre este agir só podemos antecipar que, como condição de sua possibilidade, terá de assumir a temporalidade messiânico-profana da vida e do tempo que resta, em sua integralidade. Uma ação que não tenha como resíduo, tal como na Grécia antiga, uma vida nua. Agir inscrito na práxis insalvável, numa multifacetada temporalidade prenhe de possibilidades - pois fundada na contingência - que possa se inscrever em outros horizontes de sentido (kairológicos) que não aqueles que o mecanismo claustricamente reconhece como tais. Ad conclusan, uma ação, tal como Benjamin a intuiu, que exija o tornar teoria da vida e o tornar vida da teoria. O verbo que se faz carne e a carne que se faz verbo. Humana. Demasiadamente, integralmente. REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. (Tradução de Antônio Guerreiro). Lisboa : Editorial Presença, 1993. ______. Entrevista. 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