UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA – UFSC
CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO – CPGD
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JONNEFER FRANCISCO BARBOSA
EXTRAVIO DO JURÍDICO, OCASO DO POLÍTICO, UBIQÜIDADE DA EXCEÇÃO
FRAGMENTOS HEURÍSTICOS SOBRE ALGUNS LOCAIS DA FILOSOFIA DO DIREITO CONTEMPORÂNEO
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FLORIANÓPOLIS
2007
JONNEFER FRANCISCO BARBOSA
EXTRAVIO DO JURÍDICO, OCASO DO POLÍTICO, UBIQÜIDADE DA EXCEÇÃO
FRAGMENTOS HEURÍSTICOS SOBRE ALGUNS LOCAIS DA FILOSOFIA DO DIREITO CONTEMPORÂNEO
Dissertação apresentada como requisito parcial
à obtenção do grau de Mestre em Direito, Curso
de Pós-Graduação em Direito, Centro de
Ciências Jurídicas, Universidade Federal de
Santa Catarina.
Orientadora: Profª. Drª. Jeanine Nicolazzi
Philippi.
FLORIANÓPOLIS
2007
JONNEFER FRANCISCO BARBOSA
EXTRAVIO DO JURÍDICO, OCASO DO POLÍTICO, UBIQÜIDADE DA EXCEÇÃO
FRAGMENTOS HEURÍSTICOS SOBRE ALGUNS LOCAIS DA FILOSOFIA DO DIREITO CONTEMPORÂNEO
COMISSÃO EXAMINADORA
______________________________________
Profª. Drª. Jeanine Nicolazzi Philipp
Universidade Federal de Santa Catarina - CPGD
______________________________________
Prof. Dr. Raúl Antelo
Universidade Federal de Santa Catarina - CCE
______________________________________
Prof. Dr. Selvino Assman
Universidade Federal de Santa Catarina - CFH
Florianópolis, 12 de julho de 2007.
AGRADECIMENTOS
“Yo tengo tantos hermanos / Que no los puedo contar / En el valle en la montaña / En la pampa y en el mar / Cada cual
con sus trabajos / Con sus sueños cada cual / Con la esperanza adelante / Con los recuerdos de tras (…) Gente de
mano caliente / Por eso de la amistad / Con un lloro pa llorarlo / Con un rezo pa rezar / Con un horizonte abierto / Que
siempre está mas allá / Y esa fuerza pa buscarlo / Con tezon e voluntad / Cuando parece más cerca / Es cuando se aleja
más (…) Y así seguimos andando / Curtidos de soledad / Nos perdemos por el mundo / Nos volvemos a encontrar / Y así
nos reconocemos / Por el lejano mirar (…)” (A. Yupanqui)
Estas palavras - lançadas ao léu no formato dissertativo - não
teriam sido possíveis sem o intertexto fraterno dos amigos que, nos primeiros
meses de 2005, formaram uma comunidade (no sentido forte do termo) nessas
paragens insulares do Desterro. Juntos combatemos - mesmo que de uma
maneira distraída, mambembe, quase imperceptível – a pior das hojarascas que
pode acometer uma ilha, o isola-mento.
Flanagens, lugares, festejos, conversas, ações... muito disso está
nas malhas do texto que levo (não digo o da dissertação), mas da própria vida.
Quero deixar meu agradecimento, minha lembrança, a estas singularidades
quaisquer...
Vinícius Nicastro Honesko, Hermes da Fonseca e Suellen Muniz
Coelho, trio de andarilhosaltimbancos, pelos diálogos (peripatéticos) vitais, pelas
angústias compartilhadas e pela cumplicidade da amizade. Rafael Filippin, Joel
Aló Fernandes, Fernando Gregui, André Rodrigues, Elton Fogaça, Marcelo
Lasperg, Cissa Domingos, Paulo César Barbosa, Antônio Lopes, Margit Brugger,
Melina Rocha, Thiago Souma Martins, Dulce Piacentini, Fabiana Pinheiro, Ana
Paula Marcante, Marina Vital, Carol Ruschel e todos os aqueles que deixaram e
deixarão muita saudade.
Não posso esquecer de outra ilha, querida ilhota cercada pelos
campos gerais do Paraná, ―Princesa dos Campos‖ e seus ventos, onde realmente
tudo começou. Quero agradecer minha amiga, mestre, ―guia oracular‖, Christina
Miranda Ribas (mesmo um simples agradecimento ainda é muito prosaico,
contudo), meus amigos - velhos
e diletos camaradas - Piter Zander, Thaís
Ribeiro, Vinícius Teófilo Luchese, Agnon Ribeiro, Tahyana Ribeiro, Willian Weid
Bezerra e Bruno Ribeiro (sempre cometendo a temeridade de esquecer de
alguém). Lembrando também do Projeto de Ensino Direito e Justiça - dirigido pela
Chris - ao qual muito devo, agradeço o grupo participante (a maior parte já
citados) entre os anos de 2002, 2003 e 2004, linhas de fuga (conspiratórias) do
curso de direito da UEPG.
Ao
amigo
Ben-hur
Demeneck,
pelos
diálogos
(não
raro
acompanhados de boa música e quitutes) em Uvaranas (ou mesmo nas várias
caminhadas pelo bairro) e pelo incondicional apoio durante a graduação em Ponta
Grossa e nos primeiros dias em Florianópolis (agradecimento que também dirijo a
Dona Ernestina).
Ao advogado - apaixonado por processo coletivo, HQ‘s e
Surrealismo - Marcius Nadal Matos, pelo apoio estrutural dado ainda nos tempos
de graduação e, principalmente, pelo incentivo aos lampejos da ousadia.
Aos professores Alessandro Pinzani e Raul Antelo, pelas
sugestões na qualificação de meu claudicante projeto. Ao professor Carlos
Capela, pelos diálogos na ocasião da disciplina ―Teoria da Modernidade‖, no
mestrado em literatura da UFSC e ao professor Sérgio Cademartori, pelo
acompanhamento nas veredas da teoria do direito.
Meu agradecimento aos professores membros da banca, professor
Raul Antelo e Selvino Assman, pela gentileza, pela leitura e provocações
lançadas.
Sou muito grato à professora Jeanine Philippi, pela orientação,
disponibilidade, paciência com as derivas e, principalmente, pelo exemplo de
resistência intelectual.
Agradeço (extremamente) meus pais - Renato e Jucelma Barbosa e meus irmãos - Willian e Renata - pelo apoio inestimável, pelo cuidado acolhedor
e pela paciência nesses últimos meses de escrita da dissertação em Guarapuava.
Finalmente, à minha namorada, companheira, amiga... Aline
Hessel, e ao seu filho Ivan (com quem re-aprendo, piá extemporâneo, a arte de
brincar).
A ambos, com muito carinho, vai dedicado este texto. Sabem bem
o porquê.
Terras de Guairacá – Princesa dos Campos – Ilha de Nossa Senhora do Desterro,
Entre lapsos, interrupções e continuidades, nos meses de janeiro e abril de 2007.
RESUMO
Objetiva o presente trabalho – cujos arranjos estão fixados basicamente na
intersecção entre a filosofia do direito e a filosofia política - lançar confrontações e
análises – instaladas num caráter deliberadamente fragmentário - no plano de três
eixos temáticos principais (intitulados, respectivamente: extravio do jurídico; ocaso
do político e a ubiqüidade da exceção), compondo-se, cada eixo, de fragmentostese - sínteses heurísticas de argumentos e hipóteses - que tentam circunscrever
debates – topografias – sobre algumas aporias ainda pendentes de respostas na
teoria e na filosofia do direito contemporâneo, v.g, (eixo I) crise da estatalidade,
topografias da decisão jurídica, direito e temporalidade, refuncionalização do
direito nas sociedades de massas espetacularizadas contemporâneas; (eixo II)
fenecimento das categorias da tradição contratualista (e a urgência de pensar
outras referências para a política ocidental), emergência da biopolítica; (eixo III) a
força de lei, a ubiqüidade e o tornar-se regra da exceção (aproximação aos
conceitos de exceção efetiva e fictícia). Boa parte dos caminhos desta dissertação
são margeados a partir dos vetores da filosofia contemporânea representados na
teorizações de Walter Benjamin (1892-1940), Hannah Arendt (1906-1975) e
Giorgio Agamben (1942 - ).
Palavras-chave: teoria da modernidade jurídico-política, crises da estatalidade,
biopolítica, estado de exceção.
ABSTRACT
The present work – whose arrangments are fixed basically in the intersection
between the philosophy of law and the political philosophy – aims to launch
confrontations and analyses, installed in a character deliberately fragmented, in the
plane of three main thematic axes (titled, respectively: lost of the juridical; end of
the political and the ubiquity of exception), composing itself, each axis, of
‗fragments-thesis‘ – heuristic syntheses of arguments and hypotheses – which try
to circumscribe debates - topographies – about some aporias still pending of
answers in theory and in philosophy of contemporary law, v.g., (axis I) crisis of
statality, topografias of the juridical decision, law and temporality,
refunctionalization of law in the societies of contemporary spectacularized masses;
(axis II) perishment of the categories of contractualist tradition (and the urgence of
thinking other references for the ocidental politics), emergency of biopolitics. (axis
III) the force of law, the ubiquity and the becoming rule of exception (approach to
the concepts of effective and fictitious exception. A good deal of the paths of this
dissertation are margined from the vectors of the contemporary philosophy
represented in the theorizations of Walter Benjamin (1892-1940), Hannah Arendt
(1906-1975) and Giorgio Agamben (1942 - ).
Key-words: theory of the juridical-political modernity; crises of statality; biopolitics;
state of exception.
SUMÁRIO
Introdução
.................................................................
08
EXTRAVIO DO JURÍDICO
#
1.
..................................................................
21
#
2.
.................................................................
37
#
3.
.................................................................
53
#
4.
.................................................................
65
OCASO DO POLÍTICO
#
1.
.................................................................
81
#
2.
.................................................................
94
#
3.
.................................................................
113
UBIQÜIDADE DA EXCEÇÃO
#
1.
................................................................
125
#
2.
................................................................
134
#
3.
................................................................
154
Considerações Finais ................................................................
Referências
................................................................
161
164
“A história, em contraposição com a natureza, é
repleta de eventos; aqui, o milagre do acidente e da
infinita improbabilidade ocorre com tanta
freqüência que parece até estranho falar em
milagres. Mas o motivo desta freqüência está
simplesmente no fato de que os processos
históricos são criados e constantemente
interrompidos pela iniciativa humana, pelo initium,
que é o homem enquanto ser que age. Não é pois,
nem um pouco supersticioso, e até mesmo um
aviso de realismo, procurar pelo imprevisível e
pelo impredizível, estar preparado para quando
vierem e esperar „milagres‟ na dimensão da
política. E, como quanto mais força penderem os
pratos da balança em favor do desastre, mais
miraculoso parecerá o ato que resulta da liberdade,
pois é o desastre e não a salvação que acontece
sempre automaticamente e que parece sempre
portando irresistível.”
Hannah Arendt. “O que é a liberdade?”. Entre o passado e
o futuro. p. 219.
“A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado
de exceção no qual vivemos é a regra. Precisamos
chegar a um conceito de história que dê conta
disso. Então surgirá diante de nós nossa tarefa, a
de instaurar o real estado de exceção; e graças a
isso, nossa posição na luta contra o fascismo
tornar-se-á melhor”
Walter Benjamin. “Sobre o conceito de história”. Tese VIII.
“(...) Daí também a força de quem tomou
consciência de não poder legitimar-se a partir de
nenhuma tradição viva: ele já é um resto de
naufrágio, já foi varrido do mapa; mas, como resto
de um naufrágio, não teme as correntes e pode até
mesmo mandar sinais.”
Giorgio Agamben. “Projeto para uma revista.” Infância
e história. p. 163.
Introdução
Ousar escrever. Nada mais tormentoso e exigente do que a
simples
atividade
de
lançar
mensagens
a
destinatários
desconhecidos,
apresentar-se como remetente nesta comunicação escrita - realizada na distância
e propiciadora de amizade (no sentido philosófico do termo)1 - de um debate
pretensamente teórico, mesmo destinado a um pequeno número de leitores.
Atividade marginal, ou melhor, tornada marginalizada, com a derrocada de todo o
imaginário constitutivo do ideal de humanitas, talqualmente nos legado por um
estrato da tradição ocidental advindo da antiguidade clássica grego-romana.2
Escrever, para e neste mundo espetacularizado em ruínas
simbólicas, parece ser algo relegado às raias da insignificância, ou nãosignificância, tarefa equiparável a de artesãos sobreviventes lançados aos fundos
escuros de suas oficinas de periferia em meio ao turbilhão industrial de produção
desenfreada e descartável.
1
―Desde que existe como gênero literário, a filosofia recruta seus seguidores
escrevendo de modo contagiante sobre amor e amizade. Ela não é apenas um discurso sobre
o amor à sabedoria, mas também quer impelir outros a esse amor.‖ SLOTERDIJK, Peter.
Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo.
(Tradução de José Oscar Almeida Marques). São Paulo : Estação Liberdade, 2000. p. 07.
Nesse sentido, Agamben assevera que ―a amizade (...) está tão estreitamente vinculada à
própria definição de filosofia que poderíamos dizer que, sem ela, a filosofia não seria de fato
possível. A intimidade entre amizade e filosofia é tão profunda que filosofia inclui o philos, o
amigo, em seu próprio nome e, como ocorre com freqüência com todas as proximidades
excessivas, corre o risco de não conseguir realizar-se. No mundo clássico é tão reconhecida
essa promiscuidade – e, quase, consubstancialidade – entre o amigo e o filósofo, e foi por
uma intenção quase arcaizante que um filósofo contemporâneo – quando se propunha a
questão extrema, ‗o que é filosofia?‘ – chegou a escrever que era uma questão a ser tratada
entre amis (entre amigos). Hoje a relação entre amizade e filosofia caiu em descrédito, e é
com um pouco de embaraço e consciência inquieta que os que fazem da filosofia uma
profissão tentam compactuar com um parceiro desconfortável e, por assim dizer, clandestino
de seus pensamentos‖. AGAMBEN, Giorgio. Friendship. (Tradução: Joseph Falsone).
ContreTemps, n. 5, dez. 2004, pp. 2-7. Revista eletrônica (Tradução revista para o português
por Selvino Assman).
2
Reflexões trazidas de forma muito lúcida por Sloterdijk, no texto supracitado.
Quando não há um mundo comum a ser compartilhado,3 escrever,
num período obscuro de dessimbolização e dessubjetivação, é tatear sem um fio
de Ariadne num labirinto destruído. É insistir na procura por clareiras e fachos de
luz na escuridão, tentativas canhestras de abrir um caminho possível, quando tudo
converge para a paralisia e a resignação.
Este phátos da exigência da escritura, de uma escritura possível,
não pode ser simplesmente redutível aos conceitos modernos de paixão, arroubo
afetivo, compulsão, todos com uma elevada carga psicologizante. Seguindo os
rastros de Heidegger, podemos intuir um significado deste phátos muito próximo
ao thaumázein grego, onde nos detemos como se ―retrocedêssemos diante do
ente pelo fato de ser e de ser assim e não de outra maneira.‖4 Detemo-nos diante
daquilo que, nas palavras de Giorgio Agamben, poderíamos chamar de
Irreparável.
Irreparável é o facto de as coisas serem como são, deste ou daquele
modo, entregues sem remédio à sua maneira de ser. Irreparáveis são os
estados de coisas, sejam elas como forem: tristes ou alegres, cruéis ou
felizes. Como és, como é o mundo – é isto o Irreparável. (...) O
Irreparável não é nem uma essência nem uma existência, nem uma
substância nem uma qualidade, nem um possível nem um necessário.
Não é propriamente uma modalidade do ser, mas é o ser que se dá
3
―Na situação de radical alienação do mundo, nem a história nem a natureza são em
absoluto concebíveis. Essa dupla perda do mundo – a perda da natureza e a perda da obra
humana no senso mais lato, que incluiria toda a história - deixou atrás de si uma sociedade de
homens que, sem um mundo comum que a um só tempo os relacione e os separe, ou vivem
numa separação desesperadamente solitária ou são comprimidos em uma massa. Pois uma
sociedade de massas nada mais é que aquele tipo de vida organizada que automaticamente
se estabelece entre seres humanos que se relacionam ainda uns aos outros mas que
perderam o mundo outrora comum a todos eles‖.
ARENDT, Hannah. O conceito de
História – Antigo e Moderno. In: Entre o passado e o futuro. (Tradução: Mauro Barbosa de
Almeida). São Paulo: Perspectiva, 1968. p. 126.
4
HEIDEGGER, Martin. Que é isto - a filosofia? (Tradução Ernildo Stein). Petrópolis :
Vozes, 2006. p. 30. ―Dià gàr tò thaumázein hoi anthropai
kay nym kai prõton
ércsantophilosophei” (Aristóteles, Metafísica). ―Pelo espanto os homens chegam agora e
chegaram antigamente à origem imperante do filosofar‖, um espanto não apenas como
impulso inicial (logo descartado ao suprir as exigências do início), entretanto um phátos que
perpassa todos os passos da filosofia: phátos na acepção de ―pàschein, sofrer, agüentar,
suportar, tolerar, deixar-se levar por, deixar-se convocar por‖, thaumázein que simplesmente
não ―se esgota neste retroceder diante do ser do ente, mas no próprio ato de retroceder e
manter-se em suspenso é ao mesmo tempo atraído e como que fascinado por aquilo diante do
que recua. Assim o espanto é a dis-posição na qual e para a qual o ser do ente se abre. O
espanto é a dis-posição em meio à qual estava garantida para os filósofos gregos a
correspondência ao ser do ente‖. Ibidem. Idem.
desde logo na modalidade, é as suas modalidades. Não é assim, mas é
o seu assim.5
Como perscrutar filosoficamente – naquela forma de proceder
intelectualmente que a tradição de pensamento ocidental convencionou intitular
como o atentar-se, o perquirir filosófico - uma realidade que, de certo modo,
solapou todas as maneiras até então seguras para que o pensamento pudesse
traçar um caminho minimamente confiável? Como des-ocultar (sem recair num
retorno metafísico) o ser que ainda se manifesta - talvez de um modo
sombriamente inaudito de ocultação - neste mundo estilhaçado, um ser
abandonado em meio a dispositivos hipertrofiados como o do espetáculo 6 (como
plus ao intrínseco abandono do ser no ente), relegando-nos a um horizonte do
belo sem elos de transmissibilidade7 (aí a banalização das esferas do sublime
5
AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. (tradução de Antônio Guerreiro).
Lisboa: Editorial Presença, 1993. p . 71 e 73.
6
Tomamos este conceito com o significados que Guy Debord lhe dá em ―La société du
spectacle‖.
7
A perda do senso comum, na maneira em que era entendido, v.g., em Kant. Arendt
lembra que ao usar o termo latino sensus communis, Kant estaria tratando de uma faculdade
diferente da acepção corrente, ―sentido semelhante a outros sentidos‖. Kant estaria tratando
de ―um sentido extra – como uma capacidade mental extra (o termo alemão
Menschenverstand) – que nos ajusta a uma comunidade. O entendimento comum dos
homens (...). O sensus communis é o sentido especificamente humano porque a
comunicação, isto é, a fala, depende dele.. ‗O único sintoma geral de insanidade é a perda do
sensus communis e a teimosia em insistir em seu próprio (sensus privatus) (...) Depois disso
seguem-se as máximas deste sensus communis: pensar por si mesmo (a máxima do
esclarecimento); colocarmo-nos no lugar de todos os outros em pensamento (a máxima da
mentalidade alargada); e a máxima da consistência (estar de acordo consigo mesmo, mit sich
selbst einstimming denken) Não se trata aqui de questões de cognição; a verdade nos
compele; não precisamos de máximas. As máximas aplicam-se e são necessárias só para
questões de opinião e juízo. E assim como em questões morais nossa máxima de conduta
declara a qualidade de nossa vontade, também as máximas do juízo atestam nosso ‗tipo de
mentalidade‘ (Denkungsart) nossos assuntos mundanos que são governados pelo senso de
comunidade. (...) O gosto é esse ‗senso de comunidade‘ (gemeinshaftlicher Sinn), e senso
significa aqui ‗o efeito de uma reflexão sobre o espírito‘ Esta reflexão me afeta como se fosse
uma sensação... ‗Poderíamos até mesmo definir o gosto como a faculdade de julgar aquilo
que torna comunicável em geral, sem a mediação de um conceito, o nosso sentimento [como
uma sensação] em uma representação dada [não a percepção]. (...) A validade destes juízos
nunca [possui] a validade das proposições cognitivas ou científicas, que não são, a rigor,
juízos. (...) Neste sentido, nunca podemos compelir alguém a concordar com nossos juízos isto é belo, isto é errado (...) podemos somente ‗pretender‘, ‗cortejar‘ o acordo de todos os
demais. E nesta atividade persuasiva, podemos na verdade apelar para o ‗senso de
comunidade‘. (...) Quanto menos idiossincrático for seu gosto, melhor poderá ser comunicado;
a comunicabilidade, novamente, é a pedra de toque. A imparcialidade em Kant, é chamada de
‗desinteresse‘, o prazer desinteressado no Belo‖. ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. O
vertiginoso contemporâneo), onde a própria condição do ser humano é colocada,
perigosamente, em questão?
Tentar compreender as nuances do irreparável estar-no-mundo
contemporâneo - seja em qual for o plano de existência e horizonte de saber
ocidental de onde se dê esta busca - apresenta-se como um incontornável
confrontar-se com inúmeras aporias (a-poros) indecidíveis.
Esta é uma proto-interpretação que subjaz no presente texto. Ou
seja, não é distinta a situação de quem se vê na contingência de pensar o direito
contemporâneo (e em conseqüência, pensar seu mundo a partir deste fragmento
de experiência),8 tomá-lo como objeto circunscrito, delimitado, neste espaçotempo não afeito a demarcações, informe.
Prévia constatação - inevitavelmente arremessará a proposta
teórica no oceano da indecidibilidade - que repercutirá no modo idiossincrático
como teceremos a trama dessa dissertação, podendo, em alguns de seus matizes,
contrapor-se à maneira convencionalmente disseminada de pensar o direito na
pensar, o querer, o julgar. (Tradução Antônio Abranches, Cezar Augusto R. Almeida, Helena
Martins). 5º ed. Rio de Janeiro : Relume Dumará, 2002. p. 379-380. (Trechos do último volume
incompleto, dedicado ao ―Julgar‖). O mundo das subjetividades-mônadas-solipsistas
contemporâneo deixa poucos rastros desta concepção de sensus communis kantiano, e seu
correlato de um Belo desinteressado (que Arendt conecta com a questão de um julgar - onde
não se tem critérios universais e coercíveis [v.g., evidências] - às questões relacionadas à
moral e à justiça (aproveitando de uma matriz estética. Kant estabelece os juízos morais como
sendo ligados à dimensão de uma razão pura prática, não sendo para o filósofo, a rigor,
juízos). Esvai-se, contemporaneamente, tal transmissibilidade (fundada numa comunidade),
causando a erosão dos critérios mesmos do juízo (máximas, por exemplo). Por outro lado,
estamos muito mais próximos daquilo que a filosofia kantiana entendia por sublime do que da
esfera da beleza (universal, racional).. Portanto, a pretensão de entendimento, na teoria de
hoje, cai por terra. Do desinteresse e do imperativo da razão kantiana, normalizada na
segunda metade do séc. XVIII, dominante no séc. XIX e manifestamente esgarçada no séc.
XX (Eichmann como seu mórbido sintoma), as derivas do modernismo tardio estariam muito
mais próximas da transgressão e do desbordamento de Sade. Para Lacan, o reverso kantiano.
(Cf. LACAN, Jacques. Kant com Sade. Escritos. (Tradução Vera Ribeiro). Rio de Janeiro :
Jorge Zahar, 1998.). Ou estaríamos na situação que Guy Debord anuncia (ou prenuncia) na
tese 183 de seu opúsculo ―A Sociedade do Espetáculo‖: ―A cultura provém da história que
dissolveu o gênero de vida do velho mundo. Mas, como esfera separada, ela é tão somente a
inteligência e a comunicação sensível que continuam parciais numa sociedade parcialmente
histórica. Ela é o juízo de um mundo pouquíssimo capaz de julgar‖. DEBORD, Guy. A
sociedade do espetáculo. (Tradução Estela dos Santos Abreu). Rio de Janeiro :
Contraponto, 1997.
8
Reportamo-nos ao conceito de mônada, ou imagem dialética, em Walter Benjamin,
que deixaremos para analisar em momento oportuno.
maior parte da teorizações jurídicas fundadas seja nas versões estatalistas (que
no séc. XX não representaram nada mais que outras variantes de um
estruturalismo
tacanho),
seja
nas
atuais
versões
sistêmicas,
reflexivas
(biologicizantes, diga-se de passagem), de análise do jurídico em suas
configurações e manifestações contemporâneas.
Portanto a necessidade imperiosa de captar, nesse caso o direito
ocidental como se mostra hodiernamente - como eixo de projeção de saberes e
racionalidades - a partir de outros locais, principalmente a filosofia e a teoria
política, não deixando de lado o debate estético e as teorizações sobre a
subjetividade contemporânea. Formular redes, dispositivos - heterocronotopias.
Exigindo-se, tal busca, um proliferar que em muitas ocasiões terá
que tratar do direito de forma oblíqua, com pinceladas de tratamento que, se não o
toma como um mero epifenômeno naquilo que realmente interessa discutir nas
questões mais prementes da filosofia contemporânea, assume de forma
transparente que só poderemos ter acesso, tornar ex-posto (dis-posé), colocar em
dis-posição (novamente Heidegger), o ―ser‖ do direito nas suas atuais
configurações e antinomias, através do confrontar-se com os filosofemas e
mitologemas que presidem a estruturação (constitutiva) de nossa própria tradição
de pensamento (principalmente político), ou dos conceitos zumbis que mantém-se
mesmo após a destruição desta tradição que os dava suporte, isto é, sua vigência
fantasmática – próxima do misticismo - a despeito de sua escassez desértica de
significado.
O arquitetar de uma armação teórica que se utiliza de elementos
metafóricos, lugares de significado, provindos dos mais heteróclitos pontos de
disseminação de racionalidades - mesmo correndo o risco de desvirtuá-los,
desgastá-los, quebrá-los - brincar, jogar com esses materiais (fragmentos de
orientação sempre derivante), encaminhá-los para dimensões estrangeiras,
parece ser, numa realidade que se esvai como poeira deixada pelo trotar de
cavalos selvagens, uma alternativa extremamente plausível - lúcida, viável quando, em termos temporais, caminhamos em rotas já destruídas e não nos foi
legada, pela tradição, uma imaginativa arte de criação de mosaicos com os
destroços que restam ao nosso redor.9
Fazer disso um método de trabalho, um extravio discursivo, uma
instalação dissertativa, é o que será buscado seqüencialmente.
***
Antes, porém, uma ressalva: o horizonte explanatório da crítica do
presente (ou da crítica que vem) parece estar preso ao universo do vago, do
fragmentado, do volátil. A questão é lançar-se na volatilidade não como um
obstáculo a superar, ou como o indeterminado prefigurando o determinado, como
meio a um fim estável, sólido, manipulável. É preciso navegar nos mares da
indeterminação (e, por que não, da indecidibilidade), aceitando todos os
predicados inerentes a essa condição, encarando-a como condição de
possibilidade, inescapável matéria mesma onde pode ser ativada uma critica
possível. Sem retornos saudosistas às monumentalidades, sem o forjar de
próteses temporais e espaciais cogentes (mensuráveis, controláveis) e obturantes
da potencialidade salvívica do contingente.
Walter Benjamin, a seu modo, prenunciou uma configuração, um
local, uma "zona de experiência", para essa crítica no modo idiossincraticamente
fragmentado com que operou a maior parte de sua análises. Ensaios, não obras
fechadas, aforismos, não sentenças acadêmicas prolixas e, boa parte das vezes,
9
De tal modo podemos afirmar que nosso método está conectado a uma espécie de
trabalho arqueológico, ou genealógico, em termos de metodologia, seguindo, nesse ponto
específico, os rastros deixados por Friedrich Nietzsche, Michel Foucault, Walter Benjamin e
(em certo sentido), Giorgio Agamben... Aquele modo de proceder intelectualmente que
Hannah Arendt costumava chamar de a arte da pesca de pérolas no fundo do oceano
(perlenfischerei), metáfora citada em sua carta a Blumenfeld, datada de 21 de julho de 1960,
cf. YOUNG-BRUEHL, Elizabeth. Por amor ao mundo: a vida e a obra de Hannah Arendt .
(Tradução de Antônio Trânsito). Rio de Janeiro : Relume Dumará, 1997. p. 99.
redundantes.10
Nesse sentido, emergem com importância as chamadas teses, ou
melhor, um estilo de pensamento fundado em teses. Evidenciam-se ainda
necessárias, no campo da teoria literária e da filosofia, reflexões que tratem da
importância das teses no plano da ―historia das idéias‖11. É nelas que podemos
perceber o caráter de provisoriedade, de inacabamento, de suspensão dos
"invariantes", de pré-compreensão no mote de que fortuna imperatrix mundi, de
devir: elementos do estar-no-mundo factual, do aí-do-ser (como na terminologia
heideggeriana),12 que contaminam o próprio fluxo da construção teórica (deixando
desde já expostos seus esqueletos cambaleantes).13
Quiçá o modelos das teses esteja muito mais próximo às formas
10
Poderíamos, obviamente, enumerar toda uma tradição no plano da literatura e
filosofia ocidentais que toma a sério uma proposta ensaística e aforística como estilo de
pensamento (v.g., remotamente Montaigne, contemporaneamente, Valéry). Entretanto, é em
Benjamin que vemos pela primeira vez este recurso lançado como o mais adequado à
aproximação ao mundo que tocou um grau zero de experiência até então desconhecido às
gerações anteriores às duas guerras mundiais.
11
Há que se ter cuidado ao manejar este conceito, não podendo implicar uma versão
de aglomerado funéico (relativo ao personagem Funes, de Jorge Luis Borges) de categorias,
mesmo porque é impossível deixar de lado a própria interferência dos conceitos no real
histórico, principalmente em se tratando das teses, do contrário negaríamos peremptoriamente
o local das vanguardas, e dos seus respectivos manifestos, na história. Do que se pode
concluir que não podemos considerar o sintagma história das idéias num sentido coagulado,
metafísico e mesmo universal.
12
Da-sein. Onde o privilégio de análise não mais será o segundo momento da palabra,
―ya no es la ‗estancia‘ o la ‗instancia‘ de la ‗existencia‘, ya no es la posicion del ser en acto e
ya no es la entelquia en el sentido aristotélico, es decir, la realizacion del ser en su forma final
final, sino lo cuenta es el primer momento, es decir, el ex: el momento de la salida y del fuera,
ese momento que Heidegger subraya escribiendo ‗ek-sistence y que, para acabar, ya no es
un momento, sino la cosa entera. La existencia ya sólo es ese ex ‖. NANCY, Jean Luc. La
existencia exiliada. (tradução de Juan Gabriel López Guix). In: Archipielago, nº 26-27,
Barcelona, 1996. p. 35
13
Para Jeanne Marie Gagnebin, as ―teses‖, no contexto do pensamento benjaminiano,
―não têm caráter definitivo, não são um credo dogmático, mas oferecem, à ocasião, um
balanço de pensamento e, mais ainda, umas hipóteses de pensamento, para não desesperar‖,
lembrando que, no caso específico das ―Teses de filosofia da história‖, temos um texto cuja
redação se dá ―provavelmente entre setembro de 1939 (início da Segunda Guerra) e abril de
1940 (construção do campo de concentração de Auschwitz), isto é, um dos momentos mais
negros da história européia. Portanto, não é um texto escrito na serenidade de um gabinete,
mas em um quarto de exílio: ele pede aos leitores que não procurem por soluções ou
respostas, mas que aceitem o fim de suas certezas sobre o curso da história e a formulação
de questões novas, mesmo que continuem sem resposta‖. GAGNEBIN, Jeanne M. Seis teses
sobre as ―teses‖. In: Revista Cult., setembro de 2006, p. 50-53.
dançantes do pensamento (muito bem iluminado por análises como as de
Nietzsche, Arendt, ou mesmo de Badiou14) do que as corridas operáticas de
maratona dissertativas. Teses sobre teses, importantes e imperiosas derivas.
Mesmo revelando que muitas delas possam ser nada mais que relampejos para
um momento de perigo.
É chegado o momento de lançar um desafio ao local próprio da
universidade no ocidente, no sentido de que novas proposições conteudísticas
repercutam em novas instalações teóricas em instituições que convergem, cada
dia mais, a se tornarem instâncias produtoras de um regime de verdade desde
logo capturado pelos dispositivos (teológicos) soberano-econômico-espetaculares,
nesse ritmo fadadas a se tornarem mausoléus babélicos povoados por
mimetomaníacos e proselitos paroquiais.15 Vige quase hegemonicamente, no
presente das universidades, um estilo de saber bem-comportado e politicamente
correto que incute efeitos de verdade apenas às construções que estejam
ancoradas num trabalho museológico de lexicrografia compulsiva dos cânones
reconhecidos (ou da ultima moda nos departamentos).16 Como se realmente
possuíssemos uma tradição (monolítica) a ser preservada e transmitida,
escamoteando um problema de fundo que é o de tentar caminhar a partir do
estilhaçamento catastrófico da tradição mesma.
14
Cf. BADIOU, Alain. A dança como metáfora do pensamento. In: Pequeno Manual
de Inestética. (Tradução Marina Appenzeller). São Paulo : Estação Liberdade, 2002. pp. 7996.
15
De certa forma podemos traçar um paralelo muito próximo da instituição universitária
moderna ocidental com o dispositivo dos museus, assim representados por Donald Preziosi:
―(..) quando instituiu o museu, o iluminismo estabeleceu um espaço tempo funéico, ou
historicamente inflectido. O museu, assim, serviu como técnica epistemológica: definindo,
formatando, modelando e ‗reapresentando‘ muitas formas de comportamento social por meio
de seus produtos e vestígios. O mundo se recompunha e se transformava nas partes
componentes da maquinaria-palco de exibição e espetáculo, as quais funcionavam para
estabelecer, pelo exemplo, pela demonstração ou pela exortação explícita, critérios vários
para relações aceitáveis entre sujeitos e objetos, entre sujeitos, e entre sujeitos e suas
respectivas histórias individuais – critérios que fossem consoantes com as necessidades do
estado-nação modern(ista)o.‖ PREZIOSI, Donald. Evitando museocanibalismo. In:
HERKENHOFF, Paulo; PEDROSA, Adriano (org). XXIV Bienal de São Paulo. Núcleo
histórico: antropofagia e histórias de canibalismo. São Paulo : Fundação Bienal de São Paulo,
1998.
16
Isso em ciências sociais e humanas saídas de centenária tentativa de colonização
pelo modelo das ciências naturais.
A presente dissertação, portanto, coloca-se explicitamente como
antitética à maquinaria acadêmica majoritariamente disseminada, justificando-se o
porquê da escolha do modelo das teses como rede a partir da qual agutinar-se-ão
as reflexões deste trabalho.
Subjaz nessas escolhas, inicialmente, afinidades eletivas com a
consciência de que a história não se apresenta como o repositório acumulativo,
linear, progressivo, contínuo, evolutivo, de um aglomerado de fatos (manifestados
de
uma
forma
fechada
ao
presente).
Não
podemos,
teoricamente
e
existencialmente, nos curvar ao papel de advogados inventariantes do espólio dos
vencedores, ou tentar limpar as marcas de sangue que perduram nos fragmentos
do passado. Algo que apenas uma perspectiva que encare o horizonte histórico
também como catástrofe - desmistificando a ilusão de continuidade forjada na
descontinuidade pura - pode realizar.17
Resta-nos talvez, como contemporâneos, as tentativas de estancar
o fluxo do tempo homogêneo e vazio - explodir a vertiginosa continuidade e
alargar, ou imobilizar, o presente (Stillstand ) - a partir daquilo que Benjamin
intitula como a interrupção messiânica do mesmo, ou, em outros termos, a
irrupção da descontinuidade e da plenitude no deserto do instante enclausurado e
fugidio entre o não mais e o ainda não.
17
De certo modo, sem enveredar para os caminhos inóspitos da epistemologia
(mesmo porquanto nos é distante), ao associarmos tal concepção histórica ao
desenvolvimento dos estratos (ou extratos) da presente pesquisa, refutamos toda e qualquer
pretensão de cientificidade, seja a corporificada no critério de rigor, assim entendido na
tradição da filosofia analítica, por se basear numa forma de aniquilamento (incutidor de
escassez) sintático-semântico do simbólico (tendo como horizonte de sentido utópico a
construção de uma linguagem artificial, de efeitos de verdade supostamente unívocos); seja o
modelo de falseacionismo popperiano, porquanto fundado ainda em pressupostos das
ciências naturais e numa versão reducionista de razão. Está implícita em nossa escolha uma
pré-compreensão, no sentido gadameriano do termo, da cientificidade como apenas um
estrato muito específico (porém de pretensões universalizatórias, ou seja, na linguagem de
Boaventura de Sousa Santos, um particularismo universalizado) da racionalidade ocidental,
hegemonicamente assentado na história a partir de sua tecnologização e instrumentalização
com vistas a atender a predominância da maquinaria capitalista. E mesmo o dispositivo da
cientificidade, nessa acepção, opera a partir de um microcosmos científico mergulhado num
mar aberto de não-cientificidade e descontinuidades. Não esquecer que toda a elaboração da
epistemologia científica de viés racionalista guia-se por uma concepção extremamente
ingênua e apequenadora do próprio universo da linguagem e da história.
Pensar a historia a partir de tal ângulo é também encará-la como
não-fechada ao presente, possibilitando que as pretéritas imagens dialéticas (na
acepção proposta por Benjamin em seu projeto das Passagens) possam
desencadear desestabilizações, inoperâncias,18 mesmo que fugazes, no próprio
presente.19 Não o estudo celebratório que acompanha o cortejo fúnebre da
historia, mas leituras a contrapelo objetivando resgatar aquilo que este cortejo, em
sua passagem, deixou esquecido/jogado, porquanto incomodativo à sua marcha
triunfal.
Nesse ponto, reatando a discussão inicial, também entendemos a
escritura como um extravio temporal (conceito de extravio com um nítido sentido
surrealista), ou que tem uma conexão direta com estar-no-tempo (indissociável da
práxis),20 uma atividade que pode interromper automatismos, proliferar o tempo18
Podemos afirmar, com Agamben, que o debate sobre o desceuvrement (ou
inoperância), se colocado nos termos que o desloquem de uma forma soberana da
negatividade (como em Bataille), pode render interessantes contribuições para pensar a
própria política que vem, principalmente se relacionado à modalidade da potência,
principalmente a potência de não. Em seu entender, ―o tema do desceuvrement, da
inoperância com figura da plenitude do homem ao fim da história, que aparece pela primeira
vez na crítica de Kojève sobre Queneau, foi retomado por Blanchot e por Jean-Luc Nancy, que
o colocou no centro de seu livro sobre a Comunidade Inoperante.Tudo depende aqui do se
entende por ‗inoperância‘. Esta não pode ser nem a simples ausência de obra, nem (como em
Bataille) uma forma soberana e sem emprego da negatividade. O único modo coerente de
compreender a inoperância seria o de pensá-la como um modo de existência genérica da
potência, que não se esgota (como a ação individual ou aquela coletiva, compreendida como
a soma das ações individuais) em um transitus de potentia ad actum‖. AGAMBEN, Giorgio.
Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. (Tradução de Henrique Burigo). Belo Horizonte,
ed. UFMG, 2002. p. 69. Se seguirmos as veredas da inoperância certamente chegaremos,
como rota privilegiada de análise, a Melville, com seu Batleby, traçado que pretendemos
desenvolver oportunamente.
19
Vem-nos à mente um trecho do apêndice à tese XVII, das ―Teses sobre a filosofia da
história‖, de Benjamin: ―Para o pensador revolucionário, a chance revolucionária própria de
cada instante histórico se confirma a partir de cada situação política. Mas ela se lhe confirma
não menos pelo poder chave desse instante sobre um compartimento inteiramente
determinado, até então fechado, do passado. A entrada nesse compartimento coincide
estritamente com a ação política; e é por essa entrada que a ação política, por mais
aniquiladora que seja, pode ser reconhecida como messiânica. (A sociedade sem classes não
é a meta final do progresso na história, mas, sim, sua interrupção, tantas vezes malograda,
finalmente efetuada)‖. In: LÖWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura
das teses ―Sobre o conceito de história‖. (Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brand, et.
al.). São Paulo : Boitempo, 2005. p. 134.
20
Nesse sentido temos a tese de Agamben, de que Marx não elaborou uma teoria do
tempo (ainda presa a filosofia hegeliana) à altura de sua teoria da história, fundada na práxis.
"A historia não é para ele (Marx) algo em que o homem cai, ou seja, ela não exprime
de-agora (Zetzt-Zeit) ou simplesmente limitar-se a reproduzir o tempo cartorário,
industrial ou das autopistas contemporâneas (o tempo hegemônico ritualísticosacrificial capitalista, sejam quais forem as facetas deste). Sentido temporal muito
próximo à figura do jogo, ao termos na lembrança a hipótese agambeniana de
que, ao brincar, "o homem despreende-se do tempo sagrado e o 'esquece' no
tempo humano."21
Somente apoderando-se (num sentido lúdico, ou ilusionista, de inludere, do termo) do tempo nadificado do sublime-espetacular-vertiginoso
contemporâneo - onde somos lançados cotidianamente - apenas com a
nadificação desse nada, com a restituição, desse tempo sagrado e improfanável,
ao uso comum dos homens (algo hoje apenas vislumbrado em átimos), talvez
somente assim possamos desobstruir as quinquilharias mortíferas que obstam
quase todos os caminhos para (pensar) o agir político contemporâneo.
Ruptura
que
oxalá
torne
possível,
contingencialmente
e
afortunadamente (com a esperança de ventos benfazejos da fortuna inflando as
velas jangadeiras22 da virtú), traçar cartografias factíveis de horizontes menos
simplesmente o ser-no-tempo do espírito humano, mas é a dimensão geral do homem
enquanto Gattungswesen, enquanto ser capaz de um gênero, isto é, de produzir-se
originalmente não como mero individuo, nem como generalidade abstrata, mas como individuo
universal. A historia não é determinada, como em Hegel e no historicismo que dele descende,
partir da experiência do tempo linear enquanto negação da negação, mas a partir da praxis,
da atividade concreta como essência e origem (Gattung) do homem. A praxis, na qual o
homem se coloca como origem e natureza do homem, é também imediatamente o "primeiro
ato histórico", o ato de origem da história, compreendida como tornar-se natureza, para o
homem, da essência humana, e o tornar-se homem da natureza. A história não é mais, como
em Hegel, o destino de alienação do homem, e a sua necessária queda no tempo é o
negativo, em que se encontra em um processo infinito, mas a sua natureza, ou seja, o original
pertencimento do homem a si mesmo como Gattungwesen, da qual foi temporariamente
subtraído pela alienação. O homem não é um ser histórico porque cai no tempo, mas, pelo
contrario, somente porque e um ser histórico ele pode cair no tempo, temporalizar-se.".
AGAMBEN, Giorgio.Tempo e história: crítica do instante e do contínuo. In: Infância e Historia.
Destruição da experiência e origem da historia. (Tradução Henrique Burigo). Belo Horizonte :
Editora UFMG, 2005. p. 120-121.
21
AGAMEN, Giorgio. O país dos brinquedos: reflexões sobre a história e sobre o jogo.
In: Infância e história. Op. cit. p. 85.
22
A ambivalente imagem da jangada representa muito bem a imprevisibilidade do vira-ser da dissidência, podendo tanto representar o símbolo da viagem, da deriva, da
sobrevivência, da possibilidade da abertura ao novo (novos portos, outras paragens, utopias),
quanto aquilo que as pinturas de Géricault espelham com toda crueza. A partir de uma pintura
do artista, que toma o mote de A jangada de Medusa, Régis Michel propõe a seguinte
inóspitos para a condição humana sobrevivente aos maremotos da catástrofe.
***
As reflexões que ora são lançadas nessa dissertação, (a ser)
submetida à defesa pública no Centro de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal de Santa Catarina, devem ser consideradas muito mais
como hipóteses de trabalho, objetivando lançar questões (mesmo porquanto não
são exigidos trabalhos conclusivos no âmbito do mestrado, se é que realmente
possa ser possível visualizar um trabalho conclusivo fora da esfera metafísica),23
suscitar debates e sedimentar um plano de consistência ou mesmo traçar linhas
de fuga (duas modalidades caras a Deleuze) no interior de um dado corpus
discursivo.
interpretação: ―Ora, a figura da jangada é a metáfora ideal de uma sociedade dissidente.
Porque esse mundo aberto é na verdade um recinto fechado [a huis-clos], cuja insularidade o
protege das instâncias repressivas – das pressões sociais. Nem Deus, nem senhor, nada de
superego. Do que resulta uma seqüência inédita de anarquia pulsional, que dá vazão a um
auge de violência: arruaças, rixas, motins; os náufragos da jangada passam o tempo a se
autodestruir (é bem verdade que não tinham lá grande coisa a fazer). Pelo menos, esses
exercícios homicidas têm por ganho secundário distraí-los da fome, ao matarem (também) o
tempo. Géricault desenha vigorosamente esses combates furiosos, abraços de corpos, orgias
de carne, cujos atores formam um monstro de cem cabeças: mistura da Hidra com o Leviatã.
Um desenho de Amsterdã leva ao paroxismo esse caos belicoso, onde cada um parece
devorar o outro com a energia do desespero.‖ MICHEL, Régis. A síndrome de Saturno ou a
Lei do Pai: máquinas canibais da modernidade. In: HERKENHOFF, Paulo; PEDROSA,
Adriano (org). XXIV Bienal de São Paulo. Núcleo histórico: antropofagia e histórias de
canibalismo. São Paulo : Fundação Bienal de São Paulo, 1998. p. 120-133.
23
Seguimos uma advertência de Gilles de Deleuze, a partir de suas reflexões sobre a
literatura, de que ―escrever não é certamente impor uma forma (de expressão) a uma matéria
vivida. A literatura está antes do lado do informe, ou do inacabamento, como Gombrowicz o
disse e fez. Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e
que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma passagem de
Vida que atravessa o vivível e o vivido. A escrita é inseparável do devir: ao escrever, estamos
num devir-mulher, num devir-animal ou vegetal, num devir-molécula, até num devirimperceptível. Esses devires encadeiam-se uns aos outros, segundo uma linha particular,
como num romance de Le Clézio, ou então coexistem em todos os níveis, segundo portas,
limiares e zonas que compõe o universo inteiro, como na pujante obra de Lovecraft.‖.
DELEUZE. Gilles. Crítica e clínica. (Tradução: Peter Pál Pelbart). São Paulo : Ed. 34, 1997.
p. 11.
De certo modo, cingem-se a representar uma pesquisa heurística,
ao convergirem para uma arqueologia de categorias (presumidas) válidas para
pensar aspectos que consideramos importantes no plano da modernidade jurídicopolítica ocidental, tendo como foco de análise principal o local da teoria e da
filosofia do direito nesse horizonte, a partir das referências compulsadas durante
os dois anos previstos para tais investigações em sede de pós-graduação. Em
certo sentido, tratam de apontar aspectos, direções, encruzilhadas, a partir de tais
leituras, formatadas num caráter de intertextualidade com os autores elegidos e
transversalidade com seus respectivos locais teóricos.
Nossa arquitextura escava-se a partir de três eixos de projeção
principais, a saber: o extravio do jurídico, o ocaso do político e a ubiqüidade da
exceção. Cada eixo é composto por quatro teses heurísticas, propondo
problemáticas e formando ―platôs‖ que se comunicam com os outros (e com os
demais eixos) não por relações silogísticas, de implicação ou conseqüência, mas
através de relações oblíquas, diagonais, ou mesmo palimpsesticas (de
superposição, apagamento, obnubilação), formando, cada qual, fragmentos
móveis que podem se refletir de uma maneira especular nos demais (aproveitando
do jogo de espelhos maiores que os eixos representam), podendo produzir um
sem-número de combinações e matizes, algo que a metáfora do caleidoscópio
exprime muito bem. Cada um pode, a seu tempo, ser lido independentemente dos
outros, mas facilmente encaixado, como peça maleável de mosaico, no “todo”
descontínuo do qual faz parte.
Imperioso afirmar que a escolha dos três eixos para a análise
fundamenta-se em um insight (quase abdutivo, no sentido pierceano do termo) de
que só poderemos pensar as aporias da teoria do direito (refletir sobre seu local),
a partir da problematização das aporias da política ocidental contemporânea, o
que inevitavelmente nos leva a ter de enfrentar a categoria da exceção, peça que
consideramos chave para entender o presente, assim como, para pensar o
fenecimento da política teríamos que pensar as crises no direito e, ergo,
novamente a exceção, sucessivamente, ad infinitum.
As hipóteses aqui apresentadas podem ser consideradas ―balanços
de pensamento‖ - argumentos-síntese de propostas teóricas - não de autoria
direta de quem vos escreve (isso se aplicado o conceito soberano do autor
clássico despido de toda e qualquer intertextualidade), porém reflexo das leituras
(muitas vezes latentes, implícitas) e diálogos tidos durante esses últimos anos de
investigação. O grande fio condutor entre elas pode ser considerado um esforço
de compreensão,24 no sentido arendtiano do termo, dos umbrais que se colocam
ao pensamento quando fadado a pensar o seu próprio estar-no-mundo, o que
significa para nós enfrentar os paradoxos do carolliano mundo às avessas do
ocidente contemporâneo.
24
―Compreender não significa negar nos fatos o chocante, eliminar deles o inaudito,
ou, ao explicar fenômenos, utilizar-se de analogias e generalidades que diminuam o impacto
da realidade e o choque da experiência. Significa, antes de mais nada, examinar e suportar
conscientemente o fardo que o nosso século colocou sobre nós – sem negar sua existência,
sem vergar humildemente ao seu peso. Compreender significa, em suma, encarar a realidade
sem preconceitos e com atenção, e resistir a ela – qualquer que seja.‖. ARENDT, Hannah. As
Origens do Totalitarismo. (Tradução de Roberto Raposo). São Paulo : Companhia das
Letras, 1989. p. 12.
I. EXTRAVIO DO JURÍDICO
1. Pensar o direito contemporâneo é confrontar-se com um
“estado de arte” em que a categoria ocidental de lei, tal qual estruturada
numa versão que remontaria à tradição grega - porém exsurgindo com
centralidade na tradição ocidental a partir da configuração do Estado-nação
europeu e reinscrita nos moldes do paradigma normativista no séc. XX passa a não ser mais um componente nuclear de sua própria caracterização,
principalmente após o fenecimento do modelo do Estado-Providência (e já
em gestação em sua estruturação) a partir de meados da década de 80,
emergindo,
de
tal
forma,
outros
modelos
regulatórios
e
de
governamentalidade (conceito que passa a se tornar corrente a partir de
então). Não presenciamos o fim do jurídico (jurídico entendido num sentido
mais amplo que a simples legalidade), porém temos de dar conta de um
jurídico extraviado em incontáveis dispositivos de regulação social, muitas
vezes externos à intrínseca configuração da estatalidade ocidental (como o
mercado e a técnica), rompendo com postulados dito clássicos da própria
juridicidade (territorialidade, soberania monolítica, substrato nacional).25
25
Tentaremos esboçar, de modo sintético, nesse primeiro argumento-síntese do
trabalho, as configurações da estatalidade e da teoria do direito contemporâneo, com um
intuito muito mais operativo (um estudo-embreagem, parafraseando Benveniste) para os
fluxos posteriores das derivas que de fechamento teórico rigoroso de um discurso, aí se
explicitando um estilo balbuciante na apresentação dos conteúdos. Para este fim será
buscado tanto um resumo diacrônico das principais fisionomias do Estado moderno (no
período que circunscreve desde sua emergência moderna às suas principais reconfigurações
estruturais e funcionais - no sentido bobbiano da relação [Cf.,―Dalla struttura alla funzione‖] –
circunscritas nos modelos liberal, providencial e pós-providencial), quanto uma mirada
sincrônica que procure delinear uma imagem - um instantâneo - da estatalidade
contemporânea, a partir do que revelam as fontes dos tradicionais estudos do direito e da
teoria política. Serão, de certa forma, intercaladas ou justapostas tanto a aproximação jurídico
teórica quanto a abordagem da teoria política.O que o texto perderá em rigor, circunspeção e
acordo semântico, ganhará em fluidez, panorama e velocidade (nos estritos objetivos de um
primeiro tópico de aproximação teórica), mote para os desenvolvimentos posteriores da
armação teórica. Boa parte dos argumentos deste primeiro item do trabalho estão publicados,
É possível afirmar, de forma provisória, que o capitalismo ocidental,
como dispositivo chave que conduziu (e conduz) boa parte das derivas da
modernidade desdobrada contemporânea (no sentido que Giacomo Marramao
propõe para esse conceito),26 territorializou-se num plano dito nacional (ou
naquele feixe ficcional de constelações de significado que passam a ser
semanticamente reconhecidos e congelados no topos nacional) sob o impulso de
um direito centralizado, racional, previsível, estatalizado, como contraponto a uma
sociedade medieval que passa a ser tachada de fragmentária, caótica, baseada
em um pluralismo de fontes normativas (organização suserana, poder real,
tribunais eclesiásticos, mercadores, direito consuetudinário nos portos, etc.).
Em face a este pluralismo do medievo, as grandes monarquias
absolutas formam-se, no entender de Bobbio, através de um duplo processo de
unificação: unificação de todas as fontes de produção jurídica na Lei (fenômeno de
açambarcamento das fontes), como emanação da vontade do soberano; e
unificação de todos os ordenamentos jurídicos (inferiores ou superiores) no
ordenamento do Estado.
Ou seja - no que diz respeito ao primeiro aspecto - gradualmente
são rejeitadas as antigas fontes medievais do direito, reconhecendo-se roupagem
jurídica ao costume apenas quando expressamente reconhecido pela lei, uma
ciência jurídica não vinculatória, meramente opinativa, a jurisdição como poder
secundário e derivado de aplicar as normas jurídicas de origem legislativa. A
unificação de todos os ordenamentos jurídicos (inferiores ou superiores) no
ordenamento do Estado realiza-se, por outro lado, através da liberação das
Monarquias absolutas em relação à Igreja e ao Império, e por intermédio da
sem alterações substanciais, com o título: Direito e crise da modernidade ocidental, rumo a
uma regulação pós normativa? In: Paulo Emílio V. Borges de Macedo (org.). Direito e
Política. Curitiba: Juruá, 2005. pp. 114-127.
26
Cf.: MARRAMAO, Giacomo. Poder e secularização. As categorias do tempo.
(Tradução Guilherme G. de Andrade). São Paulo, Ed. UNESP, 1995.
absorção dos ordenamentos inferiores (luta em face aos senhores feudais, às
autonomias comunais e os privilégios das corporações).27
No horizonte de tal tradição de pensamento, múltiplos fatores
influenciaram a consolidação deste projeto (projeto entendido com nítidas facetas
processuais). Dentre eles destaca-se a recepção do direito romano por intermédio
dos glosadores, resultado de uma ―convergência de
interesses econômicos e
culturais‖28 que tendia principalmente à substituição da liberdade caótica do
período feudal por uma concepção jurídica erudita que desse conta de balizar a
liberdade e garantia contratual das relações econômicas que então emergiam.29
Em traços gerais, nesse modelo explicativo, pode-se dizer que o
Estado moderno, que progressivamente (e este é um termo importante no plano
da história tradicional do direito, uma história de continuidades) veio se
consolidando desde o séc. XIV, distingue-se do modelo de regulação feudal por
dois aspectos principais: distinção entre a esfera pública (sociedade política, o
aparato administrativo) e uma esfera privada caracterizada como sendo o âmbito
específico da sociedade civil. Em simetria com esta separação está a dissociação
estrutural entre o poderio econômico e o poderio político (pelo menos em termos
de organização categorial, no feudalismo estes dois aspectos estavam reunidos). 30
Contrapondo-se às monarquias absolutas européias, emergindo
principalmente com as revoluções burguesas do séc. XVIII e XIX, teria nascido o
Estado liberal, tal qual descrito e defendido por uma extensa tradição teórica.
Propugnar-se-á, na fundamentação deste modelo de Estado, principalmente um
conceito moderno de liberdade entendida como não intervenção nos assuntos
ligados aos aspectos econômicos e civis dos indivíduos, salvo para resguardar
27
BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant.
(Tradução: Alfredo Fait). Brasília : Editora UNB, 1997. p. 12.
28
WIEACKER, Franz. Privatrechtsgeschichte der Neuzeit. Gottingën : V&R,1967.
p.48. Apud: SANTOS, Boaventura de Sousa. Crítica da razão indolente: contra o
desperdício de experiência. São Paulo : Cortez, 2001. p. 122.
29
Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. cit. p. 123.
30
Cf. ROTH, André-Noël. O direito em crise: fim do Estado moderno? In: FARIA, José
Eduardo C. (org) Direito e Globalização econômica. São Paulo : Malheiros, 1996. p. 23.
aqueles direitos considerados fundamentais, vistos a partir
do visor desta
liberdade negativa (seja de expressão, seja de locomoção, contratual, etc.).
Prevalecerá, na arquitetônica liberal estabelecida, as chamadas
constituições garantias, um sistema jurídico que aspira a uma pretensa unidade,
previsibilidade, correção formal, abstração e impessoalidade.
A separação entre os campos do direito privado (principalmente o
direito das relações econômico-patrimoniais) e do direito público (entendido
principalmente como o universo do direito político), em germe já depositada na
emergência da estatalidade política, aprofunda-se e ganha contornos mais nítidos.
Nesse sentido, apenas uma concepção de justiça estritamente comutativa,
vinculada à dimensão privatística, entra na análise das questões jurídicas, sendo o
postulado de uma justiça distributiva relegado ao plano de mera questão política,
ou melhor, pode-se afirmar que na configuração clássica do Estado-liberal não há
como
se
falar
de
uma
justiça
distributiva
fundada
numa
equalização
operacionalizada pelo Estado.
Ademais, na estrutura jurídico-política liberal a teoria da separação
dos poderes apresenta-se como um dado irrefutável, sendo que, por intermédio
desta sustentação, o poder legislativo adquire ampla predominância em relação ao
poder executivo e a um poder judiciário politicamente neutralizado ou
subalternizado (atavismo que pode ser diagnosticado como sendo oriundo da
revolução francesa, a partir das exigências, v.g., do Exegetismo).
A racionalidade dos monumentais e pretensamente abrangentes
códigos, com uma proibição taxativa dos tribunais decidirem contra-legem estrita
(princípio da legalidade), reduzem, nesse contexto, o atuar jurídico a uma
rotinizada aplicação subsuntiva lógico-formal de fatos a normas, ou de normas a
fatos, despida de referências que possam ultrapassar a desejável e presumida
autoreferencialidade do direito (que será levada às últimas conseqüências, no séc.
XX, com o projeto de depuração epistemológica proposto por Kelsen), movendose em um quadro político estaticamente pré-constituído, um atuar apenas velador
de uma vigência entendida em seu aspecto meramente formal. Apresenta-se, de
tal forma, na estatalidade liberal, um ethos de objetivos hegemonicamente
retroativos, ou seja, o de simplesmente reconstituir uma realidade normativa
sempre entendida como antes ―plenamente― constituída.31
Em correlação direta com este ethos, visualiza-se neste modelo
(em traços gerais) uma concepção de interpretação jurídica envolvida muito mais
com aspectos sintáticos-lexicográficos, de (essencialista) revelação do real sentido
da lei ou até mesmo da busca das intenções do legislador, sem atentar-se para
aspectos semânticos (adequação factual) ou pragmáticos (persuasão). Sintoma da
localização privilegiada da idéia de legalidade no Estado-liberal e da correlata
proeminência do Poder Legislativo a ele relacionado.
A tradição do positivismo normativista tentará solucionar as aporias
relacionadas à interpretação jurídica no contexto liberal com a afirmação (tornada
explícita em Kelsen) de que, em caso de polissemia, vagueza, múltiplas
possibilidades de aplicação de uma mesma norma ao caso concreto, isso se
resolveria pelo aplicador através de um ato de vontade, respaldado pela
autoridade (auctoritas facit legem).32 De tal forma que - talvez possa ser possível
afirmar - boa parte das construções teóricas positivistas (principalmente em seu
viés normativista) têm seu esclarecimento pleno apenas no quadro de referências
liberal.
Não
obstante,
com
o
desencadeamento
vertiginoso
das
transformações tecnológicas cujo início remoto pode ser remetido à revolução
industrial
oitocentista
(estando
diretamente
relacionadas
à
disseminação
processual do capitalismo) e todas as implicações conexas a estas mudanças
(redefinição do urbano, do econômico, do capital-trabalho, etc.),33 visualiza-se
nitidamente, principalmente no contexto entre guerras e no pós segunda guerra,
no plano dos Estados europeus e dos Estados Unidos (lembre-se do
31
MARQUES, Maria Manuel Leitão; PEDROSO, João; SANTOS, Boaventura de
Sousa. Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas. Revista ANPOCS, Outubro de 1995.
p.7.
32
Debate que será desenvolvidos no próximo tópico.
33
Não buscamos um inventário de todos os fatores determinantes para a emergência
do Estado-providência na Europa e nos Estados Unidos, algo que foge do objeto de estudo
deste trabalho, reportamos à vasta literatura existente sobre o assunto.
intervencionismo ao estilo Roosevelt como forma de fomentar a reestruturação de
um Estado saído do conflito mundial), as insuficiências regulatórias deste Estado
restritamente gendarmeriano, guarda noturno (Lassale), que, neste quadro
instaurado, não se colocava com outro objetivo que não fosse a reprodução
insustentável de inúmeras problemáticas.
Teoricamente desde o último quarto do séc. XIX, passando pela
primeira guerra mundial, mas concretamente apenas no pós segunda guerra
mundial, consolida-se nos países centrais os aspectos nucleares daquilo que se
convencionou rotular como o modelo do Welfare State, o Estado Providência, ou
simplesmente Estado Social.34 Tal configuração de Estado absorve formulações
teóricas
englobando
desde
inúmeras
concepções
da
social-democracia
(progressismo que passa a se tornar hegemônico nos países que se colocaram
como oposição aos regimes ditos socialistas do leste), passando pela
configuração de um intervencionismo estatal econômico de viés keynesiano, à
adesão (quase irrestrita) à categoria do progresso como rota histórica inescapável,
principalmente no viés do conceito (weberiano) de modernização, entendida seja
num sentido de racionalização política (procedimentos conformadores da vontade
e da decisão pública, algo já desencadeado a partir do imaginário liberal) e de
promoção de reformas infra-estruturais voltadas à viabilizar um fluxo interno
adequado à disseminação processual do capitalismo (aspectos de produção, de
consumo, de trânsito de informação e pessoas, de know how tecnológico, etc). Em
traços gerais, pode-se referir que inúmeras transformações no tocante ao direito e
ao próprio sistema jurídico são operadas a partir desta nova forma política de
Estado.
Em primeiro lugar, a hiper-juridificação da realidade social coloca
fim à idéia de coerência e unidade do sistema jurídico. 35 Uma estrutura normativa
caósmica coloca em xeque o próprio princípio da legalidade e seu correlato da
34
Cf. ROSANVALLON, Pierre. A Crise do Estado-Providência. Brasília : Ed. UNB:
1997; MARQUES, Maria L.; et. al. Op. Cit.; SANTOS, Boaventura de Sousa. Toward a New
Common Sense: Law, Sciense and Politics in the Paradigmatic Transition. Nova York,
Routledge, 1995.
35
MARQUES, Maria L.; et. al. Op. Cit. p. 11.
interpretação jurídica como mera subsunção lógica, de análise sintática,
formalmente adequada.
Por outro lado, com a positivação de direitos
fundamentais de
cunho prestacional (a exemplo dos intitulados direitos de segunda dimensão,
como os econômicos, sociais e culturais, que exigem prestações positivas dos
Estados para sua efetivação), inverte-se indelevelmente a maneira de se entender
e interpretar o sistema jurídico como um todo, haja vista que tais direitos, como
nas assertivas do jurista Tércio S. Ferraz Jr., não seriam simplesmente
normativos, na forma de um a priori formal, porém possuiriam um sentido
realizatório
prospectivo,
estabelecendo
uma
exigência
imperativa
de
implementação.36
O direito público permeabiliza-se imperativamente no direito
privado (publicização do direito privado, constitucionalização do direito civil),
buscando abarcar toda uma imensa gama de realidades fáticas, gerando, dessa
forma, uma especialização de tais ramos, que se autonomizam cada vez mais,
implicando por vezes uma regulação minudente de micro-aspectos da realidade
social, cada vez mais particularísticos, quebrando em muitas facetas os princípios,
até então tradicionais no direito liberal, da generalidade, impessoalidade e
abstratalidade da norma jurídica.
Formam-se
inúmeros
micro-sistemas
normativos
que
se
comunicam com o núcleo do ordenamento muito mais através de aspectos
principiológicos, valorativos - por conseguinte, mais fluídos, dúcteis, dependendo
de argumentações - que de adequação dedutiva direta, exemplificada no modelo
de sistema jurídico piramidal proposto por Kelsen, das normas inferiores
deduzindo sua vigência das normas superiores e assim por diante.
Os chamados princípios, de meros coadjuvantes no interior
da
teoria do direito (outrora apenas chamados de princípios gerais do direito),
passam a assumir maior protagonismo nesse contexto. Entende-se então que
36
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. O Judiciário frente à divisão dos poderes: um
princípio em decadência?. Revista de Estudos Avançados - USP. n. 21 (março/maio de
1994). p. 12-21.
decisões podem ser embasadas exclusivamente em princípios, e que estes devem
representar balizas hermenêuticas para a interpretação de todo o ordenamento
(considerado, a partir de então, de uma forma mais aberta). Tais categorias
produzem, de certo modo, uma mutação semântica para a própria configuração de
norma, que passa a compreender não mais tão somente as normas-regras, mas
também as chamadas normas-principiológicas.
Logicamente, as implicação no plano da teoria das normas e da
própria teoria do ordenamento não demoraram a aparecer (e a teorização é vasta
e cansativa), emergindo conceitos como o de colisão de princípios (ao invés dos
debates anteriores sobre a coerência e antinomias do sistema jurídico,
representadas através da idéia da revogação) e harmonização de princípios (visto
não ser possível revogá-los em caso da escolha de um em detrimento do outro),
de abertura do sistema jurídico (incutindo modificações no âmbito da teoria da
completude do ordenamento, com seu correlato no conceito de lacunas, visto que,
nessa perspectiva, sempre o aplicador do direito terá subsídios normativos diretos
para responder a um problema jurídico, não necessitando, em caso de lacunas,
criá-los, ou buscar outras fontes, como o costume, a analogia, a jurisprudência,
etc.).
Grife-se que estamos a tratar de um ordenamento entendido num
sentido hipertrofiado (por intermédio de seu extravio), ao termos em mente que o
próprio debate sobre a normatividade dos princípios traz em seu interior uma
indecidibilidade e indiscernibilidade entre as intituladas (principalmente no âmbito
da tradição normativista) esferas do direito e da moral, cuja tentativa de separação
(clássica) pode ser remontada à Doutrina do Direito de Kant, texto datado de
1797.
É constatável que o dispositivo do princípio traz, em si, uma
elevada carga substancialista, muitas vezes esquecidas pela maior parte dos
juristas (principalmente se imersos num estudo apenas da faceta dogmática do
direito). E, de certa forma, uma indeterminação (seja de valores ou mesmo
semântica) que dá margem à abertura de um vasto campo para a pragmática e
para a retórica no teoria do direito contemporâneo, voltadas principalmente para
as instâncias da aplicação do direito (todo o debate sobre a teoria da
argumentação jurídica insere-se nessa problemática).
Se, por um lado, rompe-se com a tradição essencialista, silogística
e exegética para a aplicação jurídica, por outro, os critérios de validade de uma
decisão legítima ficam cada vez mais difusos, dando margem, por exemplo, à
proliferação de sentenças contraditórias (também ao decisionismo e ao
psicologismo arbitrário de juízes).
Concomitante a isso, os próprios locais das dimensões zetéticas
das dimensões dogmáticas da teoria do direito (aferidos pela tópica de Viehweg),
com
esse
extravio
nos
campos
sistemático
e
aplicativo,
entram
em
indeterminação.
O que se aponta, de forma sumária, é a mudança de
configurações, na estatalidade moderna, de um modelo normativista para um
modelo ―decisionista‖, mutação que acompanha – diacronicamente - a crise das
estruturas liberais no plano político e a crise das categorias positivistas na
dimensão da teoria do direito.
Em termos de estrutura política, com a prevalência do modelo
interventor colapsa o princípio da tripartição dos poderes (e, principalmente, a
supremacia do poder legislativo previsto na arquitetônica liberal), com uma
proeminência do Poder Executivo-Administrativo, respaldado com o beneplácito
dos inúmeros direitos positivos que deve efetivar, fenômeno chamado no período
de administrativização do direito público e até mesmo a governamentalização da
produção do direito (crescem os casuísmos, o chamado instrumentalismo jurídico,
a produção legiferante em massa através, v.g., de medidas provisórias, como é
corrente no exemplo brasileiro).
O componente promocional do Estado providência traz uma
juridificação da justiça distributiva, os próprios efeitos extra-judiciais de uma
sentença passaram a ser o critério principal de avaliação do desempenho judicial,
num viés muito mais prospectivo que retrospectivo, como era na primeira fase.
Quebra-se
a
conhecida
simbiose
entre
independência
dos
tribunais
e
neutralização política, fazendo com que o Poder Judiciário tenha que se confrontar
com sua quota de responsabilidade na efetivação das promessas que o próprio
ordenamento traz em seu interior.37
Contudo e paralelo às transformações trazidas pelo modelo
regulatório com pretensões abrangentes do Estado Providência – a leveza
proliferatória do extravio do jurídico em todos os níveis - percebe-se nitidamente,
com uma complexificação social em progressão geométrica (a deixa para as
teorizações de matriz luhmanina adotarem o conceito de complexidade como vetor
epistemológico principal de análise), uma verdadeira perda do espaço do direito
como pólo privilegiado e central de controle social, fenômeno diagnosticado por
Bobbio, em 1971, como tendo já suas origens depositadas no período
decimonônico.38
(...) Mientras que los escritores iluministas poniam al derecho en el
centro del estudio de las distintas civilizaciones, iban a buscar la
natureza y las lineas de desarrollo de un pueblo en el ―espiritu de las
leyes‖ y creíam que para cambiar la sociedad bastaba com cambiar el
derecho, en el siglo XIX, poco a poco e a medida que se iba tomando
conciencia del gran cambio histórico producido poe el advenimiento de la
sociedad industrial en la ‗sociedad civil‘, antes incluso que en la sociedad
política, el Derecho se fue considerando cada vez más como un
epifenómeno, como un momento secundário del desarrollo histórico, y
37
FERRAZ JR. op. cit. p. 12. ―(...) Com base em condições sociopolíticas do séc. XIX,
sustentou-se por muito tempo a neutralização política do Judiciário como conseqüência do
princípio da divisão dos poderes. A transformação destas condições, com o advento da
sociedade tecnológica e do Estado Social parece envolver exigências no sentido de uma
desneutralização, posto que o juiz é chamado a exercer uma função sócio-terapêutica,
liberando-se do apertado condicionamento de uma estrita legalidade e da responsabilidade
exclusivamente retrospectiva que ela impõe, obrigando-se a uma responsabilidade
prospectiva, preocupada com a consecução de finalidades políticas das quais ele não mais se
exime em nome do princípio da legalidade (dura lex sed lex). Não se trata, nessa
transformação, de uma simples correção da literalidade da lei no caso concreto por meio de
eqüidade ou da obrigatoriedade de, na aplicação contenciosa da lei, olhar os fins sociais a que
ela se destina. A responsabilidade do juiz alcança agora a responsabilidade pelo sucesso
político das finalidades impostas aos demais poderes pelas exigências do Estado Social.‖
Ibidem.
38
No texto ―Derecho e ciencias sociales‖, incluído na reunião de textos traduzida para
o espanhol como ―Contribucion a la teoria del derecho‖.
fue mirado cada vez con más desconfianza como instrumento de cambio
social.39
Entretanto, se a crise da centralidade política do Estado já era
percebida nos idos do séc. XIX, passa a ser um lugar comum - na segunda
metade do séc. XX e principalmente nas últimas décadas do séc. XX -
o
entendimento de que esse sistema político aglutinado através do(s) aparato(s)
estatal(is) representa apenas mais um dos tantos subsistemas presentes e
coexistentes na sociedade (mais deixas para Luhman), constituindo-se, no
entender de Bobbio, que a grande ilusão das teorias políticas-jurídico-institucionais
do séc. XIX consistia em analisar o subsistema político (estatal) como autosuficiente, tendo, por conseguinte, independência e, simultaneamente, controle
sobre o restante do sistema global.40 Análise semelhante pode ser encontrada em
Habermas:
De acordo com as ideias normativas da nossa tradição política, o
aparelho de Estado, legitimado democraticamente, transposto da
soberania dos príncipes para a do povo, deveria expressar a opinião e a
vontade do público dos cidadãos do Estado. Os próprios cidadãos do
Estado participam na formação colectiva da consciência, eles não podem
agir colectivamente. Mas será que o Estado o pode? Agir colectivamente
significaria que o Estado transformaria, por si mesmo e de um modo
organizacional, o saber da sociedade constituído colectivamente numa
autodeterminação da sociedade. Temos, porém, já por razões da teoria
dos sistemas, de duvidar desta possibilidade. A política tornou-se hoje,
de facto, num assunto de um sistema parcial funcionalmente des39
BOBBIO, Norberto. Contribucion a la teoria del derecho. (Tradução: Afonso Ruiz
Miguel). Madri : Fernando Torres – Editor, 1980. Observe-se, nesse sentido, as observações
de Carl Schmitt, lançadas em sua Teologia Política: ―Hoje, nada é mais moderno do que a luta
contra tudo o que é político. Magnatas americanos, técnicos industriais, socialistas, marxistas
e revolucionários anarco-sindicalistas juntam-se ao exigir a eliminação da dominação nãoobjetiva da política sobre a objetividade da vida econômica. Não deverão mais existir
problemas políticos, só tarefas técnico-organizacionais e econômico-sociológicas. A espécie
de pensamento técnico-econômico hoje dominante pode até nem aceitar mais um idéia
política. O Estado moderno parece realmente ter se transformado naquilo que Max Weber
previu: uma grande empresa. Uma idéia política geralmente só é assimilada quando o círculo
de pessoas que tem algum interesse plausível nela consegue provar que pode usá-la em
vantagem própria. O político desaparece no econômico ou no técnico organizacional e, por
outro lado, se desfaz no eterno discurso das generalidades histórico-filosóficas e culturais, que
com caracterizações estéticas degustam uma época como clássica, romântica ou barroca. Em
ambos, a essência da idéia política, a decisão moral exigente, é desviada.‖ SCHMITT, Carl.
Teologia Política. In: A crise da democracia parlamentar. (Tradução de Inês Lohbauer). São
Paulo, Scritta, 1996. 129-130.
40
BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da política: a filosofia política e a lição dos
clássicos. Tradução: Daniela Bersiani. Rio de Janeiro : Campus, 2000. p. 255.
diferenciado; e este não pode, face a outros sistemas parciais, dispor da
quantidade de autonomia que é exigida para um controlo geral, i.e., para
uma auto-influência que parta da sociedade como totalidade e que
retorne a esta.41
A perda de uma localização privilegiada do direito no campo de
sociedades complexas, levando a uma fragmentação estrutural com objetivos de
abrangência funcional dos ordenamentos nacionais (num contexto específico do
modelo e Estado Providência com sua promessas e de um capitalismo tardio), foi
atravessada
paulatinamente,
entretanto,
por
uma
roupagem
regulatória
diferenciada, não mais dependente de políticas contextualizadas num plano de
interesses
nacionais.
Aí
já
entramos
num
âmbito
de
reestruturação
desterritorializada (ou, re-territorialização em outras escalas)42 do capitalismo de
viés financeiro transnacional.
Sem adentrar nos aspectos da irreversibilidade ou reversibilidade
da crise do Estado de Bem-Estar Social, pode-se afirmar que, a partir do final da
década de 70 e início da década de 80 no séc. XX, iniciavam-se os primeiros
sinais manifestos deste ocaso, que se prolongou por toda a década de 80 até os
dias atuais (falando-se isto no plano dos países centrais).43
41
HABERMAS, Jürgen. O Discurso filosófico da modernidade. Lisboa : Dom
Quixote, 1998. p. 330.
42
―O território é tão inseparável da desterritorialização quando o era o código em
relação à descodificação.‖ DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Vol. 5. (Tradução:
Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa). São Paulo : Ed. 34, 1997. p. 220.
43
MARQUES, Maria L.; et. al. Op. Cit. p.15. Pode-se afirmar que nas regiões
intituladas como periféricas, a exemplo da localização brasileira no circuito econômico mundial
do presente, os arremedos de consolidação de um Estado Providência, concentrados
principalmente numa produção legislativa voltada a este perfil de Estado (num aspecto
meramente formal), foram desde logo colapsados pela emergência do credo neo-liberista de
não intervenção. Ou seja, na medida em que tardiamente se configura em termos formais um
projeto de Estado Social (v.g., a Constituição brasileira de 1988), visualizam-se quase na
concomitância os processos inversos de des-regulamentação ou re-regulamentação
liberatória. No caso brasileiro, podem ser citadas as paradigmáticas
medidas desregulamentadoras operadas no próprio texto constitucional no contexto do primeiro mandato
de Fernando Henrique Cardoso, pormenorizadas pelo jurista Celso A. Bandeira de Mello. ―(a)
Emenda Constitucional na 6 de 15.08.95, por força da qual de um lado, foram eliminados o
conceito de empresa brasileira de capital nacional e a preferência que o Poder Público lhe
deveria dar quando pretendesse adquirir bens e serviços, e de outro, permitiu-se, assim, que a
exploração mineral do subsolo brasileiro pudesse ser feita por empresas controladas e
dirigidas por pessoas não residentes no País, o que dantes era vedado. O atual projeto de
privatizar a Companhia Vale do Rio Doce, empresa governamental lucrativa, é uma
concretização da sobredita Emenda; (b) A Emenda Constitucional nº 7, também de 15 de
Múltiplos foram os fatores desencadeadores de tal crise, podem ser
colocados em relevo a incapacidade financeira do Estado para atender despesas
sempre crescentes da intervenção estatal (tanto mais necessária quanto piores
forem as condições para a financiar),44 os impactos trazidos pelas alterações
drásticas nos sistemas produtivos e no universo do trabalho pelas revoluções
tecnológicas, a difusão do modelo ultraliberal, o protagonismo de agências
financeiras internacionais e a própria globalização da economia como um todo, a
sujeição, a clientelização e normalização dos indivíduos ao cargo de agências
burocraticamente despersonalizadas, levando-se em consideração que
(...) Em uma burocracia plenamente desenvolvida não há ninguém a
quem se possa inquirir, a quem se possam apresentar queixas, sobre
quem exercer as pressões do poder. A burocracia é a forma de governo
no qual todas as pessoas estão privadas de liberdade política, do poder
de agir, pois o domínio de Ninguém é um não-domínio, e onde todos são
igualmente impotentes temos uma tirania sem tirano.45
Enfim, temos uma breve enumeração daqueles componentes que
darão margem às interpretações de Negri e Hardt sobre a categoria de Império
(envolvendo uma nova ordem mundial acêntrica, administrada pelas maiores
potências estatais do planeta e instituições transnacionais como a OMC e o FMI,
seguindo um viés globalizatório) aplicada à contemporaneidade no Ocidente.46
agosto do mesmo ano, veio extinguir a garantia de que a navegação de cabotagem e interior
no Brasil fosse, salvo caso de necessidade pública, privativa de embarcações nacionais, pelo
que não há mais óbice constitucional a que seja feita por embarcações estrangeiras; além
disto, suprimiu a exigência de que os armadores, os proprietários, o comandante e pelo
menos dois terços dos tripulantes de nossas próprias embarcações fossem brasileiros
(espantosa a minúcia dos interesses alienígenas em excluir até mesmo a cláusula que
estabelecia devessem ser brasileiros dois terços dos tripulantes de nossas próprias
embarcações); (c) A de nº 8, da mesma data das anteriores, veio para eliminar a previsão de
que a exploração de serviços telefônicos, telegráficos, de transmissão de dados e demais
serviços públicos de telecomunicações fossem explorados diretamente pela União ou por
concessão a pessoa sob controle acionário estatal; (d) A de nº 9, também da mesma data,
para flexibilizar as disposições relativas ao monopólio estatal do petróleo.‖ DE MELLO, Celso
Antônio Bandeira. A democracia e suas dificuldades contemporâneas. In : Revista
JurisPlenum. 84 ed. Vol. 1. Caxias do Sul : Ed. Plenum, agosto de 2005.
44
MARQUES, Maria L., et. al. Op. Cit.. p. 17.
45
ARENDT, Hannah. Sobre a Violência. (Tradução: André Duarte). Relume Dumará :
Rio de Janeiro, 1994. p. 59.
46
Cf.: HARDT, Michael, NEGRI, Antônio. Império. (Tradução de Clóvis Marques) Rio
de Janeiro : Record, 2001. Reforça-se, a partir da reflexão desses dois teóricos, que ―(...) a
construção dos caminhos e limites desses novos fluxos globais tem sido acompanhada por
André-Noël Roth assinala no mundo contemporâneo um acentuado
debilitamento das especificidades que permitiram à regulação levada a cabo pelo
Estado moderno diferenciar-se da existente no período feudal: distinção entre
esfera privada e esfera pública, dissociação entre poderio político e econômico,
separação entre as funções administrativas, políticas e a sociedade civil.47
A perda da coerência, previsibilidade, centralidade e unidade do
sistema jurídico iniciada no período do Welfare State permanece - entretanto
metamorfoseada - dando lugar a uma múltipla ordenação plural que ultrapassa a
esfera dos territórios nacionais, principalmente os da periferia, como no caso da
tão citada lex mercatória.
Por outro lado, facilitada pela juridificação maciça levada a cabo
num contexto estatal de índole promocional (principalmente no sentido de
publicizar esferas privadas), será cada vez mais aprofundada a indistinção, ou
des-diferenciação, entre as esferas públicas e privadas no mundo contemporâneo
(inicialmente a publicização do privado e posteriormente a privatização do
público), uma imensa zona de penumbra se forma entre estes dois pólos,
tendendo a degluti-los, fagocitá-los.
Um conceito fantásmico de mercado invade em progressão
geométrica os espaços da política estatal. Esta instância da modernidade sólida
(como no dizer de Bauman)48 se torna combalida frente ao esfacelamento do
espaço público e da ascensão de uma bureau-cracia dos custos-benefícios/meiosfins, o governo de ninguém, impessoal, quase virtual, atravessando os espaços
uma transformação dos próprios processos produtivos dominantes" (Op. Cit. p. 17.) ; e, dos
mesmos autores, Multidão: Guerra e democracia na era do Império. (Tradução de Clóvis
Marques) Rio de Janeiro : Record, 2005.
47
ROTH, André-Noël. O direito em crise: fim do Estado moderno? In: FARIA, José
Eduardo C. (org) Direito e Globalização econômica. Op. Cit. p. 24.
48
―Volume e tamanho deixam de ser recursos para se tornar riscos. Para os
capitalistas que preferem trocar maciços prédios de escritório por cabines em balões, flutuar é
o mais lucrativo e desejado dos recursos, e a melhor maneira de garantir a flutuação é jogar
pela amurada todo peso não-vital, deixando os membros não-indispensáveis da tripulação em
terra. Um dos itens mais embaraçosos do lastro de que é preciso livrar-se é a onerosa tarefa
da administração e supervisão de uma equipe grande – tarefa que tem a tendência irritante de
crescer incessantemente e aumentar de peso com a adição de camadas sempre novas de
compromissos e obrigações.‖ BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. (Tradução Plínio
Dentzien). Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 2000. p. 141.
carcomidos dos Estados, num mundo onde o tipo médio do homem-massa
(Ortega y Gasset) consumidor é seu representante-mor antropológico (o fiel
rebanho da religião capitalista de nosso tempo), um arquétipo previsto para a
humanidade contemporânea.49
Nesse sentido, enquanto se visualizava uma proeminência do
poder legislativo no modelo do Estado Liberal, a hipertrofia do poder executivo
num contexto de Welfare State (que efetivamente não rompe, pelo menos em
seus pressupostos, com vários postulados da tradição liberal), na estatalidade
contemporânea (que realmente não sabemos como chamar, para certos juristas
estamos diante de um Estado Regulador), temos um acentuado crescimento do
local do poder judiciário na funcionalidade intrínseca a essa estatalidade (até
como forma gestão das aporias do segundo modelo).50 Nesse sentido, a maior
parte dos debates sobre teoria do direito contemporâneo tomam o judiciário, e
particularmente, a construção da decisão, como foco privilegiado de estudos. O
Estado contemporâneo, a teoria do direito contemporâneo, está às voltas com a
questão da decisão, ou seja, da decidibilidade de conflitos. (Fenômeno que será
debatido com mais pormenorização no item 4 deste capítulo, onde serão tratadas
das reconfigurações estruturais e funcionais do direito nas sociedades de
consumo contemporâneas).
Sintoma dessa localização privilegiada do judiciário nas atenções
da política institucional contemporânea é o simples fato de que seriam
impensáveis, nos modelos anteriores, os intermináveis debates sobre a
judicialização da política e sobre a politização do judiciário.
49
―Às vezes imagino o que dirão de nós os futuros historiadores. Uma só frase lhes
bastará para definir o homem moderno: fornicava e lia jornais. Depois desta forte definição, o
assunto ficará, se assim posso me expressar, esgotado.‖ Albert Camus. A Queda. (Tradução:
Valerie Rumjanek). São Paulo : Círculo do Livro, s/d. p. 6.
50
Como no dizer de Pietro Barcellona, ―estamos atribuindo tudo à política e ao direito:
desde o nascimento à morte. Estamos nos dirigindo para uma maciça objetivação e
institucionalização e, contemporaneamente, a uma jurisdição‖. BARCELLONA, Pietro. O
egoísmo maduro e a insensatez do capital. (Tradução José Sebastião Roque). São Paulo :
Ícone,1995. p. 96.
Uma aporia incontornável está contida nesse estado de coisas:
esse judiciário que chega até nosso presente já não tem a seu dispor o modelo de
legalidade até então configurado na tradição ocidental. Terá que se respaldar em
uma legalidade flexível, dúctil,51 extraviada entre inúmeros horizontes muitas
vezes conflitantes (como o político e o econômico), e indeterminada em sua
própria configuração ôntica. Fácil de verificar é o descolamento metonímico, cada
vez maior, do conceito de lei para seus componentes específicos (como
conceituar um carro pela simples existência de um motor), exemplo é a mutação
semântica ocorrida na transformação de normas técnicas em normas jurídicas
(leis), portarias de agências reguladoras em normas jurídicas (leis), decretos com
força de lei em leis.
O conceito de lei passa a não ser mais um dado nuclear do direito
contemporâneo. Mais próximo a isso estaria o sintagma força de lei
agambeniano, por analiticamente melhor contemplar todas as entidades que
passam a gravitar em torno da sintaxe jurídica, mesmo não sendo afetas (em
termos tradicionais) a ela.
A sintaxe do direito contemporâneo foi explodida e sua semântica
abarca um mundo.
Extravio é uma categoria que pode representar
adequadamente tal configuração, por contemplar tanto os aspectos da deriva,
quanto a dimensão da perda, do abandono.
Por isso, podemos afirmar que o estar-do-direito e o local da teoria
do direito do presente – talqualmente desdobrado, disseminado, debatido pelos
mais variados teóricos do direito e juristas do ocidente contemporâneo, 52 na forma
51
ZAGREBELSKY, El derecho dúctil: ley, derechos, justicia. (Traducción de Marina
Guascón). Madrid : Trotta, 1995.
52
Reportamo-nos às teorizações, v.g, contidas em, DWORKIN, Ronald. Freedom's
law - the moral reading of the American constitution. Cambridge, Massachusetts: Harvard
University Press, 1996; DWORKIN, Ronald. Law's empire. The Belknap Press of Harvard
University Press. Massachusetts: Cambridge, 1986 (Edição brasileira: O império do direito.
(Tradução Jefferson Luiz Camargo). São Paulo: Martins Fontes, 1999); DWORKIN, Ronald.
Taking Rights Seriously. Cambridge: Massachussets: Harvard University Press, 1978;
ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. 3. ed. Frankfurt: Suhrkamp, 1996 (edição
espanhola, ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. (Tradução Ernesto
Garzón Valdés). Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997); ALEXY, Robert. Teoria
em que é manifestado cotidianamente nos tribunais de todas as paragens –
apresenta-se desde o início (topologicamente) capturado pelo dispositivo da
exceção.
Esse estado de arte do direito contemporâneo (uma configuração
vazia de legalidade), percebido mesmo pela Weltanschauung mais tradicional das
teorizações sobre o direito (as referências constantes a Bobbio, e outros autores
de teoria do direito correntes nos manuais jurídicos, não são gratuitas), nada mais
representa que sintomas de tal captura.
Não é à toa que tratamos do extravio do jurídico partindo da crise
estrutural do ideário do Estado Providência, e isso de uma forma epidérmica, ou
seja, naquilo que a historiografia do direito e a teoria européia hegemônica revela
(exigindo, não raro, a leitura nos lapsos das entrelinhas), na medida em que o
acesso imediato, a própria pré-compreensão, no sentido gadameriano do termo,
ao conceito de estatalidade existente na contemporaneidade do ocidente é forjada
a partir do modelo regulatório weimariano e de seu fenecimento.
De certa maneira entendemos, contudo, que o próprio debate (sem
derivar-se para o palavrório estéril) sobre a(s) topologia(s) do direito do presente
implica o questionar crítico dos elementos anteriores a essa conjuntura estrutural e
espacialmente delimitada - seja a do Welfare State europeu ou norte americano,
seja de suas caricaturas nas paragens periféricas - exigindo, portanto, as reflexões
que terão local nos próximos tópicos.
2. As investigações que tratem de enfrentar as principais
aporias que a teoria do direito passa a apresentar em seu devircontemporâneo terão, irremediavelmente, que criticamente confrontar-se
de la Argumentacion Juridica. La Teoria del Discruso Racional como Teoria de la
Fundamentacion Juridica. (Traducción de Manuel Atienza e Isabel Espejo). Madrid, Centro de
Estudios Constitucionales, 1989. ALEXY, Robert. Idée et Structure d'un Système du Droit
Rationnel. Archives de Philosophie du Droit. Ed. Sirey. Tomo 33, 1988; além de boa parte
daquilo que hoje se convencionou chamar de estudos neoconstitucionalistas.
com os escombros da tradição normativista, tomando como paradigma53 o
legado de Hans Kelsen, procurando paleontologicamente inventariar os
recônditos desse corpus teórico-metodológico, principalmente o locus da
decisão no interior da arquitetura kelseniana. Só assim serão abertas as
brechas necessária para poder entender em que medida as ruínas dessa
construção influenciaram e influenciam o atual estado de coisas (imersas na
exceção) vivenciadas juridicamente e politicamente no presente. Assumindo
esta tarefa, entretanto, será imprescindível ao investigador ter em mente que
os estilhaços (Splitter) em sua volta não representam a manifestação atual
do direito (por mais que as aparências do cotidiano dos tribunais e a maior
parte da dogmática manualesca corrente possa dizer ao contrário), mas
podem representar pistas - peças arqueológicas - para melhor compreendêlo.
53
Ultrapassando o debate sobre as acepções de paradigma na epistemologia da
ciência normal de T. Kuhn (em seu opúsculo ― A Estrutura das revoluções científicas‖), temos
as considerações de Agamben sobre esta categoria, acepção por nós utilizada no decorrer
deste trabalho: ―the problem of the paradigm is strictly linked to the problem of analogy, whose
relations to logic have always been controversial. So the locus classicus for the
epistemological problem of the paradigm is Aristotle‘s Analytica Prioria. Philosophy very rarely
refers to the problems of paradigm and analogy; Aristotle is perhaps the first, however briefly.
Aristotle says that the paradigm, the example, does not concern a part with respect to the
whole, nor the whole with respect to the part, it concerns a part with respect to the part. This is
a very interesting definition. This means that the paradigm does not move from the particular to
the universal, nor from the universal to the particular, but from the particular to the particular. In
other words, we first have deduction which goes from the universal to the particular, we have
induction which goes from the particular to the universal and then the third we have the
paradigm and the analogy which go from the particular to the particular. But what does this
mean? What kind of movement is this, and how can a paradigm, which is a singularity, create a
new analogical context, a new generality, as we saw in Foucault? To understand how a
paradigm works, we first have to neutralize traditional philosophical oppositions such as
universal and particular, general and individual, and even also form and content. The paradigm
analogy is depolar and not dichotomic, it is tensional and not oppositional. It produces a field of
polar tensions which tend to form a zone of undecidability which neutralizes every rigid
opposition. We don‘t have here a dichotomy, meaning two zones or elements clearly separated
and distinguished by a caesura, we have a field where two opposite tensions run. The
paradigm is neither universal nor particular, neither general nor individual, it is a singularity
which, showing itself as such, produces a new ontological context‖. AGAMBEN, Giorgio. What
is a Paradigm?. Trecho da conferência pronunciada na European Graduate School EGS, em
Nova Iorque, em agosto de 2006. encontrada em http://www.egs.edu/faculty/agamben-what-isa-paradigm-2002.html, com pesquisa na data de 26 de novembro de 2006.
O objetivo principal da propositura desta hipótese de trabalho é
desvencilhar-se da imagem do normativismo jurídico como sendo um contraponto
adequado à idéia de arbitrariedade, exceção (no sentido vulgar do termo), ou
mesmo uma concepção estável que possa imunizar a aplicação jurídica contra os
desvios da insegurança e do irracional. Penetrar nessa questão, no atual
desenrolar da teoria do direito, apresenta-se como tarefa não despida das mais
inumeráveis dificuldades, posto que a tradição normativista (inaugurada a partir do
opúsculo da Teoria Pura do Direito, de Kelsen) representa, para muitos dos
estudiosos do direito, não apenas uma teoria entre outras, passível de
falseamento, porém um corpus teórico-metodológico erigido à posição de
verdadeira Weltanschauung, ou seja, uma ―visão, intuição, (um) abarcar
compreensivo do mundo.‖54 O que necessitaria - referencial que infelizmente não
possuímos - até mesmo de uma aproximação teológica à crítica de tal modelo
(não esquecendo da provocação schmittiana de que todos os conceitos
expressivos
da
moderna
doutrina
de
estado
são
conceitos
teológicos
secularizados).55
Giorgio Agamben lembra que Carl Schmitt, no ensaio de 1933
intitulado ―Estado, Movimento, Povo‖, foi um dos primeiros juristas a debruçar-se
sobre as ―cláusulas gerais e indeterminadas‖ que paulatinamente foram
imiscuindo-se (e de forma profunda) na legislação alemã e européia dos
Novecentos, isso, em Schmitt, na fundamentação do conceito biopolítico de raça
54
NANCY, Jean-Luc; Lacoue-Labarthe, Philipe. O mito nazista. (Tradução de Márcio
Seligman Silva). São Paulo : Iluminuras, 2002. p. 23.
55
SCHMITT, Carl. Op. cit. p. 109. Em trecho da Teologia Política, publicada no Brasil
juntamente com ―A crise da democracia parlamentar‖, escrito que dá nome ao livro. Nesse
capítulo é lembrado que ―Kelsen possui o mérito de ter apontado, em 1920, com sua
acentuação própria, o parentesco metódico da teologia com a jurisprudência. Em seu último
escrito sobre o conceito sociológico e jurídico do Estado ele apresenta um monte de analogias
difusas, mas que numa observação mais profunda, sob o enfoque do histórico das idéias,
revelam a heterogeneidade interna do ponto de partida da compreensão teórica, do seu
resultado democrático e relativo à visão de mundo. Pois como base dessa identificação do
Estado com a ordem jurídica, que identifica a legalidade natural com a normativa, há uma
metafísica. Ela surgiu de um pensamento exclusivamente científico-natural, baseia-se no
repúdio a toda arbitrariedade e procura afastar toda exceção do espírito humano‖. Ibidem.
p.112.
(incluída pelo jurista alemão como sendo a categoria sem a qual o Estado nazista
não poderia ter existido, nem pensável sua estrutura jurídica).56
Tais conceitos, exemplificados em sintagmas como ―bom costume‖,
―interesse público‖, ―ordem pública‖, ―motivo imperante‖, ―caso de necessidade‖,
―legítima defesa‖, ―estado de perigo‖, que, para Agamben, ―não remetem a uma
norma, mas a uma situação, penetrando invasivamente na norma‖,
tornaram
ultrapassada, no entender do filósofo italiano, a ―ilusão de uma lei que possa
regular
a priori todos os casos e todas as situações, e que o juiz deveria
simplesmente limitar-se a aplicar.‖57
Sob a ação dessas cláusulas, que deslocam certeza e calculabilidade
para fora da norma, todos os conceitos jurídicos se indeterminam.
‗Desse ponto de vista - ele (Carl Schmitt) escreve num tom
inconscientemente kafkiano – ‗hoje em dia existem apenas conceitos
jurídicos ‗indeterminados‘... Dessa maneira toda a aplicação da lei está
entre Cilas e Caribdes. O caminho à frente parece condenar a um mar
sem limites e afastar-se sempre mais do terreno firme da certeza jurídica
e da adesão à lei, que é, também, ao mesmo tempo, o terreno da
independência dos juízes: o caminho para trás, em direção a uma
formalística superstição da lei, que foi considerada sem sentido e
historicamente superada há muito tempo, também não é merecedor de
consideração‘ (Schmitt, 1933, p. 227-229).58
Não se pode esquecer que, em Schmitt, o deslocamento da
certeza e da calculabilidade da norma encontra-se desde o início vinculado a
uma decisão soberana que se faça valer a partir da vagueza, nesse sentido, o
aplicador não mais se vincula à norma ou mesmo à situação fática, porém
transitará em um terreno de indistinção (―a comunidade de raça com o povo
alemão e o Führer”)59 entre vida e política, questi facti e questi jure.
Indiscernibilidade capturada e vinculada à decisão soberana.
Outra rota - oposta - de análise se abre a partir da
indecidibilidade de viés benjaminiano, que, de certa forma, representa o melhor
contraponto a Schmitt (é em resposta à tese de Benjamin da indecidibilidade
56
Cf. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. (Tradução
Henrique Burigo). Belo Horizonte : Ed. UFMG, 2002. p. 178.
57
Ibidem. p. 179.
58
Ibidem. Idem.
59
AGAMBEN, Giorgio. Ibidem. p. 179.
última de todos os problemas jurídicos que Schmitt estrutura sua teoria da
decisão).60 Giorgio Agamben lembra que, para Walter Benjamin, o direito
―reconhece a decisão espacial e temporalmente determinada como uma
categoria metafísica.‖61 Benjamin expressa taxativamente, em sua Crítica da
Violência, a
(...) experiência singular e em princípio desanimadora de que, em última
instância, é impossível ‗decidir‘ qualquer problema jurídico - aporia que
talvez só possa ser comparada com a impossibilidade de uma decisão
taxativa sobre o que é ‗certo‘ ou ‗errado‘ em linguagens que têm
evoluções históricas.62
A indecidibilidade benjaminiana, ou mesmo (em certos matizes)
as estratégias políticas foucaultianas, exigem-nos pensar uma forma de
indistinção sem nenhum vínculo com os dispositivos de poder, ou que possa se
subtrair à captura de um poder de vida e morte, o que exigiria a reflexão sobre o
estado de exceção efetivo que será travada posteriormente.
Contudo, podemos pensar também na indecidibilidade no campo
da linguagem e do próprio conhecimento (da impossibilidade de fixar
aprioristicamente qualquer tipo de conhecimento), entendida no sentido ativado
pela vertente desconstrutiva de Jacques Derrida,63 principalmente analisando-se a
partir do terreno privilegiado da literatura, onde as relações fluídas no interior do
horizonte lingüístico apresentam-se em tal estado de liquefação que atravessam destruindo - a clautrofóbica dicotomia estruturalista entre significantes e
significados. Dispersão belissimamente desenvolvida, por exemplo, nos textos de
Maurice Blanchot, sintomática nesse enxerto retirado de sua interpretação de ―Um
lance de dados”, de Mallarmé:
60
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. (Tradução Iraci Poleti). São Paulo :
Boitempo, 2004. p. 86.
61
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p. 85.
62
BENJAMIN, Walter. Crítica da Violência – Crítica do Poder. In: Documentos de
Cultura, Documentos de Barbárie. Escritos escolhidos. (Tradução Willi Bolle). São Paulo,
Editora USP/Cultrix, 1986. p 171.
63
―(...) O horizonte semântico que comanda habitualmente a noção de comunicação é
excedido ou fendido pela intervenção da escrita, quer dizer, de uma disseminação que não se
reduz a uma polissemia. A escrita lê-se, não dá lugar, ‗em última instância, a uma
descodificação hermenêutica, a uma descriptagem de um sentido ou de uma verdade‖.
DERRIDA, Jacques. Margens da Filosofia. (Tradução: Joaquim Torres Costa, Antônio M.
Magalhães. Campinas : Papirus, 1991. p. 372.
Um lance de dados nasceu de um entendimento novo do espaço
literário, um espaço onde podem ser engendradas, por meio de novas
relações de movimento, novas relações de compreensão. Mallarmé
sempre teve consciência do fato, mal conhecido até ele e talvez depois
dele, de que a língua era um sistema de relações espaciais infinitamente
complexas, cuja originalidade nem o espaço geométrico ordinário nem o
espaço da vida prática ordinária nos permite captar. Nada se cria e nada
se diz de maneira criativa senão pela aproximação prévia do lugar de
extrema vacância onde, antes de ser falas determinadas e expressas, a
linguagem é o movimento silencioso das relações, isto é, ‗a escansão
rítmica do ser‘. As palavras só estão ali para designar a extensão de
suas relações: o espaço em que elas se projetam e que, mal é
designado, se dobra e redobra, não estando em nenhum lugar onde
está. O espaço poético, fonte e ‗resultado‟ da linguagem, nunca existe
como uma coisa, mas sempre se ‗escapa e se dissemina. 64
Qual seria a resposta da teorização normativista, a partir de
Kelsen, se é que realmente ela exista, para a irrupção da indeterminação (sempre
em estado de latência) e da indecidibilidade no âmbito das normas jurídicas
(constatada, por exemplo, por Walter Benjamin), ou, em outros termos e
referenciais, para essa ―escansão rítmica do ser‖ representada pelo espaço de
disseminação
da
própria
linguagem
(também
pensada
no
ângulo
da
indecidibilidade) ou poderemos considerar que, desde o seu aparecimento como
teoria, o normativismo caracteriza-se justamente ao mascarar tal indeterminação?
Diferentemente do que se pode deduzir da vulgata disseminada
sobre o normativismo, evidencia-se lícito dizer que há (mesmo que discreto), no
interior da arquitetura kelseniana, um atentar-se para tal condição. Localiza-se
sobretudo no último capítulo da Teoria Pura do Direito, onde Kelsen trata das
questões relacionadas à interpretação.
De certa forma, toda a concepção kelseniana de teoria do direito
(mais precisamente, em Kelsen, ciência do direito, cuja teoria é indissociável de
um projeto de cientificização,65 guardando afinidades eletivas com os propósitos
64
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. (Tradução: Leyla Perrone-Moisés). São Paulo
: Martind Fontes, 2005. p. 346.
65
Norberto Bobbio, reconhecido como um dos maiores intérpretes de Kelsen,
assevera que duas causas convergentes e concorrentes norteiam a concepção da ciência do
direito kelseniana, uma social e outra ideológica: ―a) la gradual monopolización del Derecho
por parte de la ley com exclusión de todas lás demás fuentes de derecho, situación acogida y
consagrada por el positivismo jurídico, en el que Kelsen se inspia constantemente; b) la ética
de la Wertfreiheit, es decir, de la indiferencia a los valores como carácter específico de la
epistemológicos do Círculo de Viena) é assentada nesse capítulo, de maneira que
se evidencia imprescindível sua pormenorização.66
Kelsen não nega aquilo que conceitua como a plurisignificação das
normas jurídicas. Na existência de tal situação, caberia ao aplicador fixar, a partir
das múltiplas possibilidades de aplicação previstas, uma moldura ou quadro-limite
aceitável e, no âmbito de incidência dessa moldura, decidir sobre o caso concreto.
(...) a norma do escalão superior regula – como já se mostrou - o ato
através do qual é produzida a norma do escalão inferior, ou o ato de
execução, quando já deste apenas se trata; ela determina não só o
processo em que a norma inferior ou o ato de execução são postos, mas
também, eventualmente, o conteúdo da norma a estabelecer ou do ato
de execução a realizar. Esta determinação, porém, nunca é completa. A
norma do escalão superior não pode vincular em todas as direções (sob
todos os aspectos) o ato através do qual é aplicada. Tem sempre de ficar
uma margem, ora maior, ora menor, de livre apreciação, de tal forma que
a norma do escalão superior tem sempre em relação ao ato de produção
normativa ou de execução que a aplica, o caráter de um quadro ou
moldura a preencher por este ato. Mesmo uma ordem o mais
pormenorizada possível tem de deixar àquele que a cumpre ou executa
uma pluralidade de determinações a fazer.67
Entretanto, Kelsen entende a natureza da decisão como um ato de
vontade, não de conhecimento. Ato de vontade que é respaldado pela autoridade
(lembre-se do brocardo positivista hobbesiano auctoritas, non veritas facit legem,
―é a autoridade, e não a verdade, que faz as leis‖).68
ciencia, que impone al científico em cuanto tal, y por tanto, al jurista em quanto que quiera ser
científico y no quiera ser confundido com um político o con un moralista, uma actitud de
neutralidad frente su objeto de estudio. No se puede entender la teoría kelseniana de la
ciencia del Derecho sin darse cuenta de que se apoya tanto en una teoría de Derecho como
en una teoría de la ciencia. BOBBIO, Norberto. Contribucion a la teoria del derecho.
(Tradução: Afonso Ruiz Miguel). Madri : Fernando Torres – Editor, 1980. p. 207.
66
A análise será baseada na presente tradução. KELSEN, Hans. Teoria Pura do
Direito. (tradução João Baptista Machado). 3.ed. São Paulo : Martins Fontes,1991. p. 363370.
67
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Op. cit. p. 364.
68
Reportamo-nos, relativo a esse tópico, à teorização que pode ser considerada
canônica para a política e o direito ocidentais, o proto-texto da tradição positivista,
corporificada no capítulo XXVI de ―O Leviatã, ou matéria, forma e poder de um Estado
Eclesiástico e Civil‖; do qual extraímos o presente trecho: ―Todas as leis, escritas ou não, têm
necessidade de uma interpretação. A lei de natureza, que não é escrita, embora seja fácil para
aqueles que sem parcialidade ou paixão fazem uso de sua razão natural, deixando portanto
sem desculpa seus violadores, tornou-se agora apesar disso, devido ao fato de haver poucos,
ou talvez ninguém que em alguns casos não se deixe cegar pelo amor de si ou qualquer outra
Caberia à ciência do direito o papel de descrever as múltiplas
possibilidade de aplicação de uma determinada norma, sem apresentar opinião
sobre uma ou outra alternativa (de maneira que, em agindo assim, estaria
extravasando do direito para o horizonte da política, inaceitável numa proposta de
ciência pautada pelo Wertfreiheit ).
Kelsen distingue, nesse capítulo, entre uma intitulada interpretação
autêntica, i.e., quando um órgão oficial (por exemplo o juiz a decidir um caso
concreto), determina o sentido de uma norma, produzindo um enunciado
normativo vinculante; e a interpretação doutrinária, cujas interpretações, a
contrario sensu, não possuiriam poder suficiente para estipular um mandamento
de dever-ser.
O jusfilósofo alemão não nega de forma peremptória que atos de
cognição (como o conhecimento doutrinário) possam influenciar a decisão do
paixão, a mais obscura de todas as leis, e por isso é a que tem mais necessidade de
intérpretes capazes. Quanto às leis escritas, se forem breves facilmente serão mal
interpretadas, por causa da diversidade de significações de uma ou duas palavras, e se forem
longas ainda serão mais obscuras, devido à diversidade de significações de muitas palavras.
De modo que nenhuma lei escrita, quer seja expressa em poucas ou em muitas palavras,
pode ser bem compreendida sem uma perfeita compreensão das causas finais para as quais
a lei foi feita, e o conhecimento dessas causas finais está com o legislador. Para este,
portanto, nenhum dos nós da lei pode ser insolúvel, seja achando-lhe as pontas e por aí
desatando-o, seja fazendo quantas pontas lhe aprouver (como Alexandre fez com sua espada
ao nó górdio), através do poder legislativo, coisa que nenhum intérprete pode fazer. Num
Estado, a interpretação das leis de natureza não depende dos livros de filosofia moral. Sem a
autoridade do Estado, a autoridade de tais filósofos não basta para transformar em leis suas
opiniões, por mais verdadeiras que sejam. Tudo o que escrevi neste tratado sobre as virtudes
morais, e sua necessidade para a obtenção e preservação da paz, embora seja
evidentemente verdadeiro não passa por isso a ser lei. Se o é, é porque em todos os Estados
do mundo faz parte das leis civis. Embora seja naturalmente razoável, é graças ao poder
soberano que é lei. Caso contrário, seria um grande erro chamar lei não escrita à lei de
natureza, sobre a qual tantos volumes foram publicados, com tão grande número de
contradições, uns dos outros, e de si mesmos. A interpretação da lei de natureza é a sentença
do juiz constituído pela autoridade soberana, para ouvir e determinar as controvérsias que
dela dependem, e consiste na aplicação da lei ao caso em questão. Porque no ato de
judicatura o juiz não faz mais do que examinar se o pedido de cada uma das partes é
compatível com a eqüidade e a razão natural, sendo portanto sua sentença uma interpretação
da lei de natureza, interpretação essa que não é autêntica por ser sua sentença pessoal, mas
por ser dada pela autoridade do soberano, mediante a qual ela se torna uma sentença do
soberano, que então se torna lei para as partes em litígio.‖ HOBBES, Thomas. Leviatã.
(Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva). São Paulo : Martin Claret,
2002. p. 94.
aplicador, entretanto, em existindo conflito entre a cognição e a vontade,
prevalecerá a última.
Por
outro
lado,
para
Kelsen,
afirmar
a
possibilidade
da
interpretação doutrinária chegar a uma única solução adequada seria admitir a
ilusão da univocidade dos enunciados normativos. A interpretação doutrinária é
rigorosa - científica - quando se resume a apresentar a equivocidade da linguagem
legal, limitando-se a apontar todas as dimensões de tal plurivocidade. A ciência
jurídica kelseniana reduz-se a um papel eminentemente descritivo.
Norberto Bobbio lançará inúmeras críticas
a tal concepção de
ciência do direito, mesmo mantendo inúmeros cânones do positivismo (porém com
um viés mais analítico) em sua teorização. Assevera o filósofo italiano que se
pudéssemos resumir a teoria kelseniana da ciência do direito em uma única
fórmula, poderíamos simplesmente dizer que ela prescreve descrever. Ou seja,
obtém-se uma ciência neutra do direito ao preço de uma ideologização
epistemológica (―se obtiene uma ciencia del Derecho neutral al precio de uma
metajuriprudencia ideologizada.‖)69
Não podemos esquecer que temos, em Kelsen, uma separação
taxativa entre a dimensão do sollen (dever-ser) e a do sein (o ser), para ele
caberia à ciência do direito descrever o ser do direito70 (porém Kelsen, como
constatado por Bobbio, utiliza, para isso, de um imperativo epistemológico
―descreva!‖, pautado essencialmente num dever-ser prescritivo), enquanto apenas
aos aplicadores - com respaldo estatal - seria possível passar do plano dos fatos,
do sein, para o sollen.
A dicotomia entre sein e sollen (kantiana por excelência), fundante
viga da construção kelseniana, não deixa de estar conectada com
69
outras
BOBBIO, Norberto. Op. cit., p. 208. Bobbio ainda aponta que, enquanto a
metajurisprudência prescritiva, própria da concepção positivista, propõe o ideal de uma
jurisprudência puramente descritiva, a metajurisprudência descritiva da época pós-positivista
volta a descobrir a função prescritiva do jurista na sociedade. Ibidem, p. 209.
70
Lembrando que o direito, em Kelsen, resume-se a se apresentar como um conjunto
de normas, ou melhor, o direito depurado kelseniano corresponde à dimensão da
normatividade jurídica.
dicotomias biunívocas que presidem à estruturação do pensamento político e
filosófico da modernidade ocidental, guardando inúmeras convergências com
binarismos (metafísicos) como o de natureza/cultura, biós/zoé, racional/irracional,
humano/inumano, tendo a decisão como um elemento de cisão e demarcação
constante entre as duas dimensões, lembrando-se da provocação de Jacques
Derrida de que ―uma oposição de conceitos metafísicos (por exemplo, fala/escrita,
presença/ausência, etc.) nunca é um face-a-face de dois termos, mas uma
hierarquia e a ordem de uma subordinação.‖71
Por um lado, concomitante à tentativa kelseniana de preservar a
ciência do direito das ambigüidades incontornáveis da linguagem humana, e
mesmo do caráter de indecidibilidade do direito em meio a indeterminações não
apenas normativas, mas também fáticas, ou melhor, situações de indistinção entre
ambas, tem-se, no outro lado, uma decisão como puro ato de vontade que
mergulha a construção kelseniana no terreno nebuloso da indiscernibilidade, o
revestimento normativo entendido como pura forma de um ato de autoridade,
principalmente se analisado a partir de um jurídico extraviado que torna toda
pretensão de univocidade um exercício estéril de vã metafísica.
Na
configuração
do
direito
contemporâneo,
as
molduras
kelsenianas representam zonas de penumbra não mais confinadas a casos
excepcionais - com alternativas circunscritas a um campo controlável - porém
disseminam-se ao infinito. A decisão como ato de vontade procura dar conta, por
intermédio da pura força institucional da auctoritas, de uma situação indecidível
em sua própria configuração fenomênica.
Hans Kelsen, mesmo que implicitamente, leva em consideração a
impossibilidade de escolha entre alternativas conflitantes (sobre os proclamados
métodos de interpretação do campo do direito, assevera que ―não há
absolutamente qualquer método – capaz de ser classificado como de direito
positivo – segundo o qual, das várias significações verbais de uma norma, apenas
71
DERRIDA, Jacques. Op. Cit. p. 372.
uma pode ser destacada como ‗correta‘‖)72 principalmente envolvendo valores.73 A
decisão como um ato de vontade, fundado na auctoritas, reatando com arcanos
imemoriais de nossa tradição de pensamento político,74 pode também representar
um válvula de escape discursivo para essa labiríntica situação.
Visualiza-se que a teoria da decisão no âmbito da Jurisprudência
(na acepção de ciência do direito) sempre esteve às voltas com a busca de um
absoluto que pudesse fundamentar de forma inequívoca os atos de poder
emanados. A presença da Grundnorm, a norma fundamental, na teoria
kelseniana, mesmo se levada para o espaço epistemológico (como uma norma
pressuposta de fechamento do sistema), não deixa de acenar para essa
constatação. Choca, aos aplicadores jurídicos de todos os níveis e instâncias,
estar frente a frente com um conflito a ser decidido sem ter (pelo menos a ilusão)
de possuir instrumentos controláveis, seguros, unívocos, de solução. No contexto
da racionalidade intrínseca do Estado liberal, onde o normativismo foi formatado,
72
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Op. cit. p. 367.
É preciso lembrar que, assim como para Weber e Pareto, Kelsen entende o espaço
científico como uma ―cidadela em face à irracionalidade dos valores‖. Não há, nessa
concepção, uma hierarquia superior entre os fatos merecedores de atenção científica (juízos
de fato, para tal tradição) e os juízos de valor, apenas considera que os valores não podem
ser submetidos a um controle racional (são irracionais e subjetivos). Isso fica muito claro na
interpretação kelseniana sobre a justiça como valor (e aí já temos uma afirmação discutível)
não suscetível de controle racional e empírico, e como tal, deixada de fora do horizonte da
ciência do direito. Tais concepções ficam explícitas no seu prefácio à primeira edição da
Teoria Pura do Direito, onde esclarece que ―Desde o começo foi meu intento elevar a
jurisprudência, que – aberta ou veladamente – se esgotava quase por completo em raciocínios
de política jurídica, à altura de uma genuína ciência, de uma ciência do espírito. Importava
explicar. Não as suas tendências endereçadas à formação do Direito, mas as suas tendências
exclusivamente dirigidas a conhecimento do Direito, e aproximar tanto quanto possível os
seus resultados do ideal de toda a ciência: objetividade e exatidão‖. KELSEN, Hans. Op. cit. p.
01. Ou no prefácio à sua Teoria Geral do Direito e do Estado, onde se lê: ―Al llamar a tal
douctrina ‗teoria pura del derecho‘ se pretende decir que debe mantenerse libre de todos los
elementos extraños al método específico de uma ciencia, cuyo único objetivo es el
conocimiento del Derecho e no su formación. Uma ciencia debe describir su objeto como
efectivamente es y no prescribir como debería o no debería ser en base a algunos juicios
específicos de valor. Este último es un problema politico y, como tal, compete al arte del
gobierno, una actividad que se ocupa de los vaores y no es objeto de la ciencia, que se ocupa
de la realidad‖. Apud. BOBBIO, Norberto. Contribuición a la teoria del derecho. Op. cit. p.
247. Textualmente, portanto, Kelsen esquiva-se de enfrentar a dimensão dos valores,
relegando-a ao universo do irracional, ou seja, do indecidível.
74
Remetemos o debate ao importantíssimo capítulo sexto - tratando das categorias
Auctoritas e Potestas na tradição de pensamento jurídico-político ocidental - do ―Estado de
Exceção‖ de Giorgio Agamben.
73
pode-se dizer que o recurso da intrumentalização máxima da linguagem
possivelmente tenha resguardado, por longas décadas, a teoria do direito de
confrontar-se
com
essa
espinhosa
aporia.
A
normatividade
caósmica
contemporânea abalou as frágeis fortalezas da tão proclamada segurança jurídica
forjada a partir da pretensão de exclusão da equivocidade.
Portanto, em meio à sintaxe extraviada do jurídico contemporâneo,
mesmo a tradição normativista, com seu correlato da decisão com pura vontade
respaldada na autoridade (que, de certo modo, também se torna um conceito
fantásmico),75 está imersa, de forma constitutiva, no terreno da exceção,
entendido não apenas como o limiar que garante a articulação entre um dentro e
um fora, entre anomia e contexto jurídico, entretanto como um campo de própria
indiscernibilidade entre anomia e direito.76 Um umbral que não deixa de capturar,
nos flancos que revela, mesmo a teorização normativista mais empedernida.
Nesse ponto, por mais que se apresentem historicamente como
posições radicalmente divergentes no campo da teoria do direito, combate teórico
que emanou inúmeros textos na Alemanha da década de 30, Kelsen e Schmitt
mantém obscuras (porém encontráveis) correspondências. No tocante à
antinomia entre norma e decisão, ―Schmitt mostra que elas são irredutíveis, no
sentido que a decisão nunca pode ser deduzida da norma sem deixar um resto
(restlos).‖77
A
irredutibilidade
kelseniana
entre
norma
e
decisão
fica
marcadamente posta na deriva da decisão com um ato de vontade (reconhecendo
75
―(...) A autoridade tal como a conhecemos outrora, e que se desenvolveu a partir da
experiência romana e foi entendida à luz da Filosofia Política grega, não se restabeleceu em
lugar nenhum, quer por meio de revoluções, ou pelos meios ainda menos promissores da
restauração, e muito menos através do clima e tendências conservadoras que vez por outra
se apossam da opinião pública. Pois viver em uma esfera política sem autoridade nem a
consciência concomitante de que a fonte desta transcende o poder e os que detêm, significa
ser confrontado de novo, sem a confiança religiosa em um começo sagrado, e sem a proteção
de padrões de conduta tradicionais e portanto auto-evidentes com os problemas elementares
da convivência humana.‖ ARENDT, Hannah. O que é a autoridade?. In: Entre o passado e o
futuro. (Tradução: Mauro Barbosa de Almeida). São Paulo: Perspectiva, 1968. p. 187.
76
Cf. AGAMBEN, Giorgio. Op. Cit. p. 89.
77
Ibidem. p. 58.
também restos), a decisão entendida, de certo modo, como movimento78 dinâmico
frente à estática de uma moldura interpretativa instrumental/mediatizada.
Nesse sentido, a localização da auctoritas na estrutura da decisão
kelseniana está em plena convergência com as conclusões de Agamben sobre a
estrutura topológica dos sistemas jurídicos ocidentais (após ter feito um
levantamento da díade auctoritas/potestas na tradição política e jurídica do
ocidente), de maneira que, para o filósofo italiano
(...) o sistema jurídico do ocidente apresenta-se como uma estrutura
dupla, formada por dois elementos heterogêneos e, no entanto,
coordenados: um elemento normativo, jurídico em sentido estrito – que
podemos inscrever aqui, por comodidade, sob a rubrica de potestas, e
um elemento anômico e metajurídico – que podemos designar pelo
nome de auctoritas. O elemento normativo necessita do elemento
anômico para poder ser aplicado, mas, por outro lado, a auctoritas só
pode se afirmar numa relação de validação ou suspensão da potestas.
Enquanto resulta da dialética entre esses dois elementos em certa
medida antagônicos, mas funcionalmente ligados, a antiga morada do
direito é frágil e, em sua tensão para manter a própria ordem, já está
sempre num processo de ruína e decomposição. O estado de exceção é
o dispositivo que deve, em última instância, articular e manter juntos os
dois aspectos da máquina jurídico-política, instituindo um limiar de
indecidibilidade entre anomia e nomos, entre vida e direito, entre
auctoritas e potestas.79
Para Agamben, a maquinaria jurídico política ocidental (fundada na
exceção) se estabelece na ficção pela qual a anomia - corporificada na auctoritas,
na lei viva ou na força de lei – relaciona-se com a ordem jurídica e o poder de
suspender a norma está diretamente relacionado com a vida.80
78
Trataremos, no terceiro item do segundo capítulo da presente dissertação, das
reflexões sobre o movimento a partir de Arendt e Agamben (com as referências a C. Schmitt),
tópico para o qual reportamos.
79
AGAMBEN, Giorgio. Op. Cit. p. 130
80
Ibidem. Idem. Sobre a relação entre auctoritas e suas relações com a própria zoé:
―Ainda em 1947, o velho romanista Pietro de Francisci publica Arcana imperii, que dedica um
grande espaço à análise do ‗tipo primário‘ de poder que ele, procurando com uma espécie de
eufemismo tomar distância em relação ao fascismo, define como ductus ( e ductor, o chefe
em que se encarna). De Francisci transforma a tripartição weberiana do poder (tradicional,
legal, carismático) em uma dicotomia calcada sobre a oposição autoridade/poder. A
autoridade do ductor ou do Führer nunca pode ser derivada, mas é sempre original e deriva de
sua pessoa; além disso, não é em sua essência, coercitiva, mas se baseia, como Triepel já
havia mostrado, no consenso e no livre reconhecimento de uma ‗superioridade de valores‘.
Nem Triepel, nem De Francisci, os quais, no entanto, tinham diante dos olhos as técnicas de
governo nazistas e fascistas, parecem perceber que o aparente caráter originário do poder
A norma pode ser aplicada porquanto, sob a forma de auctoritas,
refere-se diretamente à vida e dela deriva. Este é o conteúdo de verdade latente
na construção da decisão kelseniana.
Importante frisar qual o conceito (filosófico) de decisão que
fundamenta nossa análise. Agamben, em seu ―Estado de Exceção‖, apresenta as
seguintes considerações sobre a categoria da aplicação na teoria jurídica:
O conceito de aplicação é certamente uma das categorias mais
problemáticas da teoria jurídica, e não apenas dela. A questão foi mal
colocada devido à referência à doutrina kantiana do juízo enquanto
faculdade de pensar o particular como contido no geral. A aplicação de
uma norma seria, assim, um caso de juízo determinante, em que o geral
(a regra) é dado e trata-se de lhe subsumir o caso particular (no juízo
reflexivo, em contrapartida, o particular é dado e trata-se de encontrar a
regra geral). Ainda que Kant estivesse, de fato, perfeitamente consciente
do caráter aporético do problema e da dificuldade de decidir
concretamente entre os dois tipos de juízo (sua doutrina do exemplo
como caso de uma regra que não é possível enunciar é prova disso), o
equívoco, aqui é que a relação entre caso e norma apresenta-se como
uma operação meramente lógica.81
que descrevem deriva da suspensão ou da neutralização da ordem jurídica – isto é, em última
instância, do estado de exceção. O ‗carisma‘ – como sua referência (perfeitamente consciente
em Weber) à charis paulina teria podido sugerir – coincide com a neutralização da lei e não
como uma figura mais original do poder. De todo modo, o que os três autores parecem ter
como certo, é que o poder autoritário-carismático emana quase magicamente da pessoa do
Führer. A pretensão do direito de coincidir num ponto eminente com a vida não poderia ser
afirmada de forma mais intensa. Neste sentido, a doutrina da auctoritas converge, pelo menos
em parte, com a tradição de pensamento jurídico que via o direito, em última análise como
idêntico à vida ou imediatamente articulado com ela‖. AGAMBEN, Giorgio. Op. Cit. p. 129.
81
Ibidem. p. 61-62. De certa forma, percebemos um marcante contraste entre a
interpretação agambeniana e a interpretação que Hannah Arendt estabelece sobre a Crítica
do Juízo de Kant. Ao referir-se às diferenças e liames entre a Crítica da Razão Prática e a
Crítica do Juízo, em suas lições sobre a Filosofia Política de Kant, texto publicado a partir das
aulas que Arendt ministrou na New School for Social Research, no outono de 1970, a filósofa
assevera que ―a mais decisiva diferença entre a Crítica da Razão Prática e a Crítica do Juízo é
que as leis morais da primeira são válidas para todos os seres inteligíveis. Enquanto as regras
da segunda são estritamente limitadas em sua validade aos seres humanos na Terra. O
segundo liame reside no fato de que a faculdade do juízo lida com particulares que, ‗enquanto
tais, contêm algo de contingente em relação ao universal‘ com que lida normalmente o
pensamento. Esses particulares são novamente de dois tipos; a primeira parte da Crítica do
Juízo lida com os objetos do juízo propriamente dito; tais como um objeto a que chamamos
‗belo‘ sem que estejamos aptos a subsumi-lo à categoria geral da beleza enquanto tal; não
temos regra que possa ser aplicada. (Se você diz: ‗Que bela rosa!‘, não chegou a esse juízo
dizendo, primeiramente, ‗todas as rosas são belas, esta flor é uma rosa, logo esta rosa é bela‘.
Ou inversamente, ‗o belo são as rosas, esta flor é uma rosa, logo ela é bela‘.) O outro tipo de
particular, tratado na segunda parte da Crítica do Juízo, é o da impossibilidade de derivar
qualquer produto particular da natureza de causas gerais: ‗Absolutamente nenhuma razão
De certa forma, seja influenciada em Kant, seja na lógica
aristotélica, temos, no que concerne à aplicação do direito no âmbito da
Jurisprudência, uma longa tradição da lógica formal silogística que procura dar
conta da complexidade dos atos decisórios no direito. Desnecessário dizer as
aberrações a que se chegou a partir de tais quimeras naturalizantes (como o
enquadramento de casos como premissas menores tendo normas como
premissas maiores até se chegar à decisão como conclusão lógica, e assim por
diante).
Na teoria do direito contemporâneo existem várias vertentes 82 que
procuram superar os limites da lógica apofântica no âmbito da aplicação jurídica,
principalmente a partir da dialética aristotélica (não mais a dimensão apodíctica do
pensamento do Estagirista), que, de certa forma, apresentou-se como teoria-base
para os estudos a partir da Tópica e da Nova Retórica,83 mesmo que estas, em
humana (na verdade nenhuma razão finita em qualidade, como a nossa, embora possa
ultrapassá-la em grau), pode esperar compreender a produção, mesmo de uma folha de
grama, por meio de meras causas mecânicas.‘ (na terminologia kantiana, ‗mecânico‘ refere-se
a causas naturais; seu oposto é ‗técnico‘, que significa ‗artificial‘, isto é, algo fabricado com um
fim. A distinção é entre as coisas que vêm a ser por si mesmas, e as que são fabricadas
visando a um fim ou desígnio específicos). Aqui, a ênfase recai sobre o ‗compreender‘: como
posso compreender (e não apenas explicar) que haja grama em geral, e portanto, esta folha
de grama particular?‖ ARENDT, Hannah. Lições sobre a filosofia política de Kant.
(Tradução André Duarte). Rio de Janeiro : Relume Dumará, 1993. p . 21-22. Giorgio
Agamben, portanto, nessa citação, resume a toda a Crítica do Juízo kantiana ao segundo tipo
de particulares, onde Kant introduzirá o conceito de teleológico para pensá-los ―como princípio
heurístico para investigação das leis particulares da natureza‖, e, como bem demonstra o
enunciado, voltados apenas para o mundo da natureza (embora Kant compreenda a história
humana – grife-se, como espécie - estando inserida no mundo natural, na medida em que
também pertence à espécie animal na terra. No que Arendt, sobre esse segundo tipo de
particulares kantianos, complementa: ―Sua intenção é encontrar um princípio de cognição, e
não um princípio para o juízo. Mas vocês deveriam notar que, desde que se levanta a questão
– por que é necessário que os homens existam? – pode-se continuar perguntando por que é
necessário que as arvores existam, ou as folhas de grama, e assim por diante.‖ Ibidem, p. 22.
82
Viehweg, Perelman, Toulmin, Atienza, Siches, Ferrajolli, para exemplificar apenas
em alguns autores.
83
Cf.: VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. (Tradução de Tércio Sampaio
Ferraz Jr.). Brasília: Imprensa Nacional, 1979. PERELMAN, Chaim; OLBRECHTS-TYTECA,
Lucie. Tratado da Argumentação. A nova retórica. (Tradução de Maria Ermantina Galvão
G.Pereira). São Paulo: Martins Fontes, 1996.
suas respectivas críticas, tenham reduzido todo o campo da lógica ao horizonte
fechado da lógica formal.84
Em resumo, evidencia-se corrente nas mais diversas teorias da
aplicação jurídica contemporânea que o ato decisório não se resume às esferas
da lógica, contemplando também elementos argumentativos (persuasivos),
retóricos, ou mesmo de uma lógica que passa a ser chamada de substancialista
(ou do razoável, como na teorização de R. Siches),85 ou fundada, obviamente
com diferentes matizes, numa razão discursiva (como em Robert Alexy,86 a partir
do modelo teórico habermasiano), porém, a decisão colocada como simples ponto
temporal final a um conflito de interesses, que tenha obtido trânsito em julgado, ou
seja, esgotamento das instâncias decisórias ou inexistência de recursos - esteja
ela representada em um ato de vontade ou num ato de cognição, esteja
corporificada num ato performativo ou argumentativo - não supre aquilo que se
apresenta
imprescindível
debater
no
âmbito
do
direito
e
sua
teoria
contemporânea.
É chegado o momento de conectar o debate sobre a decisão no
horizonte jurídico com a teoria da linguagem - no mínimo em termos de
compreensão - não apenas no viés da retórica ou da teoria da argumentação
(dimensões que sempre estiveram relacionadas ao discurso jurídico, porém
obscurecidas com o florescimento das tradições cientificistas como modelos para
84
Para tanto, tem-se a críticas levantadas por Manuel Atienza, no sentido de que ―as
noções de lógica e de sistema, que na obra de Viehweg funcionam como os principais termos
de contraste para caracterizar a tópica, também suscitam muitos problemas. O mínimo que se
pode dizer é que Viehweg exagera na contraposição entre pensamento tópico e pensamento
sistemático (quer dizer, lógico dedutivo), que sua noção de sistema axiomático ou de dedução
é mais estreita que as utilizadas pelos lógicos e que estes não parecem ter maior
inconveniente em reconhecer a importância da tópica no raciocínio (concretamente, no
raciocínio jurídico), mas sem que isto signifique prescindir da lógica. (...) Por outro lado, é
interessante considerar que a ruptura da tradição tópica ou retórica na época moderna parece
ter sido acompanhada pelo afastamento da lógica. Na opinião de Lorenzen, a lógica formal
caiu no esquecimento precisamente em nome da ciência; isso porque a nova ciência não
partia de um modelo axiomático, que é o que está mais intimamente ligado à lógica formal.‖
ATIENZA, Manuel. As razões do direito. Teorias da argumentação jurídica. (Tradução Maria
Cristina G. Cupertino). São Paulo: Landy, 2003. pp. 52-53.
85
Cf.: SICHES, Luis Recaséns. Nueva filosofia de interpretación del derecho.
México: Edit. Porrúa, 1973.
86
C.f: ALEXY, R. Teoria de la argumentación jurídica. (Tradução de Manuel Atienza
e Isabel Espejo). Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1989.
os estudos jurídicos, o que Viehweg e Perelman realizam nada mais representa
do que uma trabalho de resgate de uma tradição jurídica esquecida) - porém à
própria questão fulcral da enunciação, no cerne daquilo que Benveniste propõe
como os âmbitos do sintático e do semiótico, ou da langue à parole, no que mais
uma vez seguimos as pistas agambenianas para tal tarefa, no sentido de que,
como entre linguagem e mundo, também entre norma e sua aplicação não há
nenhuma relação lógica, auto-referente, que permita ―fazer decorrer diretamente
uma da outra.‖87
O que está em questão na enunciação é a passagem de uma
dimensão puramente virtual (forjada) à referência concreta a um segmento de
realidade.
(...) essa passagem da langue à parole, ou do semiótico ao semântico,
não é de modo algum uma operação lógica, mas implica sempre uma
atividade prática, ou seja, a assunção da langue por parte de um ou
vários sujeitos falantes e a aplicação do dispositivo complexo que
Benveniste definiu como função enunciativa e que com freqüência os
lógicos tendem a subestimar.88
Em se tratando do aparato normativo, explicando-se o porquê das
analogias estruturais com o horizonte da linguagem, a referência ao mundo (e,
portanto, ao conflito) supõe sempre um processo, envolvendo todo um desenrolar
de etapas, um controle temporal, uma pluralidade sujeitos e instâncias, até
culminar numa sentença, ou seja, um enunciado operativo com referência ao
mundo respaldada pelos aparatos institucionais de poder. Agamben lembra que
Schmitt teorizava acertadamente que ―a aplicação de uma norma não está de
modo algum contida nela e nem pode ser dela deduzida, pois, de outro modo, não
haveria necessidade de se criar o imponente edifício do direito processual.‖89
A união impossível entre norma e realidade - assim como os
elementos lingüísticos que existem na língua sem nenhuma denotação real - é
operada, para Agamben, através da exceção, ou seja, pelo simples pressuposto
de sua relação. O dispositivo do estado de exceção revela nada mais que essa
87
AGAMBEN, Giorgio. Op. Cit. p. 63.
Ibidem. p. 62
89
Ibidem. Idem
88
fratura constitutiva, onde a figura de uma força de lei insere-se nesse vácuo
realizando uma norma cuja aplicação foi suspensa. Para aplicar qualquer norma é
necessário instaurar uma exceção. Dimensões da normatividade e da facticidade,
logos e práxis se indeterminam, onde ―uma pura violência sem logos pretende
realizar um enunciado sem nenhuma referência real.‖90
Porém, é necessário lembrar que enquanto essas duas dimensões
(de uma estática normativa e uma dinâmica da auctoritas) permaneceram em
convergência (mesmo sendo distintas) - como no exemplo de Agamben, a díade
Senado/Povo na Roma republicana, ou Poder espiritual/Poder temporal na
Europa medieval, ou mesmo, em termos mais atuais, a Interpretação/Decisão
kelseniana – a dialética entre ambas, mesmo fundada numa ficção constitutiva,
pôde zelar para que a operatividade da maquinaria jurídico-política pudesse
funcionar, de certa forma, num ritmo próximo da normalidade.
Não obstante, quando tais lugares amalgamam-se, tornam-se
indiscerníveis, coincidindo na mesma topografia, quando o estado de exceção
torna-se a regra (sintoma revelado num jurídico extraviado, na decisão como pura
força-de-lei despida de elementos de referência exteriores), o sistema jurídicopolítico, na provocação agambeniana, pode metamorfosear-se em máquina
mortífera de difícil desativação.
Constata-se, portanto, a necessidade de ultrapassar a ideologia
mistificatória do normativismo kelseniano - um discurso com pretensões liberais
hoje estilhaçado – anular a operatividade catastrófica de seus fragmentos, não
para louvar o local próximo ao real (no sentido lacaniano do termo) que ele nos
lança (a partir de um viés próximo ao schmttiano), porém, num sentido
benjaminiano, pensar em que medida a deposição das dimensões do jurídico, a
desativação, a inoperância de suas engrenagens, o novo uso de um resíduo de
direito (subtraído à mística de uma força de lei), expresso na parábola do ―novo
advogado‖ de Kafka (o direito apenas estudado), ou mesmo do ―novo direito‖ do
qual nos falava Foucault (livre de toda relação com a soberania), pode levar
90
Ibidem.
aquela imagem, que Benjamin se refere ao comentar Kafka, de uma salvação não
como uma recompensa outorgada à vida, mas a última oportunidade de evasão,
ou de liberação de um fardo, oferecida a um homem.
‗Ensina-se em toda parte‘, diz Plutarco, ‗em mistérios e sacrifícios, tanto entre
gregos quanto entre bárbaros... que devem existir duas essências distintas
duas forças opostas, uma que leva em frente, por um caminho reto, e outra
que interrompe o caminho e força a retroceder‘. É para trás que conduz o
estudo, que converte a existência em escrita. O professor é Bucéfalo, o ‗novo
advogado‘, que sem o poderoso Alexandre – isto é – livre do conquistador,
que só queria caminhar para frente – toma o caminho de volta. ‗Livre, com
seus flancos aliviados da pressão das coxas do cavaleiro, sob uma luz calma,
longe do estrépito das batalhas de Alexandre, ele lê e vira as páginas dos
nossos velhos livros‘ (...). É verdadeiramente o direito que em nome da justiça
é mobilizado contra o mito? Não; como jurista, Bucéfalo permanece fiel à sua
origem: porém ele não parece praticar o direito, e nisso, no sentido de Kafka,
está o elemento novo, para Bucéfalo e para a advocacia. A porta da justiça é
o direito que não é mais praticado e sim estudado.91
3. Articular criticamente nossa tradição de pensamento
jurídico hegemônico (versões normativistas ou mesmo as ditas pósnormativistas, sistêmicas ou reflexivas) é, acima de tudo, denunciar e
escancarar analiticamente a concepção temporal homogênea, linear e vazia
que lhe dá suporte. Seguindo a provocação benjaminiana, é preciso escovar
também a história reluzente do direito - não esquecendo de tais discursos
palradores - a contrapelo.
Os debates envolvendo a temporalidade - amiúde explorados no
horizonte da filosofia ocidental - foram, lastimavelmente, esquecidos no plano da
teoria do direito e dos estudos sócio-jurídicos. Prevaleceu, nesse sentido, no
interior das versões hegemônicas da teoria do direito (como na tradição
inaugurada por Kelsen), uma caricatura automático-mecanicista de tempo, forjada
a partir de um ideário cientificista de controle voltado a intervenções técnicas na
dimensão fenomênica. Fundamentou-se tal controle na hipóstase de uma
Grundnorm entendida também como fechamento temporal de um sistema
normativo,
91
sistema
cuja
dialética
entre
nomostática
e
nomodinâmica
BENJAMIN, Walter. Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte.
(1934). In: Magia, técnica, arte e política: ensaios sobe literatura e história da cultura.
(tradução Sérgio P. Rouanet). 7.ed. São Paulo : Brasiliense, 1994. p. 163-164.
(remanescentes, na Teoria Pura, da sincronia/diacronia do estruturalismo
saussureano) zelaria para a entrada da temporalidade - no âmbito de uma
pretensa auto-referencialidade do direito - apenas nos aspectos de modificação
legislativa (a dimensão do poder constituinte derivado insere-se nesse debate),
numa mirada voltada exclusivamente para o futuro (as modernas categorias
históricas de processo e progresso protagonizam tal estruturação).92
Conceito chave para pensar tais concepções temporais é o de
cumulatividade, algo próximo a uma aglutinação qualitativa (positiva) de saberes,
conceitos, conquistas civilizacionais, representadas, por exemplo, no mantra das
gerações de direito garantidos através da história, ou das hierarquias
etnocêntricas estabelecidas entre realidades com ordenamentos jurídicos
institucionalizados e cientificizados e as chamadas realidades imersas em
convivências (ditas) pré-jurídicas regidas por costumes, autoridades tradicionais
ou elementos teológicos.
Podemos alegorizar a (ocidental) concepção jurídica tradicional do
tempo com a imagem do Anjo Olímpico da História, trazida por Schiller em um
texto representativo da Aufklärung européia, intitulado ―O que é a história universal
e com que finalidade é estudada?‖, datado de 1789 (numa proposta
diametralmente oposta ao Angelus Novus da história, a alegoria de Benjamin
citada na célebre Tese IX de suas ―Teses sobre a filosofia da história‖):
Como o Zeus homérico, a História observa com um olhar igualmente
alegre os trabalhos sanguinários das guerras assim como a atividade
dos povos pacíficos que se alimentam inocentemente do leite de seus
rebanhos. Por mais desordenado que pareça o confronto da liberdade
humana com o desenvolvimento do mundo, a História observa com
tranqüilidade esse jogo confuso; porque seu olhar, que tem um longo
alcance, já descobre, de longe, o objetivo para o qual essa liberdade
sem regras é conduzida pela cadeia da necessidade.93
92
Ênfase de análise sintomática em trechos como da definição da constituição em
Hans Kelsen: ―A constituição no sentido formal é certo documento solene, um conjunto de
normas jurídicas que pode ser modificado apenas com a observância de prescrições especiais
cujo propósito é tornar mais difícil a modificação das normas‖ KELSEN, Hans. Teoria geral do
direito e do estado. (Tradução Luiz Carlos Borges). São Paulo : Martins Fontes, 1990. p. 130.
93
SCHILLER, F. Was heiβt und zu welchen Ende studiert man Universalgeschichte?
Apud: LÖWI, Michael. Walter Benjamin : Aviso de incêndio. Uma leitura das teses ―Sobre o
Apresenta-se
quase
como
desnecessário
afirmar
que
tal
concepção limita-se a reproduzir a concepção vazia e unidimensional (com
passado,
presente e
futuro
estanques,
espacializados94 num
continuum
irretornável) de temporalidade que passou a presidir o devir-mundo ocidental a
partir da revolução industrial, nada mais que uma micro versão da monumental
história celebratória e bem acomodada da versões vencedoras, para falar em
termos benjaminianos.
A concepção do tempo na idade moderna é uma laicização do tempo
cristão retilíneo e irreversível, dissociado, porém, de toda a idéia de um
fim e esvaziado de qualquer sentido que não seja o de um processo
estruturado conforme o antes e o depois. Esta representação do tempo
como homogêneo, retilíneo e vazio nasce da experiência dos trabalhos
nas manufaturas e é sancionada pela mecânica moderna, a qual
estabelece a prioridade do movimento retilíneo uniforme sobre o
movimento circular. A experiência do tempo morto e subtraído à
experiência, que caracteriza a vida nas grandes cidades modernas e
nas fábricas, parece dar crédito à idéia de que o instante pontual em
fuga seja o único tempo humano. O antes e o depois, essas noções tão
incertas e vácuas para a antiguidade, e que, para o cristianismo, tinham
sentido apenas em vista do fim do tempo, tornam-se agora em si e por si
o sentido e este sentido é apresentado como o verdadeiramente
histórico.95
Giacomo Marramao propõe que, mais do que mero debate recente,
as relações entre ―poder e tempo‖, ―norma jurídica e temporalidade‖, representam,
―em termos estruturais, uma constante do racionalismo ocidental‖, asseverando
que:
(...) é no horizonte temporal da experiência humana e do agir que
encontram seu fundamento as profundas e duradouras conexões entre
direito e sociedade investigadas pelas diversas teorias do direito e do
conceito de história‖. (Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brand, et. al.). São Paulo :
Boitempo, 2005. p. 90-91.
94
―(...) essa aparente espacialidade de um fenômeno temporal é um erro causado
pelas metáforas que usamos habitualmente na terminologia que trata do fenômeno do Tempo.
Como nos diz Bergson, que descobriu isso, são todos termos ‗tomados de empréstimo à
linguagem espacial. Se desejamos refletir sobre o tempo, é o espaço que responde‘. Assim, a
‗duração é sempre expressa como extensão, e o passado é entendido como algo que fica
atrás de nós, o futuro fica em algum lugar à nossa frente.‖ ARENDT, Hannah. A Vida do
Espírito. O pensar, o querer, o julgar. (Tradução Antônio Abranches, Cezar Augusto R.
Almeida, Helena Martins). 5º ed. Rio de Janeiro : Relume Dumará, 2002.
95
AGAMBEN, Giorgio. Tempo e História – Critica do instante e do contínuo. In:
Infância e História. Destruição da experiência e origem da história.(tradução Henrique
Burigo). Belo Horizonte : Ed. UFMG, 2005. p. 117.
poder (da relação clássica entre νομοξ [nomos] e πολιτιχηχοινωμια
[politiké koinomía] aos atuais sistemas de inter-relação entre ordenamento
jurídico e ―social system‖). A íntima relação que se estabelece entre
temporalidade e norma se acha inserida no caráter de ‗estrutura de
expectativas‘ que é própria ao direito, independentemente do grau de
consciência subjetiva dos ‗atores sociais‘.96
Pode-se afirmar, portanto, a partir de Marramao, que o dispositivo
jurídico também representa um operador de modalidade temporal no contexto
(mesmo que difuso no cotidiano) das realidades culturais formadas na matriz
ocidental.97 Operador temporal que não deixa de revelar a dicotomia constitutiva
do direito ocidental entre uma estática do nomos e a dinâmica da politiké koinomía
(usando as categorias do teórico). Onde o segundo pólo da díade possuiria a
incumbência de inserir a sincronicidade - a própria imersão temporal efetiva – para
o plano da diacronia normativa (formando uma aparente convergência entre essas
duas dimensões, ativando aquilo que na teoria tradicional do direito se entende
por eficácia da norma), ou seja, a diacronia normativa (potestas) inserindo-se
temporalmente apenas por intermédio da sincronia de uma actoritas (v.g., a
decisão de um soberano), algo que possivelmente Carl Schmitt tinha em mente ao
lançar seu famoso brocardo de que ―o tempo exige uma decisão‖. Reflexão que,
de certa forma, nos reporta às últimas reflexões do segundo tópico deste trabalho.
96
MARRAMAO, Giacomo. Poder e secularização. Op. cit. p. 73.
Sobre o topos ocidente, reflete Marramao: ―Como notou Karl Jaspers, filósofo que,
no período entre duas guerras soube tirar proveito da lição de Weber, a deriva é inerente à
forma originária da autocompreensão do ocidente: com efeito, este último entende a si próprio
não como um centro, mas sim como parte, como apêndice que se destacou da matriz asiática
por meio de uma diáspora dilacerante. (...) O sentido da ausência faz sim que no próprio logos
se produza o desejo se produza o desejo do choque como o a-logon, o impulso de levar-se
continuamente em direção ao naufrágio. A idéia da verdade como um infinito que não pode
ser preenchido está, portanto, toda implícita na gênese do Ocidente como destacamento do
centro, do ventre materno asiático: marca da ratio produtivo-decisória enquanto aventura da
marginalidade e da excentricidade. Aventura todavia constantemente ameaçada pela
catástrofe que, para o ‗racionalismo ocidental‘, significa perda da autonomia decisória, da
vontade construtiva e individualizante. A ‗Terra do entardecer‘ (Abelland, Ocidente) possui
uma identidade inexoravelmente parcial, assediada pela angústia da perda dos contornos,
pelo temos do abismo e do retorno ao grande ventre asiático, ao mundo do improdutivo e da
sedução‖ MARRAMAO, Giacomo. Op. cit. p. 160. Poderíamos lançar uma hipótese do direito
como aparato estrutural e funcionalmente voltado ao atendimento dessa ratio assecuratória de
eixos estáveis para a própria excentricidade e deriva ocidentais. Ao lado da ciência, os
instrumentos de navegação da náufraga-jangada ocidental.
97
Porém, o objetivo principal de nossa terceira hipótese de trabalho é
analisar as concepções temporais subjacentes às teorias do direito hegemônicas
na contemporaneidade (despontando, in casu, as versões normativistas e
sistêmicas), bem como apresentar uma reflexão sobre o modelo de historiografia
corrente nos estudos jurídicos (sem pretensões de aprofundamento, mantemos o
intuito
heurístico,
principalmente
pelas
limitações
espaciais
do
trabalho
dissertativo),98 a partir de uma rota de estudos circunscrita aos autores elegidos.
Convergindo nesse sentido, evidencia-se imperioso argüir que as
teorias sistêmicas, inauguradas sobretudo com a obra de Luhmann - cuja reflexão
procura dar conta dos novos fenômenos de juridicidade no mundo contemporâneo
(tendo grande aceitação e disseminação nas teorizações jurídicas do presente) de certa forma, assim como a tradição normativista, também reproduzem a versão
temporal linear-evolutiva, além de (especificamente a primeira) manter vínculos
diretos com matrizes biológicas (trazidas pelas obras de Maturana e Varela),
conectando-se assim com a longa tradição organicista no imaginário político
ocidental, remotamente associada, em seu início, a Platão.
Para Niklas Luhmann, a dimensão temporal do direito nas
sociedades modernas está diretamente associada ao modo futuro, reflexão
trazida, por exemplo, no presente trecho de sua Sociologia do Direito:
Em todos esses casos o futuro substitui o passado enquanto horizonte
temporal predominante. O passado perde sua determinação
predominante. Ele é levado ao futuro apenas enquanto capital ou
conhecimento histórico, enquanto história. O direito não é mais o ‗bom
direito antigo‘. Ele vige não mais por causa de sua invariância baseada
no passado que simboliza sua constância. Ao contrário, a vigência do
direito descansa agora sobre sua função. Esta é interpretada tendo em
vista o futuro.99
Em uma proposta teórica resignada com o fenecimento do político,
ou melhor, cujo político é escamoteado frente à hipertrofia do administrativo-
98
Ressalte-se que o debate sobre a temporalidade será travado de forma mais
pormenorizada no item 3 do terceiro capítulo.
99
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito – II. (Tradução Gustavo Bayer). Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. p. 170.
funcional100 (mesmo rompendo em alguns postulados a clássica teleologia da
história como rumo à realização do Espírito do Mundo ou ao desenvolvimento da
Humanidade como um todo, substituindo os critérios tradicionais de legitimação
política por meio do que Marramao irá intitular ―critérios de performatividade‖,
relações input/output, binarismos mecânicos de lícito/ilícito, etc.)101 temos, em
Luhmann, um conceito de futuro (privilegiadamente) delimitado perante o passado
e mesmo perante o presente, ou melhor, para o teórico sistêmico, ―(...) a
positividade, isto é, o princípio da variabilidade estrutural do direito, só se torna
compreensível quando se vê o presente como conseqüência do futuro, ou seja,
como decisão.‖102
Com essa abertura a um futuro supercomplexo e com o aumento da
seletividade da experiência e da ação respectivamente atuais, modificase o caráter presente do direito, a experiência jurídica atual. Enquanto
preparação para o futuro, enquanto passado ainda disponível de um
futuro que se deseja, o presente se submete a um direito que ainda não
é seu. 103
Ou seja, para a Systemtheory o passado nada mais representa que
um despojo (capital, conhecimento histórico) neutralizado que resta a um presente
com olhos compulsivamente voltados para o futuro (presente como mero instante
de trânsito, não-lugar de intermezzo), acedia combatida de forma mordaz na tese
VII (das ―Teses sobre o conceito de história‖), de Walter Benjamin, que - ressaltese, de 1940 - lança fulminantes críticas que poderiam, indubitavelmente, também
ser dirigidas à versão temporal sistêmica luhmanniana:
Ao historiador que quiser reviver uma época, Fustel de Coulanges
recomenda banir de sua cabeça tudo o que saiba do curso ulterior da
história. Não se poderia caracterizar melhor o procedimento com o qual
100
―A teoria social sistêmica é, sob este perfil, não apenas uma configuração da
sociedade, mas uma verdadeira e própria estratégia operativa. Quer-se dizer que a
‗complexificação‘ é ao mesmo tempo uma representação da fenomenologia social mas
também um potente instrumento de neutralização do conflito no modo em que vinha colocado
pela doutrina política e social tradicional. A teoria da complexidade social, nesta ótica, é uma
teoria que representa eficazmente os processos de massificação e de integração das
sociedades contemporâneas, que parecem dominadas por um individualismo atomístico em
que vêm progressivamente se obscurecendo‖. BARCELLONA, Pietro. O egoísmo maduro e a
insensatez do capital. (Tradução José Sebastião Roque). São Paulo : Ícone,1995. p. 24.
101
MARRAMAO, Giacomo. Op. cit. p. 209.
102
LUHMANN, Niklas. Op. cit. p. 168.
103
LUHMANN, Niklas. Op. cit. p. 169.
o materialismo histórico rompeu. É um procedimento de identificação
afetiva. Sua origem é a indolência do coração, a acedia, que hesita em
apoderar-se da imagem histórica autêntica que lampeja fugaz. Para os
teólogos da Idade Média ela contava como o fundamento originário da
tristeza. Flaubert, que bem a conhecera, escreve: ‗Peu de gens
devineront combien il a fallu être triste pous ressusciter Carthage‘. A
natureza dessa tristeza torna-se mais nítida quando se levanta a
questão de saber com quem, afinal, propriamente o historiador do
Historicismo se identifica afetivamente? A reposta é, inegavelmente,
com o vencedor. Ora, os dominantes de turno são os herdeiros de todos
os que, algum dia, venceram. A identificação afetiva com o vencedor
ocorre, portanto, sempre em proveito dos vencedores de turno. Isso diz
o suficiente para o materialismo histórico. Todo aquele que, até hoje,
obteve a vitória, marcha junto no cortejo de triunfo que conduz os
dominantes de hoje [a marcharem] por cima dos que hoje jazem por
terra. A presa, como sempre de costume, é conduzida no cortejo
triunfante. Chamam-na bens culturais. Eles terão de contar, no
materialismo histórico, com um observador distanciado, pois o que ele,
com seu olhar, abarca como bens culturais atesta, sem exceção, uma
proveniência que ele não pode considerar sem horror. Sua existência
não se deve somente aos grandes gênios, seus criadores, mas à
corvéia sem nome de seus contemporâneos. Nunca há um documento
da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie.
E, assim com ele não está livre da barbárie, também não o está o
processo de sua transmissão, transmissão na qual ele passou de um
vencedor a outro. Por isso, o materialista histórico, na medida do
possível, se afasta de sua transmissão. Ele considera como sua tarefa
escovar a história a contrapelo.104
Em outro ângulo, mais uma vez em Marramao - que pode ser
considerado um dos mais lúcidos teóricos a se confrontar criticamente com a
―teoria dos sistemas‖ e seu pano de fundo epistêmico - temos o questionar de que
―na impostação dos atuais ‗teóricos dos sistemas‘ ecoa aquele caráter de
neutralização do eventual - da imprevisibilidade do evento – que constitui a
tonalidade de fundo dos modelos pós-weberianos de racionalidade normativa‖
Para o filósofo italiano:
Com a passagem da constelação protomoderna das relações Estadosociedade civil a um ‗sistema social‘ caracterizado por uma crescente
variabilidade estrutural e ‗diferenciação funcional‘, a ‗contingência do
mundo‘ e a ‗seletividade da estruturas‘ deixam de ser prerrogativas
ontológicas latentes para tornarem-se manifestas. Como conseqüência,
tempo e direito não podem mais ser concebidos ‗na base de uma
104
Os trechos das teses benjaminianas citadas neste trabalho estão incluídas na
tradução feita a partir do livro de Michael Löwi. Cf.: LÖWI, Michel. Op. cit. 70.
continuidade estrutural da ‗natureza‘, ou seja, na base de um passado
que não poderia ter outras possibilidades.105
Em certo matiz, o discurso da Systemtheory guarda afinidades
nucleares com a vertiginosa experiência temporal contemporânea (comumente
chamada de aceleração) e, consequentemente, com todas as implicações
inerentes a tal condição (como o fim da experiência trágica no presente), ao
termos em mente as reflexões de Marramao de que, na teoria dos sistemas,
(...) opera aquele dispositivo de neutralização do futuro, de sua tradução
simultânea em ‗futuro passado‘, que desempenha um papel central na
economia deste trabalho. Dele depende – no âmbito de uma
consideração filosófico-política – a íntima conexão que, na situação de
‗‘hipermodernidade‘, vem a se estabelecer entre experiência da
aceleração (como experiência constitutivamente ‗indireta‘ ou seja,
mediada por dispositivos da racionalização seletiva e de ‗serialização‘ do
eventual) e obsolescência do trágico: ‗O movimento do trágico é
inconciliável com a sucessão sem duração devida a um ritmo
excessivamente acelerado, e a desorientação no que diz respeito à morte
se encontra em relação direta com a transformação do conceito de
tempo; supressão de todo acontecido por um acontecer em curso‘ (E.
Castelli, Il tempo Esaurito, Milano-Roma, 1954, p.121.).106
Chegando a este ponto da análise, ultrapassada a crítica da
temporalidade normativista e sistêmica, é chegado o momento de lançar reflexões
ao conceito de história que dá revestimento a tais concepções.
Giorgio Agamben pontua que ―toda concepção da história é
sempre acompanhada de uma certa experiência do tempo que lhe está
implícita.‖107 Se o tempo latente nas teorizações jurídicas hegemônicas é o tempo
morto retilíneo e irreversível da secularização da escatologia cristã na
modernidade
ocidental, a
historiografia
jurídica
que
lança
mão
de
tal
temporalidade pode muito bem ser incluída no rol que Michel Foucault estabelece
no início de sua ―Arqueologia do Saber‖:
Há dezenas de anos que a atenção dos historiadores se voltou, de
preferência, para longos períodos, como se, sob as peripécias políticas
e seus episódios, eles se dispusessem a revelar os equilíbrios estáveis
e difíceis de serem rompidos, os processos irreversíveis, as regulações
constantes, os fenômenos tendenciais que culminam e se invertem após
105
MARRAMAO, Giacomo. Op. cit. p. 73.
MARRAMAO, Giacomo. Poder e secularização. Op. cit. p. 209.
107
AGAMBEN, Giorgio. Infância e história. Op. cit. p. 110.
106
continuidades seculares, os movimentos de acumulação e as
saturações lentas, as grandes bases imóveis e mudas que o
emaranhado das narrativas tradicionais recobrira com toda uma densa
camada de acontecimentos.108
Entretanto, o fluxo de descontinuidades e imprevisibilidades que
irrompe nas sociedades ocidentais, principalmente após as últimas décadas do
séc. XX, coloca em xeque o relato monumental da historiografia jurídica
tradicional. Tal constatação, ao mesmo tempo que dará lugar às chamadas teorias
sistêmicas como abarcar explicativo para os novos fenômenos de juridicidade109
(não que as descontinuidades nunca estivessem presentes, mas passaram a ser
um componente indissociável da estrutura político-jurídica-institucional do
ocidente, colocando em risco muitas de suas categorias matriciais), abre também
a oportunidade de pensar o direito a partir de outros critérios historiográficos e
temporais, ou mesmo denunciar muitas das ficções juridicamente encarnadas, que
passam a exigir ultrapassamento pela deflagração de seus próprio ocaso (ou dos
estertores deste ocaso).
Hannah Arendt, em ensaio intitulado ―O conceito de História –
Antigo e Moderno‖, irá debruçar-se sobre os componentes de percepção da
história (e, consequentemente, de temporalidade) envolvidos na tradição da
antiguidade clássica grega e dos tempos modernos, esboçando elementos
distintivos entre ambos. Entre os gregos, assevera Arendt, percebe-se uma
concepção de história entendida como a rememoração visando salvar a fragilidade
das ações humanas frente ao esquecimento. A natureza, no horizonte cultural
grego, insere-se numa dimensão sempiterna de circularidades, exemplificada na
procriação, eterna repetição.
A mortalidade passa a ser a marca distintiva de seres humanos
incrustados num horizonte permanente de devir circular. ―A mortalidade do homem
repousa no fato de que a vida individual, uma bíos com uma história de vida
108
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. (Tradução de Luis Felipe Baeta
Neves). 7.ed. Rio de Janeiro : Forense, 2004. p. 03.
109
Teorias que seguem na convergência da hegemonia temporal do modelo de
capitalismo fluído do presente.
identificável do nascimento à morte, emerge da vida biológica, [sic] dzoé.‖110 A
vida
humana
seria
caracterizada
por
um
curso
retilíneo,
seccionando
―transversalmente os movimentos circulares da vida biológica‖111.
Atos, ações, palavras, os elementos mais frágeis da condição
humana perante o fluxo incontornável do tempo (e, portanto, da mortalidade),
poderiam receber a imortalidade ao - emprestando artefatos de relativa
permanência do ser-para-sempre da natureza - serem transferidos e recordados
na poiesis de poetas e historiadores.112 Contudo, tal configuração altera-se, para
Arendt,
Quando, na antiguidade tardia, iniciaram-se especulações acerca da
natureza da história num sentido de um processo histórico e a respeito
de um destino histórico das nações, sua ascensão e seu declínio, onde
ações e eventos particulares seriam engolfados em um todo, admitiu-se
imediatamente que esses processos teriam que ser circulares. O
movimento histórico começou a ser construído à imagem da vida
biológica. Nos termos da Filosofia antiga, isso podia significar que o
mundo da história fora reintegrado no mundo da natureza, o mundo dos
mortais no universo que existe para sempre. Mas em termos de poesia e
Historiografia antiga isso significou que o primitivo sentido da grandeza
dos mortais, como algo distintivo da grandeza indubitavelmente maior
dos deuses e da natureza, se perdera.113
Como próprio tema da história visualizavam-se (helenicamente) os
assuntos humanos, sempre manifestados em aparições isolados, situações
únicas, inconfundíveis, que interrompem o movimento circular da vida diária (tal
como Arendt pontua sobre uma biós que secciona de forma retilínea a
circularidade da zoé). A história grega era representada por essas interrupções, o
110
ARENDT, Hannah. O conceito de História – Antigo e Moderno. In: Entre o
passado e o futuro. (Tradução: Mauro Barbosa de Almeida). São Paulo: Perspectiva, 1968.
p. 71.
111
Ibidem. Idem.
112
―As obras das mãos humanas devem parte de sua existência à matéria oferecida
pela natureza, portando assim dentro de si, em alguma medida, permanência emprestada do
ser-para-sempre da natureza. Mas o que se passa diretamente entre os mortais, a palavra
falada e todas as ações e feitos que os gregos chamaram de prákseis ou prágmata, em
oposição à poiesis, fabricação, não pode nunca sobreviver ao momento de sua realização e
jamais deixaria qualquer vestígio sem o auxílio da recordação. A tarefa do poeta e do
historiador (posto por Aristóteles na mesma categoria, por ser o seu tema comum práksis )
consiste em fazer alguma coisa perdurar na recordação. E o fazem traduzindo práksis e léksis,
ação e fala, nessa espécie de poiesis ou fabricação que por fim se torna a palavra escrita‖.
ARENDT, Hannah. Ibidem. p. 74.
113
ARENDT, Hannah. O conceito de História – Antigo e Moderno. Op. cit. p. 72.
extraordinário, por assim dizer. Ou, nas palavras de Jean-Luc Nancy, ―in Greek,
the meaning of historia is a collection or recollection of occurrences.‖114
Não obstante, tal precariedade constitutiva passa pouco a pouco a
ser engolfada numa concepção historicista fundada processualmente, as
singularidades inseridas na totalidade, nos fluxos abrangentes e teleológicos.115
De certo modo, a concepção cristã de tempo, ao associar uma
alma imortal temporariamente transitando em um mundo transitório, em absoluto
contraste com os gregos, influenciou em muitos aspectos tal configuração
histórica.116
Por outro lado, um tipo específico de ciência que intervém na
natureza, desencadeando, por experimentação, processos antes tidos como
possíveis apenas à imanência do universo natural (v.g. a fissura do átomo), acaba
trazendo o aspecto da imprevisibilidade da ação humana para o âmbito natural,117
114
NANCY, J. The Technique of The Present. In: www.egs.edu/faculty/nancy/thetechnique-of-the-present.html. Pesquisa realizada em 28.12.2006.
115
Guy Debord parte de constatação semelhante ao analisar a história correspondente
ao espetáculo contemporâneo: ―O fim da história da cultura manifesta-se por dois lados
opostos: o projeto de sua superação na história total e sua manutenção organizada como
objeto morto, na contemplação espetacular‖. DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo.
Op. cit. Tese 184.
116
―Para a exígua duração de suas existências, grandes feitos e palavras era, em sua
grandeza, tão reais como uma rocha ou uma casa, aí estando para serem vistos e ouvidos por
todas as pessoas presentes. A grandeza era facilmente identificável como o que por si mesmo
aspirava à imortalidade, - isto é, negativamente falando, como um heróico desprezo por tudo
o que meramente sobrevém e se extingue, por toda a vida individual, inclusive a própria. Esse
senso de grandeza não poderia absolutamente sobreviver intacto na era cristã, pela simples
razão de que, segundo os ensinamentos cristãos, a relação entre vida e mundo é o exato
oposto da existência da antiguidade grega e latina: no Cristianismo, nem o mundo nem o
recorrente ciclo da vida são imortais, mas apenas o indivíduo vivo singular. É o mundo que se
extinguirá; os homens viverão para sempre. A reviravolta cristã baseia-se, por sua vez, na
doutrina completamente diferente dos hebreus, que sempre sustentaram que a própria vida é
sagrada, mais sagrada que tudo mais no mundo, e que o homem é o ser supremo sobre a
terra‖. ARENDT, Hannah. Ibidem. p. 82-83.
117
―Nosso moderno conceito de história é não menos ligado intimamente ao moderno
conceito de natureza que os conceitos correspondentes e bem diferentes que se encontram
no início de nossa História. Também eles só podem ser vistos em seu pleno significado
quando sua raiz comum é descoberta. A oposição do séc. XIX entre as ciências naturais e
históricas, juntamente com a pretensa objetividade e absoluta precisão dos cientistas naturais,
é hoje coisa do passado Os cientistas naturais admite agora que, com o experimento, que
verifica processos naturais sob condições prescritas, e com o observador, que, ao observar o
quebrando a distinção estanque entre os universos da cultura e da natureza (os
espaços kantianos do homem cindido entre os âmbitos do homo noumenon e do
homo phoenomenon), estabelecendo outro paradigma histórico na tradição
ocidental, que passa a ser proeminente na historiografia da modernidade.
O objetivo de tais reflexões não é adentrar no debate espinhoso
da historicidade e da temporalidade moderna,118 porém, seguindo os rastros do
pensamento arendtiano, é possível afirmar que o mundo moderno tem como
centro histórico seu próprio processo de vida (nas palavras de Droysen: ―aquilo
que é a espécie para os animais e plantas, é a história para os seres
humanos‖),119 aquela zoé que, para os gregos, configurava elemento distintivo
entre humanos e animais, passa a estabelecer a própria condição histórica
humana. Ausência de permanência, processos englobantes, afogamento da
singularidade e do simbólico, são sintomas diretos de tal versão.
O
direito
moderno,
contemporâneo (no período de
principalmente
no
seu
desdobramento
aceleramento, ao ponto da vertigem, de tal
fluidade) não deixa de ser engolfado nessa tradição, repercutindo para um estado
de escassez de significado no interior do jurídico bem como na sua re-localização
funcional no mundo das sociedades massas, o que dá o mote para o que será
explorado na nossa próxima hipótese.
Antes, porém, é preciso lembrar que será a partir de tal horizonte
de projeção do saber histórico ocidental que as contemporânea(s) teoria(s) do
direito transitará(ão). O que nos conecta novamente com a hipótese do jurídico
extraviado (tendo como correlato a crise da legalidade vivenciada no presente)
lançada no primeiro item deste capítulo. Ou seja, a crise da legalidade como um
sintoma da erosão do simbólico operada por uma história pautada por fluxos
experimento se torna uma de suas condições, introduz-se um fator ―subjetivo‖ nos processos
objetivos da natureza‖. ARENDT, Hannah. Ibidem. p. 78.
118
O debate sobre a temporalidade será novamente travado no tópico 3 do último
capítulo.
119
DROYSEN, Joannes Gustav. Historik. (1882). Munique e Berlim, 1937. Apud:
ARENDT, Hannah. Op. cit. p. 110.
biológicos, a história como processo vital global da sociedade, ou seja, a vida, na
acepção da zoé na Grécia antiga, no centro do devir humano moderno.120
4. Ao direito correspondente às democracias massivas
espetacularizadas temos reservado um local de mero produto consumível,
sem permanência e deslocado de referências simbólicas. O espaço do
“animal laborans” disseminado para todos os locais contemporâneos da
condição humana prevê um direito resumido a descartável “valor de uso”,
bem de consumo, lançado ao fluxo mercadológico da necessidade e do gozo
incontido. Resta à tarefa da crítica deslocar a captura do jurídico pelas
instância do capitalismo financeiro desterritorializado, ou tão-somente
limitar-se a demonstrar o vínculo indissociável entre eles.
Guy Debord estabelece na tese 37 de sua ―Sociedade do
espetáculo‖ que ―o mundo presente e ausente que o espetáculo faz ver é o mundo
da mercadoria dominando tudo o que é vivido. E o mundo da mercadoria é assim
120
―A cultura de massas passa a existir quando a sociedade de massas se apodera
dos objetos culturais, e o perigo é que o processo vital da sociedade (que como todos os
processos biológicos arrasta insaciavelmente tudo o que é disponível para o ciclo de seu
metabolismo) venha literalmente a consumir os objetos culturais, que os consuma e os
destrua. Não estou me referindo, é óbvio, à distribuição em massa. Quando livros ou quadros
em forma de reprodução são lançados no mercado a baixo preço e atingem altas vendagens,
isso não afeta a natureza dos objetos em questão. Mas sua natureza é afetada quando esses
mesmo objetos são modificados – reescritos, condensados, resumidos (digested), reduzidos a
kitsch na reprodução ou adaptação para o cinema. Isso não significa que a cultura é difundida
para as massas, mas que a cultura é destruída para produzir entretenimento. O resultado não
é a desintegração, mas o empobrecimento, e os que o promovem ativamente não são os
compositores da Tin Pan Alley, porém um tipo especial de intelectuais, amiúde lidos e
informados, cuja função exclusiva é organizar, disseminar e modificar objetos culturais com o
fim de persuadir as massas de que o Hamlet pode ser tão bom entretenimento quando My Far
Lady, e, talvez, igualmente educativo. Muitos autores do passado sobreviveram a séculos de
olvido e desconsideração, mas é duvidoso que sejam capazes de sobre viver a uma versão
para entretenimento do que eles têm a dizer. A cultura relaciona-se com objetos e é um
fenômeno do mundo; o entretenimento relaciona-se com pessoas e é um fenômeno da vida.
(...) A cultura é ameaçada quando todos os objetos e coisas seculares, produzidos pelo
presente ou pelo passado, são tratados como meras funções para o processo vital da
sociedade, como se aí estivessem somente param satisfazer uma necessidade (...).‖
ARENDT, Hannah. A crise da cultura. In: Entre o passado e o futuro. Op. cit. p. 248
mostrado como ele é, pois seu movimento é idêntico ao afastamento dos homens
entre si e em relação a tudo que produzem.‖121
Lembremo-nos do palácio de cristal de Hiden Park122 (para
Agamben, pesadelo no qual o séc. XIX sonhou o XX), centro imaterial, símbolo
decimonônico de prenúncio de um tipo de capitalismo que se torna imagem
(Debord, tese 34), uma versão de capitalismo que pode ser alegorizado na leveza
de uma construção de vidro transparente, em um nada de revelação, usando de
uma expressão de Scholem. ―Não é por acaso que o vidro é um material tão duro
e tão liso, no qual nada se fixa. É também um material frio e sóbrio. As coisas de
vidro não têm nenhuma aura. O vidro é em geral o inimigo do mistério. É também
o inimigo da propriedade.‖123
De fato, há muito a transparência tomou o lugar das aparências; desde o
início do séc. XX a profundidade de campo das perspectivas clássicas foi
renovada pela profundidade de tempo das técnicas avançadas. O
desenvolvimento da indústria cinematográfica e da aeronáutica seguiu de
perto a abertura dos grande bulevares. Ao desfile haussmaniano
sucedeu-se o desfile acelerado de imagens dos irmão Lumière, a
esplanada dos Invalides sucedeu-se a invalidação do plano urbano, a
tela bruscamente tornou-se o local, a encruzilhada de todos os meios de
comunicação em massa. Da estética da aparição de uma imagem
estável, presente por sua própria estática, à estética do desaparecimento
de uma imagens instável, presente por sua fuga (cinemática ou
cinematográfica), assistimos a um transmutação das representações. À
emergência de formas e volumes destinados a persistir na duração de
seu suporte material, sucederam-se imagens cuja única duração é o da
persistência retineana.124
121
DEBORD, Guy, Op. cit. p. 28.
―Marx encontrava-se em Londres quando, em 1851, a primeira Exposição Universal
foi inaugurada com grande repercussão em Hyde Park. Dentre os diferentes projetos
propostos, os organizadores escolheram aquele de Paxton, que previa um imenso palácio
inteiramente de cristal. No catálogo da exposição, Merrifield escreveu que o Palácio de Cristal
‗é sem dúvida o único edifício do mundo cuja atmosfera é perceptível... para um espectador
situado na galeria da extremidade oriental ou ocidental, as partes mais alinhadas do edifício
aparecem aureoladas por uma auréola azulada‘ O primeiro grande triunfo do mercado
aconteceu, dito de outra forma, sob o signo da transparência e da fantasmagoria‖. AGAMBEN,
Giorgio. Moyens sans fins. Notes sur la politique. (Tradução para o português Vinícius
Nicastro Honesko). Paris : Éditions Payot & Rivages. p. 27.
123
BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Magia, técnica, arte e política.
Obras escolhidas I. (Tradução Sérgio Paulo Rouanet). 7 ed. São Paulo : Brasiliense, 2004. p.
117.
124
VIRILIO, Paul. O espaço crítico. (Tradução Paulo Roberto Pires). Rio de Janeiro :
Ed. 34, 1993. p. 19.
122
Um tipo de capitalismo da obsolescência (das invalidações), do
movimento tornado vertigem, onde nada pode ser constante salvo a constância do
torvelinho de processos ligados à sua própria manutenção (fluxos financeiros
livres, a imagem espetacular, a tecnociência instrumentalizada, o dispositivo do
consumo...), fluxos cuja única persistência é a superfície retineana, ou a metáfora
de sinais eletrônicos em telas planas.
Aliada a esta descartabilidade temos um elemento importante a ser
levado em conta na análise contemporânea, uma espécie de niilismo do qual trata
Walter Benjamin em um dos fragmentos de seu Projeto das Passagens:
Baudelaire teve a felicidade de ser contemporâneo de uma burguesia que
ainda não tinha necessidade de aliciar como cúmplice de sua dominação
um tipo tão associal quanto o que ele representava. A incorporação no
niilismo em seu aparelho de dominação estava reservada à burguesia do
séc. XX.125
Um niilismo amorfo, narcotizado, muito distante do niilismo criador
nietzscheano, algo próximo do que Dany-Robert Dufour apresenta em sua
descrição do novo homem do neo-capitalismo atual:
Com efeito, estamos na época da fabricação de um ‗novo homem‘, de um
sujeito a-crítico e psicotizante, por uma ideologia também conquistadora,
mas provavelmente muito mais eficaz do que o foram as grandes
ideologias (comunistas e nazistas do século passado). O que o
neoliberalismo quer é um sujeito dessimbolizado, que não esteja mais
nem sujeito à culpabilidade, nem suscetível de constantemente jogar com
um livre-arbítrio crítico. Ele quer um sujeito incerto, privado de toda
ligação simbólica. (....) Sendo recusada toda referência simbólica
suscetível de garantir as trocas humanas, há apenas mercadoria que são
trocadas num fundo ambiente de venalidade e de niilismo generalizado
no qual somos solicitados a tomar. O neoliberalismo está realizando o
velho sonho do capitalismo. Não apenas ele estende o território da
mercadoria até os limites do mundo (o que está em curso sob o nome de
mundialização), no qual tudo se tornou passível de ser mercadoria (a
água , o genoma, o ar, as espécies vivas, a saúde, os órgãos, os
museus nacionais, as crianças...) Ele também está recuperando velhas
questões privadas, até agora deixadas à maneira de cada um
125
BENJAMIN, Walter. Passagens (Organização Willi Bolle; tradução Irene Aron, et.
al.). Belo Horizonte/São Paulo : Editora UFMG/Imprensa Oficial, 2006. p. 430.
(subjetivação, personação, sexuação...) para fazê-las entrar na órbita da
mercadoria.126
O direito moderno, com a ascensão de tais transformações
estruturais e de significado operadas na baixa modernidade do Ocidente, não ficou
ileso nem mesmo em sua conformação conceitual.
Para enveredar-se para tal análise serão utilizadas como trilhas de
pensamento as categorias da ação (action), da fabricação (work), e do labor
(labor), expostas por Arendt em sua obra ―A Condição Humana‖, de 1958.
O trabalho (work) vincula-se à categoria de meios e de fins, ao
critério da utilidade - o espaço antropológico do homo faber - voltado à construção
do artefato humano (ou o mundo cultural) frente à natureza. Insere-se na busca de
permanências emprestando ao ―artifício humano a estabilidade e a solidez sem as
quais não se poderia esperar que ele servisse de abrigo à criatura mortal e
instável que é o homem.‖127
A permanência funda-se na reificação daquilo que é produzido pelo
trabalho humano, não que tal produção tenha uma durabilidade absoluta (até
mesmo ela está sujeita às atividades consumíveis do metabolismo humano e do
devir temporal da natureza), porém tem como fim a consolidação de uma
dimensão objetiva que se interponha entre homens e natureza, incutindo (nos
limites do humanamente possível) ao menos uma interrupção do eterno
movimento da zoé. O trabalho tem, em sua manifestação, uma carga de violência,
no sentido de arrancar, ou até mesmo suprimir, relações da imanência natural,
portando-se, o homo faber, como amo e senhor de toda a terra.
Como a sua produtividade era vista à imagem de um Deus Criador- de
sorte que, enquanto Deus cria ex nihilo, o homem cria a partir de
determinada substância -, a produtividade humana, por definição,
resultaria fatalmente numa revolta prometéica, pois só se pode construir
um mundo humano após destruir parte da natureza criada por Deus.128
126
DUFOUR, Dany-Robert. A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na
sociedade ultraliberal. (Tradução Sandra Regina Felgueiras). Rio de Janeiro : Companhia de
Freud, 2005. p. 208.
127
ARENDT, Hannah. A condição Humana. (Tradução Roberto Raposo). 10. ed. Rio
de janeiro : Forense Universitária, 2001. p. 149.
128
ARENDT, Hannah. A condição Humana. op. cit. p. 152.
Apesar de tomadas por equivalentes na tradição de pensamento
ocidental, em contraste com o homo faber está a condição do animal laborans.129
A atividade que, na concepção da Grécia antiga, os seres humanos
compartilhariam com o restante dos animais,130 porquanto estritamente vinculada
ao atendimento de processos metabólicos, tendo como critério único a
necessidade. Labor sem permanências, voltado ao consumo que não sobrevive ao
ato de sua realização, confinado (na Grécia antiga) ao universo do oikos, a
dimensão privada (de privus, ―estar privado de‖). No centro do labor está a própria
vida, a zoé talqualmente entendida pelos gregos (diferentemente do trabalho, que
tem o mundo como centro).
A ação, por sua vez, é a atividade que ultrapassa os critérios da
necessidade e da utilidade, helenicamente ligou-se à esfera de liberdade como
participação nos assuntos da pólis, através do discurso. Enquanto labor e trabalho
realizam-se no isolamento, desnecessitando de outros sujeitos, a ação só se dá
na condição de pluralidade, na condição que Arendt tornou célebre com a
caracterização do espaço público com sendo o espaço formado pelo encontro
paradoxal de singularidades na pluralidade.131
129
―A distinção de Locke entre as mãos que trabalham e o corpo que labora, é, de
certa forma, reminiscente da antiga distinção grega entre o cheirotechnes, o artifície, ao qual
corresponde ao Handwerker alemão e aqueles que, ‗como escravos, e animais domésticos,
atendem às necessidades da vida‘‖ ARENDT, Hannah. A condição Humana. Op. cit. p. 90.
130
―Ao contrário do que ocorreu nos tempos modernos, a instituição da escravidão na
antiguidade não foi uma forma de obter mão-de-obra barata nem instrumento de exploração
para fins de lucro, mas sim as tentativas de excluir o labor das condições da vida humana.
Tudo o que os homens tinham em comum com as outras formas de vida animal era
considerado inumano. (Esta também era, por sinal, a razão da teoria grega, tão mal
interpretada, da natureza inumana do escravo. Aristóteles, que sustentou tão explicitamente
sua teoria para depois, no leito de morte, alforriar seus escravos, talvez não fosse tão
incoerente como tendem a pensar os modernos. Não negava que os escravos pudessem ser
humanos; negava somente o emprego da palavra ‗homem‘ para designar membros da espécie
humana totalmente sujeito à necessidade). E a verdade é que o emprego da palavra ‗animal‘
no conceito de animal laborans, ao contrário do outro uso, muito discutível, da mesma palavra
na expressão animal rationale, é inteiramente justificado. O animal laborans é, realmente,
apenas uma das espécies animais que vivem na terra – na melhor das hipóteses a mais
desenvolvida‖. ARENDT, Hannah. A condição Humana. Op. cit. p. 95.
131
―Se a ação, como início, corresponde ao fato do nascimento, se é a efetivação da
condição humana da natalidade, o discurso corresponde ao fato da distinção e é a efetivação
da condição humana da pluralidade, isto é, do viver como ser distinto e singular entre iguais.‖
ARENDT, Hannah. A condição humana. Op. cit. p. 191.
Em resumo (deixaremos para analisá-la mais pormenorizadamente
em espaço oportuno do segundo capítulo), a ação, para Arendt, vincula-se
diretamente ao princípio da natalidade nos assuntos humanos, ao termos em
mente o fato de que
É com palavras e atos que nos inserimos no mundo humano; e esta
inserção é como um segundo nascimento, no qual confirmamos e
assumimos o fato original e singular de nosso aparecimento físico
original. Não nos é imposta pela necessidade, como o labor, nem rege-se
pela utilidade, como o trabalho. Pode ser estimulada, mas nunca
condicionada, pela presença dos outros em cuja companhia desejamos
estar; seu ímpeto decorre do começo que vem ao mundo quando
nascemos, e ao qual respondemos começando algo novo por nossa
própria iniciativa.132
Trazendo tais conceitos para a análise do jurídico, pode-se afirmar,
a partir das reflexões de Tércio Sampaio Ferraz Jr., que na antiguidade clássica
grega ―a legislação enquanto trabalho do legislador não se confundia com o direito
enquanto resultado da ação.‖133 Ou seja, jus e lex diferenciavam-se na exata
medida correspondente entre as distinções entre ação e trabalho.
Nas palavras de Ferraz Jr., ―o que condicionava o jus era a lex,
mas o que conferia estabilidade ao jus era algo imanente à ação: a virtude do
justo, a justiça.‖134
Portanto, a concepção grega de justiça como virtude, tal como
defendida, v.g., por Aristóteles,135 diverge radicalmente da concepção moderna,
que, principalmente a partir do referencial kelseniano, tende a reduzir a justiça a
simples valor136 (ou seja, valor passível de troca entre outros disponíveis no
132
ARENDT, Hannah. A condição humana. Op. cit. p. 189.
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. Técnica, decisão,
dominação. 3.ed. São Paulo : Atlas, 2001. p. 25.
134
Ibidem. Idem. A lex era representada na metáfora das muralhas da cidade, aquela
133
concretude que tornava possível a distinção da pólis do terreno dos campos – sua fortaleza,
estabilidade - a própria presença física da praça pública dando suporte aos debates que aí se
realizavam.
135
―Seja como for, o objeto de nossa investigação é aquela justiça que constitui uma
parte da virtude, pois sustentamos que tal espécie de justiça existe. Do mesmo modo,
estamos examinando a injustiça no sentido particular‖. Aristóteles. Ética a Nicômaco. Livro
V. (Tradução Pietro Nassetti). São Paulo : Martin Claret, 2002. p. 106.
136
Para tanto, ver notas nº 65 e 73, do segundo item desta dissertação.
mercado, caracterizado por uma relatividade intrínseca).137 Reducionismo
diretamente relacionado à substituição dos critérios da ação (o conceito antigo de
liberdade na tradição grega) pelos critérios da fabricação (e o respectivo local
privilegiado da categoria significância em tal atividade), em convergência com o
equacionamento, operado pelo homo faber, de tudo que transcenda à estrita
corporeidade a simples valores ou pelo utilitarismo sistemático do qual nem
mesmo Kant, com sua paradoxal afirmação do homem como um ―fim em si
mesmo‖ não conseguiu escapar.138
137
―O trabalho de nossas mãos, em contraposição ao labor de nosso corpo - o homo
faber que ‗faz‘ e literalmente ‗trabalha sobre‘ os materiais, em oposição ao animal laborans,
que labora e ‗se mistura com‘ eles- fabrica a infinita variedade de coisas cuja soma total
constitui o artefato humano. Em sua maioria, mas não exclusivamente, essas coisas são
objetos destinados ao uso, dotados da durabilidade de que Locke necessitava para
estabelecimento da propriedade, do ‗valor‘ que Adam Smith precisava para o mercado de
trocas, e comprovam a produtividade que Marx acreditava ser o teste da natureza humana.
ARENDT, Hannah. A condição humana. Op. cit. p. 149.
138
―Assim, o ideal de serventia, que orienta a sociedade de artífices – como o ideal de
conforto numa sociedade de operários ou o ideal de aquisição que governa as sociedades
comerciais -, já não é, realmente, uma questão de utilidade, mas de significância. É ‗em nome
da‘ serventia em geral que o homo faber julga e faz tudo em termos de ‗para quê‘. O ideal de
serventia, em si, como os ideais de outras sociedades, já não pode ser concebido como algo
de que se necessita para que se obtenha outra coisa; sua serventia não admite discussão. È
obvio que não há resposta à pergunta que Lessing, certa vez, dirigiu aos filósofos utilitários de
seu tempo: ‗E para que serve a serventia?‘ A perplexidade do utilitarismo é que se perde na
cadeia interminável de meios e fins sem jamais chegar a algum princípio que possa justificar a
categoria de meios e fins, isto é, a categoria da própria utilidade. O ‗para que‘ torna-se
conteúdo do ‗em nome de quê‘; em outras palavras, a utilidade, quando promovida a
significância, gera a ausência de significado. (...) O utilitarismo antropocêntrico do homo faber
encontrou sua mais alta expressão na fórmula de Kant: nenhum homem deve jamais tornar-se
um meio para um fim, todo ser humano é um fim em si mesmo. Antes de Kant – por exemplo,
na insistência de Locke em que não se deve permitir que um homem seja dono do corpo de
outro ou use a força de seu corpo – encontramos a percepção das funestas conseqüências
que o raciocínio em termos de meios e fins, sem peias e em orientação , invariavelmente tem
na esfera política; mas é somente em Kant que a filosofia das primeiras fases da era moderna
liberta-se inteiramente das trivialidades do bom senso, encontradas sempre que o homo faber
dita os critérios da sociedade. Naturalmente, o motivo disto é que Kant não pretendia formular
ou conceitualizar os princípios do utilitarismo de seu tempo, mas ao contrário, desejava antes
de mais nada por em seu devido lugar a categoria de meios e fins e evitar que fosse
empregada no campo da ação política. Não obstante, é inegável que sua fórmula tem origem
no pensamento utilitário – como é o caso, também de sua outra famosa e igualmente
paradoxal interpretação da atitude do homem em relação aos únicos objetos que não se
destinam ao ‗uso‘ ou seja, as obras de arte, das quais ele nos disse que proporcionam ‗prazer
destituído de interesse‘. Pois a mesma operação que faz do homem o ‗fim supremo‘ permitelhe ‗submeter, se puder, toda a natureza a esse fim, isto é, reduzir a natureza e o mundo a
simples meios, privando-os de sua dignidade independente.‖ ARENDT, Hannah. A condição
Humana. Op. cit. pp. 167-169.
Sobre disseminação dos valores e seu respectivo elemento (tão
―pranteado‖, segundo Arendt) de relatividade universal, a filósofa alemã irá
asseverar que ―(...) a relatividade universal – o fato de que uma coisa só existe
em relação a outras – e a perda da valia intrínseca – o fato de que tudo deixa de
possuir valor ‗objetivo‘, independente da avaliação mutável da oferta e da procura
– são inerentes ao próprio conceito de valor.‖139
A tão pranteada desvalorização de todas as coisas, isto é, a perda de
toda valia intrínseca, começa com sua transformação em valores ou
mercadorias, uma vez que, desse momento em diante, elas passam a
existir somente em relação a alguma outra coisa que pode ser adquirida
em seu lugar. (...) O motivo pelo qual estes eventos, que parecem
inevitáveis numa sociedade comercial, deram azo a tão profunda
inquietação e chegaram a constituir o principal problema da ciência da
economia, não foi nem mesmo a relatividade em si, mas antes do fato de
que o homo faber cujas atividades são aferidas pelo uso constante de
réguas, normas e padrões, não podia suportar a perda de medidas e
padrões ‗absolutos‘. Pois o dinheiro, que obviamente serve de
denominador comum a todo tipo de coisa, de sorte que uma possa ser
trocada por outra, não possui, de algum modo, a existência independente
e objetiva, capaz de sobreviver a todo uso e a toda manipulação, que a
régua ou qualquer outro instrumento de medição possui em relação à
coisa que deve medir e aos homens que a manuseiam. É esta perda de
padrões e normas universais, sem os quais o homem jamais poderia ter
construído um mundo, que Platão já pressentia na proposta protagórica
de estabelecer o homem, fabricante de todas as coisas, e o uso que
delas ele faz, como a suprema medida destas últimas. Isto mostra o
quanto a relatividade do mercado de trocas tem a ver com o instrumento
que resulta do mundo do artífice e da experiência da fabricação. Na
verdade, a primeira advém, sistematicamente e sem quebra de
continuidade, do segundo.140
139
ARENDT, Hannah. A condição Humana. Op. cit. p. 177.
ARENDT, Hannah. A condição humana. Op. cit. p. 178-179. Para Arendt ―a
proeminente confusão na economia clássica e a confusão maior que resultou no uso do termo
‗valor‘ (value) na filosofia foram originalmente causadas pelo fato de que a palavra mais
antiga, ‗valia‘ (worth), que ainda encontramos em Locke, foi suplantada pela expressão ‗valor
de uso‘ (use value), aparentemente mais científica. Marx também aceitou essa terminologia; e
fiel à sua repugnância em relação à esfera pública, viu sistematicamente o pecado original do
capitalismo na mudança de valor de uso para valor de troca. No entanto, contra tal pecado de
uma sociedade comercial, onde realmente o mercado de trocas é o lugar público mais
importante e onde, conseqüentemente, tudo se torna valor cambiável, ou seja, mercadoria,
Marx não invocou a valia objetiva ‗intrínseca‘ à própria coisa. Em seu lugar, colocou a função
que as coisas exercem no processo vital do consumidor, que tanto desconhece valia objetiva
intrínseca quanto valor subjetivo determinado pela sociedade. (...) esta confusão verbal,
porém, é somente parte da história. O motivo pelo qual Marx reteve teimosamente a
expressão ‗valor de uso‘, bem como a razão das inúmeras e vãs tentativas de encontrar
alguma fonte objetiva – como o trabalho, a terra ou o lucro – para o surgimento dos valores,
140
Ou seja, tais manifestações nada mais representam, em termos
arendtianos, que a paulatina substituição, ocorrida no mundo moderno, da ação
pelos critérios da fabricação - do trabalho - como centro da vida ativa humana
(algo que poderia, no horizonte da tradição de pensamento ocidental, ser
remotamente associado a Platão), permeando, de certo modo, toda a tradição
teórico-política da modernidade, tanto que se pode afirmar que
Toda a terminologia da teoria e do pensamento político atesta claramente
o quanto foi persistente e bem sucedida a transformação da ação em
modalidade da fabricação, e torna quase impossível discutir esses
assuntos sem que se empregue a categoria de meios e fins e se
raciocine em termos de instrumentalidade.141
No direito, mais uma vez seguindo as interpretações de Ferraz Jr.,
a perda do antigo sentido de ação e sua redução à esfera do trabalho
corresponderá a uma ―redução progressiva do jus à lex, do direito à norma‖ (e,
consequentemente, o deslocamento da justiça enquanto virtude à dimensão dos
valores relativos).
O fabricar dos antigos, isto é, o trabalho, era porém, um domínio sobre
coisas, não sobre homens. Transportado o fabricar para o mundo político,
o trabalho fará do agir humano uma atividade produtora de bens de uso e
o direito reduzido a norma, isto é, o jus como igual a lex, será então
encarado como comando, como relação impositiva de uma vontade sobre
outra vontade, um meio para atingir certos fins: a paz, a segurança, o
bem-estar, etc. Nesse quadro, a legitimidade do direito comando passa a
depender dos fins a que ele serve.142
No mundo pautado pelos critério do homo faber, o direito
despersonaliza-se, sendo entendido na ótica de um ordenamento (ou sistema
jurídico) formal, abstrato, formado por um conjunto de normas e respectivamente
um conjunto de direitos subjetivos, constituído independentemente das situações
reais e tornado meio de coercibilidade sobre outros seres humanos, ou liame
intersubjetivo de direitos e obrigações (aquilo que semanticamente abarca, na
dogmática jurídica, o conceito de bilateralidade atributiva da norma), assegurando
os fins, que o direito, em sua neutralidade instrumental, deverá assegurar.
foram que ninguém achava fácil aceitar o simples fato de não existirem ‗valores absolutos‘ no
mercado de trocas, que é a esfera própria dos valores e de que procurar um valor absoluto
equivalia a tentar a quadratura do círculo.‖ Ibidem. Idem.
141
ARENDT, Hannah. Op. cit. p. 241.
142
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Op. cit. p. 25.
Entretanto, a diluição desta arquitetônica de meios -
do direito
entendido como um grande aparato instrumental, abstrato e formal de coação, que
se utiliza da violência institucionalizada para o atendimento de suas finalidades
(lembremos que a violência, para Arendt, por seu caráter instrumental, vincula-se
diretamente à dimensão do homo faber, correlata também do equacionamento do
poder à violência), e o próprio direito sendo entendido no viés da coação – será
operada no mundo contemporâneo com a substituição dos critérios do homo faber
pela assunção do animal laborans, o plano da oikia disseminado para todas as
esferas da vida humana.
O último estágio de uma sociedade de operários, que é a sociedade dos
detentores de emprego, requer de seus membros um funcionamento
puramente automático, com se a vida individual realmente tivesse sido
afogada no processo vital da espécie e a única decisão ativa do indivíduo
fosse deixar-se levar, por assim dizer, abandonar a sua individualidade,
as dores e as pena de viver ainda sentidas individualmente, e aquiescer
num tipo funcional de conduta entorpecida e tranqüilizada.143
A ausência de permanências do labor - o que surge de sua
atividade é logo absorvido no processo de sobrevivência da vida - ganhando
predominância no mundo contemporâneo (a sociedade de consumidores como um
sintoma direto de tal centralidade), trará uma nova mutação semântica para o
conceito de direito: compreendido a partir da ação na antiguidade (jus), trabalho
legislativo no mundo moderno (lex), na contemporaneidade o direito é cada vez
mais associado a um bem de consumo, ou objeto de consumo.144
143
ARENDT, Hannah. Op. cit. p. 335.
Em correlação direta com a redução do direito à estrita prestação jurisdicional e tal
prestação, por sua vez, reduzida a fruível objeto de consumo, temos a política entendida como
―a ‗grande administradora do existente‘, (...), a outra face do processo de mercadorização, já
que a política está a ponto de tornar esse sistema onívoro, atingindo os ângulos mais remotos,
reduzindo tudo à sua visibilidade, apenas porque se transforma de um projeto metapolítico da
cidade, modelo de cidade, à tecnologia da alocação dos recursos econômicos, à racionalidade
da eficiência, essencialmente à atividade atributiva do dinheiro. A expansão da política como
resolubilidade técnica dos problemas, como resposta às necessidades, é a outra face da
lógica da extrema manipulosidade da natureza, da mercadorização de tudo o que está
expresso pelo indivíduo, da idéia (que enfim domina) da ilimitada confiança na técnica (a
tecnologia até como grande conferente do sofrimento humano, como instrumento que define
os limiares do sofrimento tolerável).‖ BARCELLONA, Pietro. O egoísmo maduro e a
insensatez do capital. (Tradução José Sebastião Roque). São Paulo : Ícone,1995. p. 96.
144
A implicação direta de tal fixação é a crise de legalidade que
vivenciamos no presente145 (novamente nos conectamos, em outros matizes, com
o extravio do jurídico no mundo contemporâneo), o direito que perde sua
localização como referencial simbólico (v.g., normativo) na regulação de condutas,
contudo torna-se um dispositivo maleável, sujeito às vicissitudes da necessidade
(as decisões prêt-à-porter) e ao atendimento dos imperativos de um mercado, que
(diferentemente do mercado de trocas do homo faber) se pauta pela fluidez, pela
velocidade e pelo extremo isolamento de seus destinatários. Não há mais um
mundo – objetivo - entre os homens, mas a própria vida, que toma conta de todas
as esferas, não mais a produção fabril de coisas voltadas à permanência (ao
exemplo das normas), porém a própria força laboral como atividade ininterrupta,
sendo o próprio pensamento - que foi reduzido à mera razão instrumental
cognitiva no contexto do homo faber - transformado paulatinamente em atividade
voltada para prever conseqüências, dirigido para um horizonte técnico
dessimbolizado e circunscrito ao atendimento do processo vital (onde se vive para
laborar e se labora para viver).
O direito reduzido a um saber tecnologicizado, de aprendizado
manualesco, preparado para ser manipulado pelos seus operadores (operários
estatais ou privados que não realizam outra atividade em suas áreas que não seja
―ganhar a vida‖; estéril horizonte solipsista do modelo de consumidor proliferado
para todos os cantos do planeta).
As implicações diretas do advento da sociedade de consumidores
para o universo jurídico, no dizer de Ferraz Jr., podem ser visualizadas
na
―contingência de todo e qualquer direito, que não apenas é posto por decisão, mas
também vale em virtude de decisões, não importa quais‖. Ou seja,
(...) na concepção do animal laborans, criou-se a possibilidade de uma
manipulação de estruturas contraditórias, sem que a contradição afetasse
a função normativa. Por exemplo, rescisão imotivada de um contrato de
145
―A perda da forma é o sinal da crise da política e o sinal também da crise da justiça.
Perder a forma, para a política, significa perder o modelo da cidade, do projeto. O modelo da
cidade era a trama das relações que, de qualquer modo, aludia a uma ‗além‘ da política. E,
para o direito, significava perder a regra da convivência. A forma é o espaço da mediação e da
polaridade‖. BARCELLONA, Pietro. Op. cit. p. 95.
locação é permitida, amanhã passa a ser proibida, depois volta a ser
permitida, e tudo é permanentemente reconhecido como direito, não
incomodando a esse direito sua mutabilidade. A filosofia do animal
laborans assegura ao direito, enquanto objeto de consumo, enorme
disponibilidade de conteúdos, tudo é passível de ser normado para a
enorme disponibilidade de interessados, pois o direito já não depende do
saber, do status, do sentir de cada um, das diferenças de cada um, da
personalidade de cada um. Ao mesmo tempo continua sendo aceito por
todos e cada um em termos de uma terrível uniformidade. Em suma, com
o advento da sociedade do animal laborans, ocorre radical reestruturação
do direito, pois sua congruência interna deixa de assentar-se sobre a
natureza, sobre o costume, sobre a razão, sobre a moral, e passa
reconhecidamente a basear-se na própria uniformidade da própria vida
social, da vida social moderna, com sua enorme capacidade para a
indiferença. Indiferença quanto a tudo que valia e passa a valer, isto é,
aceita-se tranquilamente qualquer mudança. Indiferença quanto à
incompatibilidade de conteúdos, isto é, aceita-se tranquilamente a
inconsistência e convive-se com ela. Indiferença quanto às divergências
de opinião, isto é, aceita-se uma falsa idéia de tolerância, como a maior
de todas as virtudes. Este é afinal o mundo jurídico do homem que
labora, para o qual o direito é tão-somente um bem de consumo.146
Em síntese, o direito contemporâneo apresenta-se assolado pela
permissividade conteudística (sem que isso afete a função normativa) e ausência
de critérios rígidos de decisão, um direito flexível que dá margem a decisões
contraditórias e aos mais diversos tipos de normatizações.147 O Estado é
reconfigurando como prestador de serviços, fornecedor de objetos de consumo,
tendo a decisão como centro principal para a conceituação do próprio jurídico (em
146
FERRAZ JR., Tércio S. Op. cit. p 28.
Na tendência de um direito a serviço do mercado, no contexto brasileiro temos as
declarações de Nelson Jobim, dadas em 2004 ao Jornal ―valor Econômico‖ (na época em que
era presidente do Supremo Tribunal Federal), argumentando no sentido de que os juízes
deveriam levar em conta e avaliar as possíveis conseqüências econômicas do ato decisório,
v.g., em processos envolvendo agências reguladoras, nos quais estaria em jogo o
desenvolvimento econômico do país. Ao ser questionado se o judiciário deveria julgar ―de olho
nas contas públicas‖, afirmou o atual ex-presidente e ex-ministro do STF: ―Quando só há uma
interpretação possível, acabou a história. Mas quando há um leque de interpretações, por
exemplo cinco, todas elas são justificáveis e são logicamente possíveis. Aí, deve haver outro
critério para decidir. E esse outro critério é exatamente a conseqüência. Qual é a
conseqüência, no meio social, da decisão A, B ou C? Você tem de avaliar, nesses casos muito
pulverizados, as conseqüências. Você pode ter uma conseqüência no caso concreto
eventualmente injusta, mas que no geral seja positiva. E é isso que eu chamo da
responsabilidade do Judiciário das conseqüências de suas decisões. Entrevista ao jornal Valor
Econômico, de 13 dezembro de 2004. Apud. CARVALHO, Lucas Borges. Constituição,
Democracia e Integridade: a legitimidade política da jurisdição constitucional do Brasil.
Dissertação apresentada no Centro de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de
Santa Catarina. Florianópolis : CPGD-UFSC, 2006. p. 67.
147
convergência com a análise, realizada no primeiro tópico, da centralidade do
judiciário perante os demais poderes estatais no presente).
Presenciamos, no presente, uma era espetacular na qual, a partir
das reflexões de Giorgio Agamben (seguindo os rastros de Deleuze e Debord), ―o
Estado do niilismo realiza-se. É por isso que o poder estabelecido sobre a
suposição de um fundamento vacila hoje sobre todo o planeta, e os reinos da terra
encaminham-se uns após os outros para o regime democrático-espetacular que é
a realização da forma Estado.‖148
Antes de encerrar as reflexões neste tópico, ainda na rota na
análise da categoria valor na modernidade (e sua indissolúvel conexão, ao menos
na hipótese arendtiana, com a supremacia moderna do homo faber) seria
importante conjecturar (ou, no mínimo, apresentar uma interpretação possível)
sobre a atual utilização, em Agamben, da categoria valor de uso como estratégia
visando à profanação (a restituição ao uso comum dos homens) dos objetos
tornados sacros por dispositivos ritualísticos como o espetáculo.
Talvez possa ser possível afirmar que, no mundo da diluição
contemporânea (permeado pelo labor), tanto a valia objetiva ‗intrínseca‘ à própria
coisa, quanto o valor subjetivo determinado pela sociedade (com descritos por
Arendt), apresentam-se como conceitos indetermináveis. Por outro lado, parece
claro que o conceito de uso, em Agamben, está muito distante daquilo que Arendt
imputava à categorização de Marx, como sendo uma idéia da ―função que as
coisas exercem no processo vital do consumidor‖, ou seja, a funcionalidade
constitutiva (despida de um ―valor de troca‖) da própria coisa.
Evidencia-se necessário reforçar o caráter de novo que Agamben
adjetiva a dimensão do uso, uso não vinculado a uma esfera de consumo, no
sentido de fruição e descarte, mas na acepção do jogo (aí temos explicitamente a
influência benjaminiana), como o novo uso que a criança faz dos objetos que lhe
caem às mãos - caixas velhas transformando-se em moradas, objetos de uso
148
AGAMBEN, Giorgio. Moyens sans fins. Op. cit. p. 31.
convencional solene transformados em brinquedos lúdicos, desativados.149 Algo
que possivelmente a arte de vanguarda tivesse em mente, como nos ready-mades
de Marcel Duchamp, nas armações de Max Ernst, ou nas montagens como o
Parangolé de Hélio Oiticica.
Porventura, numa saída melancólica, tal estratégia seja a única
possível para um mundo que já não reconhece ―valias intrínsecas‖; ou que não
mais consiga desvencilhar-se das esferas dos valores (hoje tomados pela
vacuidade, pela ausência de critérios mínimos), necessitando, portanto, recriá-los
sempre; quiçá nosso tempo tenha simplesmente esquecido (numa realidade onde
tudo tornou-se possível, mesmo o improvável) da funcionalidade - ou da valia específica de cada coisa (no que também podemos distinguir uma faceta de
liberação de fardos, porém trazida pelo fenecimento mesmo daquele espaço
público de trocas, incutidor de valores, no modelo do homo faber; lembre-se que o
incutir novo uso através do jogo evidencia-se sempre uma atribuição individual,
operada ainda no isolamento ), como muito bem lembra um aforismo de Oscar
Wilde, ao alertar que ―hoje em dia conhecemos o preço de tudo e o valor de
nada.‖150
Feito este pequeno desvio, a conclusão provisória, ao final desta
primeira trajetória, é a de que o direito contemporâneo apresenta-se estrutural e
149
―(...) Il passagio dal sacro al profano può, infatti, avvenire anche attraverso un uso
(o, piuttosto, un riuso) del tutto incongruo del sacro. Si tratta del gioco. È noto che la sfera del
sacro e quella del gioco sono strettamente conesse (...). Ciò significa che il gioco libera e
distoglie l‘umanità dalla sfera del sacro, ma senza semplicemente abolirla. L‘uso a cui il sacro
è restituito è un uso speciale, che non coincide con il consumo utilitaristico. La ‗profanazione‘
del gioco non riguarda, infatti, soltanto la sfera religiosa. I bambini, che giocano com
qualunque anticaglia capiti loro sottomano, tranformano in giocattolo anche ciò che appartiene
alla sfera del‘economia, della guerra, del diritto e delle altre attività che siamo abituati a
considerare come serie.(...) Comune, tanto in questi casi come nella profanazioni del sacro, è il
passagio da una religio, che è ormai sentita come falsa e oppressiva, alla negligenza come
vera religio. E questa non significa trascuratezza (nessuna attenzionne regge il confronto com
quella del bambino que gioca), ma una nuova dimensione dell‘uso, che bambini e filosofi
consegnano all‘umanità. È un uso del genere che doveva avere in mente Benjamin, quando
scribe, ne Il nuovo avvocato, che il diritto non più applicato, ma soltanto studiato, è la porta
della giustizia. Come la religio non più osservata, ma giocata, apre la porta dell‘uso, cosí le
potenze dell‘economia, del diritto e della politica, disattivate in gioco, diventano la porta di una
nuova felicità‖. AGAMBEN, Giorgio. Profanazioni. Roma : Nottetempo, 2005. p. 85-87.
150
WILDE, Oscar. Aforismos. (Tradução de Ricardo Reim). Pólo Editorial do Paraná.
1997. p.84
funcionalmente inserido nos dispositivos de poder que presidem o devir-mundo
espetacular e consumidor. A própria temporalidade implícita e a construção
mesma da teorias do direito hegemônicas no presente - tradição normativista e
sistêmica - vinculam-se nesse sentido.
Seria possível pensar num resgate de um direito não capturado
pela sociedade do consumo (o direito como objeto de consumo) ou mesmo não
restrito à estrutura da lex (estritamente normativa, dogmaticamente niilista), porém
no sentido grego do jus, de um direito vinculado à ação, tendo como correlato
aquele tipo de liberdade tal qual imaginada pelos gregos na antiguidade?
A recuperação da categoria da ação, como é apresentada
classicamente no contexto grego, parece estar confinada aos limites da revisão
crítica de nossas categorias de pensamento (como na elaboração do pensamento
arendtiano), não tendo correlação direta na busca de fundamentar um agir político
pautado naqueles critérios (o saudosismo de uma Ur-histórica), apesar de sempre
termos em mente a capacidade humana de quebrar automatismos e começar algo
novo (a dimensão da natalidade da condição humana).
Por outro lado, está aberto o debate para pensar um novo uso
desse direito que nos resta, o que também exige inúmeras confrontações
(aporéticas) no local da teoria (seja jurídica, seja política), distanciando-se de uma
abordagem ingênua que veja o direito como um neutro instrumento disposto a
satisfazer qualquer fim desejado151 (algo que apenas reforça o que já está posto
na nossa tradição), porém que procure pensar num resíduo de direito não
capturado (se é que realmente possa ser possível encontrá-lo) pelas instâncias de
poder ocidentais, ou numa proposta que procure desativar a própria vinculação do
jurídico com tais instâncias. Lembrando de uma provocação de Badiou, ―es mejor
151
Aqui dirigimos nossas críticas ao que se convencionou intitular uso alternativo do
direito, a partir da magistratura italiana nos períodos após o fascismo, e transplantada no
Brasil através de um grupo de juízes no Rio Grande do Sul.
no hacer nada que contribuir a la invención de vías formales para volver visible lo
que el Império reconoce ya como existente.‖152
Mesmos labirínticas, não deixam de ser urgentes tarefas à teoria
do direito que vem (para usar de um termo muito apreciado por Agamben), cujas
veredas não são possíveis de perscrutar nesse momento.
Talvez, o que em nosso tempo nos é dado realizar possa estar
representado na metáfora dos assistentes de arqueólogos que preparam o campo,
retirando os destroços e estilhaços que obstam a entrada nas muralhas de
investigação,
fazendo, de certa forma, um trabalho de seleção do que pode
representar vestígios ou pistas de pensamento, daquilo que representa nada mais
que entulho a despistar os caminhos da observação.
Empreitada, portanto, que exige, no modestos limites deste
trabalho, as reflexões que terão local nos próximos capítulos.
152
BADIOU, Alain. Quince tesis sobre el arte contemporâneo. In: Ramona – revista de
artes visuales. nº 41. Buenos Aires, Junho de 2004.
INTERVALO
O local do jurídico como um não-lugar. Cinzenta zona de indistinção
da auto-referencialidade que dá lugar ao nivelamento.
Fatos e normas e disciplinas alquebradas, mescla de fragmentos.
Seu tempo oficial como rio caudaloso trazendo o que restou das
vilas, rio sem margens, transbordado, sem lugares próprios.
A estatalidade à deriva: representará ponto de apoio na tormenta?
O vazio proliferante de formas e rituais e o niilismo das autopistas.
No meio do torvelinho, sujeitos dispersos.
2. OCASO DO POLÍTICO
1. É preciso se desvencilhar das metáforas privatistas, como
as da tradição contratualista, para pensar a política que vem. Tais conceitos
nada mais exprimem que a redução do espaço político à dicotomia binária
de uma esfera estatal tendo como contraponto uma dimensão estrita (e
doméstica) de liberdade negativa (moderna, de não-intervenção) que afoga
outras versões (seja da política, seja da própria liberdade) encontráveis na
história. Este imaginário político está em consonância (apesar de não ser
possível incluí-lo como único acusado) com a burocratização e a supressão
dos espaços públicos no mundo contemporâneo. A questão, ainda em
aberto, é a formulação de teorias, seguindo uma iluminação arendtiana, que
partam não do labor nem do trabalho, mas da ação como possibilidade de
começar algo novo no horizonte político humano - portanto assumindo a
dimensão de uma irremediável contingência - e de uma concepção de poder
que não se limite ao simplismo juridicista como sendo aquele conceito
representativo do “meio de monopólio da violência supostamente legítima
em determinado território”.
A
celebrantes
metáfora
atomizados
do
–
contrato,
metáfora
fantasmagóricos
privatista
homúnculos
pressupondo
solipsistas
que
isoladamente lançam suas vontades com vistas à formação de um pacto comum mereceu grande prestígio na consolidação de um imaginário político moderno
ocidental, aspirando, em certos matizes, a estabelecer-se com domínio e como
fundamento na teoria política moderna.
Mesmo com a existência de diferenças entre as mais heteróclitas
concepções componentes do
que
se convencionou
chamar a
tradição
contratualista, constatam-se nada mais que diversas tonalidades, diferentes
conteúdos do que se estipula como móvel central do contrato, porém os
fundamentos latentes são os mesmos e, podemos afirmar - a partir de um local de
análise específico - contribuíram para o estabelecimento concreto de estruturas
institucionais jurídico-políticas que, com seu esfacelamento contemporâneo,
exigem o revisitar de suas construções teóricas, ou a busca de outras versões
outrora esquecidas na vigência dominante daquelas.
Implícita a todas as concepções contratualistas visualiza-se o
conceito moderno de liberdade, ou seja, a liberdade entendida como não
intervenção, espaço de não ingerência do Estado nos assuntos privados do
indivíduo, ou mesmo garantia de abstenção mínima visando tutelar a integridade
dos sujeitos submetidos a uma determinada localização territorial. Nesse ponto,
inúmeras divisões se sobressaem na caracterização das facetas desta liberdade
moderna: de locomoção, de pensamento, de propriedade, etc. Porém não deixam
de evidenciar sua raiz comum.153
153
―Alguns filósofos dotados de visão otimista a respeito da natureza humana e da
crença na possibilidade de harmonização dos interesses humanos, tais como Locke ou Adam
Smith e, sob certos aspectos, Mill, acreditavam que o progresso e a harmonia social podiam
existir lado a lado com a manutenção de ampla área para a vida privada além de cujos limites
nem o Estado nem qualquer autoridade deveriam ter permissão de passar. Hobbes e aqueles
que concordavam com ele, sobretudo pensadores de tendência conservadora ou reacionária,
argumentavam que, se os homens quisessem evitar destruir-se uns aos outros e evitar
transformar a vida social em uma selva ou deserto, seria necessário que se instituíssem
maiores salvaguardas para mantê-los em seus lugares. Desejavam, assim, ampliar a área de
controle centralizado e reduzir a do indivíduo. Mas ambas as partes estão de acordo quanto
ao fato de que uma parcela da existência humana precisa continuar sendo independente da
esfera do controle social. Invadir essa reserva, por menor que seja, constituiria despotismo.
(...) temos de preservar uma área mínima de liberdade pessoal se não quisermos ‗degradar ou
negar nossa natureza‘. Não podemos permanecer livres em termos absolutos e precisamos
deixar de lado uma parcela da nossa liberdade para preservar o restante. Mas a submissão
total constitui autoderrota. Qual, então, deverá ser esse mínimo?. Deverá ser aquele que um
homem não pode abandonar, sem causar prejuízos à essência de sua natureza humana. O
que constitui essa essência? Quais são os padrões que ela origina? São questões que
sempre representaram – e provavelmente sempre representarão – ilimitado campo de
discussões. Mas, qualquer que seja o princípio segundo o qual deva ser traçada a área de
não-interferência, seja ele o do direito objetivo natural ou o dos direitos subjetivos naturais, da
utilidade ou dos termos de um imperativo categórico, da sacralidade do contrato social ou de
qualquer outro conceito com o qual os homens tem procurado esclarecer e justificar suas
convicções, a liberdade nesse sentido significa liberdade de: nenhuma interferência além da
fronteira móvel, mas sempre identificável. ‗A única liberdade que merece tal nome é a de
perseguir nosso próprio bem a nosso próprio modo‘ - disse o mis celebrado de seus
defensores. Se é isso o que ocorre, poder-se-á justificar a compulsão? Mill não tinha dúvidas
que sim. Desde que a justiça exige que todos os indivíduos tenham direito a um mínimo de
liberdade, todos os indivíduos necessariamente teriam de sofrer restrições, até por meio da
Em outras variantes, é possível visualizar aquilo que Foucault
denunciava como sendo o ―economicismo‖ na teoria do poder, encontrável seja
na concepção jurídica e liberal do poder político (presente, por exemplo, nos
filósofos do séc. XVIII) ou mesmo na concepção que, em traços gerais, tornou-se
corrente para caracterizar o marxismo (ou diríamos, seus estratos mais
ortodoxos):
E, com isso, quero dizer o seguinte: no caso da teoria jurídica clássica do
poder, o poder é considerado um direito do qual se seria possuidor como
de um bem, e que se poderia, em conseqüência, transferir ou alienar, de
uma forma total ou parcial, mediante um ato jurídico ou um ato fundador
de direito – pouco importa, por ora, que seria da ordem da cessão ou do
contrato. O poder é aquele, concreto, que todo indivíduo detém e que
viria a ceder, total ou parcialmente, para constituir um poder, uma
soberania política. A constituição do poder político se faz, portanto, nessa
série, nesse conjunto teórico a que me refiro, com base no modelo de
uma operação jurídica que seria da ordem da troca contratual. Analogia,
por conseguinte, manifesta, e que corre ao longo de todas estas teorias,
entre o poder e os bens, o poder e a riqueza.154
Ou seja, a partir de tais considerações provisórias, pode-se afirmar
que o aparelho do Estado (no sentido deleuziano/guatarriano do termo) institui-se
e, a partir dele, isto é, a partir da dicotomia nuclear estabelecida com a sua
proeminência (direito privado/direito público; governantes/governados, liberdade
dos súditos/atuação estatal, etc.) é que se formam as narrativas de
fundamentação do nascimento deste mesmo Estado.
Pode-se dizer que a própria concepção moderna de liberdade é
ínsita a este binarismo constitutivo (a metafísica encarna-se e narra um antes de
constituição desde sua ótica; o que fica explícito nas construções de um Estado de
Natureza correspondente a uma Sociedade Civil; ou de uma Liberdade natural
indômita correspondente a uma Liberdade Civil). Do interior do Estado – das
dicotomias biunívocas inerentes à proeminência da estatalidade política – retirar-
força, se necessário fosse, para que não despojassem ninguém da liberdade. O fato é que a
função integral do direito era evitar exatamente tais conflitos: o Estado ficava reduzido ao que
Lassale desdenhosamente descrevia como as funções como as funções de um vigia noturno
ou de um guarda de trânsito‖. BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília :
Ed. UnB, 1981. pp. 139-140.
154
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France (19751976). (Tradução Maria Ermantina Galvão). São Paulo : Martins Fontes, 1999. pp. 19-20.
se-á o transplante que será, tal qual enxerto de árvores, posto como ponto de
nascimento de toda sua estrutura (prestidigitação teórica que, a despeito de sua
manifesta inconsistência, manteve e mantém posição privilegiada, principalmente
entre os juristas, como explicação das origens do poder político ocidental).
Seguimos Clastres quando ele mostra que o Estado não se explica por
um desenvolvimento das forças produtivas, nem por uma diferenciação
das forças políticas. É ele, ao contrário, que torna possível o
empreendimento das grandes obras, a constituição dos excedentes e a
organização das funções públicas correspondentes. É ele que torna
possível a distinção entre governantes e governados. Não há como
explicar o Estado por aquilo que o supõe, mesmo recorrendo à
dialética.155
Hannah Arendt, no belo ensaio intitulado ―O que é a Liberdade?‖
trará reflexões importantes para este debate, seguindo uma rota que poderíamos
considerar oposta frente aos convencionalismos disseminados no pensamento
político hegemônico na modernidade.
Para a pensadora alemã, a liberdade aparece justamente no
campo da política e dos assuntos humanos. ―A raison d‟être da política é a
liberdade, e seu domínio de experiência é a ação.‖156
Alerta Arendt que, historicamente, a liberdade como grande
questão metafísica (onde tradicionalmente se incluem, v.g., o ser, o tempo, o
nada, a eternidade...) foi, de forma tardia, um dos últimos temas para onde se
direcionou a reflexão filosófica, ou seja, apenas com a dissolução dos significados
políticos greco-romanos (na Antiguidade tardia),157 a partir de onde se converge
para tentativas filosóficas de formulação de uma liberdade dissociada do político,
onde fosse possível pensar ser livre mesmo na condição de escravo. A liberdade,
vivenciada como experiência concreta para os Gregos, é deslocada para os
planos da cidadela interior, da vontade (para boa parte da tradição filosófica), do
livre-arbítrio no cristianismo, do pensamento no diálogo de mim-comigo-mesmo,
ou mesmo dos interesses privados no horizonte do liberalismo.
155
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Vol. 5. (Tradução Peter Pál Pelbart
e Janice Caiafa). São Paulo : Ed. 34. 1997. p. 21.
156
ARENDT, Hannah. O que é a liberdade? In: Entre o passado e o futuro.
(Tradução Mauro W. Barbosa de Almeida). São Paulo : Perspectiva, 1968. p. 192.
157
ARENDT, Hannah. O que é a liberdade? Op. cit. p. 191.
Nesse sentido, a liberdade negativa postulada com tamanha
veemência pelos liberais coloca-se, para Hannah Arendt, em um domínio
antinômico ao próprio campo de aparecimento da liberdade. Liberdade, conforme
visto no conceito de ação, é um atributo que se exerce em relação aos outros
homens, num espaço de igualdade (conceito de igualdade arendtiano localizado
numa dimensão política, não social, como é corrente no presente), sendo o
espaço privado, dimensão privilegiada no discurso na modernidade como o locus
da liberdade negativa, uma realidade pré-política (dentro da própria tradição
grega).
No entanto, na rota de contribuição para o obscurecimento de uma
liberdade ligada à política e à ação, temos, além das concepções tardias de
liberdade nos prelúdios da modernidade, a novidade sombria dos totalitarismos na
contemporaneidade.
O ascenso do totalitarismo, sua pretensão de ter subordinado todas as
esferas da vida às exigências da política, e seu conseqüente descaso
pelos direitos civis, entre os quais, acima de tudo, os direitos à intimidade
e à isenção à política, fazem-nos não apenas duvidar da coincidência da
política com a liberdade como de sua própria compatibilidade.158
O pertencimento ao espaço público grego pressupunha sujeitos
que saíssem do estado sujeito às necessidades para a participação na condução
dos rumos da polis. A oikia e o âmbito público político são termos em nenhum
momento coincidentes e impossibilitada a própria sintonia entre ambos (o porquê
da contradição em termos, se analisada de uma perspectiva grega antiga, do
conceito Economia Política).
Para Arendt, o fato de tentar situar a liberdade no campo das
aparências (nos remetemos à concepção arendtiana da supremacia das
aparências no campo político),159 na esfera extra-volitiva do mundo exterior, não
158
ARENDT, Hannah. O que é a liberdade?. Op. cit. p.195
―Neste mundo em que chegamos e aparecemos vindos de lugar nenhum, e do qual
desaparecemos em lugar nenhum, Ser e Aparecer coincidem. A matéria morta, natural e
artificial, mutável e imutável, depende em seu ser, isto é, em sua qualidade de aparecer, da
presença de criaturas vivas. Nada e ninguém existe neste mundo cujo próprio ser não
pressuponha um espectador. Em outras palavras, nada do que é, à medida que aparece,
existe no singular; tudo o que é, é próprio para ser percebido por alguém. Não o Homem, mas
159
implica aceitar a concepção reducionista da liberdade como mera liberação, seja
das necessidades, seja dos impedimentos externos.160
Arendt entende tais condições como etapas pré-políticas. A
liberdade, em seu sentido autêntico, jamais se apresenta num caráter totalmente
liberto de alguma limitação, não é plena porquanto o espaço público em que se
manifesta reveste-se do caráter de pluralidade. Diferentemente do que ocorreria
se estivesse inscrita no plano da vontade, a liberdade propriamente dita refere-se
ao eu posso e não ao eu quero.
Por outro lado, no que diz respeito à concepção de liberdade
presente no imaginário liberal, pode-se afirmar que as concepções liberais
tradicionais apologéticas à depuração de caracteres políticos da liberdade (quanto
mais política, menos liberdade; quanto mais liberdade, menos política)
os homens é que habitam este planeta. A pluralidade é a lei da Terra.‖ ARENDT, Hannah. A
Vida do Espírito. Op. cit. p. 17.
160
Neste sentido é o conceito hobbesiano de liberdade, debatido no capítulo XXI de
seu ―Leviatã‖, representativo, v.g., no presente fragmento: ―Liberdade significa, em sentido
próprio, a ausência de oposição (entendendo por oposição os impedimentos externos do
movimento); e não se aplica menos às criaturas irracionais e inanimadas do que às racionais.
Porque de tudo o que estiver amarrado ou envolvido de modo a não poder mover-se senão
dentro de um certo espaço, sendo esse espaço determinado pela oposição de algum corpo
externo, dizemos que não tem liberdade de ir mais além. E o mesmo se passa com todas as
criaturas vivas, quando se encontram presas ou limitadas por paredes ou cadeias; e também
das águas, quando são contidas por diques ou canais, e se assim não fosse se espalhariam
por um espaço maior, costumamos dizer que não têm a liberdade de se mover da maneira
que fariam se não fossem esses impedimentos externos. Mas quando o que impede o
movimento faz parte da constituição da própria coisa não costumamos dizer que ela não tem
liberdade, mas que lhe falta o poder de se mover; como quando uma pedra está parada, ou
um homem se encontra amarrado ao leito pela doença. Conformemente a este significado
próprio e geralmente aceite da palavra, um homem livre é aquele que, naquelas coisas que
graças a sua força e engenho é capaz de fazer, não é impedido de fazer o que tem vontade
de fazer. Mas sempre que as palavras livre e liberdade são aplicadas a qualquer coisa que
não é um corpo, há um abuso de linguagem; porque o que não se encontra sujeito ao
movimento não se encontra sujeito a impedimentos. Portanto, quando se diz, por exemplo,
que o caminho está livre, não se está indicando qualquer liberdade do caminho, e sim
daqueles que por ele caminham sem parar. E quando dizemos que uma doação é livre, não se
está indicando qualquer liberdade da doação, e sim do doador, que não é obrigado a fazê-la
por qualquer lei ou pacto. Assim, quando falamos livremente, não se trata da liberdade da voz,
ou da pronúncia, e sim do homem ao qual nenhuma lei obrigou a falar de maneira diferente da
que usou. Por último, do uso da expressão livre arbítrio não é possível inferir qualquer
liberdade da vontade, do desejo ou da inclinação, mas apenas a liberdade do homem; a qual
consiste no fato de ele não deparar com entraves ao fazer aquilo que tem vontade, desejo ou
inclinação de fazer‖. HOBBES, Thomas. Leviatã. (Tradução de João Paulo Monteiro e Maria
Beatriz Nizza da Silva). São Paulo : Martin Claret, 2002. p. 73.
contribuíram para a configuração moderna da política como o espaço para a
garantia da segurança, dos imperativos da manutenção da vida e da
sobrevivência, e não a condição de possibilidade da própria liberdade.161
Fatos que convergiram inexoravelmente para a transformação do
espaço público em uma vultosa oikia, com a elevação das atividades privadas ao
âmbito
público
e
a
respectiva
conseqüência
das
relações
econômicas
açambarcarem o objeto de debate nos assuntos públicos e no interesse coletivo.
O que Arendt propõe é uma política vinculada não à ação
entendida como fabricação (onde o fim direto é o produto final saído do processo),
onde o agir é menosprezado frente a este fim – útil - ou uma ação vinculada ao
processo vital de sobrevivência – necessária -
porém uma ação ligada ao
virtuosismo próprio da ação (que não objetiva fins que a ultrapassam, sejam os
voltados à necessidade no labor, sejam aqueles decorrentes da utilidade do
trabalho), sujeita à imprevisibilidade inerente ao agir humano e guiada por
princípios que permanecem ao ato.
A ação, na medida em que é livre, não se encontra nem sob a direção do
intelecto, nem debaixo dos ditames da vontade – embora necessite de
161
Michel Foucault, em resumo do seminário dado no Collège de France entre 1978 e
1978, sob o título de ―Nascimento da biopolítica‖, apresenta as seguintes reflexões sobre o
liberalismo, que poderíamos colocar em certa convergência com a abordagem arendtiana:
―(...) Daí o fato de que a crítica liberal não se separa, de jeito algum, de uma nova
problemática nova na época, a da ‗sociedade‘: é em nome dela que se vai procurar saber por
que é necessário que haja um governo, mas em que se pode privar-se dele, e sobre o que é
inútil e prejudicial que ele intervenha. A racionalização da prática governamental, em termos
de razão de Estado, implicava sua maximização em condições otimizadas, na medida em que
a existência de Estado supõe imediatamente o exercício de governo. A reflexão liberal não
parte da existência do Estado, encontrando no governo essa finalidade que ele seria para si
mesmo, mas da sociedade que vem a estar numa relação complexa de exterioridade e de
interioridade em relação ao Estado. É ela - ao mesmo tempo a título de condição e de fim
último – que permite não mais colocar a questão: como governar o mais possível e pelo menor
custo possível?, mas esta: por que é preciso governar? Ou seja: o que torna necessário que
haja um governo e que fim ele deve ter por meta em relação à sociedade, para justificar sua
existência? É a idéia de sociedade que permite desenvolver uma tecnologia de governo a
partir do princípio que ele já está em si mesmo ‗em demasia‘, em excesso – ou, pelo menos,
que ele vem acrescentar como um suplemento ao qaul se pode e se deve sempre perguntar
se é necessário e para que é útil‖. FOUCAULT, Michel. Resumo dos cursos do Collège de
France ( 1970-1982). (Tradução Andréa Daher). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997. p. 91.
Sobre a questão da ascensão moderna do social, em Arendt, cf., ARENDT, Hannah. A
Condição Humana. Op. cit., p. 47. e ARENDT, Hannah. On revolution. New York, 1963, no
seu segundo capítulo.
ambos para a execução de um objetivo qualquer – ela brota de algo
inteiramente diverso que, seguindo a famosa análise das formas de
governo por Montesquieu, chamarei de um princípio. Princípios não
operam no interior do eu como fazem os motivos – a ‗minha própria
perversidade‘, o meu ‗justo equilíbrio‘ -, mas como que inspiram do
exterior, e são demasiado gerais para prescreverem metas particulares,
embora todo desígnio possa ser julgado à luz do seu princípio uma vez
começado o ato. Pois,ao contrário do juízo do intelecto que precede a
ação e do império da vontade que a inicia, o princípio inspirador torna-se
plenamente manifesto somente nó próprio ato realizador; e contudo, ao
passo que os méritos do juízo perdem sua validade e o vigor da vontade
imperante se exaure, no transcurso do ato que executam em
colaboração, o princípio que o inspirou nada perde em vigor e em
validade através da execução.162
Virtuosismo que liga a ação política, por metáfora, às artes de
realização (como o teatro, a dança), à diferença das artes de fabricação (como a
pintura), onde o centro está no próprio desempenho e não em um produto final.
Liga-se a algo muito próximo àquilo que Maquiavel trata como o
campo da virtú, o virtuosismo com que o homem responde às deixas inesperadas
da fortuna, sendo a coragem uma das virtudes cardeais da política, em Arendt, no
sentido de exigir
um desprendimento, o lançar-se para fora dos interesses
voltados à vida (da oikia), numa esfera de amor mundi que tem como centro o
próprio mundo dos assunto dos humanos.
É que este nosso mundo, que existiu antes de nós e está destinado a
sobreviver aos que nele vivem, simplesmente não pode se dar ao luxo de
conferir primariamente sua atenção às vidas individuais e aos interesses
a ela associados; o âmbito político como tal contrasta na formam mais
aguda possível como nosso domínio privado, em que, na proteção da
família e do lar, tudo serve e deve servir para a segurança do processo
vital.163
O que se busca ressaltar nas características da ação é sua
possibilidade de quebrar automatismos, trazer o inusitado e o inesperado para
situações de congelamento, processos tornados mecanismos autonomizados
A verdade é que o automatismo é inerente a todos os processos, não
importa qual possa ser sua origem: é por isso que nenhum ato, nenhum
evento isolado, podem, jamais, de uma vez por todas, libertar ou salvar
um homem, uma humanidade. É da natureza dos processos automáticos
a que o homem está sujeito, porém no interior dos quais e contra os
162
163
ARENDT, Hannah. Op. Cit. p .198.
ARENDT, Hannah. Op. cit. p. 203
quais se pode firmar através da ação, só poderem significar ruína para a
vida humana. Uma vez que processos históricos e artificiais se tenham
tornado automáticos, não são menos destruidores que os processos
vitais naturais que dirigem nosso organismo e que em seus próprios
parâmetros, isto é, biologicamente, conduzem do ser pra o não-ser, do
nascimento para a morte.164
A ação, considerada não do ângulo do sujeito que age, mas dos
processos automatizados em cujas referências ela surge e cujo automatismo
rompe, é considerada um milagre, algo que foge à previsibilidade do mecanismo
(do retorno do mesmo), trazendo, em si, a marca da espontaneidade. É inerente à
natalidade um emergir factualmente como uma ―improbabilidade absoluta‖ (para o
bem ou para o mal), sendo a leveza deste improvável a ―verdadeira trama de tudo
o que denominamos de real‖, no que Arendt assevera que ―se é verdade que a
ação e começo são essencialmente idênticos, segue-se que uma capacidade de
realizar milagres deve ser incluída também na gama das faculdades humanas.‖165
Toda nossa existência se assenta, afinal, em uma cadeia de milagre,
para usar desta expressão - o aparecimento da terra, o desenvolvimento
da vida orgânica sobre ela, a evolução do gênero humano a partir das
espécies animais. Pois, do ponto de vista dos processos do universo e
natureza, e de suas probabilidades estatisticamente esmagadoras, a
formação de vida orgânica a partir de processos inorgânicos, e
finalmente, o aparecimento da terra a partir de processos cósmicos e a
evolução do homem a partir dos processos da vida orgânica constituem
todos ‗improbabilidades infinitas‘, são milagres na linguagem do dia-a-dia.
É em virtude desse elemento miraculoso presente em toda realidade que
os acontecimentos por mais que sejam antecipados com temor ou
esperança, nos causam comoção e surpresa uma vez se tenham
consumado. O próprio impacto de um acontecimento nunca é
inteiramente explicável, sua fatualidade transcende em princípio qualquer
explicação. A experiência que nos diz que os acontecimentos são
milagres não é arbitrária nem artificial; ao contrário, ela é naturalíssima. E
quase, na verdade, um trivialidade na vida ordinária. Sem essa
experiência, o papel que a religião atribui milagres sobrenaturais seria
quase incompreensível.166
Sobre a relação entre política e liberdade e sua conexão direta com
a expectativa de milagres que essa correlação traz em sua constituição, lê-se no
texto arendtiano, quando instado a perquirir pelos sentidos da política, que, sendo
a liberdade o sentido da política,
164
Ibidem. p.217.
ARENDT, Hannah. O que é a liberdade?. Op. cit. p. 218.
166
Ibidem. p. 219.
165
(...) então isso significa que nós, nesse espaço e nenhum outro, temos o
direito de fato de ter a expectativa de milagres. Não porque acreditemos
(religiosamente) em milagres, mas porque os homens, enquanto
puderem agir, são aptos a realizarem o improvável e o imprevisível, e
realizam-no continuamente, quer saibam disso quer não. A questão de se
a política ainda tem da algum modo um sentido remete-nos
necessariamente de volta a questão do sentido da política; e isso ocorre
exatamente quando ela termina em uma crença nos milagres – e em que
outro lugar poderia terminar? 167
E
em
um
dos
trechos
que
poderíamos
considerar
em
correspondência direta com a imagem, de seu amigo Walter Benjamin, da
revolução como a interrupção da trajetória do trem da história rumo ao abismo da
catástrofe, ou seja, a ação também como um puxar os ―freios de emergência‖, em
convergência com o conceito contemporâneo de inoperância, temos um dos mais
belos fragmentos dos textos arendtianos, em seu arremate ao ensaio ―O que é a
liberdade‖, onde é lançada a seguinte iluminação:
A história, em contraposição com a natureza, é repleta de eventos; aqui,
o milagre do acidente e da infinita improbabilidade ocorre com tanta
freqüência que parece até estranho falar em milagres. Mas o motivo
desta freqüência está simplesmente no fato de que os processos
históricos são criados e constantemente interrompidos pela iniciativa
humana, pelo initium, que é o homem enquanto ser que age. Não é pois,
nem um pouco supersticioso, e até mesmo um aviso de realismo,
procurar pelo imprevisível e pelo impredizível, estar preparado para
quando vierem e esperar ‗milagres‘ na dimensão da política. E, como
quanto mais força penderem os pratos da balança em favor do desastre,
mais miraculoso parecerá o ato que resulta da liberdade, pois é o
desastre e não a salvação que acontece sempre automaticamente e que
parece sempre portando irresistível. Objetivamente, isto é, vendo do lado
de fora e sem levar em conta que o homem é um início e um iniciador,
as possibilidades de que o amanhã seja como o hoje são sempre
esmagadoras. Não exatamente tão esmagadoras, é verdade, mas quase
tanto como as possibilidades de que não surgisse nunca uma terra dentre
as ocorrências cósmicas , de que nenhuma vida se desenvolvesse a
partir de processos inorgânicos, e de que não emergisse homem algum
da evolução da vida animal. A diferença decisiva entre as ‗infinitas
probabilidades sobre as quais se baseia a realidade de nossa vida
terrena e o caráter miraculoso inerente aos eventos que estabelecem a
realidade histórica está em que, na dimensão humana, conhecemos o
autor dos milagres. São os homens que o realizam – homens que, por
167
ARENDT, Hannah. A dignidade da política. Ensaios e conferências. (Tradução
André Duarte). Rio de Janeiro : Relume Dumará, p. 122.
terem recebido o dúplice dom da liberdade e da ação, podem estabelecer
uma realidade que lhes pertence de direito.168
Deslocar, teoricamente, a análise da liberdade moderna entendida
enquanto vinculada a um suporte contratual, com a liberdade vista no terreno da
ação e da política. Desocultar a kairologia implícita e capturada como necessidade
no dispositivo dicotômico do contrato político (e seus pólos estado X sociedade
civil, política X liberdade privada), e livrar-se dos automatismos que tomam conta
da política institucional do presente, parecem ser as rotas que se colocam nas
tentativas de pensar o ocaso do político no mundo contemporâneo, onde se
observa o fenecimento de um modelo que sobrevive enquanto dissimulação
mística, maquinaria acéfala seguindo (vertiginosamente superior a uma simples
locomotiva oitocentista) rumo ao abismo.
Giorgio Agamben, na conclusão de seu Homo Sacer I, explicita,
como primeira das três teses conclusivas da obra, a proposição de que ―a relação
política originária é o bando (o estado de exceção como zona de indistinção entre
externo e interno, exclusão e inclusão)‖. Esta tese, para o filósofo, põe em questão
as teorias da origem contratual do poder estatal e toda possibilidade de
estabelecer um fundamento de pertencimento para as comunidades políticas.169
Deixaremos para enfrentar, mesmo que epidermicamente, o estado de exceção
em outro local, porém, na convergência da provocação agambeniana é que se
estabelece a premência de ultrapassar tanto a origem contratual do poder político
ocidental quanto a ficção de um pertencimento (seja de origem teológica,
geográfica ou étnica). Implica, portanto, de certa forma, também desativar a
maquinaria nacionalista.
É preciso, em nosso tempo, denunciar o vazio constitutivo que
toma conta da política tradicional, o grau zero de significado que mantém sua
operacionalidade concreta apenas na ficção de referências (o povo, os direitos
humanos, o interesse público, a democracia, ad nausean).
168
169
ARENDT, Hannah. O que é a liberdade? Op. cit. p. 220.
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 188.
É nesse matiz que, no nosso entender, devem ser lidas as
recomendações foucaultianas de se abandonar as matrizes jurídicas de soberania
para pensar o poder no ocidente.170 Tais matrizes revelam nada mais que o obstar
de entulhos que o pensamento é fadado a escavar e abrir clareiras para que não
fique preso à obsessiva repetição do mesmo, o mesmo automático de processos
que, em sua vigência, fazem-nos desacreditar nos milagres, trazendo a
resignação de seu prosaico e cotidiano inexistir.
Por outro lado, evidencia-se também preciso abandonar a
concepção de poder como sendo uma relação de mando-obediência (como
correlata à relação de poder surgida do cano de um revólver). Algo inerente à
construção weberiana do poder como sendo ―o domínio do homem pelo homem
baseado nos meios da violência legítima, quer dizer, supostamente legítima‖ em
um determinado território.
Arendt, ao distinguir - em seu opúsculo ―Sobre a violência‖ - os
conceitos de poder, violência, vigor e autoridade, vai refutar toda a tradição
baseada na concepção do poder como o meio do domínio, que se conecta
diretamente com a tradição de contratantes atomizados como pólo distinto de um
poder soberano.
Poder, para Arendt, possui uma dimensão intersubjetiva e
comunicativa (capacidade para agir em conjunto), diretamente relacionado com o
conceito de ação e à própria idéia de liberdade, entendendo a violência como um
fenômeno instrumental (vinculado à perspectiva do homo faber e sua razão
utilitária, sendo distante do campo da ação, o âmbito político) que nada pode
legitimar. ―A forma extrema de poder é o Todos contra Um, a forma extrema da
170
―Para que seja a análise concreta das relações de poder, é preciso abandonar o
modelo jurídico da soberania. Esse, de fato, pressupõe o indivíduo como sujeito de direitos
naturais ou de poderes primitivos; tem como objetivo das gênese ideal do Estado; enfim, faz
da lei a manifestação fundamental do poder. Seria preciso estudar o poder não a partir dos
termos primitivos da relação, mas a partir da própria relação, uma vez que é ela que determina
os elementos dos quais trata: mais do que perguntar a sujeitos ideais o que puderam ceder
deles mesmos ou de seus poderes para se deixar sujeitar, é preciso procurar saber como as
relações de sujeição podem fabricar sujeitos‖. FOUCAULT, Michel. ―É preciso defender a
sociedade.‖ In: Resumos dos Cursos do Collège de France. Op. cit. p. 71.
violência é o Um contra Todos. E essa única nunca é possível sem
instrumentos.‖171
A violência tem como expressão maior de sua concreção o caráter
instrumental (necessitando, muitas vezes de implementos). Apesar de apresentar
similitudes com a força, evidencia-se em uma atividade especificamente humana e
se funda na lógica utilitarista de meios e fins. Um elemento de violência,
consoante asseverado no conceito de trabalho já apresentado, ocasiona-se
inelutavelmente inerente às atividades do fazer, do fabricar, atividades de
confronto direto do homem com a natureza, em contraste com a ação e com o
discurso, os quais têm como destinatários imediatos outros seres humanos.
De maneira que, como já asseveramos, a violência está
relacionada com a dimensão do homo faber, e a própria concepção do poder (e do
Estado) como invólucro-repositório da violência utilizada para outros fins,
fundamenta-se nesta perspectiva.
O poder se apresenta como um conceito basilar para realizar uma
leitura da idéia de legitimidade implícita no texto arendtiano. Um homem só ou um
grupo diminuto de pessoas, sem outros para apoiá-los, nunca terão poder
suficiente para usar da violência com sucesso, como nunca existiu, na história da
humanidade, por um período de tempo considerável, um governo exclusivamente
baseado nos meios de violência.
A violência, por seu caráter instrumental, como um meio, sempre
depende da justificação para o fim a que almeja (diferentemente do poder, que,
em Arendt, necessita de legitimação) e, de certo modo, ―aquilo que necessita de
justificação por outra coisa não pode ser a essência de nada.‖172
Pode-se referir, ademais, que o referencial semântico da categoria
de poder que prevaleceu na modernidade está também atrelado à localização da
liberdade na dimensão do livre-arbítrio e da vontade (e da soberania, v.g., como
171
ARENDT, Hannah. Sobre a violência. (Tradução André Duarte). Rio de Janeiro :
Relume Dumará, p. 199.
172
ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Op. cit. p. 22.
vontade de poder) no plano da própria tradição de pensamento político ocidental,
no que demonstra Arendt ao se contrapor à noção rousseauniana do poder
soberano como vontade indivisível:
Essa identificação de liberdade com soberania é talvez a conseqüência
política mais perniciosa e perigosa da equação filosófica de liberdade
com livre-arbítrio. Pois ela conduz à negação da liberdade humana –
quando se percebe que os homens, façam o que fizerem, jamais serão
soberanos -, ou à compreensão de que a liberdade de um só homem, de
um grupo ou de um organismo político só pode ser adquirida ao preço da
liberdade, isto é, da soberania, de todos os demais. Dentro do quadro
conceitual da Filosofia tradicional, é de fato muito difícil entender como
pode coexistir liberdade e não-soberania, ou para expressá-lo de outro
modo, como a liberdade poderia ter sido dada a homens em estado de
não-soberania. Na verdade, é tão pouco realista negar a liberdade pelo
fato da não-soberania humana como é perigoso crer que somente se
pode ser livre – como indivíduo o um grupo – sendo soberano. A famosa
soberania dos organismos políticos sempre foi uma ilusão, a qual, além
do mais, só pode ser mantida pelos instrumentos de violência, isto é, com
meios essencialmente não políticos. Sob condições humanas, que são
determinadas pelo fato de que não é o homem, mas são os homens que
vivem sobre a terra, liberdade e soberania conservam tão pouca
identidade que nem mesmo podem existir simultaneamente. Onde os
homens aspiram a ser soberanos, como indivíduos ou como grupos
organizados, devem se submeter à opressão da vontade, seja esta a
vontade individual com a qual obrigo a mim mesmo, seja a ‗vontade geral‘
de um grupo organizado. Se os homens desejam ser livres, é
precisamente à soberania que devem renunciar.173
Não entraremos na problemática do poder na teoria política
arendtiana, porém é preciso lembrar sua recomendação de que a díade mandoobediência (e todo o vocabulário a ela correlato) deve ser deixada de lado a fim de
uma melhor compreensão do horizonte significativo do poder político.174
Argumento que se aproxima dos debates realizados do primeiro capítulo, na
medida em que a concepção tradicional de poder e de política (calcada nos
parâmetros do homo faber) funda uma concepção específica de ordenamento
jurídico (o ordenamento como meio neutro e abstrato de coação visando a fins
específicos), que paulatinamente, entretanto, foi atravessado pelas dimensões de
um poder entendido no sentido fluidamente pastoral175 e extraviado de dispositivos
173
ARENDT, Hannah. O que é a liberdade? Op. cit. p. 212-214.
Cf.: ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Op. cit. Capítulo 2.
175
De certo modo, assistimos no presente uma recuperação (em um sentido
espetacularmente majorado e descentrado) do conceito de poder pastoral que Foucault dizia
174
pós-nacionais e dúcteis de regulação jurídico-política (a partir de um núcleo
estruturado nos critérios do animal laborans). Novamente uma exigência à teoria
do presente, no sentido emergencial de confrontar criticamente estas novas
configurações.
2. Procurar captar a política contemporânea é inevitavelmente
pensar sua redução à biopolítica (também pensar a política sendo absorvida
paulatinamente ao conceito de polícia), exigindo pensar a inscrição da vida
nua, matável e insacrificável, nos dispositivos de poder ocidentais.
Uma das conclusões tiradas por Arendt de sua obra ―A Condição
Humana‖ é a de que a vida, no sentido da zoé entendida pelos gregos (confinada
no privatismo do oikos), e todas as implicações trazidas pelos seus critérios, passa
a ser disseminada para todas as esferas da condição humana no mundo
moderno,176 adquirindo centralidade, v.g., nas dimensões históricas, jurídicas e
políticas.
Esta é uma das facetas da biopolítica que chega ao presente por
intermédio de um hipertrofiado dispositivo espetacular que possui como núcleo
nada mais que o processo vital de toda a sociedade (conceito este que passa a
ascender na denominação de todo e qualquer coletivo).
ter se desenvolvido no Oriente e, principalmente, na sociedade hebraica, porém tendo entrado
em crise nos séc. XV e XVI, em processo que acompanhou ―o fim da feudalidade, o
nascimento de novas formas de relações econômicas e sociais e as novas estruturações
políticas.‖ Sobre os traços gerais deste poder, ressalta o filósofo francês: ―(...) o poder do
pastor se exerce menos sobre o território fixo do que sobre uma multidão em deslocamento
em direção a um alvo; tem o papel de dar ao rebanho sua subsistência, de cuidar
cotidianamente dele e de assegurar sua salvação (...). É esse tipo de poder que foi introduzido
no Ocidente pelo cristianismo e que tomou uma forma institucional no pastorado eclesiástico:
o governo das almas se constitui na Igreja cristã como uma atividade central e douta,
indispensável à salvação de todos e de cada um.‖ FOUCAULT, Michel. Segurança, território,
população. In: Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982). Op. cit. p. 82.
176
Evidencia-se preciso alertar para o fato de que Arendt distingue os termos era
moderna de mundo moderno, conceitos não coincidentes muitas vezes utilizados
indiscriminadamente como equivalentes. Para esta pensadora, cientificamente a era moderna
começou no séc. XVII e terminou no limiar do séc. XX; politicamente o mundo moderno surgiu
com as primeiras explosões atômicas e se mantém até os dias de hoje. Cf. ARENDT, Hannah.
A Condição Humana. Op. Cit. p. 14.
Multidões isoladas cujo único vínculo e mediação está no processo
de absorção de suas necessidades metabólicas - e outros aspectos inerentes à
própria vida-zoé - por instâncias que, assumindo tais exigências como imperativo,
devolvem no entorno (circularmente) elementos que desencadeiam a continuidade
acelerada destes mesmos processos: a captura-captação da vida biológica
humana na ultra-reprodutibilidade do fetiche tecno-video-digital da imagem; a
sacralização cotidiana da vida como tal (como exemplifica Zizek, na ênfase, da
contemporânea biopolítica da sobrevivência, no argumento de que hoje não há
nada por que valha a pena morrer, sendo o valor mais elevado a continuação da
própria vida),177 representada, v.g., na ideologia do politicamente correto
(higienizador) da saúde e do corpo em boa forma;178 ou mesmo a busca
disseminada de uma bios intrínseca à zoé, seja na publicização de dimensões
privadas, exemplificada em reality shows que dão abertura à apresentação, para
milhões de telespectadores, de pessoas imersas unicamente nas esferas mais
comezinhas da vida privada, v.g., alimentação, relações sexuais, subsistência e
exercícios corporais, seja na própria busca de uma bíos que esteja inscrita na
imanência
da
forma
de
vida
animal, muito
presente
nos
movimentos
contemporâneo de defesa dos direitos dos animais ou no utilitarismo pseudofilosófico como o de Peter Singer; ou seja, animalização do humano - todo o
deslocamento de conceitos como instinto, comportamento, para analisar o
177
ZIZEK, Slavoj; DALY, Glyn. Arriscar o impossível. (Tradução Vera Ribeiro). São
Paulo : Martins Fontes, 2006. p. 130.
178
Um aparente paradoxo inscrito nos dispositivos econômicos midiáticos de nosso
tempo, que veiculam a provocação repetitiva do ―goze a qualquer preço‖ mas, ao mesmo
tempo, ―que seja um gozo em segurança e que não coloque riscos à saúde‖ (a ideologia da
domesticação asséptica), algo que - para Zizek - está muito bem representado na proliferação
de produtos light, soft, despidos de suas características ―nocivas‖, v.g, café descafeinado, fastfood sem gordura, doces sem açúcar, sexo virtual, o uso da maconha tornado corrente (por se
tratar de uma ―droga‖ sem os componentes destruidores da própria droga‖)...etc. Percebe-se,
entre as últimas décadas do séc. XX e início do séc. XXI, um ―tempo sem gravidade‖,
domesticado, de baixas intensidades, de aparente permissividade representada no gozo,
porém um ―gozo‖ desde sempre inserido nas esferas dos simulacros e das simulações. O que
não quer dizer que tal mediocridade ―cultural‖ fique apenas restrita à dimensão de um controle
interno voltado ao embotamento do pensamento, à pedagogia da obtusidade e à docilidade
dos corpos. Tem-se cada vez mais a hipertrofia do outro lado obscuro e perverso desta
cultura, exemplificado nas guerras virtuais (a morte em massa e a violência permanente
mascarada na sua veiculação pela hiper-indústria do entretenimento) e na própria banalização
espetacular da catástrofe.
humano (ou, um humano entendido como aquilo que se qualifica frente ao nãohumano extraído de si mesmo), ou mesmo o agir humano simbolicamente
reduzido aos aspectos metabólicos – e humanização dos animais; isso
permanecendo em alguns exemplos.
De certo modo a existência da biopolítica passa a se evidenciar
como um truísmo não apenas nos círculos acadêmicos, mas no próprio senso
comum das sociedades ocidentais. Por isso, portanto, da urgência de ultrapassar
as próprias caricaturas celebratórias do biopolítico da baixa modernidade.179
Deixando o aspecto do imaginário cotidiano para adentrar na
dimensão da própria estrutura intrínseca da política ocidental (não que não
estejam conectados, porém a segunda exige procedimentos mais acurados de
análise), evidencia-se imperioso abordar, na rota da análise agambeniana, a
inscrição da chamada vida nua nos cálculos do poder ocidental.
A zoé, na forma em que era entendida na antiguidade grega, vista
como a dimensão da vida intrinsecamente relacionada às dimensões biológicas ou
orgânicas, era atinente à caracterização da condição humana apenas ao estrito
aspecto da vivência, ou seja, o fato de que os seres humanos compartilhariam
com os animais o aspecto de também estarem corporalmente no mundo, tendo
que cumprir implicações e exigências biológicas da vida enquanto tal, simples
dimensão
biológica.
Porém,
pode-se
falar
propriamente
que
caberia,
helenicamente, ao estar-no-mundo humano uma vida qualificada, como plus ao
aspecto da vivência, pelo entendimento, principalmente, de que os seres humanos
possuiriam uma vida intrinsecamente qualificada pela linguagem.
Aristóteles irá diferenciar três formas de vida (bios) qualificada: a
bíos theoretikos ou bios xénicos180 (relacionada à vida contemplativa do filósofo, a
179
Tal postura celebratória pode ser encontrada em certos matizes, por exemplo, em
Toni Negri, no conjunto de textos intitulado Exílio. Cf. NEGRI, Toni. Exílio. (Tradução Ana
Teixeira). São Paulo : Iluminuras, 2001.
180
Em relação ao uso do termo xênicos, relacionado a estrangeiro, como adjetivo
específico da atividade do filósofo, Hannah Arendt lembra que Aristóteles foi o único grande
filósofo cônscio dessa condição de não se ter um lar como própria à atividade de pensar. O
Estagirista louvava o bios xénicos porquanto desnecessita de ―implementos ou lugares
bíos apolausticós (a vida dedicada ao prazer) e principalmente uma bíos políticos
(uma vida qualificada pelo agir político), espaço onde as ações poderiam ser
diferenciadas entre justas e injustas, virtuosas ou não virtuosas, etc.181
Giorgio Agamben, em seu Homo sacer I, irá argumentar que a
biopolítica ocidental já tem seus germes depositados nesse período, pelo simples
fato desta bíos política ter em seu interior inscrita a própria zoé. Ou melhor, a biós
entendida como um suplemento desde sempre anexado ao suporte da zoé, a zoé
sendo incluída na polis através de sua exclusão (ex-capere, captura de fora).
Agambenianamente falando, a cisão constitutiva do político - ou da política
ocidental - já está calcada nesta estrutura.
Tal cisão, corporificada no nexo entre vida nua e política, é
exemplificada pelo filósofo italiano na articulação entre phoné
e lógos (a
passagem da voz à linguagem), ou seja, na definição metafísica do homem como
―vivente que possui a linguagem‖.
A pergunta: ‗de que modo o vivente possui a linguagem?‘ corresponde
exatamente àquela outra: ‗de que modo a vida nua habita a polis?‘ O
vivente possui o lógos tolhendo e conservando nele a própria voz, assim
como ele habita a pólis deixando excluir dela a própria vida nua. A
política então se apresenta como a estrutura, em sentido próprio
fundamental, da metafísica ocidental, enquanto ocupa o limiar em que se
realiza a articulação entre ser vivente e o lógos. A ‗politização‘ na vida
nua é a tarefa metafísica por excelência, na qual se decide da
humanidade do vivente homem, e, assumindo esta tarefa, a modernidade
não faz mais do que declarar a própria fidelidade à estrutura essencial da
especiais para se realizar; em qualquer lugar da terra onde alguém se devote ao pensamento,
ele atingirá a verdade onde quer que esteja, como se ela estivesse presente‖. Em Aristóteles,
novamente citado por Arendt, os filósofos amam esse ―lugar nenhum‖ como o seu país
(philocorein), onde se preserva o scholazein (o não fazer nada), vivendo-se apenas a ―doçura
inerente ao próprio pensar ou filosofar‖. Cf. ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. Op. cit. p.
151.
181
―A natureza, como se afirma frequentemente, não faz nada em vão, e o homem é o
único animal que tem o dom da palavra. E mesmo que a mera voz sirva para nada mais que
uma indicação de prazer ou de dor, e seja encontrada em outros animais (uma vez que a
natureza deles inclui apenas a percepção de prazer ou de dor, a relação entre elas e não mais
que isso), o poder da palavra tende a expor o conveniente e o inconveniente, assim como o
justo e o injusto. Essa é uma característica do ser humano, o único a ter noção do bem e do
mal, da justiça e da injustiça. E é a associação dos seres que têm uma opinião acerca desses
assuntos que faz uma família ou uma cidade‖. Aristóteles. A Política. (Tradução Terezinha M.
Deutsch e Baby Abrão). In: Aristóteles. Coleção os Pensadores. São Paulo : Nova Cultural,
2004. p. 164.
metafísica. A dupla categorial fundamental da política ocidental não é
aquela amigo-inimigo, mas a vida nua-existência política, zoé-bíos,
exclusão-inclusão. A política existe porque o homem é o vivente que, na
linguagem, separa e opõe a si a própria vida nua e, ao mesmo tempo, se
mantém em relação com ela numa exclusão-inclusiva.182
A figura da vida nua (bloβ Leben), conceito extraído por Agamben
de Walter Benjamin, ou da zoé, em termos gregos, politicamente indiferente no
Antigo Regime e confinada ao limites do oikos na Grécia Antiga, será inscrita no
núcleo de fundamentação do moderno Estado-nação, representando, para
Agamben, ―o local em que se efetua a passagem da soberania régia de origem
divina à soberania nacional.‖183 O simples fato do nascimento dos seres humanos
passa a ser considerado o nexo de pertencimento fundamental às comunidades
políticas do ocidente, o porquê da proliferação das metáforas nativas (nacional,
nacionalismo, natural de), para referir-se à cidadania moderna (e como
adjetivação do seu próprio modelo de Estado), ―le principe de toute souverainneté
réside essentiellementdans la nation‖, lê-se no artigo 3º da Déclaration des droits
de l‟homme et du citoyen.184
182
16.
183
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Op. cit. pp. 15-
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 135.
De certo modo, mesmo a antropogeografização do Estado europeu moderno,
ocorrida no período decimonônico, não deixa de estar conectada com os princípios da
natividade, da vida entendida como centro da política, já inscrita nos moldes da declaração
francesa de 1789. Observa-se, na Europa - a partir das análises de Richard Sennett - a
elevação de aspectos antropológicos específicos (algo que a metáfora do Volkgeist tentou
exprimir), e mesmo geográficos, a elementos políticos de primeira grandeza. Cita Sennett que,
―en 1848, la idea de la nación como un códice político fue rechazada por los nacionalistas
revolucionarios en la medida en que creían, contrariamente, que una nación se fundaba en la
costumbre, en los hábitos e leyes no escritas del Volk; la comida de un pueblo, su manera de
bailar, los dialectos que habla, las formas de sus oraciones, serían los elementos
constituyentes de la vida de la nación. Ni la ley pude legislar sobre los placeres de la comida ni
las constituciones pudem ordenar una creencia en ciertos santos: es decir, el poder no puede
producir cultura. La douctrina del nacionalismo que cristaliza en 1848 proporciona un
imperativo geográfico al concepto de cultura: hábitos, fe, placeres, ritual, todo se vincula y se
funda en un territorio particular. Más aún, quienes sustentan esos rituales sono gentes del
mismo lugar, que se entinenden entre sí sin necessitar explicaciones. El territorio, entonces,
se vuelve sinônimo de identidad. (...) Esta imagen antropológica del Volk constituye un
acontecimiento de época en la imaginería y la retórica sociales modernas. El nacionalismo del
siglo XIX establece lo que podemos considerar la regla fundamental moderna de la identidad.
La identidad es tanto más fuerte cuanto no se es consciente de ‗tenerla‘, simplemente se es.
(...) Em mismo sentido, um estado moderno puede también obtener benefícios de esa virtud
antropológica. Sus instituciones pueden verse legitimadas como reflejos del impulso popular
184
Não se pode olvidar que o sintagma nazista ―Blut und Boden”,
enunciado por Rosenberg, está, de certo modo, estruturado numa fórmula que
obscuramente se assemelha aos dois principais critérios identificadores da
cidadania nos Estados-nação modernos (definidos na própria tradição jurídica
ocidental): o jus soli e o jus sanguinis.185
Nesse sentido, a passagem constitutivamente moderna, referida
por Agamben, de uma soberania régia a uma soberania nacional, está calcada
principalmente no conceito moderno de direitos humanos, ou melhor, as principais
declarações de direitos humanos nada mais representam que inscrições da nuta
vita no cerne do Estado-nação ocidental.
(...) é chegado o momento de cessar de ver as declarações de direitos
como proclamações gratuitas de valores eternos metajurídicos, que
tendem (na verdade sem muito sucesso) a vincular o legislador ao
respeito pelo princípio éticos eternos, para então considera-las de acordo
com aquela que é sua função histórica real na formação do Estadonação. As declarações dos direitos representam aquela figura original da
inscrição da vida natural na ordem jurídico-política do Estado-nação.
Aquela vida nua natural que, no antigo regime, era politicamente
indiferente e pertencia, como fruto da criação, a Deus, e no mundo
clássico era (ao menos em aparência) claramente distinta como zoé da
vida política (bíos), entra agora em primeiro plano na estrutura do estado
e torna-se aliás o fundamento terreno de sua legitimidade e de sua
186
soberania.
antes que como construcciones problemáticas sometidas a un debate permanente.‖ SENNET,
Richard. El extranjero. In: Punto de Vista. nº 51. Buenos Aires, 1995. p. 41. Seguindo nessa
mesma rota de análise, a vinculação da idéia de povo ao suporte vazio de uma identidade
estatal traz, no esfacelamento contemporâneo da própria estatalidade, paradoxos como o fato
do próprio conceito de povo não poder subsistir se não implicado na recodificação da
cidadania estatal, como nos exemplos, citados por Agamben, das grandes potências mundiais
utilizarem da guerra para defender um Estado sem povo (o Kwait) ao mesmo tempo em que
povos sem Estado (v.g., kurdos, armênios, palestinos) são massacrados impunemente.
Exemplos que pode ser retirado também das línguas sem dignidade estatal, tratadas pelos
lingüistas como línguas, que não obstante acabam sendo analisadas (em termos geopolíticos) como meros dialetos e têm, na maioria dos casos, significações políticas diretas para
sua comunidade de falantes, ou seja, a expressão do idioma carregando consigo também uma
dimensão política (ex. catalão, basco, gaélico). Cf. AGAMBEN, Giorgio. Moyens sans fins.
Op. cit. pp. 23-26.
185
Cf. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 136.
186
AGAMBEN, Giorgio Homo sacer. Op. cit. p. 134; Cf. Também: AGAMBEN, Giorgio.
Política del exilio. (Tradução Dante Bernardi) In: Archipielago, nº 26-27, Barcelona, 1996.
pp.41-52. Partindo do texto citado, boa parte da controvérsia entre Agamben e Arendt sobre a
localização na vida nua na Grécia Antiga está no comentário, aparentemente prosaico, ―ao
menos em aparência”, sobre a hipótese de ser a zoé claramente distinta da pólis no contexto
Tal inscrição se revela de forma exemplar na questão dos
refugiados, ou dos apátridas, no contexto pré-segunda guerra mundial. Pela
primeira vez na história se vê a aparição do ―homem dos direitos‖, indivíduos sem
nenhum vínculo com
Estados nacionais e tendo exclusivamente como
pertencimento mundano apenas suas vidas, a vida sem máscaras.
Esta aparição, segundo Arendt, não deixa de representar uma
manifestação macabra, porquanto totalmente atrelada ao que se seguiu no
contexto do Terceiro Reich nazista, a solução final então intitulada (campos de
concentração, produção em massa de morte e descartes). Ou seja, a
desnacionalização como etapa prévia aos procedimentos realizados pelos
movimentos totalitários do período.
Para Arendt, aquele que deveria encarnar o ―homem dos direitos‖ o indivíduo que, pelo simples fato do nascimento, teria de ver preservados seus
direitos humanos enumerados, v.g., na solene Déclaration des droits de l‟homme
et du citoyen - o refugiado, o apátrida, estabelece uma fissura, ou o próprio
estilhaçamento da estrutura intrínseca do paradigma do Estado-nação (como
descrito no último capítulo destinado à questão do Imperialismo, intitulado ―O
declínio do Estado-nação e o fim dos direitos do Homem‖, em ―As origens do
Totalitarismo‖), porquanto demonstra que tais direitos, diferentemente de serem a
priori a-históricos, não podem ser pensados na independência de um aparato
estatal, e quando estes aparatos demonstram total inaptidão para defendê-los,
ambas as categorias (Estado nação e direitos humanos) entram em uma situação
de esfumaçamento que tende a levá-las seja ao declínio, seja ao seu próprio fim.
Com o surgimento das minorias da Europa oriental e meridional e com a
incursão dos povos sem Estado na Europa central e ocidental, um
elemento de desintegração completamente novo foi introduzido na
Europa do após-guerra. A desnacionalização tornou-se uma poderosa
arma da política totalitária, e a incapacidade constitucional dos Estadosnações europeus de proteger os direitos humanos dos que haviam
perdido os seus direitos nacionais permitiu aos governos opressores
da Grécia antiga. Comentário nem um pouco gratuito e que releva boa parte da implicações e
da particularidade do pensamento de Agamben na revisão dos fundamentos mesmos dos
conceitos constitutivos da política ocidental.
impor sua escalada de valores até mesmo sobre os países oponentes.
Aqueles a quem haviam escolhido como refugo da terra – judeus,
trotskistas, etc. – era realmente recebidos como o refugo da terra em
toda parte; aqueles a quem a perseguição havia chamado de
indesejáveis tornaram-se de fato os indésirables da Europa. O jornal
oficial da SS, o Schwartze Korps, disse explicitamente em 1938 que, se o
mundo ainda não estava convencido de que os judeus eram o refugo da
terra, iria convencer-se tão logo, transformados em mendigos sem
identificação, sem nacionalidade, sem dinheiro e sem passaporte, esses
judeus começassem a atormenta-los em suas fronteiras. E o fato é que
esse tipo de propaganda factual funcionou melhor que a retórica de
Goebbels, não apenas porque fazia dos judeus o refugo da terra, mas
também porque a incrível desgraça do número crescente de pessoas
inocentes demonstrava na prática que eram certas as cínicas afirmações
dos movimentos totalitários de que não existiam direitos humanos
inalienáveis, enquanto as afirmações das democracias em contrário
revelam hipocrisia e covardia ante a cruel majestade de um mundo novo.
A própria expressão ‗direitos humanos‘
tornou-se para todos os
interessados – vítimas, opressores e espectadores – uma prova de
idealismo fútil ou de tonta e leviana hipocrisia.187
Pode-se afirmar, a partir do referencial arendtiano, que a figura do
apátrida - e de sua conseqüente exceptio concreta à normalidade jurídica - tornase disseminada a partir do final da primeira guerra mundial.188 Tal exceção à
normalidade pode ser representada na condição paradoxal de que muitas vezes,
para um refugiado, a condição de criminoso - o fato de ter cometido ou vir a
cometer um pequeno furto, por exemplo - poder representar uma melhor condição
jurídica, ou mais adequadamente, a própria inclusão na normalidade jurídica (dada
através de uma infração).189
187
ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. (Tradução Roberto Raposo). São
Paulo: Cia. das Letras, 1989. p. 302.
188
―Muito mais persistentes na realidade e muito mais profundas em suas
conseqüências têm sido a condição de apátrida, que é o mais recente fenômeno de massas
da história contemporânea, e a existência de um novo grupo humano, em contínuo
crescimento, constituído de pessoas sem Estado, grupo sintomático do mundo após a
Segunda Guerra Mundial. A culpa da sua existência não pode ser atribuída a um único fator,
mas, se considerarmos a diversidade grupal dos apátridas, parece que cada evento político,
desde o fim da Primeira Guerra Mundial, inevitavelmente acrescentou uma nova categoria aos
que já viviam fora do âmbito da lei, sem que nenhuma categoria, por mais que se houvesse
alterado a constelação original, jamais pudesse ser devolvida à normalidade.‖ ARENDT,
Hannah. As origens do totalitarismo. Op. cit. p. 310.
189
―A melhor forma de determinar se uma pessoa foi expulsa do âmbito da lei é
perguntar se, para ela, seria melhor cometer um crime. Se um pequeno furto pode melhorar
sua posição legal, pelo menos temporariamente, podemos estar certos de que foi destituída
de direitos humanos. Pois o crime passa ser, então, a melhor forma de recuperação de certa
Por outro lado, a falência do modelo de direitos humanos inseridos no ocidente através das principais declarações internacionais - fica
explícita na excisão cada vez maior entre o direito do cidadão e o direitos do
homem, bipolaridade já inscrita na declaração de direitos francesa - declaração
dos direitos do homem e do cidadão – não ficando claro se ―os dois termos
denominam duas realidades autônomas ou formam em vez disso um sistema
unitário, no qual o primeiro já está desde o início contido e oculto no segundo; e
neste caso, que tipo de relações existe entre eles.‖190
Debates antes relegados às antropologias filosóficas, distantes de
serem considerados problemas políticos, as perguntas pelo ―ser francês, alemão,
brasileiro, etc.‖ passam a redefinir a política moderna - e a própria política passa
também
a
redefinir
constantemente
estes
pertencimentos.
Esta
função
demarcatória se tornou política par excellence, de modo até então inaudito, no
nacional-socialismo (no sentido de que ele estabeleceu como problema político
fundamental a busca de uma resposta à pergunta ―o que é ser alemão?‖), de
forma que, para Agamben
Fascismo e nazismo são, antes de tudo, uma redefinição das relações
entre o homem e o cidadão e, por mais que isto possa parecer paradoxal,
eles se tornam plenamente inteligíveis somente se situados sobre o pano
igualdade humana, mesmo que ela seja reconhecida como exceção à norma. O fato –
importante – é que a lei prevê essa exceção. Como criminoso, mesmo um apátrida não será
tratado pior que outro criminoso, isto é, será tratado como qualquer pessoa nas mesmas
condições. Só como transgressor da lei pode o apátrida ser protegido pela lei. Enquanto
durem o seu julgamento e o pronunciamento da sentença, estará a salvo daquele domínio
arbitrário da polícia, contra o qual não existem advogados nem apelações. O mesmo homem
que ontem estava na prisão devido à sua mera presença no mundo, que não tinha quaisquer
direitos e vivia sob ameaça de deportação, ou era enviado sem sentença e sem julgamento
para algum tipo de internação por ter tentado trabalhar e ganhar a vida, pode tornar-se quase
um cidadão completo graças a um pequeno roubo. Mesmo que não tenha um vintém, pode
agora conseguir um advogado, queixar-se contra os carcereiros, e ser ouvido com respeito. Já
não é o refugo da terra: é suficientemente importante para ser informado de todos os detalhes
da lei sob a qual será julgado.‖ ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Op. cit. p.
320. Entretanto a própria situação dos campos de concentração ou mesmo, num exemplo
atual, como Guantánamo ou outros não-lugares biopolíticos contemporâneos de total
alheamento à normalidade jurisdicional dos Estados-nações, já poria em xeque mesmo esta
possibilidade de inclusão antevista no exemplo de Arendt.
190
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 132.
de fundo biopolítico inaugurado pela soberania nacional e pelas
declarações de direitos.191
Em afinidade eletiva com a fratura entre cidadão e nacional,
visualiza-se também a dissociação - que a atual política dos direitos humanos
levanta como
mote de atuação - entre o político e o humanitário. Para a
Agamben, esta separação é sintoma de uma
(...) fase extrema do descolamento entre direitos do homem e os direitos
do cidadão. As organizações humanitárias, que hoje em número
crescente se unem aos organismos supranacionais, não podem,
entretanto, em última análise, fazer mais do que compreender a vida
humana na figura da vida nua ou da vida sacra, e por isto mesmo
mantém consigo a contragosto uma secreta solidariedade com as forças
que deveriam combater.192
O que a imagem do refugiado traz consigo, na leitura de Agamben
a partir do referencial arendtiano, é a própria manifestação - nem que seja por
átimos históricos - da ficção originária da soberania moderna, porquanto os
refugiados rompem a ―continuidade entre homem e cidadão, entre nascimento e
nacionalidade‖, fazendo surgir na ―cena política aquela vida nua que constitui seu
secreto pressuposto.‖193 Os apátridas ou refugiados exibem à luz dos fatos os
resíduos entre nascimento e nação, uma descontinuidade (torção) inquietante à
estrutura do próprio Estado-nação moderno. Nesse sentido, para Agamben,
Es preciso separar netamente los conceptos de refugiado, exiliado,
apátrida del de ―derechos humanos‖ y tomar em serio las tesis de H.
Arendt, quien ligaba la suerte de los derechos a la de la Nación-Estado,
de modo que el ocaso de ésta supone el decaimiento de aquéllos. El
refugiado y el exiliado deben considerarse por lo que son, es decir, ni
más ni menos que un concepto límite que pone en crisis radical las
categorías fundamentales de la Nación-Estado, desde el nexo
nacimiento-nación hasta el de hombre-ciudadano, y que por lo tanto
permite despejar el camino hacia una renovación de categorías ya
improrrogable, que cuestiona la misma adscripción de la vida al
ordenamiento jurídico.194
A metáfora operativa que Giorgio Agamben usará para pensar a
inscrição da vida nua nos cálculos ocidentais de poder fundados na estatalidade e
191
Ibidem. p. 137.
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 140.
193
Ibidem. p. 138.
194
AGAMBEN, Giorgio. Política del exílio. (Tradução de Dante Bernardi) In:
Archipielago, nº 26-27, Barcelona, 1996. p. 47.
192
na noção, a esta vinculada, de soberania, será o antigo e obscuro conceito,
extraído do direito romano arcaico,195 homo sacer.
Agamben investiga a figura enigmática do sacer, apontando que
ela concentra em si traços aparentemente contraditórios. Considerado o resultado
da pena mais antiga do direito criminal romano que, paradoxalmente, ao mesmo
tempo em que sancionava a sacralidade de uma pessoa, determinava também
sua matabilidade, i.e., tornava impunível o homicídio realizado contra esta.
Portanto, aquele que qualquer um poderia matar impunemente não poderia ser
levado à morte nos meios e formas sancionados pelo rito. Tem-se aí o caráter
dúplice do homo sacer, matável e insacrificável.
Os homini sacri localizam-se numa zona de indiferenciação, fora do
espaço jurídico e ao mesmo tempo capturados por ele. Agamben irá defrontar-se
com parte da tradição antropológica que vincula o aspecto da sacralidade ao da
ambivalência ou da ambigüidade (o debate sobre o tabu: concomitantemente
impuro e sacro, fasto e nefasto, divino e profano), que tem a composição mais
acabada em ―Totem e tabu‖ de Freud.196 O homo sacer, para o filósofo italiano,
195
―Festo, no verbete sacer mons do seu tratado Sobre o significado das palavras,
conservou-nos a memória de uma figura do direito romano arcaico na qual o caráter da
sacralidade liga-se pela primeira vez a uma vida humana como tal. Logo após ter definido o
monte sacro, que a plebe, no momento de sua secessão, havia consagrado a Júpiter, ele
acrescenta: At homo sacer is est, quem populus iudicavit ob maleficium; neque fas este eum
immolari, sed qui occidit, parricid non damnatur; nam lege tribunicia prima cavetur „si quis eum,
qui eo plebei scito sacer sit, occiderit, parricida ne sit.‟ Ex quo quivis homo malus atque
improbus sacer appelari solet.‖ (―Homem sacro é, portanto, aquele que o povo julgou por um
delito; e não é lícito sacrifica-lo, mas quem o mata não será condenado por homicídio; na
verdade, na primeira lei tribunícia se adverte que ‗se alguém matar aquele que por plebiscito é
sacro, não será considerado homicida‘. Disso advém que um homem considerado malvado ou
impuro costuma ser chamado sacro.‖). AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 77.
196
―Tabu é um termo polinésio. É difícil para nós encontrar uma tradução para ele,
desde que não possuímos mais o conceito que ele conota. A palavra era ainda corrente entre
os antigos romanos, cujo ‗sacer‘ era o mesmo que o ‗tabu‘ polinésio. Também o ‗ayos‘, dos
gregos, e o ‗kadesh‘ dos hebreus devem ter tido o mesmo significado expressado em ‗tabu‘
pelos polinésios e, em termos análogos, por muitas outras raças da América, África
(Madagascar) e da Ásia Setentrional e Central. O significado de ‗tabu‘, como vimos, diverge
em dois sentidos contrários. Para nós, por um lado, significa ‗sagrado, ‗consagrado‘, e, por
outro, ‗misterioso, ‗perigoso‘, ‗proibido‘, ‗impuro‘. O inverso de ‗tabu‘ em polinésio é ‗noa‘, que
significa ‗comum‘, ou geralmente ‗acessível‘. Assim, ‗tabu‘ traz em si o sentido de algo
inabordável, sendo principalmente expresso em restrições e proibições. Nossa acepção de
‗temor sagrado‘ muitas vezes pode coincidir em significado com ‗tabu‘.‖
Cf. FREUD,
representa um conceito limite do ordenamento romano, que dificilmente pode ser
pensado satisfatoriamente no quadro de referências do jus divinum e do jus
humanum, porém pode permitir abrir clareiras com vistas ao esclarecimento de
seus recíprocos locais e limites.197
Aquilo que define a condição do homo sacer, então, não é tanto a
pretensa a ambivalência originária da sacralidade que lhe é inerente,
quanto sobretudo o caráter particular da dupla exclusão em que se
encontra preso e da violência à qual se encontra exposto. Esta violência
– a morte insancionável que qualquer um pode cometer em relação a ele
– não é classificável nem como sacrifício e nem como homicídio, nem
como execução de uma condenação e nem como um sacrilégio.
Subtraindo-se às formas sancionadas do direito humano e divino, ela
abre uma esfera do agir humano que não é a sacrum facere e nem a da
ação profana, e que se trata aqui de tentar compreender.198
O homo sacer simboliza uma esfera do agir humano que se
relaciona politicamente apenas a partir da exceção, aí sua simetria com soberano
que suspende a lei no estado de exceção e assim vincula esta vida matável e
insacrificável nos dispositivos de poder. De forma que
Devemos perguntar-nos, então, se as estruturas da soberania e da
sacratio não sejam de algum modo conexas e possam, nesta conexão,
iluminar-se reciprocamente. Podemos, aliás, adiantar a propósito uma
primeira hipótese: restituído ao seu lugar próprio, além tanto do direito
penal quanto do sacrifício, o homo sacer representaria a figura originária
da vida presa no bando soberano e conservaria a memória da exclusão
originária através da qual se constituiu a dimensão política. O espaço
político da soberania ter-se-ia constituído, portanto, através de uma dupla
exceção, como uma excrescência do profano no religioso e do religioso
no profano, que configura uma zona de indiferença entre sacrifício e
homicídio. Soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer
homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é matável e
insacrificável, é a vida que foi capturada nesta esfera.199
Analisaremos no último capítulo a vinculação desta vida sacra ao
bando soberano no dispositivo da exceção fictícia, buscando delinear de uma
melhor forma as implicações do pensamento de Giorgio Agamben no
desnudamento desta questão. Porém, é preciso asseverar, nesse ponto da
Sigmund. Totem e tabu. (Tradução Órizon Carneiro Muniz). Rio de Janeiro: Imago, 1999. p.
28.
197
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 81.
198
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 90.
199
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. pp. 90-91.
análise, que a partir da configuração do sacer é que poderá ser descortinada uma
rota para pensar a politização da vida operada no horizonte da modernidade
jurídico-política ocidental, conectando-nos (de forma nuclear) com a redução da
política à biopolítica no ocidente.
Conforme visto no debate sobre os direitos humanos, pode-se
visualizar que, no mesmo processo em que se vincula (nos objetivos de tutela) a
vida dos indivíduos a um poder soberano, tem-se, como face obscura e implícita, a
entrega destas mesmas vidas a um poder ilimitado de vida e morte (―Soberana é
a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um
sacrifício” , nas palavras de Agamben). A sacralidade da vida que se tenta opor, a
todo custo, contra a sua cotidiana supressão (seja em um campo de concentração
do séc. XX, em um ―não-lugar‖ biopolítico como Guantánamo ou mesmo nas
cotidianas mortes em acidentes rodoviários) – fulcrada de forma solene na
bandeira dos inalienáveis direitos humanos – nada mais representa que a
sacralidade-matabilidade modelada nos termos da figura do homo sacer.
Agamben exemplifica tal abordagem na sua reflexão sobre o
habeas corpus:
O que emerge à luz, das solitárias, para ser exposto apud Westminster é,
mais uma vez, o corpo do homo sacer, é mais uma vez uma vida nua.
Esta é a força e, ao mesmo tempo, a íntima contradição, da democracia
moderna: ela não faz abolir a vida sacra, mas a despedaça e dissemina
em cada corpo individual, fazendo dela a aposta em jogo no conflito
político. Aqui está a raiz de sua secreta vocação biopolítica: aquele que
se apresentará mais tarde como o portador dos direitos e, com um
curioso oximoro, como o novo sujeito soberano (subiectus superaneus,
isto é, aquilo que está embaixo e, simultaneamente, mais ao alto) pode
constituir-se como tal somente repetindo em si a exceção soberana e
isolando em si mesmo corpus, a vida nua.200
E no argumento que poderia sintetizar boa parte do horizonte
explanatório do debate deste item, lê-se, em conclusão, que ―corpus é um ser
bifronte, portador tanto da sujeição ao poder soberano quanto das liberdades
individuais.‖201
200
201
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 130.
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 130.
Se algo caracteriza, portanto, a democracia moderna em relação à
clássica, é que ela se apresenta desde o início como uma reivindicação e
uma liberação da zoé, que ela procura constantemente transformar a
mesma vida nua em forma de vida e de encontrar, por assim dizer, o bíos
da zoé. Daí, também, a sua específica aporia, que consiste em querer
colocar em jogo a liberdade e a felicidade dos homens no próprio ponto –
a ‗vida nua‘ – que indicava a sua submissão. Por trás do longo processo
antagonístico que leva ao reconhecimento dos direitos e das liberdades
formais está, ainda um vez, o corpo do homem sacro com seu duplo
soberano, sua vida insacrificável e, porém, matável. Tomar consciência
dessa aporia não significa desvalorizar as conquistas e as dificuldades da
democracia, mas tentar de uma vez por todas compreender porque,
justamente no instante que parecia haver definitivamente triunfado sobre
seus adversários e atingido seu apogeu, ela se revelou inesperadamente
incapaz de salvar de uma ruína sem precedentes aquela zoé a cuja
liberação e felicidade havia dedicado todos os seus esforços.202
Esta politização - o imbricar-se da zoé no centro do poder nacional
baseado no Estado - já havia sido notada por Michel Foucault, em sua história da
sexualidade, mais precisamente em ―A vontade de saber‖, em trecho, v.g.,
constantemente repetido por Agamben: ―Por milênios, o homem permaneceu o
que era para Aristóteles: um animal vivente e, além disso, capaz de existência
202
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 17. Em convergência com esta
estrutura da biopolítica (de seu tomar para si a tutela da zoé) tem-se cada vez mais
aprofundada a absorção semântica do conceito de política pelo de polícia. ―Distinguindo entre
política (Politik) e polícia (Polizei), von Justi conferia à primeira uma atribuição meramente
negativa (a luta contra os inimigos externos e internos do Estado) e à segunda uma atribuição
positiva (a tutela e o crescimento da vida dos cidadãos).Não se compreende a biopolítica
nacional-socialista (e, com ela, boa parte da política moderna, mesmo fora do terceiro Reich)
se não se entende que ela implica o desaparecimento da distinção entre os dois termos: a
polícia torna-se então política, e a tutela da vida coincide com a luta contra o inimigo.‖
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 154. Antes de Agamben, temos as análises
realizadas no seminário ―Segurança, território, população‖, feitas por Foucault entre 1977 e
1978, postulando importantíssimas advertências no sentido de que a emergência do conceito
de polícia (dada no séc. XVIII) deve ser reinscrita em um contexto de diretrizes biopolíticas: ―O
seminário a alguns dos aspectos daquilo que os alemães chamaram, no séc. XVIII, a
Polizeiwissenschaft: a teoria e a análise de tudo aquilo que ‗tende a afirmar a aumentar a
potência do Estado, a fazer bom emprego d suas forças, a procurar a felicidade de seus
súditos‘ e, principalmente, ‗a manutenção da ordem e da disciplina, os regulamentos que
tendem a lhes tornar a vida cômoda e a lhes dar aquilo que necessitam para a subsistência.
(...) O desenvolvimento, a partir da segunda metade do século XVIII daquilo que foi chamado
Medizinische Polizei, Hygiène publique, social medecine, deve ser reinscrito nos quadros de
uma ‗biopolítica‘, que tende a tratar a ‗população‘ com um conjunto de seres vivos e
coexistentes, que apresentem traços biológicos e patológicos particulares, e que, por
conseguinte, dizem respeito a técnicas e saberes específicos. E a própria ‗biopolítica‘ deve ser
compreendida a partir de um tema desenvolvido desde o séc. XVII: a gestão das forças
estatais.‖ FOUCAULT. Michel. Segurança, território, população. Op. cit. pp. 85-86.
política; o homem moderno é um animal em cuja política está em questão a sua
vida de ser vivente.‖203
Todavia, segundo Agamben, resta uma incompletude no
conceito de biopolítica em Foucault, em decorrência do filósofo francês não ter
transferido suas análises para os mecanismos dos grandes Estados totalitários
dos novecentos (―o local por excelência da biopolítica moderna‖),204 centrando-se,
por exemplo, na escavação crítica de prisões e hospitais, porém deixando de lado
os campos de concentração. Assim como, as indagações de Arendt sobre o
totalitarismo guardariam uma lacuna por não contemplarem também uma
perspectiva biopolítica205 (algo mantido, em sentido contrário, em seus estudos
posteriores, evidenciados principalmente no capítulo sobre o labor - em ―A
condição humana‖, de 1958 - que, apesar de não utilizarem a alcunha biopolítica,
tocam muito próximo o solo teórico que posteriormente este significante tentará
circunscrever, porém não retomam os estudos anteriores sobre o totalitarismo,
pelo menos em nosso entendimento).
Tem-se em Agamben, após sua leitura de Foucault e Arendt (para
ele, ―os dois estudiosos que pensaram talvez com mais acuidade o problema
político de nosso tempo‖),206 principalmente nos locais em que estes silenciam, a
proposta de que será com o conceito de vida nua que sua teoria fará convergirem
os dois pontos de vista. Neste conceito,
203
Cf. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I. A vontade de saber. 17ª ed.
(Tradução Maria Tereza C. Albuquerque; J.A. Albuquerque). Rio de Janeiro : Graal, 2006.
204
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 123.
205
―Arendt percebe com clareza o nexo ente domínio totalitário e aquela particular
condição de vida que é o campo (‗O totalitarismo – ela escreve em um Projeto de pesquisa
sobre os campos de concentração que permaneceu infelizmente sem seguimento – ‗tem como
objetivo último a dominação total do homem. Os campos de concentração são laboratórios
para a experimentação do domínio total, porque, a natureza humana sendo o que é, este fim
não pode ser atingido senão nas condições extremas de um inferno construído pelo homem‖:
Arendt, 1994, p. 240); mas o que ela deixa escapar é que o processo é, de alguma maneira,
inverso, e que precisamente a radical transformação da política em espaço da vida nua (ou
seja, em um campo) legitimou e tornou necessário o domínio total. Somente porque em nosso
tempo a política se tornou integralmente biopolítica, ela pôde constituir-se em proporção antes
desconhecida como política totalitária.‖ AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. 126.
206
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. Cit. 126.
(...) o entrelaçamento entre de política e vida tornou-se tão íntimo que
não se deixa analisar com facilidade. À vida nua e aos seus avatar no
moderno (a vida biológica, a sexualidade, etc.) é inerente uma opacidade
que é impossível esclarecer sem que se tome consciência de seu caráter
político; inversamente, a política moderna, uma vez que entrou em íntima
simbiose com a vida nua, perde a inteligibilidade que nos parece ainda
caracterizar o edifício jurídico-político da política clássica.207
Pode-se tirar uma conclusão provisória a partir dos textos de
Agamben. Para este filósofo, o fundamento constitutivo da biopolítica ocidental
centra-se na tentativa de separar, de clivar, uma zoé de uma bíos, uma dimensão
inumana do próprio humano (uma vida humana matável que não pode ser
colocada nos ritos específicos de supressão sacrificais da vida como, por
exemplo, uma pena capital). Paradigmáticos, nesse caso, seriam as figuras do
muçulmano no campo de concentração, o além comatoso, o néomort, limiares
entre a humanidade e a não humanidade, entre e vida e a própria morte, exemplos
de produção da vida nua nos espaços biopolíticos da contemporaneidade.208
207
Ibidem, idem.
―Sobre a origem do termo Muselmann, as visões divergem. De resto, como
freqüentemente nas gírias, os sinônimos não faltam: ‗A palavra era usada em Auschwitz, de
onde se propagou para outros campos. (...) Em Majdanek, a expressão era desconhecida. Lá,
os mortos vivos eram chamados Gamel; em Dachau, Kretiner (‗cretinos‘); em Stutthof, Krüppel
(‗estropiados‘); em Buchenwald, müde Scheichs (‗xeiques fadigados‘), e em Ravensbrück,
Muselweiber (‗muçulmanos) ou Schmuckstücke (‗joviais‘).‘ (Sofsky, p. 400, n.5). A explicação
mais provável envia o sentido literal do termo árabe muslim, significando aquele que se
submete sem reservas à vontade divina, e do qual provém as lendas sobre o pretenso
fatalismo islâmico, tão disseminado na Europa desde a Idade Média (com aquela nuance
pejorativa, o termo é atestado em diversas línguas européias, e particularmente a italiana).
Mas, enquanto a resignação do muslim repousa sobre a convicção de que Allá está em toda
obra a cada instante no menor evento, o ‗muçulmano‘ de Auschwitz parece ter perdido toda
vontade e toda consciência. (...) Alternadamente figura nosogáfica e categoria ética, limite
político e conceito antropológico, o muçulmano é um ser indefinido, no seio do qual não
somente a humanidade e a não-humanidade, mas ainda a vida vegetativa e a vida de relação,
a fisiologia e a ética, a medicina e a política, a vida e a morte passam umas às outras sem
solução de continuidade. É porque seu ‗terceiro reino‘ é o sentido obscuro do campo, desse
não-lugar em que as barreiras entre os domínios desabam, onde todos os diques se rompem.‖
AGAMBEN, Giorgio. Quel che resta de Auschwitz. L‘arquivio e il testimone. (Tradução do
trecho para o português de Vinícius Nicastro Honesco). Torino : Bollati Boringhieri, 1998. pp.
17-19. Em simetria com o muçulmano, estaria o néomort e o além-comatoso. ―A sala de
reanimação onde flutuam entre a vida e a morte o néomort, o além comatoso e o faux vivant
delimita um espaço de exceção no qual surge, em estado puro, uma vida nua pela primeira
vez integralmente controlada pelo homeme e pela sua tecnologia. E visto que se trata,
justamente, não de um corpo natural, mas dde uma extrema encarnação do homo sacer (o
comatoso pôde ser definido como ‗um ser intermediário entre o homem e o animal‘) a aposta
em jogo é, mais uma vez, a definição de uma vida que pode ser morta sem que se cometa
208
A questão que se coloca, pelo menos em Agamben (a partir de
nosso local de análise), é o da impossibilidade de separar uma vida entendida
como simples zoé (a exemplo da figura do muçulmano no campo de
concentração, ou do além comatoso e seu aparelhos de sobrevida em uma sala
de emergência), da vida humana enquanto tal, ou mesmo de encontrar uma bíos
distinta enquanto vida qualificada (a exemplo da figura do Flamen Diale).209
Tem-se, ao contrário, a advertência da necessidade de se afirmar a
indecidibilidade constitutiva entre tais esferas, ou melhor, separar uma vida nua da
vida humana; a voz da linguagem (tratar do ser humano como o vivente que
possui a linguagem); a natureza da cultura; o humano do inumano, etc., revela-se,
teoricamente, um exercício de metafísica e, politicamente, na catástrofe.
Nesse
sentido, é preciso desnudar a máquina antropológica
ocidental que insiste na bipolaridade (e produz concretamente tais bipolaridades),
não para assumir um dos pólos (por ex., uma essência especificamente humana
dos homens, irredutível à animalidade; ou uma animalização do humano, ―o
bípede implume com polegar opositor e cérebro avantajado‖, sem as máscaras de
um bíos), porém para colocar em questão a própria relação constitutiva, o próprio
funcionamento biunívoco de suas engrenagens.
Desde el momento en que lo que en ella está en juego es la producción
de lo humano por medio de la oposición hombre/animal,
homicídio (e que, como o homo sacer, é ‗insacrificável, no sentido de que obviamente não
poderia ser colocado à morte em uma execução de pena capital).‖ AGAMBEN, Giorgio. Homo
sacer. Op. cit. p. 171.
209
―Dumézil e Kerényi descreveram a vida do Flamen Diale, um dos sumos sacerdotes
da Roma clássica. A sua vida tem isto de particular, que ela é em cada momento indiscernível
das funções cultuais que o Flamen Diale cumpre. Por isto os latinos diziam que o Flamen
Diale é quotidie feriatus assiduus sacerdos, ou seja, está a cada instante no ato de uma
ininterrupta celebração. Consequentemente, não existe gesto ou detalhe da sua vida, de seu
modo de vestir ou caminhar que não tenha um preciso significado e que não esteja preso a
uma séria de vínculos e de efeitos minuciosamente inventariados. (...) Na vida do Flamen
Diale não é possível isolar algo como uma vida nua; toda a sua zoé tornou-se biós, esfera
privada e função pública identificam-se sem resíduos. Por isso Plutarco (com uma fórmula que
recorda a definição grega e medieval do soberano como a lex animata) pode dele dizer que é
hósper émpsykhon kaì hieròn ágalma, uma estátua sacra animada. AGAMBEN, Giorgio.
Homo sacer. Op. cit. pp. 188-189. Ítalo Calvino irá apresentar, de uma forma cômica, com seu
―O Cavaleiro Inexistente‖, o exemplo literário de um obscuro personagem que mantém-se
apenas enquanto bíos, o cavaleiro inexistente Agilulfo. Cf. CALVINO, Ítalo. O cavaleiro
inexistente. (Tradução Nilson Moulin). São Paulo : Cia. Das Letras, 1993.
humano/inhumano, la máquina funciona de modo necesario mediante
una exclusión (que es siempre también una aprehensión) y una inclusión
(que es también y ya siempre una exclusión). Precisamente porque lo
humano está ya presupuesto en todo momento, la máquina produce en
realidad una suerte de estado de excepción, una zona de
indeterminación en que el fuera no es más que la exclusión de un dentro
y el dentro, a su vez, no és más que la exclusión de un fuera.210
Agamben diferenciará uma intitulada máquina antropológica dos
modernos e dos antigos,211 contudo ambas só podem funcionar a partir da
instituição, em seus centros, de uma zona de indiferença em que se produz a
articulação entre o humano e o animal, entre o humano e o não-humano, o falante
e o vivente. Porém,
Como todo espacio de excepción, esta zona está en realidad,
perfectamente vacía, y lo que verdaderamente humano que debería
realizarse en ella es sólo el lugar de un decisión incesantemente
demorada, en que las cesuras y su articulación son siempre de novo dislocadas e desplazadas. Lo que debería ser obtenido así nos es en
cualquier caso ni una vida animal ni una vida humana, sino tan sólo una
vida separada y excluida de sí misma, nada más que una nuda vida.212
Assevera Agamben, em conclusão, que frente às figuras extremas
do inumano e do humano (e da implicação da vida nua que esta relação traz em
seu interior), não se trata tanto de perguntar-se qual das máquinas (ou variantes
das mesmas) seria mais eficaz – ou menos letal – todavia trata-se de
compreender seu funcionamento intrínseco para poder, eventualmente, levá-las à
inoperância.213
210
AGAMBEN, Giorgio. Lo abierto. El hombre y el animal. (Tradução Antonio
Cuspinera). Valência : Pré-textos, 2005. p. 52.
211
―Sea la máquina antropológica de los modernos. Funciona, como hemos visto,
excluyendo de sí como no humano (todavía) un ya humano, es decir, animalizando lo humano,
aislando lo no humano en el hombre: Homo alalus, o el hombre-mono. Ya basta con adelantar
algunas décadas nuestro campo de investigación y, en lugar de este inocuo hallazgo
paleontológico, encontraremos al judío, es decir, al –no-hombre producto del hombre, o al
néomort y el ultracomatoso, es decir, el animal aislado en el propio cuerpo humano. El
funcionamiento e la máquina de los antiguos es exactamente simétrico. Si, en la máquina de
los modernos, el fuera se produce por medio de la exclusión de un dentro y lo inhumano por la
animalización de lo humano, aquí el dentro se obtiene por medio de la inclusión de un fuera y
el no hombre por la humanización de un animal: el simio-hombre, el enfant sauvage, u Homus
ferus, pero también y sobre todo el esclavo, el bárbaro, el extranjero como figuras de un
animal con forma humana.‖ AGAMBEN, Giorgio. Lo abierto. Op. cit. p. 52.
212
AGAMBEN, Giorgio. Lo abierto. Op. cit. p. 53.
213
AGAMBEN, Giorgio. Lo abierto. Op. cit. p. 53.
Denunciar a biopolítica moderna, ou mesmo traçar paralelos entre
democracia de massas e totalitarismo, é apontar criticamente, acima de tudo, as
tentativas - dos mecanismos de poder - de cindir, de separar, uma vida nua da
vida humana (aí se tem a questão simbólica prevista nos direitos humanos, com a
previsão metafísica da vida nua matável e insacrificável elevada a núcleo central
de legitimação política). Ilumina-se assim a tese agambeniana de que o
―rendimento fundamental do poder soberano é a produção da vida nua como
elemento político original e como limiar de articulação entre natureza e cultura, zoé
e bíos.‖214 A vida nua não deixa de ser produzida pela maquinaria jurídico-política
do ocidente, derivando-se desta constatação a hipótese de que uma das peças
chave deste mecanismo repousa em uma ficção constitutiva.215
Desdobramento importante deste debate é a urgência de
ultrapassar seja um humanismo reducionista que não contemple, v.g., a figura do
muçulmano (entendido como forma não humana, o que a maquinaria nazista
também aceitou, respaldando a matança de seres humanos ―como piolhos‖), seja
uma redução biologicista, que veja nos seres humanos nada mais que animais
portando um suplemento à pura zoé (em certos matizes, Bataille e sua concepção
de soberania). Toda forma de separar no homem o animal, e vice versa,
fundamenta-se em um pressuposto metafísico que caberia à crítica do presente
desnudar.
A proposta de revisão de conceitos biunívocos como
humano-
inumano, bíos-zoé, natureza e cultura, fica muito bem explicitada na interpretação
agambeniana do conceito de práxis marxista (conceito que, para o filósofo italiano,
Walter Benjamin seria quem melhor compreendeu e metodologicamente aplicou
em seus escritos):
214
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 187. Itálico não original.
―A biopolítica é, nesse sentido, pelo menos tão antiga quanto à exceção soberana.
Colocando a vida biológica no centro de seus cálculos, o estado moderno não faz mais,
portanto, do que reconduzir à luz o vínculo secreto que une o poder à vida nua, reatando
assim (segundo uma tenaz correspondência entre moderno e arcaico que nos é dado verificar
nos âmbitos mais diversos) com o mais imemorial dos arcana imperii.‖ AGAMBEN, Giorgio.
Homo sacer. Op. cit. p. 14.
215
A práxis não é, na realidade, algo que tenha necessidade de uma
mediação dialética para reapresentar-se depois como positividade na
forma da superestrutura, mas é desde o início ‗aquilo que é
verdadeiramente‘, possui desde o início integridade e concretude. Se o
homem se descobre ‗humano‘ na práxis, isto não ocorre porque, além de
realizar primeiro uma atividade produtiva, ele transpõe esta atividade e a
desenvolve em uma superestrutura e, deste modo, pensa, escreve
poesias etc.; se o homem é humano, se ele é um Gattungswesen, um ser
cuja essência é o gênero, a sua humanidade e o seu ser genérico devem
estar integralmente presentes no modo como ele produz sua vida
material, a saber na práxis. Marx abole a distinção metafísica entre
animal e ratio, entre natureza e cultura, entre matéria e forma para
afirmar que, na práxis, a animalidade é humanidade, a natureza é cultura,
a matéria é a forma. Sendo assim, a relação entre estrutura e
superestrutura não pode ser nem de determinação causal nem de
mediação dialética, mas de identidade imediata.216
Para Agamben - ao comentar217 o texto-testamento de Deleuze,
―L‘immanence: une vie...‖ – será preciso, no que concerne ao conceito de vida,
iniciar-se uma busca genealógica sobre a qual só se pode antecipar que ela
Não se trata de uma noção médico-científica, mas de um conceito
filosófico-político-teológico e que, portanto, muitas categorias de nossas
tradição filosófica deverão ser repensadas por conseqüência. Nesta nova
dimensão, não terá muito sentido distinguir não só entre a vida orgânica e
vida animal, mas até mesmo entre vida biológica e vida contemplativa,
entre vida nua e vida da mente. À vida como contemplação sem
conhecimento corresponderá pontualmente um pensamento que se
soltou de toda cognitividade e de toda intencionalidade. A theoria e a vida
216
AGAMBEN, Giorgio. Infância e história. Op. cit. pp. 144-145.
Cf. AGAMBEN, Giorgio. A imanência absoluta. (Tradução Cláudio W. Veloso). In:
ALLIEX, Éric. Gilles Deleuze. Op. cit. pp. 169-192. Comentário que traz inúmeros rastros de
uma aproximação agambeniana para o conceito vida a partir de um plano de imanência
(conectando-se a uma tradição que tem em Espinosa um marco fundamental). ―Se uma clara
definição do conceito de ‗vida‘ parece faltar tanto a Foucault quanto a Deleuze, muito mais
urgente será então captar a articulação que ele dá ao ‗testamento‘. É decisivo aqui o fato de
sua função se revelar exatamente contrária à que a vida nutritiva desempenhava no
dispositivo aristotélico. Ao passo que este agia como o princípio que permitia atribuir a vida a
um sujeito (‗é através deste princípio que o viver pertence aos viventes‘), ‗uma vida...‘,
enquanto figura da imanência absoluta, é aquilo que não pode em caso algum ser atribuído a
um sujeito, matriz de de-subjetivação infinita. Em outras palavras, o princípio da imanência
funciona em Deleuze como um princípio antitético à tese aristotélica sobre o fundamento. E
mais: enquanto a prestação específica do isolamento da vida nua e crua era operar uma
divisão do vivente, que permitia distinguir nele uma pluralidade de funções a articular ma série
de oposições(vida vegetativa/vida de relação; animal exterior/animal interior; planta/homem e,
eventualmente, zoe/bíos, vida nua e crua e vida politicamente qualificada), ‗uma vida...‘ marca
a impossibilidade radical de traçar qualquer hierarquias e separações. O plano de imanência
funciona, em outros termos, como um princípio de indeterminação virtual em que o vegetal e o
animal, o dentro e o fora e, até mesmo, o orgânico e o inorgânico, se neutralizam e transitam
de um para o outro‖. Ibidem. pp. 183-184.
217
contemplativa, nas quais a tradição filosófica identificou por séculos seu
fim supremo, deverão ser deslocadas para um novo plano de imanência,
no qual não está escrito que a filosofia política e a epistemologia poderão
manter sua fisionomia atual e sua diferença em relação à ontologia.218
Reflexão que abre espaço à pormenorização do próximo
argumento-síntese deste trabalho.
3. O pensamento político contemporâneo enfrenta uma
situação de encruzilhada. De um lado uma tradição que delimita a esfera do
agir político nos horizontes da estatalidade ocidental e, do outro lado, o
fenecimento próprio deste modelo de estatalidade. Resta-lhe às mãos
fragmentos que terá de escolher (ou lançar fora) para pensar a política que
vem. Mas, com maior urgência ainda, coloca-se-lhe a oportunidade de
pensar fora dos binarismos e dicotomias biunívocas que presidiram a
estruturação de nossa tradição (oikos-pólis, bíos-zoé, público-privado,
universal-particular, natureza-cultura, humano-inumano, rural-urbano.. ad
nausean). Um pensamento não-dicotômico, depolar (e não bipolar), que
aceite as ambivalências e a contingência – assumidamente kairológico.
Rotas de fuga de uma teoria para nosso tempo.219
218
AGAMBEN, Giorgio. A imanência absoluta. Op. cit. p. 192.
De forma deliberada optamos, nas veredas desse fragmento, por uma técnica de
apresentação eminentemente citacional. É preciso ter em mente um aforismo (uma
quinquilharia) de Walter Benjamin, lançado em seu ―Rua de mão única‖, que ―citações em meu
trabalho são como salteadores no caminho, que irrompem armados e roubam ao passeante a
convicção‖. BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. (Obras escolhidas II). (tradução Rubens
Rodrigues Torres Filho; José Carlos M. Barbosa). 5º ed. São Paulo: Brasiliense, 1995. p.61.
Arendt, ao comentar tal metodologia, aduz que Benjamin tornou-se mestre ao descobrir que a
transmissibilidade do passado fora substituída por sua citabilidade e que, no lugar de sua
autoridade, surgira um estranho poder de se assentar aos poucos no presente e de privá-lo da
paz mental, a paz descuidada da complacência. (...) Essa descoberta da função moderna das
citações, segundo Benjamin, que a exemplificava com Karl Kraus, nascera do desespero –
não o desespero de um passado que recusa ‗lançar sua luz sobre o futuro‘ e deixa a mente
humana ‗vaguear na escuridão‘, como em Tocqueville, mas o desespero do presente e o
desejo de destruí-lo; daí que seu poder seja ‗não a força para preservar, mas para limpar,
arrancar do contexto, destruir (Schriften, vol. II, p. 192).‖ ARENDT, Hannah. Homens em
tempos sombrios. (Tradução Denise Bottmann). São Paulo : Companhia das Letras,1987. p.
142
219
Assumidamente nos defrontamos com uma proposta que mantém,
em si, apenas os aspectos supositivos do termo. Falar de um pensamento que
desloque as dicotomias é simplesmente pensar (de/em) um exterior de toda e
qualquer forma de tradição, limite apeleseano entre a lucidez e a loucura, entre a
(deleuziana) saúde e o estado clínico, buscando desestabilizar a própria fronteira
entre eles. Experiência nos limites da própria linguagem, buscando, porém, novas
topologias na linguagem.
O limite não está fora da linguagem, ele é seu fora: é feito de visões e
audições não-linguageiras, mas que só a linguagem torna possíveis. Por
isso há uma pintura e uma música própria da escrita, como efeitos de
cores e de sonoridades que se elevam acima das palavras. É através das
palavras, entre as palavras, que se vê e se ouve. Beckett falava em
‗perfurar buracos‘ na linguagem para ver e ouvir ‗o que está escondido
atrás‘. (...) Essas visões, essas audições não são um assunto privado,
mas formam as figuras de uma história e de uma geografia
incessantemente reinventadas. É o delírio que as inventa, como processo
que arrasta as palavras de um extremo a outro do universo. São
acontecimentos na fronteira da linguagem. Porém quando o delírio recai
no estado clínico, as palavras em nada mais desembocam, já não se
ouve nem se vê coisa alguma através delas, exceto uma noite que
perdeu sua história, suas cores e seus cantos. A literatura é uma
saúde.220
Tal aproximação só se torna viável em termos de fugidia
enumeração de figuras e metáforas. O tatear enunciativo.
Neutro. Neu-ter. Nem um nem outro. A figura da ambivalência e da
quebra das dicotomias. ―A contingência é a figura do ambivalente‖, Barthes, nos
seminários ministrados no Collège de France, entre 1977 e 1978, sobre ―O
Neutro‖:
1) Kairós: de kairós em kairós, espécie de apetite da contingência: pode
exprimir o ‗vazio‘, em sua desolação, a inação, a pusilanimidade, a
mundanidade. (...) Digo derrisório como imagem endoxal, sem
julgamento, pois a mundanidade, ou seja, a submissão à exaltação do
kairós, pode ter valor de radicalismo: fazer paralelo com o que Baudelaire
diz do H: ‗causa no homem uma exasperação da personalidade e um
sentimento muito intenso das circunstâncias e dos ambientes‘: a
mundanidade funciona como uma Droga. -} Radical, também, pois ela
pode ter o valor de: ―Nada a dizer (a escrever)‖ = sentido de Paludes.
Ora, nada diz (está aí, creio, uma posição do Neutro) que escrever é um
220
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. (Tradução Peter Pál Pelbart). São Paulo : Ed.
34, 1997. p. 09.
bem supremo – e há formas de mundanidade que são escritas: em
Proust, é preciso toda uma obra (O tempo perdido) para que a
mundanidade seja superada e desclassificada pela escrita: é uma
revelação que só se produz no fim extremo: a escrita expulsa a
mundanidade (o kairós), mas ao cabo de uma longa iniciação, de um
drama com novos episódios.221
O
Neutro,
como
ambivalência-contingente
ou
contingência-
ambivalente, ou nos termos barthesianos, a contingência como imagem elevada
do Neutro, o Neutro como permanente esquiva (mesmo ao kairós) e o confronto
com estruturas sistemáticas:
Em face (mas não propriamente contrário): do kairós, a contingência,
uma imagem elevada do Neutro, como não-sistema, como não-lei ou arte
da não-lei, do não sistema -} o estado Neutro do kairós é o esquivar-se à
sistematização mesma da contingência, à mundanidade como sistema,
como arrogância -} seria possível dizer, o Neutro escuta a contingência,
não se submete à ela -} pode portanto haver por fim inversão do kairós:
o ‗É tempo‘ vira ‗Já não é tempo‘ -} Tales (um dos sete sábios),‘A mãe
exortava-o a casar-se, ele respondeu: ‗Não, por Zeus, ainda não está na
hora‘. Ela o convidou outra vez, quando ele tinha mais idade, porém ele
disse: ‗Já passou da hora‘. -} esquiva perfeita do sistema, o próprio kairós
não funda um sistema, como nos sofistas,. Muito menos do objeto que
ele expunge: nenhum sistema do casamento ou do celibato, nem mesmo
pessoal (muito difícil chegar a isso, muito mais faze-lo ouvir).222
Neutro como karúmi e muga, mui-i (nos ideogramas japoneses,
lembrados pela ensaística leminskiana); um haikai de Bashô ou uma canção de
John Cage:
KARÚMI (a leveza)
‗karui‘, adjetivo, é ‗leve‘. Como uma pluma. Em seus últimos anos, dizem,
Bashô insistia muito neste conceito. ‗Karúmi‘ é não pesar a mão. Não
deixar a arte aparecer, na obra de arte. ‗Karúmi‘ é fazer as coisas de tal
forma que o necessário e o arbitrário, que estão sempre
indissoluvelmente ligados na obra de arte, não possam ser distinguidos.
É conseguir dar a impressão que um haikai que levou muito tempo para
atingir sua forma final pareça nascido na hora, ‗espontaneamente‘. É
ocultar a arte, fazer desaparecer o processo, fazer a arte parecer nãoarte. ‗Karúmi‘ é a qualidade que, dissolvendo e dissipando a fronteira
entre natureza e cultura, faz o artefato cultura parecer e aparecer como
um produto da natureza. ‗Heiter ist die Kunst‟ límpida é a arte, disse o
poeta alemão Schiller.
221
BARTHES, Roland. O Neutro. Anotações de aulas e seminários ministrados no
Collège de France, 1977/1978. Texto estabelecido por Thomas Clerc. (Tradução Ivone
Castilho Benedetti). São Paulo : Martins Fontes, 2003. p. 353-354.
222
BARTHES, Roland. Op. cit. p. 354.
MU-GA, MU-I (o não-Eu, o não-fazer)
Intimamente ligados ao conceito de ‗karúmi‘ os conceitos artísticos, mas
religiosos na base, de ‗muga‘ e ‗mu-i‘. ‗Mu-ga‘ é ‗não-Eu‘. ‗Mu-i‘ é nãoFazer‘. São conceitos taoístas incorporados pelo Zen Budismo. ‗Mu-ga‘ é
‗despersonalização‖, a condição para a verdadeira criação artística, que
se dá, pura, quando a ‗persona‘, a máscara convencional do nosso eu cai
e aflora a força original e indeterminada da nossa natureza, genérica e
coletiva, impessoal e anônima. A arte ocidental (principalmente a poesia)
sempre colocou ênfase exagerada na expressão do ‗eu‘, tendência
exacerbada pelo romantismo. ‗Mu-i‘, ‗não-fazer‘, é um conceito
tipicamente taoísta. E é um princípio dinâmico. Um fazer taoísta é um
fazer conforme o Tao, conforme a lógica intima do processo das coisas,
(...) vale dizer, um não-fazer. No terreno da criação artística, ‗mu-i‘
favorece a espontaneidade sábia, a entrega ao processo, a obliteração e
anulação de um ego que quer fazer algo, dando lugar a um criar que se
assemelha mais aos processos da natureza, um deixar-se ir, uma
Abertura. Tributário desta concepção, o músico de vanguarda americano
John Cage, que usa as indeterminações aleatórias do I-Ching, como
método de disciplinamento (a mortificação) do Ego. A obra é um fruto de
conjunções e conjunturas que independem de um eu que quer e, como
quer, faz. Disse um sábio chinês: ‗faça as coisas como elas mesmas
fariam, se pudessem.223
Neutro como gesto, a partir de uma reflexão estética de Giorgio
Agamben:
A comédia dell‟arte forneceria aos atores das telas as instruções que os
permitiria realizar situações nas quais um gesto humano subtraído às
potências do mito e do destino poderiam enfim existir. Não se
compreende nada da máscara cômica a partir do momento em que se
compreende como um personagem diminuído e indeterminado. Arlequim
ou o Doutor não são personagens, no sentido em que Hamlet e Édipo o
podem ser; as máscaras não são personagens, mas gestos
representados segundo um tipo, uma constelação de gestos. Na situação
em ato, a destruição da identidade do papel vai de par com a destruição
da identidade do autor. É a ligação mesma entre texto e execução que é
colocada aqui em causa. Pois entre o texto e sua execução insinua-se a
máscara, como mistura indiferenciada de potência e ato. E o que ocorre –
sobre a cena, na situação construída – não é atualização de um potência,
mas a liberação de uma potência posterior. Gesto é o nome desta
cruzada na qual se reencontram vida e arte, o ato e a potência, o geral e
o particular, o texto e a execução. Fragmento de vida subtraído do
contexto da biografia individual e fragmento de arte subtraído do contexto
da neutralidade estética: pura práxis. Nem valor de uso, nem valor de
troca, nem experiência biográfica, nem evento impessoal, o gesto é o
223
LEMINSKI, Paulo. Ventos ao vento. Rabiscos em direção a uma estética. In:
Ensaios e anseios crípticos. (Organização e seleção Alice Ruiz e Áurea Leminski). Curitiba :
Pólo editorial do Paraná : 1997. pp. 87-88.
inverso do mercado, que deixa precipitar na situação ‗os cristais desta
substancia social comum‘.224
Neutro como síntese-disjuntiva, à maneira deleuziana de pensar:
Desde Aristóteles, a lógica não tem sido senão a cifragem das
categorias, o triunfo da propriedade contra a impropriedade. Seria preciso
obter da univocidade deleuziana uma outra lógica; uma lógica na qual,
em relação às distribuições categoriais, não podemos nos contentar com
as conexões usuais. O ‗e‘, o ‗ou... ou‘, o ‗nem... nem‘: tudo isso extenua,
dilapida, a poderosa neutralidade do ser. Seria preciso pensar uma
sobreposição móvel do e, do ou, e do nem, para que se pudesse dizer: o
ser é neutro, porque toda conjunção é uma disjunção, porque toda
negação é uma afirmação. Esse conector de neutralidade, esse ‗e-ounem‘, Deleuze o nomeou síntese disjuntiva. E é preciso dizer: o ser,
como potência neutra, merece o nome de vida porque ele é, enquanto
relação, o ‗e-ou-nem‘, a síntese disjuntiva. Ou ainda, igualmente, a
análise conjuntiva, o ‗ou-e-nem‘. A vida, com efeito, é especificante e
individuante, ela separa e desliga; mas ela também incorpora, virtualiza e
junta. A vida é o nome do ser-neutro segundo sua lógica divergente,
segundo o ‗e-o-nem‘. Ela é a neutralidade criadora que se mantém no
meio da síntese disjuntiva e da análise conjuntiva.225
Tais posturas, ao menos nos parece, conectam-se com o
contemporâneo ultrapassamento (própria reorganização da economia simbólica no
ocidente), diagnosticado por Raúl Antelo, da cultura da materialidade e da
produção de sentido (―ainda regulada pela dialética entre gestão e recepção, o
amo e o escravo‖) para a entrada naquilo que o teórico intitula como a ―cultura das
supersensações ou da produção de presença‖. O Neutro como pharmakon
possível (e também como reflexo da) à vertigem das supersensações
Por presença entenda-se prioritariamente uma junção espacial, efetiva
colagem de descontinuidades físicas, e só secundariamente uma
aproximação ou montagem temporal, já explorada pela alta modernidade.
O que muda, decisivamente, neste presente, é a inexistência ou
esgotamento de qualquer tipo de presença ou plenitude, substituída
agora por uma aproximação ou distância de presença, que torna
qualquer essere – mesmo o qualquer um, qualunque, como argumentaria
Agamben – mera questão de interessere. Poderíamos nos valer de uma
ficção, como Smoke, de Paul Auster, para dar conta da mínima mudança
no cotidiano desenvolvido; porém, Clarice Lispector também nos oferece
variados e abundantes exemplos desse processo em âmbito brasileiro.
Aquilo que a autora de A hora da estrela chama de supersensações é a
224
AGAMBEN, Giorgio. . Moyens sans fins. Notes sur la politique. (Tradução para o
português Vinícius Nicastro Honesko). Paris : Éditions Payot & Rivages. p. 29.
225
BADIOU, Alain. Da vida como nome do ser. (tradução de Paulo Nunes) In: ALLIEZ,
Éric. Gilles Deleuze. Uma vida filosófica. São Paulo : Ed. 34, 2000. p. 162.
inversão pontual da imagem modernista de Drummond, impugnação
efetiva da técnica como religião do Estado: ‗são instantâneos fotográficos
das sensações-pensadas, e não a pose imóvel dos que esperam que eu
diga: olhe o passarinho! Pois não sou fotógrafa de rua‘. A supersensação
é o avesso do signo, explicação e implicação simultâneas do mesmo e do
outro, discordia concors ou dissonância irresolvida dos interstícios da
própria representação. Nessa dramática do suportável e do insuportável,
a supersensação afiança a condição larval do sujeito. (...) Não se
confunda, portanto, a supersensação com a vivência do mistério. Ela
ultrapassa inclusive a experiência de ruptura modernista e poderia ser
mais cabalmente entendida como experiência interior, maléfica, pósmetafísica, que se coloca além do princípio iluminista da festa para
redefinir a comunidade virtual como a da profanação e da desolação. A
supersensação, como modo original e, no entanto, repetível da
individuação, filia-se ao conceito de haecceitas (Duns Scot) a partir do
qual Deleuze imagina uma individuação não mais da forma, porém, na
forma, individuação intensiva e eventural, em que a ocorrência magnificase até atingir o nada.226
Errática
combustão
de
dicotomias
(des-dicotomização),
as
supersensações nos fazem pensar na subtração às esferas do universal e do
particular, do interior e do exterior, do dentro e do fora. ―(...) O texto é,
simultaneamente, interior e exterior, anterior e posterior, já que a linguagem,
eternamente dividida, interioriza a sensação em sua articulação.‖227 Resta
unicamente como singularidade definida tão somente pelo ser-dito. O exemplo, em
Agamben:
Um conceito que escapa à antinomia do universal e do particular é-nos
desde sempre familiar: é o exemplo. Qualquer que seja o âmbito em que
faça valer a sua força, o que caracteriza o exemplo é o facto de valer
para todos os casos do mesmo género e, simultaneamente, estar incluído
entre eles. Ele é uma singularidade entre as outras, que está no entanto
em vez de cada uma delas, vale por todas. Por um lado, todo exemplo é
tratado, de facto, como um caso particular real, por outro, reconhece-se
que não pode valer na sua particularidade. Nem particular nem universal,
o exemplo é um objecto singular que, digamos assim, se dá a vê como
tal, mostra a sua singularidade. Daí a pregnância do termo que em grego
exprime o exemplo: para-deigma, o que se mostra ao lado (como o
alemão Bei-spiel, o que joga ao lado). Por que o lugar próprio do exemplo
é sempre ao lado de si próprio, no espaço vazio em que se desenrola a
sua vida inqualificável e inesquecível. Esta vida é a puramente lingüística.
Só a vida na palavra é inqualificável e inesquecível. O ser exemplar é o
ser puramente lingüístico. Exemplar é aquilo que não é definido que não
é definido por nenhuma propriedade, excepto o ser-dito. Não é o ser226
ANTELO, Raúl. O percurso da supersensações.
Modernidade. Ponta Grossa: Ed. UEPG, 2001. p. 184-185.
227
ANTELO, Raúl. Op. Cit. p. 187.
In:
Transgressão
&
vermelho, mas o ser-dito-vermelho, não é o ser Jakob, mas o ser-ditoJakob, que define o exemplo. Daí sua ambigüidade a partir do momento
que decidimos levá-lo verdadeiramente a sério. O ser-dito – a
propriedade que funda todas as possíveis pertenças (o ser-dito italiano,
comunista) – é, de facto, também o que pô-las radicalmente em questão.
Ele é o Mais Comum, que se subtrai a toda comunidade real. Daí a
impotente omnivalência do ser qualquer. Não se trata nem de apatia nem
de promiscuidade ou resignação. Estas singularidades puras comunicam
apenas no espaço vazio do exemplo, sem estarem ligadas por nenhuma
propriedade comum, por nenhuma identidade. Expropriaram-se de toda
identidade, para se apropriarem da própria pertença, do sinal Є.
Tricksters ou vagabundos, ajudantes ou cartoons, eles são os
exemplares da comunidade que vem.228
É a partir de locais como o exemplo, e conseqüentemente, da
singularidade, é que, possivelmente, estejam abertas as brechas para pensar e
confrontar as zonas de indiscernibilidade que se disseminam para todos locais
simbólicos do ocidente (indistinções entre dentro e fora, exclusão inclusão, como a
figura do bando colocado como relação política originária). Ou melhor, emerge
como exigência pensar o próprio simbólico como trama formada pela dança
aleatória dos singulares, sendo tanto condição-condicionada quanto mediummaleável para estes. Um simbólico subtraído desde sempre das estruturas
coaguladas, um simbólico do devir, a tudo permeando como condiçãocontingencial do possível (tendo como núcleo não um arcabouço de enunciados
pairando externamente aos sujeitos, mas que esteja inscrito na enunciação
mesma destes). Um simbólico como ponto de cruzamento – inter-secção, intervalo
- ―o com‖, o ―entre‖, a sintaxe de uma irremediável con-temporização, e não uma
presumida matéria livre da relação, fora do tempo.229
228
AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. (Tradução Antônio Guerreiro).
Lisboa : Editorial Presença, 1993. p. 16-17.
229
C.f: ANTELO, Raúl. Propostas do curso ―Políticas do anacronismo‖, primeiro
semestre de 2007. In: www.cce.ufsc.br/pgl. Pesquisa realizada em 25 de fevereiro de 2007.
De certa maneira, tais reflexões avizinham-se da proposta deleuziana de devir. ―Devir não é
atingir uma forma (identificação, imitação, Mimese), mas encontrar a zona de vizinhança, de
indiscernibilidade ou indiferenciação tal que já não seja possível distinguir-se de uma mulher,
de um animal, de uma molécula: não imprecisos nem gerais, mas imprevistos, nãopreexistentes, tanto menos determinados numa forma quanto se singularizam numa
população. (...) O devir está sempre ‗entre, ou ‗no meio‘: mulher entre as mulheres, ou animal
do meio dos outros. Mas o artigo indefinido só efetua sua potência se o termo que ele faz devir
é por seu turno despojado das características formais que fazem dizer o, a (o animal que aqui
está). DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Op. cit. pp. 11-12. Seguindo tal reflexão, Jean-luc
Nancy afirma que a ―gênese‖ deleuziana nada mais é do que um devir, ―que se move no meio
As experiências radicais vivenciadas no ocidente (e suas margens)
no séc. XX, atingindo os mais variados campos e as mais diversas práticas de
saber,
arremessam
sua
própria
condição
espacial-temporal
no
magma
(Castoriadis) da indeterminação. Torna-se um truísmo afirmar que toda forma de
auto-referência – presentemente - está fadada ao fracasso (boa parte das
hipóteses lançadas no primeiro capítulo dizem respeito à urgência de pensar o
direito não mais na segmentação de uma auto-referência, como na tradição
normativista). A própria dimensão factual, por exemplo, das grandes metrópoles
contemporâneas, impõe um nivelamento daqueles saberes e significados antes
compartimentalizados em regionalidades. O embaralhamento de locais, a
supressão de fronteiras: epistemológicas, existenciais.
Porém, partimos de um confronto como o nivelamento caricato, que
guarda saudosismos dos locais postos e reconhecidamente afirmados (mesmo ao
preço do silenciamento e da imposição), ou que pense na indeterminação
subordinada a instâncias ou dispositivos de poder (num sentido foucaultiano do
termo), a exceção fictícia.
É preciso, a partir e na oportunidade das zonas de penumbra,
buscar pensar outras veredas (não apenas utopias, u-topos, porquanto caminhos
pensados nesses mesmos locais, não em outros), interromper a catástrofe sempre
iminente - ou simplesmente não a coonestar - no mínimo salvando-se das frias e
tétricas regiões infernais da resignação. Lembrando de uma provocação de
Agamben: ―É a partir destes terrenos incertos e sem nome, destas ásperas zonas
de indiferença, que deverão ser pensadas as vias e os modos de uma nova
política.‖230
Na convergência deste argumento, do mesmo filósofo, temos uma
provocação heurística de aproximação às nossas questões:
Na perspectiva arqueológica, que é a de minha pesquisa, as antinomias
(por exemplo, a da democracia versus totalitarismo) não desaparecem,
das coisas, não em sua origem em nem seu fim.‖ NANCY, Jean-luc. Dobra deleuziana do
pensamento. In: ALLIEZ, Eric. Gilles Deleuze. Uma vida filosófica. Op. cit. p. 112.
230
Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. (Tradução de Henrique
Burigo). Belo Horizonte, ed. UFMG, 2002. p.192
mas perdem seu caráter substancial e se transformam em campos de
tensões polares, entre as quais é possível encontrar uma via de saída.
Não se trata, então, de distinguir o que é bom do que é mal em
Heidegger ou em Schmitt. Deixemos isto aos bem pensantes. O
problema, sobretudo, é que se não se compreende o que se põe em jogo
no fascismo, não se chega a observar sequer o sentido da democracia.
(...) Meu método é arqueológico e paradigmático num sentido muito
próximo ao de Foucault, mas não completamente coincidente com ele.
Trata-se, diante das dicotomias que estruturam nossa cultura, de ir além
das exceções que as têm produzido, porém não para encontrar um
estado cronologicamente originário, mas, ao contrário, para poder
compreender a situação na qual nos encontramos. A arqueologia é,
nesse sentido, a única via de acesso ao presente. Porém, superar a
lógica binária significa, sobretudo, ser capaz de transformar cada vez as
dicotomias em bipolaridades, as oposições substanciais num campo de
forças percorrido por tensões polares que estão presentes em cada um
dos pontos sem que exista alguma possibilidade de traçar linhas claras
de demarcação. Lógica do campo contra lógica da substância. Significa,
entre outras coisas, que entre A e A se dá um terceiro elemento que não
pode ser, entretanto, um novo elemento homogêneo e similar aos
anteriores: ele não é outra coisa que a neutralização e a transformação
dos dois primeiros. Significa, enfim, trabalhar por paradigmas,
neutralizando a falsa dicotomia entre universal e particular. 231
A condição de possibilidade de serem questionadas as relações
mesmas que estruturam o pensamento político tradicional não deixa de estar
relacionada ao que Arendt diagnosticava como a quebra da autoridade da tradição
no mundo contemporâneo (a quebra da tradição como abertura ao questionar das
relações mesmas que a balizavam), o que não significa a perda da dimensão do
passado, porém daquelas coordenadas tidas como seguras a seu acesso, seja no
sentido de referências genericamente aceitas como tais, seja daquela cadeia que
aguilhoou ―cada sucessiva geração a um aspecto predeterminado do passado‖.
Isso tanto pode representar um horizonte exploratório de novos
usos do passado (novos usos das bipolaridades, ou o atravessamento delas) ou o
ressurgir do que ficou silenciado, ―poderia ocorrer que somente agora o passado
se abrisse para nós com inesperada novidade e nos dissesse coisas que ninguém
teve ouvidos ainda para ouvir‖, mas ao mesmo tempo, como ônus correlato à
perda da tradição, tem-se como presente um risco para a própria dimensão do
passado, a ameaça da amnésia, o que para Arendt significa a perda da ―dimensão
231
Entrevista com Giorgio Agamben. In: Revista do Departamento de psicologia da
UFF. vol.18 n.1. Niterói, Janeiro/Junho de 2006.
de profundidade na existência humana‖, algo que estaria muito explícito na
chamada abordagem desconstrucionista derridiana (e seu apego à categoria da
differánce) ou em boa parte daquilo que se convencionou intitular (abrangendo
certas conotações pejorativas) como estudos pós-modernistas.
Resta-nos perguntar: existirão saídas para amnésia e para o
anacronismo menardiano em nosso tempo?232 Ou melhor, saídas que não
impliquem um saudosismo pela figura de Funes?233 Estaríamos, como
contemporâneos, em busca da profundidade perdida entendida como projeto
232
Referimo-nos ao personagem Pierre Menard, do conto ―Pierre Menard – autor de
Quixote‖, de Borges. ―Não queria compor outro Quixote - o que é fácil -, mas o Quixote. Inútil
acrescentar que nunca enfrentou uma transcrição mecânica do original; não se propunha a
copiá-lo. Sua admirável ambição era produzir algumas páginas que coincidissem – palavra por
palavra e linha por linha – com as de Miguel de Cervantes. ‗Meu propósito é simplesmente
assombroso‘, escreveu-me em 30 de setembro de 1934, de Bayonne. ‗O termo final de uma
demonstração teológica ou metafísica – o mundo externo, Deus, a causalidade, as formas
universais – não é menos anterior e comum que meu divulgado romance. A única diferença é
que os filósofos publicam em agradáveis volumes as etapas intermediárias do seu trabalho e
eu resolvi perdê-las. De fato, não resta um único rascunho que ateste esse trabalho de anos.
O método inicial que imaginou era relativamente simples. Conhecer bem o espanhol,
recuperar a fé católica, guerrear contra os mouros e contra o turco, esquecer a história da
Europa entre os anos de 1602 e 1918, ser Miguel de Cervantes. Pierre menard estudou esse
procedimento (sei que conseguiu um manejo bastante fiel do espanhol do séc. XVII), mas o
afastou por considerá-lo fácil. Na realidade, impossível! - dirá o leitor. De acordo, porém o
projeto era de antemão impossível e, de todos os meios impossíveis para levá-lo a cabo, este
era o menos interessante. Ser no séc. XX um romancista popular do séc. XVII pareceu-lhe
uma diminuição. Ser, de alguma maneira, Cervantes e chegar ao Quixote pareceu-lhe menos
árduo – por conseguinte menos interessante – que continuar sendo Pierre Menard e chegar
ao Quixote mediante as experiências de Pierre Menard.‖ BORGES, Jorge Luis. Ficções.
(Tradução Carlos Nejar). São Paulo: Ed. Globo, 2001. p. 58.
233
Referimo-nos ao personagem Irineu Funes, de ―Funes, el memorioso‖ de Borges.
―Nós, de uma olhadela, percebemos três taças em uma mesa; Funes, todos os rebentos e
cachos e frutos que compreende uma parreira. Sabia as formas das nuvens austrais do
amanhecer do trinta de abril de mil oitocentos e oitenta e dois e podia compará-las na
lembrança aos veios de um livro encadernado em couro que vira somente uma vez e às linhas
da espuma que um remo levantou no Rio Negro na véspera da batalha do Quebracho. Essas
lembranças não eram simples; cada imagem visual estava ligada às sensações musculares,
térmicas, etc. Podia reconstruir todos os sonhos, todos os entresonhos. Duas ou três vezes
havia reconstruído um dia inteiro; nunca havia duvidado, porém cada reconstrução já tinha
requerido um dia inteiro. Disse-me: ‗Mais recordações tenho eu sozinho que as que tiveram
todos os homens desde que o mundo é mundo‘. E também: ‗Meus sonhos são como a vigília
de vocês‘. E, igualmente, próximo do amanhecer: ‗minha memória, senhor, é como um
despejadouro de lixos‘. Uma circunferência num quadrado negro, um triângulo retângulo, um
losango são formas que podemos intuir plenamente; o mesmo acontecia a Irineu com as
emaranhadas crinas de um potro, com uma ponta de gado numa coxilha, com o fogo mutável
e com a inumerável cinza, com os muitos rostos de um morto em um longo velório. Não sei
quantas estrelas via no céu. (...)‖. BORGES, Jorge Luis. Ficções. Op. Cit. p. 125.
político e teórico principal? Em que medida o anacronismo pode ser uma rota
possível de travessia?
Não obstante, seja qual for a resposta a tais perguntas, mais do
que nunca estamos imersos num tempo em que basta nos inclinarmos para
selecionar e catar fragmentos entre um monte de destroços. Em meio à destruição
da tradição (destruição prévia que todo colecionador precisa para retirar seu
precioso objeto do contexto maior onde se inseria) somos chamados, como Arendt
metaforiza, a pensar como pescadores de pérolas. Todavia, como o pescador que
desce ao fundo do oceano não para ―escavá-lo e trazê-lo a luz‖, mas ―para extrair
o rico e o estranho, as pérolas e o coral das profundezas, e trazê-los à superfície‖.
Ou seja,
esse pensar sonda as profundezas do passado - mas não para
ressuscitá-lo tal como era e contribuir para a renovação das eras extintas.
O que guia esse pensar é a convicção de que, embora o vivo esteja
sujeito à ruína do tempo, o processo de decadência é ao mesmo tempo
um processo de cristalização, que nas profundezas do mar, onde afunda
e se dissolve aquilo que outrora era vivo, algumas coisas ‗sofrem uma
transformação marinha‘ e sobrevivem em novas formas e contornos
cristalizados que se mantêm imunes aos elementos, como se apenas
esperassem o pescador de pérolas que um dia descerá até elas e as
trará ao mundo dos vivos – como ‗fragmentos de pensamento‘, como
algo ‗rico e estranho‘ e talvez mesmo como um perene Urphänomene.234
234
ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. Op. cit. p. 176. O conceito de
Urphänomene será retomado, a partir de Benjamin, no terceiro fragmento do capítulo III.
INTERVALO
Estertores da estatalidade: destroços na decisão.
Fenecimento do político: destroços no remanescente biopolítico.
Decisão sobre o vivente e o não vivente: mecanismos e resultados da máquina
antropológica que se estilhaça no presente - não mais se confina nas estritas
fronteiras da Ágora, do dispositivo estatal, ou do campo de concentração –
dissemina-se... De maneira vertiginosa até então desconhecida, porém, mantém
sua operacionalidade.
Indecidibilidade... Indiscernibilidades: aprofundamento e não retorno.
Uma ação que não tenha como resto uma vida nua, que não se manifeste na
exclusão-inclusiva: insalvável e irremediavelmente profana práxis.
“A partir de um certo ponto não há mais retorno. Esse é o ponto que deve ser
alcançado.” Franz Kafka. Aforismos.
3. UBIQÜIDADE DA EXCEÇÃO
1. O extravio do jurídico e o fenecimento do político no
presente do ocidente representam, de certa maneira, nada mais que
aspectos sintomáticos de uma indicernibilidade entre direito e política, e
indiferenciação destes com a própria vida. Algo que o sintagma vigência
sem significado (a Geltung ohne Bedeutung de Scholem), ou força de lei sem
lei (ou força de lei) de Agamben, representam com paradigmática
perspicácia.
Força de lei. Categoria proposta por Agamben a partir de uma
conferência que Jacques Derrida pronunciou em 1989, em Nova York.235 O texto
consistia numa leitura do ensaio de Walter Benjamin, ―Para uma Crítica da
Violência‖.
O sintagma força de lei, para o filósofo italiano, apóia-se em uma
tradição que pode ser remotamente associada ao direito romano e medieval,
referindo a um descolamento entre a eficácia da lei e sua essência formal,
podendo ser aludido à política moderna no fato - que se torna disseminado a partir
da primeira guerra mundial -236 de se dar força de lei a atos que não se revestem
dos qualificativos inerentes ao predicado legal, como decretos do poder executivo.
Agamben lembra que na Revolução Francesa, precisamente no
art. 6º da Constituição de 1791, esta expressão designava o valor supremo dos
atos expressos pela assembléia representante do povo, demonstrando um caráter
235
Force de loi: le fondement mystique de l‟autorité. Proferida na Cardozo School of
Law. Cf: AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p. 59.
236
―De fato, a progressiva erosão dos poderes legislativos do Parlamento, que hoje se
limita, com freqüência, a ratificar disposições promulgadas pelo executivo sob a forma de
decretos com força de lei, tornou-se desde então uma prática comum. A Primeira Guerra
Mundial – e os anos seguintes – aparece, nessa perspectiva, como o laboratório em que se
experimentaram e se aperfeiçoaram os mecanismos e dispositivos funcionais do estado de
exceção como paradigma de governo.‖ AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p.
19.
intangível da lei, que nem mesmo o soberano poderia sequer modificar. 237 Não
obstante, para Agamben, é em Kant que pela primeira vez na modernidade a
forma pura de lei, como ―vigência sem significado‖, é inscrita. ―Uma lei reduzida ao
ponto zero de seu significado e que, todavia, vigora como tal‖. Uma lei não
determinada por nenhum conteúdo específico (fundamentando sua ―pretensão
universal de aplicação prática em qualquer circunstância‖) seria uma antecipação
profética, em Agamben, dos regimes totalitários do séc. XX e das sociedades
espetacularizadas de massa. Onde ―a potência vazia da lei vigora a tal ponto que
se torna indiscernível da vida.‖238
Agamben pontua, nesse sentido, que o estado de exceção (em seu
livro homônimo, segunda parte da trilogia do Homo sacer) apresenta-se como um
dispositivo de difícil definição (aí seu não enquadramento nas referências da
cultura jurídica tradicional, que tende a relegar o estado de exceção a mera questi
facti), pois topograficamente encontra-se nos limites entre direito e política (na
―franja ambígua e incerta na intersecção do jurídico e do político‖; ―um ponto de
desequilíbrio entre o direito público e fato político‖), sendo – em uma das
hipóteses principais da teoria agambeniana – ―o dispositivo original graças ao qual
o direito se refere à vida e a inclui em si por meio de sua própria suspensão‖, ou
seja, corporifica-se em uma ―terra de ninguém, entre o direito público e o fato
político e entre a ordem jurídica e a vida.‖239 Situação que impõe - e Agamben
assumirá o papel de cartógrafo nesta rota - a urgência de determinar tais
fronteiras.
Antes, porém, de analiticamente confrontar o conceito de estado de
exceção (a partir, principalmente, das referências a Agamben, Schmitt e
Benjamin), o que será realizado no próximo tópico, buscaremos lançar algumas
problematizações a fim de pensar o conceito de força de lei e sua conexão
indissolúvel com a configuração da política e do direito contemporâneo (ou da
condição de amálgama a que estas dimensões foram lançadas no presente).
237
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p. 60.
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. pp. 50-60.
239
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p. 12.
238
O estado de exceção, para Agamben, possui como aporte
específico o isolamento desta força de lei em relação à lei propriamente dita, esta
cesura,
(...) define um ‗estado da lei‘ em que, de um lado, a norma está em vigor,
mas não se aplica (não tem ‗força‘) e em que, de outro lado, atos que não
têm valor de lei adquirem sua ‗força‘. No caso extremo, pois, a ‗força de
lei‘ flutua como um elemento indeterminado, que pode ser reivindicado
tanto pela autoridade estatal (agindo como ditadura comissária) quanto
por uma organização revolucionária (agindo como ditadura soberana). O
estado de exceção é um espaço anômico onde o que está em jogo é uma
força de lei sem lei (que deveria, portanto, ser escrita; força de lei ). Tal
força de lei, em que potência e ato estão separados de modo radical, é
certamente algo como um elemento místico, ou melhor, uma fictio por
meio da qual o direito busca se atribuir sua própria soberania. Como se
pode pensar tal elemento ‗místico‘ e de que modo ele age no estado de
exceção é o problema que se deve tentar esclarecer.240
Uma aproximação visando compreender este elemento místico da
força de lei, ou da vigência sem significado a ela implícita, pode ser retirada das
interpretações de Walter Benjamin e Gershom Scholem (em seu debate epistolar)
da parábola kafkiana ―Diante da lei‖, inserida no penúltimo capítulo de ―O
Processo‖.241
240
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p. 61.
―Diante da Lei está um porteiro. Um homem do campo dirige-se a este porteiro e
pede para entrar na Lei. Mas o porteiro diz-lhe que, por enquanto, não pode autorizar lhe a
entrada. O homem do campo reflete e depois pergunta se então poderá entrar mais tarde. —
‗É possível‘ – diz o porteiro. — ‗Mas não agora!‘. O porteiro afasta-se então da porta da Lei,
aberta como sempre, e o homem curva-se para olhar lá dentro. Ao ver tal, o porteiro ri-se e
diz. — ‗Se tanto te atrai, experimenta entrar, apesar da minha proibição. Contudo, repara sou
forte. E ainda assim sou o último dos porteiros. De sala para sala estão porteiros cada vez
mais fortes, de tal modo que não posso sequer suportar o olhar do terceiro depois de mim.‘ O
homem do campo não esperava tantas dificuldades. A Lei havia de ser acessível a toda a
gente e sempre, pensa ele. Mas, ao olhar o porteiro envolvido no seu casaco forrado de peles,
o nariz agudo, a barba a tártaro, longa, delgada e negra, prefere esperar até que lhe seja
concedida licença para entrar. O porteiro dá-lhe uma banqueta e manda-o sentar ao pé da
porta, um pouco desviado. Ali fica, dias e anos. Faz diversas diligências para entrar e com as
suas súplicas acaba por cansar o porteiro. Este faz-lhe, de vez em quando, pequenos
interrogatórios, perguntando-lhe pela pátria e por muitas outras coisas, mas são perguntas
lançadas com indiferença, à semelhança dos grandes senhores, no fim, acaba sempre por
dizer que não pode ainda deixá-lo entrar. O homem, que se provera bem para a viagem,
emprega todos os meios custosos para subornar o porteiro. Esse aceita tudo mas diz sempre:
— ‗Aceito apenas para que te convenças que nada omitiste.‘ Durante anos seguidos, quase
ininterruptamente, o homem observa o porteiro. Esquece os outros e aquele afigura ser-lhe o
único obstáculo à entrada na Lei. Nos primeiros anos diz mal da sua sorte, em alto e bom som
e depois, ao envelhecer, limita se a resmungar entre dentes. Torna-se infantil e como, ao fim
241
Scholem, na interpretação desta parábola, referirá o conceito de
―vigência sem significado‖ (Geltung ohne Bedeutung); a lei - em cuja porta aberta
espera o camponês - expressa um ―nada de revelação‖, significando ―um estágio
em que ela afirma ainda a si mesma pelo fato de que vigora (gilt), porém não
significa (bedeutet). Onde a riqueza do significado falha e o que aparece reduzido,
por assim dizer, ao ponto zero do próprio conteúdo, todavia não desaparece (e a
revelação é algo que aparece) lá emerge o nada.‖242 Para Scholem, tal lei
apresenta-se sobretudo na forma de sua inexeqüibilidade:
O mundo de Kafka é o mundo da revelação, embora naquela perspectiva
que se volta para o seu vazio, para o nada. (...) A inexeqüibilidade do
revelado fornece a chave para a compreensão do mundo kafkiano e
nisso coincide com uma teologia entendida corretamente. (...) O
problema, caro Walter, não é sua ausência num mundo pré-animista,
não. O problema é sua inexeqüibilidade. É sobre estes aspectos que
teremos de nos pôr de acordo. E aqueles estudantes, a que você se
refere no final, não são os que perdem o texto – embora não seja tanto
no mundo de Bachofen que uma coisa dessas possa acontecer! – mas
sim estudantes que não conseguem decifrá-lo.243
Georges Didi-Huberman, em um dos capítulos de seu opúsculo
―Ce que nous voyons, ce qui nous regard‖ - onde comenta Scholem e a parábola
kafkiana - afirma que
O motivo da porta é, por certo, imemorial: tradicional, arcaico, religioso.
Perfeitamente ambivalente (como lugar para passar além e como lugar
de tanto examinar o porteiro durante anos lhe conhece até as pulgas das peles que ele veste,
pede também às pulgas que o ajudem a demover o porteiro. Por fim, enfraquece-lhe a vista e
acaba por não saber se está escuro em seu redor ou se os olhos o enganam. Mas ainda
apercebe, no meio da escuridão, um clarão que eternamente cintila por sobre a porta da Lei.
Agora a morte está próxima. Antes de morrer, acumulam-se na sua cabeça as experiências de
tantos anos, que vão todas culminar numa pergunta que ainda não fez ao porteiro. Faz lhe um
pequeno sinal, pois não pode mover o seu corpo já arrefecido. O porteiro tem de se inclinar
até muito baixo porque a diferença de alturas acentuou-se ainda mais em detrimento do
homem do campo. — ‗Que queres tu saber ainda?‘, pergunta o porteiro. — ‗És insaciável.‘ —
‗Se todos aspiram a Lei‘, disse o homem. — ‗Como é que, durante todos esses anos, ninguém
mais, senão eu, pediu para entrar. O porteiro da porta, apercebendo se de que o homem
estava no fim, grita-lhe ao ouvido quase inerte. — ‗Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar,
porque só para ti era feita esta porta. Agora vou me embora e fecho-a." KAFKA, Franz. O
Processo. (Tradução de Modesto Carone). São Paulo: Brasiliense, 1998. p.230-232.
242
Cf. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 58. BENJAMIN, Walter;
SCHOLEM, Gershom. Correspondência. (Tradução Neusa Soliz). São Paulo : Perspectiva,
1993.
243
Em correspondência de Scholem a Benjamin, datada de 17.07.1943. In:
BENJAMIN, Walter; SCHOLEM, Gershom. Correspondência. Op. cit. p. 178.
para não poder passar), utilizado assim em cada peça, em cada recanto
das construções míticas (...). Sempre juízes ou guardiões se mantêm
diante delas; sempre elas se tornam estreitas nos ritos de passagem; os
próprios deuses se dizem portas por onde entrar na mais infinita fruição
(...) É que a porta é uma figura da abertura – mas da abertura
condicional, ameaçada ou ameaçadora, capaz de tudo dar ou de tudo
tomar de volta. Em suma, é sempre comandada por uma lei geralmente
misteriosa. Sua própria batida é a figura do double mind. Os livros
poéticos ou sapienciais, os livros proféticos da bíblia hebraica,
incansavelmente comentados, não cessam de tecer os motivos de portas
fechadas ou então abertas à força de lágrimas, de arrependimentos, de
feridas ou de assombros diante da lei divina. E a derrelição humana, a
busca desesperada do ‗sentido dos sentidos‘, ou da ‗presença real‘, tudo
isso terá com freqüência a figura das portas a passar, de portas a
abrir.‖244
Didi-Huberman lembrará que foi Scholem quem remontou à escola
rabínica de Cesaréia o motivo (também trazido por Orígenes) de um ―sentido dos
sentidos‖ (ou um Tabernáculo) onde se chegaria através de uma ―extensão
espacial de infinitas portas a abrir‖, em locais, porém, onde ―as chaves foram
perdidas, misturadas‖, e não na forma de uma ―revelação ascensional‖,
vulgarmente entendida como acesso à revelação mística. Eis o trecho de
Scholem, referido por Didi-Huberman:
Orígenes relata, em seu comentário dos Salmos, que um sábio
‗hebraico‘, certamente um membro da academia rabínica de Cesaréia,
lhe disse que as Escrituras sagradas se assemelhavam a uma grande
casa com muitas, muitas peças; diante de cada peça se encontra uma
chave, mas não é a certa. As chaves de todas as peças foram
misturadas, e é preciso (tarefa ao mesmo tempo enorme e difícil)
encontrar as chaves que abrirão as peças. 245
Para o teórico francês, em tal alegoria da exegese sagrada, ―a
abertura da porta – o acesso do desejo ao seu objeto, o acesso do olhar à ‗sua‘
coisa enfim desvelada – permanecerá virtual e, num certo sentido, interdita. Pois é
preciso primeiro o tempo para recompor todas as correspondências das chaves às
244
DIDI-HUBERMAN, Georges. O interminável limiar do olhar. In: O que vemos, o
que nos olha. (Tradução Paulo Neves). São Paulo : Ed. 34, 1998. pp. 234-236.
245
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos o que nos olha. Op. cit. p. 236. Trecho
citado da versão francesa ―La Kabbale et as symbolique‖, Payot, 1966, p. 20, tradução
brasileira, A cabala e seu simbolismo. 2º ed. (Tradução Hans Borger e J. Guinsbourg). São
Paulo: Editora Perspectiva, 1988.
fechaduras, e é fácil imaginar o aspecto propriamente labiríntico, infinito, de tal
trabalho.‖246
Tal análise está em estreita correspondência com a perspectiva
scholemniana.
Inexeqüibilidade
representada
no
grau
zero
de
uma
lei
irremediavelmente interditada (tem-se a porta, a abertura - mas a chave está
perdida). As lendas judaicas, que formariam - para Gershom Scholem – o único
quadro de referências para interpretar a parábola kafkiana, não seriam nada mais
que variações ou versões desta alegoria rabínica citada por Orígenes.
É inegável que a parábola de Kafka está permeada por motivos
mítico-judaicos, Didi-Huberman lembra que o camponês - o homem do campo - ―é
a figura tradicional do am ha harets, o iletrado, aquele que jamais se dedicou ao
estudo talmúdico; e o desenvolvimento geral da parábola poderá de fato ser visto
como a versão suplementar de um corpus exegético e assídico já construído.‖
Porém,
(...) o que soa ‗estranhamente‘ nessa narrativa, o que faz sua intensidade
absolutamente singular, é em primeiro lugar a ironia trágica pela qual,
longe de continuar uma tradição, Kafka a rompe e a despedaça –
exatamente porque a revela, exatamente porque revela toda sua
coerção. É o que mostra uma belíssima passagem consagrada à
narrativa kafkiana por Massimo Cacciari, em seu livro sobre os Ícones da
Lei: ‗Trágica é a ironia que o reconhecimento do naufrágio suscita nesse
lugar jamais alcançado; irônica é a situação dessa exegese desesperada
que visa o desvelamento da tradição.‘ O que isso quer dizer? Que Kafka
rompe nessa narrativa os elementos do mito – como fez com freqüência,
por exemplo quando inventa o ‗silêncio das Sereias‘ - mesmo que a
história seja aqui contada por um abade, no capítulo intitulado ‗na
catedral‘; mesmo que a porta permaneça aberta até o fim, contrariamente
a todas as versões tradicionais – aberta até que o homem do campo
morra em sua aura silenciosa.247
Nesse sentido, em rota oposta à interpretação scholemniana,
Walter Benjamin irá opor, frente à vigência sem significado - a interdição e a
inexeqüibilidade a ela vinculada (o permanecer da lei como pura forma) - a
imagem da lei que se torna indistinguível da própria vida, ou seja, temos, em
Benjamin, a deposição do misticismo da força de lei na afirmação de que ela é
246
247
Ibidem. Idem.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos o que nos olha. Op. cit. p.239.
indiscernível da vida (se vige, vige enquanto mera dissimulação mística da lei). A
derrelição frente à porta é aparente, porquanto estamos desde sempre
abandonados à consumação de uma lei que se tornou – integralmente – vida. O
que estaria sintomaticamente presente (para Agamben) no fato de que, no
Processo kafkiano, ―a existência e o próprio corpo de Josef K. coincidem, no fim,
com o Processo, são o Processo.‖248
Walter Benjamin, que assumidamente utiliza e assume os arranjos
teológicos em seus textos, refere, em uma das cartas a Scholem, que se volta
contra ―essa insuportável teologia profissional que domina a interpretação de
Kafka‖, contrariedade que fica explícita em sua interpretação sobre o sentido da
projeção do Juízo Final (no decurso da vida) na escritura kafkiana (análise que
melhor delineia sua singular posição frente aos enigmas que a parábola kafkiana
lança):
Essa projeção transforma o juiz em acusado? O processo, em pena?
Visa elevar ou enterrar a lei? Na minha opinião, Kafka não tinha resposta
a essas questões. No entanto, a forma em que as colocou e que procurei
determinar nas minhas explanações sobre o papel dos elementos
cênicos e gestuais nos seus livros, aponta para um estado do mundo
onde não há mais espaço para tais perguntas porque as respostas, muito
ao invés de nos esclarecer, nos distanciam delas. É essa estrutura, da
resposta distanciando da pergunta, que Kafka buscou, encontrando-a por
vezes na deslocação ou no sonho. De qualquer modo, não se pode dizer
que ele a tenha encontrado. E, por isso, o entendimento de sua produção
está ligado, entre outras coisas, ao simples reconhecimento de que ele
fracassou. ‗Ninguém conhece um caminho ao todo / e cada parte já nos
cega. Mas se você escreve: ‗E o teu Nada é a única é a única vivência
que lhe restou‘, acoplo a minha tentativa de interpretação precisamente
neste ponto e digo: tentei mostrar como Kafka procurou, tateando, a
salvação no reverso deste ‗nada‘, no seu forro, se é que posso
expressar-me nesses termos.249
É nesse sentido - do reverso, do forro deste nada – que Benjamin
irá se opor à vigência sem significado scholemniana (e, conseqüentemente, a todo
corpus exegético remotamente associado a Orígenes e sua imagem da Escritura
como múltiplas portas com chaves embaralhadas), ao argüir que a perda da chave
248
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p.60.
Carta de Benjamin a Scholem, datada de 20.06.1934. In: BENJAMIN, Walter;
SCHOLEM, Gershom. Correspondência. Op. cit. p. 180.
249
da escritura - uma escritura sem sua respectiva chave - deixa de ser escritura,
torna-se vida:
Isto tem a ver com a questão da escritura. Se os estudantes a perderam
ou se não conseguem decifrá-la, o resultado é o mesmo, porque a
Escritura sem sua respectiva chave não é escrita, e sim vida. Vida como
a que transcorre junto ao castelo no monte. Na tentativa de tentar
transformar a escrita em vida, vejo o sentido da ‗inversão‘ a que apontam
insistentemente várias parábolas de Kafka, entre as quais escolhi ‗a
próxima aldeia‘ e Kübelreiter (‗montado no balde‘).250
Giorgio Agamben pontuará que estamos diante de dois tipos de
niilismo no debate Scholem-Benjamin: um niilismo imperfeito (Scholem), e um
niilismo messiânico (Benjamin); representando, cada qual, pólos interpretativos
que podem ser dirigidos à análise do estado de exceção (cujo confronto parece
ser uma tarefa emergente à política do presente e do por vir). Para Agamben,
Se, conforme nossas análises precedentes, vimos na impossibilidade de
distinguir a lei da vida – ou seja, na vida tal como é vivida na aldeia ou no
pé do castelo – o caráter essencial do estado de exceção, então a
confrontar-se estão aqui duas diversas interpretações deste estado: de
um lado aquela (é a posição de Scholem) que nele vê uma vigência sem
significado, um manter-se da pura forma da lei além do seu conteúdo; do
outro, o gesto benjaminiano, para o qual o estado de exceção
transmutado em regra assinala a consumação da lei e o seu tornar-se
indiscernível da vida que deveria regular. A um niilismo imperfeito, que
deixa subsistir indefinidamente o nada na forma de uma vigência sem
significado, se opõe o niilismo messiânico de benjamin, que nulifica até o
nada e não deixa valer a forma de lei para além do seu conteúdo.251
Entre a vigência sem significado com seu Nada que permanece
como pura forma, temos, em Benjamin, a nadificação do próprio Nada, sua
inoperância (profanação) e transmutação (restituição) em vida. Há aí um
importante referencial para pensar a relação entre direito e vida - política e direito cuja relação está em correspondência direta com a teoria do estado de exceção
expressa
em
Benjamin
(e
no
desdobramento
analítico
agambeniano),
principalmente nas categorias de estado de exceção fictício e estado de exceção
efetivo lançadas na oitava das teses ―Sobre o conceito de história‖.
250
Carta de Benjamin a Scholem, datada de 11.08.1934. In: BENJAMIN, Walter;
SCHOLEM, Gershom. Correspondência. Op. cit. p.188.
251
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 61.
Algo mais sobre a parábola. Evidencia-se importante assinalar que
a metáfora (ou, por assim dizer, a imagem) da porta é, segundo Didi-Huberman,
―estruturada como um diante-dentro: inacessível e impondo sua distância, por
próxima que seja - pois é a distância de um contato suspenso, de uma impossível
relação de carne a carne. Isso quer dizer exatamente - e de maneira que não é
apenas alegórica – que a imagem é estruturada como um limiar.‖252
Agamben lembra, em um dos ensaios de ―A comunidade que vem‖,
que a noção de ―exterior‖ é expressa, em muitas línguas européias, com uma
palavra que significa ―à porta‖ (fores, em latim, significa a ―porta da casa‖, o que
em grego significaria, literalmente, ―na soleira‖). Portanto, para Agamben, ―o
exterior não é um outro espaço situado para além de um espaço determinado,
mas é a passagem, a exterioridade que lhe dá acesso – numa palavra: o seu
rosto, o seu eidos.‖253 A soleira não é outra coisa além, em relação ao limite (um
Nada, uma pura forma, etc.); é a experiência no próprio limite, o ―ser-dentro de
um exterior.‖254 Ek-stasis, ek-sistência.
A ex-ceção benjaminiana, em seu matriz não fictício (para dizer de
outra forma, pensada na integralidade da práxis), nos aponta para esta soleira (a
porta aberta que é um limite onde já estamos, onde se dá nossa vida). Limiar
interminável, estreita porta por onde entram os estilhaços do tempo messiânico. E
messiânico, nesse contexto, ―(...) não é uma outra figura, um outro mundo: é a
passagem da figura deste mundo‖:
(...) no tempo messiânico, o mundo salvo coincide exatamente com o
mundo perdido, que, nas palavras de Bonhoefer, ele deve viver agora
realmente no mundo sem Deus e que não lhe é permitido de modo algum
camuflar o ser-sem-Deus do mundo, pois o deus que o salva é o deus
que o abandona – que a salvação das representações (do como se) não
pode pretender salvar também a aparência da salvação. O sujeito
messiânico não contempla o mundo como se fosse salvo. Antes – nas
252
―Um quadro de porta aberta, por exemplo. Uma trama singular de espaço aberto e
fechado ao mesmo tempo. Uma brecha, ou uma rasgadura, mas trabalhada, construída, como
se fosse preciso um arquiteto ou um escultor para dar forma a nossas feridas mais íntimas.
Para dar, à cisão do que nos olha no que vemos, uma espécie de geometria fundamental.‖
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos o que nos olha. Op. cit. p. 243.
253
AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Op. cit. p. 54.
254
Ibidem. Idem.
palavras de Benjamin – contempla a salvação somente quando se perde
no insalvável (naquilo que não pode ser salvo).255
Como o condenado liberto da colônia penitenciária kafkiana, que
sobreviveu à destruição da máquina que deveria destruí-lo, o que resta, após a
deposição da lei, não é um vestígio místico de culpa e expiação. É uma iluminação
profana, diria Benjamin, que se derrama na testa daqueles que sobrevivem ao
Juízo final, aqueles que chegam à ―novissima dies‖ pós Juízo. ―Mas a vida que
começa na terra depois do último dia é simplesmente a vida humana.‖ 256 O tempo
messiânico nada mais é do que esta - irreparável, insalvável, profana – vida que
nos resta.257
Encaminhando-nos para a conclusão deste fragmento, é preciso
lembrar da proposta agambeniana, equiparável ao teor de um ―aviso de incêndio‖,
de que
A tarefa que o nosso tempo propõe ao pensamento não pode consistir
simplesmente no reconhecimento da forma extrema e insuperável da lei
como vigência sem significado. Todo pensamento que se limite a isso
não faz mais que repetir a estrutura ontológica que definimos como o
paradoxo da soberania (ou do bando soberano). A soberania é, de fato,
precisamente esta ‗lei além da lei à qual somos abandonados‘, ou seja, o
poder autopressuponente do nómos, e somente se conseguirmos pensar
o ser do abandono além de toda idéia de lei (ainda que seja na forma
vazia de uma vigência sem significado), poder-se-á dizer que saímos do
paradoxo da soberania em direção a um política livre de todo bando.
Uma pura forma de lei é apenas uma forma vazia da relação; mas a
forma vazia da relação não é mais uma lei, e sim uma zona de
indiscernibilidade entre lei e vida, ou seja, um estado de exceção.258
255
AGAMBEN, Giorgio. Il tempo che resta. (Tradução para o português Vinícius
Nicastro Honesko). Torino : Bollati Bolinguieri, 2000. p. 16.
256
AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Op. cit. p. 14.
257
―Revelação não significa revelação do caráter sagrado do mundo, mas apenas
revelação de seu caráter irremediavelmente profano.(O nome nomeia sempre e unicamente
coisas). A revelação confia o mundo à profanação e à coisalidade – e não é justamente isso o
que se passou? A possibilidade da salvação começa só neste ponto – é salvação do caráter
profano do mundo, do seu ser-assim. [Por isso, os que procuram voltar a sacralizar o mundo e
a vida são tão ímpios quanto os que desesperam por causa da sua profanação. Por isso, a
teologia protestante, que separa nitidamente o mundo profano do mundo divino, tem razão e
não tem, simultaneamente: tem razão porque o mundo foi irrevogavelmente confiado pela
revelação (pela linguagem) à esfera profana; não tem razão porque é precisamente enquanto
profano que ele será salvo.‖ AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Op. cit. p. 72.
258
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 66.
Comentário que abre caminho, portanto, às análises que serão
lançadas nos próximos tópicos.
2. Avizinhar-se da política e do direito ocidental evidencia-se,
acima de tudo, refletir sobre um conceito de exceção não só compreendido
como a excepcio a uma regra geral, mas uma exceção constitutiva da
própria regra (o “estado de exceção” como verdade do “estado normal”, do
paradoxo como verdade da própria regra). Além disso, é pensar que tal
constitutividade, no mundo contemporâneo saído da experiência totalitária e
imerso no dispositivo do espetáculo, manifesta-se não só em lapsos
historicamente fugazes de revelação (como os campos de concentração no
Terceiro Reich), mas de forma ubíqua e permanente.
Sören Kierkegaard é o teólogo citado por Carl Schmitt, quando o
jurista tratará de sua definição da exceção soberana.
(...) a exceção explica o geral e a sim mesma. E se desejamos estudar
corretamente o geral, é preciso aplicarmo-nos somente em torno de uma
real exceção. Esta traz tudo à luz muito mais claramente do que o próprio
geral. Lá pelas tantas ficaremos enfadados com o eterno lugar-comum do
geral; existem as exceções. Se não podem ser explicadas, nem mesmo o
geral pode ser explicado. Habitualmente não nos apercebemos da
dificuldade, pois se pensa no geral não com paixão, mas com uma
tranqüila superficialidade. A exceção ao contrário pensa o geral com
enérgica passionalidade.259
Nessa mesma ocasião, Carl Schmitt proporá que ―a filosofia da
vida concreta não pode subtrair-se à exceção e ao caso extremo, mas deve
interessar-se ao máximo por ele.‖ Nessa filosofia,
A exceção pode ser mais importante do que a regra, não por causa da
ironia romântica do paradoxo, mas porque deve ser encarada com toda a
seriedade de uma visão mais profunda do que as generalizações das
repetições medíocres. A exceção é mais interessante que o caso normal.
O normal não prova nada, a exceção prova tudo; ela não só confirma a
259
Cf.: SCHMITT, Carl. Teologia política. Quatro capítulos sobre a doutrina da
soberania. In: A crise da democracia parlamentar. Op. cit. p. 94. AGAMBEN, Giorgio.
Homo sacer. Op. Cit. 24.
regra, mas a própria regra vive da exceção. Na exceção, a força da vida
real rompe a crosta da mecânica cristalizada na repetição.260
―A força da vida real‖ que estilhaça, na exceção, a crosta da
―mecânica cristalizada na repetição‖. Uma sentença que, não fosse do local de
onde é proferida, estaria em simetria direta com boa parte dos postulados até aqui
analisados no presente trabalho. As razões destas simetrias e, principalmente, das
diferenças de matizes entre elas (por exemplo, entre Carl Schmitt e Walter
Benjamin), serão analisadas neste item.
Giorgio Agamben estabelece que a declaração de um ―estado de
emergência permanente‖ - a sua criação deliberada, independentemente de uma
declaração no sentido técnico-jurídico do termo - tornou-se, de medida
excepcional fruto de períodos de crise política, umas das práticas correntes e
essenciais dos Estados contemporâneos (inclusive os intitulados democráticos).261
O dispositivo da exceção torna-se a regra. E temos, no presente,
uma exceção ubíqua e permanente, hipótese que tentaremos ainda desenvolver.
Contudo, no aprofundamento da análise de Agamben, pode-se referir (para usar
de uma aproximação kierkegaardiana) que a categoria da exceção é a chave para
pensarmos a própria normalidade da política ocidental, seu fundamento
constitutivo. Abre-se, nessa rota, a inescapável contigüidade entre soberania e
exceção, tal como Schmitt a delineia, e cuja íntima proximidade o filósofo italiano
tentará problematizar.
A exceção é uma espécie de exclusão. Ela é um caso singular, que é
excluído da norma geral. Mas o que caracteriza propriamente a exceção
é que aquilo que é excluído não está, por causa disto, absolutamente
fora de relação com a norma; ao contrário, esta se mantém em relação
com aquela na forma da suspensão. A norma se aplica à exceção
desaplicando-se, retirando-se desta. O estado de exceção não é, por
tanto, o caos que precede a ordem, mas a situação que resulta da sua
260
SCHMITT, Carl. Teologia política. Quatro capítulos sobre a doutrina da soberania.
Op. cit. p. 94.
261
Elucidativa, nesse sentido, é a ―Breve história do estado de exceção‖ traçada por
Agamben no Homo sacer II, que diacronicamente abrange desde a origem do estado de sítio
durante a Revolução Francesa, às medidas legislativas tomadas pelo presidente
estadunidense George W. Bush, pós atentados de 11 de setembro. Cf. AGAMBEN, Giorgio.
Estado de exceção. Op. cit. pp. 24-38.
suspensão. Neste sentido, a exceção é verdadeiramente, segundo o
étimo, capturada fora (ex-capere) e não simplesmente excluída.262
A partir de tal configuração da exceção é que surge, na teoria
jurídico-política de Schmitt, a soberania como forma de exterioridade decisionista
sobre a própria exceção, estabelecendo a relação entre a vida e o direito, questi
facti e questi juri. Para Agamben:
A decisão não é aqui a expressão da vontade de um sujeito
hierarquicamente superior a qualquer outro, mas representa a inscrição,
no corpo do nómos, da exterioridade que o anima e lhe dá sentido. O
soberano não decide entre ilícito e lícito, mas a implicação originária do
ser vivente na esfera do direito, ou, nas palavras de Schmitt, a
‗estruturação normal das relações de vida‘, de que a lei necessita. A
decisão não concerne nem a uma questi juris nem a uma questi facti,
mas à própria relação entre direito e fato.263
A profunda e obscura significação do estado de exceção como
dispositivo original pelo qual o direito inclui em si o vivente, por meio de sua
própria suspensão, revelou-se contemporaneamente, segundo Agamben, em toda
sua nudez, na military order que o presidente dos Estados Unidos decretou em 13
de novembro de 2001 (motivadas como reação os atentados de 11 de setembro
de 2001). Tratou-se, nestas disposições executivas, de submeter os não-cidadãos
suspeitos pela atribuição genérica de atividade terrorista a jurisdições especiais
que previam inclusive sua indefinitive detention (detenção ilimitada) e o processo
perante comissões militares. O USA Patriot Act, de 26 de outubro de 2001,
autorizou o Attorney General a deter todo alien (estrangeiro) suspeito de colocar
262
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 25. Agamben lembrará que a exceção
está em posição estruturalmente simétrica à do exemplo. Porém, enquanto a exceção é uma
exclusão inclusiva (inclui o elemento que é expulso) o exemplo se trata de uma inclusão
exclusiva (―o paradoxo aqui é que o enunciado singular, que não se distingue em nada dos
outros casos do mesmo gênero, é isolado deles justamente por pertencer ao mesmo
número‖). Cf. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 29. Sobre a categoria do exemplo,
Agamben pontua, em ―A comunidade que vem‖ que ele escapa à antinomia do universal e do
particular. ―Qualquer que seja o âmbito que faça valer a sua força, o que caracteriza o
exemplo é o facto de valer para todos os casos do mesmo género e, simultaneamente, estar
incluído entre eles. Ele é uma singularidade ente outras, que está no entanto em vez de cada
uma delas, vale por todas.Por um lado, todo exemplo é tratado, de facto, como um caso
particular real, por outro reconhece-se que não pode valer na sua particularidade. Nem
particular nem universal, o exemplo é um objeto singular que, digamos assim, se dá a ver
como tal, mostra a sua singularidade. Daí a pregnância do termo que em grego exprime o
exemplo; para-deigma, o que se mostra ao lado. ( como o alemão Bei-spiel, o que joga ao
lado).‖ AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Op. cit. p. 16.
263
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 33.
em risco a segurança nacional ianque (sendo exigido, entretanto, que em sete
dias o estrangeiro fosse expulso ou então acusado de violar a lei de imigração ou
outro delito).264
Para Agamben, ―a novidade da ‗ordem‘ do presidente Bush está
em anular radicalmente todo estatuto jurídico do indivíduo, produzindo, desta
forma, um ser juridicamente inominável e inclassificável.‖ Os indivíduos
submetidos a estas disposições não gozam do estatuto legal de prisioneiros de
guerra (PWO, segundo a Convenção de Genebra) ou de acusados perante as leis
estadunidenses. Meros detainnes submetidos a uma dominação de fato, indefinida
num sentido temporal e quanto à sua caracterização jurídica.265
O filósofo esloveno Slavoj Zizek, sobre este assunto, lembra que
Num debate transmitido pela NBC, dois anos atrás, sobre o destino dos
detentos em Guantánamo, um dos argumentos esdrúxulos para justificar
a aceitabilidade ético-legal do status deles era que ‗eram aqueles a quem
as bombas deixaram de matar‘: já que tinham sido alvos de bombardeios
americanos e tinham sobrevivido a eles acidentalmente e como esses
bombardeios faziam parte de uma operação militar legítima, então não se
podia condenar o que foi feito com eles depois de terem sido feito
prisioneiros, após o combate -fosse qual fosse sua situação, era melhor,
e menos grave, do que estarem mortos. Esse raciocínio revela mais do
que pretende revelar: ele coloca o prisioneiro quase literalmente na
posição de morto-vivo, alguém que, de certa maneira, já está morto
(tendo sido destituído de seu direito à vida pelo fato de ter sido alvo
legítimo de um bombardeio assassino). (....) Assim, ele (Khalid Shaikh
Mohammed, acusado pelos atentados de 11 de setembro) e outros
prisioneiros semelhantes hoje são casos do que o filósofo político italiano
Giorgio Agamben descreveu como ‗homo sacer‘, aquele que pode ser
morto com impunidade, já que, aos olhos da lei, sua vida já deixou de ter
validade. Se os prisioneiros de Guantánamo estão situados no espaço
‗entre duas mortes‘, ocupando a posição de ‗homo sacer‘, legalmente
mortos (ou seja, privados de um status legal determinado) enquanto
ainda estão biologicamente vivos, as autoridades americanas que os
tratam dessa maneira também estão numa espécie de status legal
intermediário que forma a contrapartida ao ‗homo sacer‘.
Agindo como potência legal, seus atos deixaram de ser cobertos e
limitados pela lei - operam num espaço vazio que é sustentado pela lei,
mas não é regulamentado pelo Estado de Direito.266
264
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p. 14.
Ibidem. Idem.
266
ZIZEK, Slavoj. A volta dos mortos vivos. In: Caderno Mais (Folha de São Paulo).
São Paulo, 08 de abril de 2007.
265
Assevera Agamben que a única comparação possível da situação
de tais detainnes é a dos hebreus nos Lager nazistas, porquanto, ―juntamente com
a cidadania, haviam perdido toda a identidade jurídica, mas pelo menos
conservavam a identidade de judeus. Como Judith Butler mostrou claramente, no
detainne de Guantánamo a vida nua atinge sua máxima indeterminação.‖267
A partir deste exemplo recente pode(m) ser descortinada(s) a(s)
topografia(s) da exceção a partir de Agamben (principalmente na rota de sua
escavação arqueológica do conceito), ficando explícito, contudo, que ―o estado de
exceção não é um direito especial (como o direito da guerra), mas, enquanto
suspensão da própria ordem jurídica, define seu patamar ou seu conceito
limite.‖268
Na verdade, o estado de exceção não é nem exterior nem interior ao
ordenamento jurídico e o problema de sua definição diz respeito a um
patamar, a uma zona de indiferença, em que dentro e fora não se
excluem, mas se indeterminam. A suspensão da norma não significa sua
abolição e a zona de anomia por ela instaurada não é (ou, pelo menos,
não pretende ser) destituída de relação com a ordem jurídica.269
A tentativa mais rigorosa, segundo Agamben, de estabelecer uma
teoria do estado de exceção é a própria obra de Carl Schmitt (principalmente ―A
Ditadura‖ e a ―Teologia Política‖, ambas publicadas no início da década de 20, do
séc. XX), porquanto estabelece para a análise da exceção uma complexa relação
topológica (e não meramente topográfica) - e a própria compreensão deste
dispositivo, para o filósofo italiano, vincula-se à determinação de sua localização
(ou, deslocalização): seu topos relacional específico (sendo o conflito básico sobre
o estado de exceção a disputa sobre este local que lhe é inerente).
O objetivo dos dois livros de Carl Schmitt é inscrever, vincular, o
estado de exceção a um contexto jurídico. Schmitt reconhece que o estado de
exceção, à medida que instala uma suspensão do ordenamento jurídico, traz a
aparência de subtrair-se a toda consideração a partir do direito, todavia, a questão
267
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. pp. 14-15.
Ibidem. p. 15.
269
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p. 39.
268
que se coloca para o jurista alemão é justamente assegurar uma relação entre
estado de exceção e direito.270
Havendo a possibilidade de circunscrever os poderes conferidos nos
casos de exceção por meio de um controle mútuo ou de uma restrição
temporal ou, finalmente, como na regulamentação feita pelo Estado de
direito para o Estado de sítio, por meio da enumeração dos poderes
extraordinários – então a dúvida sobre a soberania recua um pouco mas
não é afastada. Um jurisprudência que se orienta pelas questões do diaa-dia e dos negócios correntes não tem interesse prático na soberania.
Para ela, só o normal pode ser compreendido, e o resto é só é uma
‗perturbação‘. Diante de um caso extremo ela se sente confusa, pois nem
toda atribuição excepcional, nem toda medida ou ordem emergencial
policial é um estado de exceção. É preciso muito mais do que isto para a
atribuição de um poder em princípio ilimitado, isto é, capaz de suspender
toda a ordem vigente. Assim que esta condição se instala, torna-se claro
que o Estado continua existindo, enquanto o direito recua. Como o
estado de exceção é ainda algo diferente da anarquia e do caos, no
sentido jurídico a ordem continua subsistindo, mesmo sem ser uma
ordem jurídica. A existência do estado mantém, nesse caso, uma
indubitável superioridade sobre a validade da norma jurídica. A decisão
liberta-se de qualquer ligação normativa e torna-se, num certo sentido,
absoluta. No caso da exceção o Estado suspende o direito em função,
por assim dizer, do direito à auto-preservação. 271
Paradoxal articulação - dirá Agamben - porquanto o que se
inscreve no direito revela-se essencialmente exterior a ele, haja vista que
corresponde à própria suspensão da ordem jurídica. Seja qual for o operador
desta inscrição (a distinção entre normas do direito e normas de realização do
direito, em ―A ditadura‖; ou a distinção entre norma e decisão, em ―Teologia
Política‖) – do estado de exceção na ordem jurídica – trata Schmitt de tentar
comprovar que a suspensão da lei ainda pertence ao domínio do direito, não
sendo apenas um exterior a-nômico.272
Compreende-se agora porque, na Politische Theologie, a teoria do
estado de exceção pode ser apresentada como doutrina da soberania. O
soberano, que pode decidir sobre o estado de exceção, garante sua
270
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p. 54.
SCHMITT, Carl. Teologia Política. Quatro capítulos sobre a doutrina da soberania.
Op. cit. p. 92.
272
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. 54. Lê-se, nesse sentido, na
teologia Política: ―Como no caso normal, em que o momento independente da decisão pode
ser reduzido a um mínimo, no caso da exceção a norma é eliminada. Mesmo assim, o caso
de exceção continua acessível ao reconhecimento jurídico, porque ambos os elementos, tanto
da norma quanto a decisão, permanecem no âmbito jurídico.‖ SCHMITT, Carl. Op. cit. Idem.
271
ancoragem na ordem jurídica. Mas, enquanto a decisão diz respeito aqui
à própria anulação da norma, enquanto, pois, o estado de exceção
representa a inclusão e a captura de um espaço que não está fora nem
dentro (o que corresponde à norma anulada e suspensa) ‗o soberano
está fora [steht ausserhalb] da norma jurídica normalmente válida e,
entretanto, pertence [gehört] a ela, porque é responsável pela decisão
quanto à possibilidade da suspensão in totto da constituição. Estar-fora e,
ao mesmo tempo, pertencer; tal é a estrutura topológica do estado de
exceção, e apenas porque o soberano que decide sobre a exceção é, na
realidade, logicamente definido por ela em seu ser, é que ele pode ser
definido pelo oximoro êxtase-pertencimento.273
Para Schmitt, portanto, o estado de exceção introduziria uma zona
de anomia no jurídico, que tornaria possível a ordenação efetiva do real.274 Nesse
sentido, para Agamben, o estado de exceção não seria uma ditadura, ou o
domínio arbitrário de um soberano, mas um espaço vazio de direito (aí explicando
as correlações entre estado de exceção e o iustitium do direito romano,
correspondência desenvolvida por Agamben do capítulo terceiro de seu ―Estado
de Exceção‖)275, espaço vazio que, em Schmitt, caberia à decisão soberana
suturar.
É preciso, entretanto, lançar aqui alguns pontos principais do
debate esotérico (segundo Agamben) que travaram, sobre o estado de exceção,
Carl Schmitt e Walter Benjamin (iniciado em 1925 e com desdobramentos até
1956).276
273
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. pp. 56-57.
Em convergência com este argumento, lembrará Agamben que ―o direito tem
caráter normativo, é ‗norma‘ (no sentido próprio de ‗esquadro‘) não porque comanda e
prescreve, mas enquanto deve, antes de mais nada, criar o âmbito da própria referência na
vida real, normalizá-la. Por isto – enquanto, digamos, estabelece as condições desta
referência e, simultaneamente, a pressupõe – a estrutura originária da norma é sempre do
tipo: ‗Se (caso real, p. ex.: si membrum rupsit), então (conseqüência jurídica, por ex.: talio
est)‘, onde um fato é incluído na ordem jurídica através da sua exclusão e a transgressão
parece preceder e determinar o caso lícito.‖ Cf.: AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p.
33.
275
Cf. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. pp. 65-80.
276
Para Agamben, o dossiê de tal discussão estaria corporificado na citação, por parte
de Benjamin, da ―Teologia Política‖ schmittiana em ―Origem do drama barroco alemão‖; o
curriculum vitae benjaminiano, de 1928; e a carta de Benjamin a Schmitt, de dezembro de
1930 (que Taubes chegou a definir como ―uma bomba que podia detonar nosso modo de
representar nossa história intelectual do período de Weimar); as referências a Benjamin no
livro Hamlet ed Ecuba, de Schmitt (dezesseis anos após a morte de Benjamin) além de seu
livro sobre Hobbes, de 1938 (que o próprio Schmitt declarou, em carta a Viesel, tratar-se de
uma resposta a Benjamin). Entretanto, conforme Agamben procura demonstrar, deve-se levar
274
Uma das partes mais importante deste dossiê diz respeito às
leituras e comentários que Schmitt fará do ensaio benjaminiano ―Crítica da
violência, crítica do poder‖,277 de 1920.
Trata-se, para Benjamin, de estabelecer (nesse ensaio) uma
violência-poder no exterior (ausserhalb) ou além do direito (jenseits), rompendo a
dialética da violência que instaura e conserva o direito. É preciso lembrar que o
termo que Benjamin se refere, Gewalt, pode ser utilizado tanto no significado de
violência quando no de poder. Esta violência pura ou poder puro (reine278 Gewalt)
simplesmente deporia (entsetzt) o direito. O termo schmittiano decisão
(Entscheidung) surge também em Benjamin, mas ele é relacionado à
indecidibilidade dos conflitos jurídicos, não sendo nada mais que uma categoria de
contornos metafísicos (vide tópico II do primeiro capítulo).
A hipótese agambeniana sobre o debate Benjamin-Schmitt é a de
que toda a construção da soberania, na Teologia Política schmittiana, será uma
resposta à categoria da violência pura/poder puro de Benjamin, que escaparia
tanto ao poder constituinte quanto ao poder constituído. E a definição
benjaminiana do soberano barroco na ―Origem do Drama Barroco Alemão‖
representaria uma tréplica ao conceito de soberania de Schmitt. Lá está exposta a
teoria de uma ―indecisão soberana‖ (Benjamin usará o termo Ernsfall para se
referir à exceção, que em Schmitt aparecerá como Ausnahmezustand). ―Se, para
em consideração como primeiro documento do dossiê a leitura Schmittiana do ensaio de
Benjamin - ―Crítica da Violência‖ - e analisar a própria concepção de soberania em Schmitt
como uma contraposição e resposta à proposta benjaminiana. Como extrato importantíssimo
no debate não se pode esquecer, finalmente, da oitava das teses benjaminianas sobre a
filosofia da história. Cf. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. pp. 83-84.
277
Edição brasileira publicada em: BENJAMIN, Walter. Crítica da Violência – Crítica
do Poder. In: Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie. Escritos escolhidos.
(Tradução Willi Bolle). São Paulo, Editora USP/Cultrix, 1986.
278
Em uma carta de Benjamin a Stifer, em janeiro de 1919, em cuja fonte Agamben
encontra o conceito de pureza (Reinheit), que pressupõe um significado não substancial, mas
relacional de pureza: ―É um erro pressupor, em algum lugar, uma pureza que consiste em si
mesma e que deve ser preservada [...] A pureza de um ser nunca é incondicionada e absoluta,
é sempre subordinada a uma condição. Essa condição é diferente segundo o ser de cuja
pureza se trata, mas nunca reside no próprio ser. Em outros termos, a pureza de todo ser
(finito) não depende do próprio ser. [...] Para a natureza, a condição de sua pureza que se
situa fora dela é a linguagem humana.‖ AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p.
94.
Schmitt, a decisão é o elo que une soberania e estado de exceção, Benjamin, de
modo irônico, separa o poder soberano de seu exercício e mostra que o soberano
barroco está, constitutivamente, na impossibilidade de decidir.‖279
De tal modo que a exceção, na abordagem benjaminiana do
barroco alemão, se configura unicamente como catástrofe.
Essa drástica redefinição da função da soberania implica uma situação
diferente do estado de exceção. Ele não aparece mais como limiar que
garante a articulação entre um dentro e um fora, entre anomia e contexto
jurídico em virtude de uma lei que está em vigor na sua suspensão: ele é,
antes, uma zona de absoluta indeterminação entre anomia e direito, em
que a esfera da criação e a ordem jurídica são arrastadas em uma
mesma catástrofe.280
Enquanto, em Schmitt, a maquinaria jurídico-política é mantida no
elo entre soberania e exceção (sua celebérrima e constantemente repetida
afirmação, que abre sua Teologia Política, de que ―soberano é aquele que decide
sobre o estado de exceção‖281), em Benjamin temos a afirmação de que entre
Macht e Vermögen, o poder e seu exercício, abre-se um fosso irrecuperável,
mesmo para uma decisão soberana. O paradigma do estado de exceção
benjaminiano não é o milagre, mas a catástrofe, não há correspondência entre
soberania
e
transcendência
(agambenianamente
falando,
o
poder
autopressuponente do soberano é desativado). Agamben lembrará que, em
Benjamin, o soberano fica fechado no âmbito da criação, é o senhor das criaturas,
mas permanece criatura‖,282 não sendo uma extensão do poder divino na terra,
não conduzindo a humanidade para um ―além redimido‖, local previsto para o
soberano em Schmitt.283
279
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p. 87.
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p. 88.
281
SCHMITT, Carl. Teologia política. Quatro capítulos sobre a doutrina da soberania.
Op. Cit. p. 86.
282
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p. 89.
283
―Se apenas Deus é soberano, isto é, aquele que na realidade terrena age
indiscriminadamente como seu representante – o imperador, o proprietário de terras ou o povo
(aqueles que podem identificar-se com o povo) -, é uma pergunta sempre dirigida ao sujeito da
soberania, a aplicação do conceito numa situação concreta.‖ SCHMITT, Carl. Teologia
política. Quatro capítulos sobre a doutrina da soberania. Op. Cit. p. 90.
280
O ponto culminante do debate, entretanto, será a oitava das teses
benjaminianas ―Sobre o conceito de história‖, onde se lê:
A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção no qual
vivemos é a regra. Precisamos chegar a um conceito de história que dê
conta disso. Então surgirá diante de nós nossa tarefa, a de instaurar o
real estado de exceção; e graças a isso, nossa posição na luta contra o
fascismo tornar-se-á melhor.284
Além de uma nítida proposta temporal, de acordo com os
propósitos das teses, mas também diretamente vinculada a ela, temos uma
exceção que se torna a regra (transmuta-se, ademais, em vida) e torna o
funcionamento do dispositivo (o estado de exceção fundado na decisão
transcendente do soberano, e na própria distinção entre normalidade e exceção)
impossível. De maneira que, tal proposta, para Agamben, coloca em questão a
teoria schmittiana, porquanto ―a decisão soberana não está mais em condições de
realizar a tarefa que a Politische Theologie lhe confiava: a regra, que coincide
agora com aquilo de que vive, se devora a si mesma.‖285
Um pequeno parêntesis deve ser interposto nesse ponto do
debate. Analisando-se os principais movimentos totalitários que emergiram no séc.
XX, pode-se afirmar que estes se caracterizam justamente por solapar as antigas
formas de governo (que estariam ainda representadas em seus desvios ditatoriais
e autoritários), e, de certo modo, tornam regra a exceção (que conceitos como
domínio total, ou mesmo totalitarismo, tentaram abarcar). Imprescindível é lembrar
das advertência de Arendt ao iniciar, v.g., o quarto capítulo sobre o Totalitarismo ―Ideologia e Terror, uma nova forma de governo‖ - em sua investigação sobre ―As
origens do totalitarismo‖:
Nos capítulos precedentes, reiteramos o fato de que os métodos de
domínio total não são apenas mais drásticos, mas que o totalitarismo
difere essencialmente de outras formas de opressão política que
conhecemos, como o despotismo, a tirania e a ditadura. Sempre que
galgou o poder, o totalitarismo criou instituições políticas inteiramente
novas e destruiu todas as tradições sociais, legais e políticas do país.
Independentemente da tradição especificamente nacional ou da fonte
284
BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de história. In: LÖWI, Michel. Walter
Benjamin: aviso de incêndio. Op. cit. p. 83.
285
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p. 91.
espiritual particular de sua ideologia, o governo totalitário sempre
transformou as classes em massas, substitui o sistema partidário não por
ditaduras unipartidárias, mas por um movimento de massa, transferiu o
centro do poder do exército para a polícia e estabeleceu uma política
exterior que visava abertamente ao domínio mundial. Os governos
totalitários de nosso tempo evoluíram a partir de sistemas unipartidários;
sempre que estes se tornaram realmente totalitários passavam a operar
segundo um sistema de valores tão radicalmente diferentes de todos os
outros que nenhuma das nossas tradicionais categorias utilitárias –
legais, morais, lógicas ou de bom senso – podia mais nos ajudar a
aceitar, julgar ou prever o seu curso de ação.286
Apresenta-se com obviedade o fato - que Michel Löwi apresentará
como defesa a Benjamin - de que as manifestações mais drásticas destas
funestas novidades no campo da história ocidental - consubstanciadas nas
experiências totalitárias – somente serão desenvolvidas após a morte do filósofo
judeu, no período entre 1941-1945.287 Por outro lado, não se pode negar que o
próprio debate entre Benjamin e Schmitt288 – e a correlata teoria da exceção a ele
compreendido – parecia ser, nas palavras de Taubes, uma bomba prestes a
irromper no mundo intelectual weimariano (posteriormente Derrida, na conferência
sobre o ensaio benjaminiano, textualmente equipara a reine Gewalt à ―solução
final‖ nazista).
Mais do que nunca, contudo, é preciso evidenciar a singularidade
da teoria benjaminiana, principalmente na aproximação entre seus conceitos de
estado de exceção efetivo e estado de exceção fictício (ou tout court), tentando
perceber em que medida ela propõe o ultrapassamento mesmo da exceção fictícia
totalitária (na medida em que esta, mais do que nunca, depende da máquina
antropológica jurídico-política ocidental, mesmo que dos estertores mortíferos dos
seus mecanismos - fenecimento, não raro, que ela mesma provoca; ou ela traria à
luz o fundamento constitutivo da máquina, que a normalidade não permitiria ver,
para falar em termos agambenianos).
286
ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Op. cit. p. 512.
Cf. LÖWI, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Op. Cit. p. 84.
288
Em dezembro de 1930, juntamente com um exemplar de ―Origem do Drama
Barroco Alemão‖ Benjamin envia uma carta a Carl Schmitt, manifestando sua admiração
(Hochshätzung) e reconhecendo sua influência sobre o Trauerspielbuch. Cf. Ibidem. Idem.
287
Talvez possa ser possível afirmar que a exceção efetiva
benjaminiana
representa
nada
mais
que
uma
luminescência
teórica
(extremamente heurística) – facho de luz relampejante em um momento de perigo
(para usar de uma metáfora atrelada ao filósofo, dita no mesmo contexto das
teses, seus últimos escritos) – para pensar o próprio local do político na ocasião
da exceção que se torna a regra, o local onde o político manifestar-se-ia
instantaneamente, fora dos ocultamentos de uma tradição irrevogavelmente
subtraída, porém correndo o risco de ser afogado de maneira súbita pela
maquinaria em colapso.
Tal proposta será melhor explicitada
a partir da análise
benjaminiana da modernidade vazia que emerge após primeira guerra mundial,
onde o filósofo tratará de uma nova barbárie que acompanha o fim da experiência
(Erfahrung), ou da transmissibilidade de toda e qualquer experiência (baseada na
narrativa) que acompanhará as gerações saídas das drásticas rupturas
vivenciadas pelo mundo nas primeiras décadas do séc. XX.289
289
Cf.: BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza (1933). In: Magia, técnica, arte e
política: ensaios sobe literatura e história da cultura. (tradução Sérgio P. Rouanet). 7.ed. São
Paulo : Brasiliense, 1994. pp. 114-119. Jeanne Marie Gagnebin apresenta as três condições
de realização da transmissibilidade da experiência que, para Benjamin, já não existiriam no
mundo moderno capitalista das primeiras décadas do séc. XX. Seriam as seguintes: ―a) a
experiência transmitida pelo relato deve ser comum ao narrador e ao ouvinte. Pressupõe,
portanto, uma comunidade de vida e de discurso que o rápido desenvolvimento do
capitalismo, da técnica, sobretudo, destruiu. A distância entre os grupos humanos,
particularmente entre as gerações, transformou-se hoje em abismo porque as condições de
vida mudam em um ritmo demasiado rápido para a capacidade humana de
assimilação.Enquanto no passado o ancião que se aproximava da morte era o depositário
privilegiado de uma experiência que transmitia aos mais jovens, hoje ele não passa de um
velho cujo discurso é inútil. b) Esse caráter de comunidade entre vida e palavra apóia-se ele
próprio na organização pré-capitalista do trabalho, em especial na atividade artesanal. O
artesanato permite, devido a seus ritmos lentos e orgânicos, em oposição à rapidez do
processo de trabalho industrial, e devido ao seu caráter totalizante, em oposição ao caráter
fragmentário do trabalho em cadeia, por exemplo, uma sedimentação progressiva das
diversas experiências e uma palavra unificadora. O ritmo do trabalho artesanal se inscreve em
um tempo mais global, tempo onde ainda se tinha, justamente, tempo para contar. Finalmente,
de acordo com Benjamin, os movimentos precisos do artesão, que respeita a matéria que
transforma, têm uma relação profunda com a atividade narradora: já que esta também é, de
certo modo, uma maneira de dar forma à imensa matéria narrável, participando assim da
ligação secular entre a mão e a voz, entre o gesto e a palavra. c) A comunidade da
experiência funda a dimensão prática da narrativa tradicional. Aquele que conta transmite um
saber, uma sapiência, que seus ouvintes podem receber com proveito. Sapiência prática, que
muitas vezes toma a forma de uma moral, de uma advertência, de um conselho, coisas que,
Ao lado da nova forma de miséria surgida com o vertiginosamente
monstruoso desenvolvimento da técnica que se sobreporá ao homem (este sujeito
que passa a estar ―nu, deitado como um recém nascido nas fraldas sujas de nossa
época‖), entre outros aspectos de uma barbárie catastrófica e galvanizadora sinônimo de uma irrecuperável perda de profundidade para a experiência humana
- tem-se também, como outro lado da moeda e relacionada a esta mesma
devastação (para Benjamin), um conceito novo e positivo de barbárie, onde
estariam incluídos ―os homens implacáveis que operaram a partir de uma tabula
rasa‖, tendo como característica ―uma desilusão radical com o século mas ao
mesmo tempo uma total fidelidade a este mesmo século‖, aqueles ―que fizeram do
novo uma coisa essencialmente sua, com lucidez e capacidade de renúncia.‖290
No conceito de estado de exceção efetivo novamente nos
defrontamos com um nada - um vazio - a ser nulificado, deposto; uma forma de
ação inoperante não inscrita nas estruturas do dispositivo. É preciso não esquecer
que uma das premissas elementares do pensamento de Schmitt é a crítica à
equiparação,
operada
na
modernidade
jurídico-política
ocidental,
entre
estatalidade e política, ou o reducionismo da política à estatalidade (redução que
para Schmitt não seria nada mais que sintomas de uma normalidade sempre
instável e provisória, mantendo-se adequadamente quando ―Estado e as
instituições estatais puderem ser pressupostas como algo evidente e sólido‖).291
Entretanto, esta equivalência (sempre fundada em pressuposições), além de
ilusória, haverá necessariamente de ser revista quando esta ―normalidade― jurídica
hoje, não sabemos o que fazer de tão isolados que estamos, cada um em seu mundo
particular e privado. Ora, diz Benjamin, o conselho não consiste em intervir do exterior na vida
de outrem, como interpretamos muitas vezes, mas em ‗fazer uma sugestão sobre a
continuação de uma história que está sendo narrada.‘ Esta bela definição destaca a inserção
do narrador e do ouvinte dentro de um fluxo narrativo comum e vivo, já que a história continua,
que está aberta a novas propostas e ao fazer junto. Quando este fluxo se esgota porque a
memória e a tradição comuns já não existem, o indivíduo isolado, desorientado e
desaconselhado (o mesmo adjetivo em alemão: ‗ratlos‘), reencontra então o seu duplo no
herói solitário do romance, forma diferente de narração que Benjamin, após a ‗Teoria do
Romance‘ de Lukács, analisa como forma da sociedade burguesa moderna.‖ GAGNEBIN,
Jeanne Marie. Walter Benjamin ou a história aberta. (Prefácio). In: Magia, técnica, arte e
política: ensaios sobe literatura e história da cultura. Op. Cit. pp. 10-11.
290
BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. Op. Cit. pp. 115-118.
291
SCHMITT, Carl. O conceito do político. (Tradução Álvaro Valls). Petrópolis :
Vozes: 1992. p. 47.
passa a representar nada mais que uma ficção genericamente aceita, surgindo, de
tal modo, o conceito da exceção e da soberania a ela atrelada na concepção
schmittiana.
Benjamin, mesmo que de maneira implícita, compartilha com
Schmitt a negação da equivalência entre estatal e político. Porém a busca deste
político (efetivo, não mistificatório) - de seu locus não relacional (integralmente
práxis) - não estará mais vinculada a um poder transcendente que decidirá a partir
da indeterminação. Seu conceito de reine Gewalt tentará dar conta deste local.
Agamben, tratando da proposta benjaminiana, refletirá que
Uma vez excluída qualquer possibilidade de um estado de exceção
fictício, em que exceção e caso normal são distintos no tempo e no
espaço, efetivo agora é o estado de exceção ‗em que vivemos‘ e que é
absolutamente indiscernível da regra. Toda ficção entre um elo de
violência e direito desapareceu aqui: não há senão uma zona de anomia
em que age uma violência sem nenhuma roupagem jurídica. A tentativa
do poder estatal de anexar-se à anomia por meio do estado de exceção é
desmascarada por Benjamin por aquilo que ela é: uma fictio iuris por
excelência que pretende manter o direito em sua própria suspensão
como força de lei. Em seu lugar aparecem agora a guerra civil e
violência revolucionária, isto é, uma ação humana que renunciou a
qualquer relação com o direito.
O estado de exceção fictício será diretamente atrelado ao conceito
de força de lei, e todas as implicações nele compreendidos. Resta pensar,
entretanto, esta ação humana (pura) totalmente desvinculada do direito e de toda
metafísica (o factum político não mais inscrito na forma de um relacionamento
categorial pressuposto) – a exceção efetiva - uma práxis materialista que Benjamin
tentará opor aos mitologemas jurídico-políticos schmittianos, tais como decisão X
nomos; soberano X vida nua; cultura X natureza; logos X phisis; normalidade X
estado de exceção.
Contudo, para pensar adequadamente o reine Gewalt benjaminiano
será importante despi-lo da interminável e circular vinculação ao domínio dos
meios e dos fins (que Agamben, insistentemente, chega a levar ao paroxismo, com
sua idéia de meio puro, ou meio-sem-fim). É preciso lembrar da advertência
arendtiana de que ―a perplexidade do utilitarismo é que se perde na cadeia
interminável de meios e fins sem jamais chegar a algum princípio que possa
justificar a categoria de meios e fins, isto é, a categoria da própria utilidade‖ 292,
cadeia que nem mesmo conceitos como fim-em-si-mesmo ou meio-puro (meiosem-fim) conseguem quebrar (ressalte-se, v.g., a crítica arendtiana à concepção
antropológica kantiana do homem como fim-em-si-mesmo). Pensar uma política
não obscurecida (arendtianamente falando) pelas categorias do homo faber (que
tanto impregna a tradição política ocidental) é simplesmente abolir a terminologia
dos meios e dos fins (e das conseqüências faticamente funestas e teoricamente
entorpecedoras da compreensão que elas acarretam).
E por conseqüência óbvia, tal proposta necessariamente exige que
se interprete o termo Gewalt com tendo, prioritariamente, o referencial semântico
voltado à dimensão do poder, e não à estrita violência (que, conforme já visto,
embrenha-se quase totalmente na esfera utilitária), mesmo que isso repercuta em
teratologia filológica na hermenêutica do ensaio benjaminiano.293
Agamben, com todo seu vigor e obstinação em desativar os
dispositivos de nosso tempo, acaba, ao interpretar a ação política benjaminiana,
simplesmente reativando a maquinaria utilitária do homo faber (em franca
obsolescência no presente).294
292
ARENDT, Hannah. A condição humana. Op. cit. p. 168.
Seguimos uma interessante provocação de Jacques Rancière, no sentido de que
―compreender um pensador não é chegar a coincidir com seu centro. É, ao contrário, deportálo, conduzi-lo a uma trajetória em que suas articulações se afrouxam e permitem um jogo. É
então possível des-figurar esse pensamento para refigurá-lo de outro modo, sair da restrição
de suas palavras para enunciá-lo nessa língua estrangeira que, para Deleuze, depois de
Proust, constitui a tarefa do escritor‖. RANCIÈRE, Jacques. Existe um estética deleuziana? In:
ALLIEZ, Éric (org.) Gilles Deleuze, uma vida filosófica. Op. cit.. p. 505.
294
Abordagem sintomática em trechos como este: ―Como no ensaio sobre a língua,
pura é a língua que não é instrumento para a comunicação, mas que comunica imediatamente
ela mesma, isto é, uma comunicabilidade pura e simples; assim também é pura a violência
que não se encontra numa relação de meio quanto a um fim, mas se mantém em relação com
sua própria medialidade.‖ AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p. 96. Ora, frente
a uma linguagem instrumentalizada resta opor a linguagem tal qual é, sem necessitar recorrer
às categorias (ou esquema pré-formatado) de meios e fins que acarretam justamente o
enquadramento de um língua como simples meio. É preciso denunciar a circularidade deste
argumento. O que de modo algum impugna as imprescindíveis análises de Agamben (em
quase todos os seus pontos de acerto), filósofo que certamente pode ser considerado um
desbravador do labiríntico terreno político contemporâneo.
293
Nesse sentido entendemos como inescapável a iluminação
(eminentemente profana) do reine Gewalt benjaminiano com a espontaneidade do
agir arendtiano, principalmente no momento em que o pensamento se vê fadado a
confrontar-se com uma vigência sem significado hipertrofiada do político
institucional - transmutado em máquina mortífera - e na situação de que boa parte
do
que
se
convencionou
intitular
como
política
está,
tradicionalmente,
umbilicalmente ligada a este dispositivo que fenece. Mais do que nunca a exigência
da ação como possibilidade de trazer algo novo ao mundo dos fatos, imersa na
contingência e no irremediável tempo profano humano. Fazer - dos e nos destroços
- um lugar, mesmo que seja no sentido do náufrago que usa este último destroço
para mandar sinais.295
É preciso, portanto, entender por práxis aquela ―concreta e unitária
realidade‖ que não necessita de mediações para ser, tais como natureza e cultura,
animal e ratio, bíos e zoé, infraestrutura e superestrutura. Uma forma-de-vida não
cindida (no sentido da mônada benjaminiana).296 ―Verdadeiro materialismo é
somente aquele que suprime radicalmente esta separação e não vê jamais na
realidade histórica concreta a soma de uma estrutura e de uma superestrutura,
295
―Um náufrago que flutua em cima de um destroço, enquanto sobe para o topo do
mastro que já está em pedaços. Mas ele tem chances de fazer um sinal de lá para que o
salvem.‖ Extraído de uma das últimas cartas escritas em vida por Walter Benjamin, em
correspondência a Scholem datada de 17 de abril de 1931. In: SCHOLEM, Gershom. Walter
Benjamin: a história de uma amizade. (Tradução geral do Gerson de Souza, et. al.) São
Paulo: Perspectiva, 1975. p. 230.
296
―Materialista é somente aquele ponto de vista que suprime radicalmente a
separação de estrutura e superestrutura, porque toma como objeto único a práxis em sua
coesão original, ou seja, como ‗mônada‘ (‗mônada‘, na definição de Leibniz, é uma substância
simples, ‗isto é, sem partes‘). A tarefa de garantir a unidade desta ‗mônada‘ é confiada à
filologia, cujo objeto se apresenta, precisamente, em uma conversão polar daquilo que, para
Adorno, era um juízo negativo, como uma ‗representação estupefata da facticidade‘ que exclui
todo processo ideológico. A ‗mônada‘ da práxis apresenta-se, então, primeiramente como um
‗fragmento textual‘, como um hieróglifo que o filólogo deve construir na sua integridade
factícia, na qual coexistem originalmente, em ‗mítica rigidez‘, tanto os elementos da estrutura
quanto os elementos da superestrutura. A filologia é a donzela que, sem preocupações
dialéticas, beija na boca o sapo da práxis.‖ AGAMBEN, Giorgio. O príncipe e o sapo. O
problema do método em Adorno e Benjamin. In: Infância e história. Destruição da experiência
e origem da história. (Tradução Henrique Burigo). Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005. p. 146.
mas a unidade imediata de dois termos na práxis.‖ 297 Materialismo e imanência,
veredas possíveis de uma política ainda por vir.
Nessa rota - reatando com o debate do tópico anterior - assinalase, a partir de Agamben, que - na exceção fictícia - à pura força de lei de uma
vigência sem significado corresponderá a figura de uma vida nua (bloβ Leben). A
lei, tornada pura forma, coincide com a vida, mas deixando subsistir a vida
matável e insacrificável do sacer, o portador simétrico da violência soberana
(como o corpo de Joseph K. no Processo kafkiano). Na exceção efetiva (wirklich),
segundo Agamben, ―à lei que se indetermina em vida contrapõe-se, em vez disso,
uma vida que, com um gesto simétrico mas inverso, se transforma integralmente
em lei‖298 Frente à escritura tornada inexeqüível que deixa restar uma vida nua na
exceção fictícia, tem-se, na exceção efetiva, uma vida que se torna escritura (e
uma escritura que se torna integralmente vida). Somente assim, segundo
Agamben, é que os dois termos biunívocos (força de lei e vida nua) abolir-se-ão
mutuamente, ―entrando em uma nova dimensão.‖299
Para Benjamin, ―é para trás que conduz o estudo, que converte a
existência em escrita. O professor é Bucéfalo, o ‗novo advogado‘, que sem o
poderoso Alexandre – isto é – livre do conquistador, que só queria caminhar para
frente – toma o caminho de volta‖, contexto mesmo em que o filósofo levanta uma
pergunta que ainda permanece crucial no desvelamento das aporias que cercam
a política e o direito no Ocidente:
É verdadeiramente o direito que em nome da justiça é mobilizado contra
o mito? Não; como jurista, Bucéfalo permanece fiel à sua origem: porém
ele não parece praticar o direito, e nisso, no sentido de Kafka, está o
elemento novo, para Bucéfalo e para a advocacia. A porta da justiça é o
direito que não é mais praticado e sim estudado.300
297
AGAMBEN, Giorgio. O príncipe e o sapo. O problema do método em Adorno e
Benjamin. In: Infância e história. Op. cit. p. 145.
298
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 62.
299
Ibidem, p. 63.
300
BENJAMIN, Walter. Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte.
(1934). In: Magia, técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.Op.
Cit. p. 164.
Restam, no entanto, para o presente tópico, alguns comentários
sobre a hipótese da contemporânea ubiqüidade da exceção (implícita em muito do
que já se apresentou até aqui).
Como umas das conclusões ao seu Homo Sacer II, Agamben
lembrará que o sistema jurídico ocidental consubstancia-se em uma estrutura
biunívoca (ou bipolar, dual) formada por dois elementos heterogêneos que se
coordenam respectivamente: o elementos normativo (jurídico em sentido estrito),
estático, que o filósofo italiano reportará à dimensão da potestas; e uma dimensão
―anômica e metajurídica‖ inscrita a partir do conceito auctoritas.301
Estaria em simetria com tal estrutura a distinção schmittiana entre
Estado e movimento, delineada por Agamben:
Segundo Schmitt, a política do Reich nazista se funda sobre três
elementos ou membros: Estado, movimento e povo. Por conseguinte, a
articulação constitucional do Reich nazista é resultado da articulação e da
distinção desses três elementos. O primeiro elemento é o Estado declara Schmitt – e importa prestar atenção na definição que ele dá: o
Estado é a parte política estática. Trata-se do aparato das repartições. O
povo – preste-se também atenção – é o elemento impolítico, não político,
(unpolistisch), que cresce à sombra e sob a proteção do movimento. O
movimento, por sua vez, é o verdadeiro elemento político, elemento
político dinâmico, que encontra a sua forma específica na relação com o
Partido Nacional-Socialista, com a direção (Führung). Importante é que
para Schmitt o próprio Führer não é senão a personificação do
movimento. 302
O estado de exceção seria o dispositivo que, em última instância,
articularia e manteria unidos estes dois pólos da maquinaria jurídico política,
―instituindo um limiar de indecidibilidade entre anomia e nomos, entre vida e
direito, entre auctoritas e potestas.‖303 Em outros termos, o direito está, desde
sempre, inserido ficcionalmente na própria vida humana (não ultrapassa o estarno-mundo humano) porém pressupõe um além/fora normalizador desta vida (aí o
papel da auctoritas e da força ou pura forma de lei e o forjar de uma pura e
simples vida nua), aí estando sua fictio por excelência. O estado de exceção é
301
Para tanto, Cf. o segundo fragmento do primeiro capítulo desta dissertação.
AGAMBEN, Giorgio. Movimento. (Tradução Selvino José Assman). In: Interthesis
(Revista Internacional Interdisciplinar). Vol. 3. n. 01. Florianópolis, Janeiro-Junho de 2006.
303
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p.130.
302
esse ―fora‖ que se auto ―inclui‖.304 Nesse sentido, em continuidade à reflexão
agambeniana, o dispositivo da exceção ―se baseia na ficção essencial pela qual a
anomia – sob a forma da auctoritas, da lei viva ou da força de lei – ainda está em
relação com a ordem jurídica e o poder de suspender a norma está em contato
direto com a vida.‖305
Enquanto as dimensões da auctoritas e da potestas estão em
relação, mesmo sendo conceitualmente diversas, tem-se a normalidade do
dispositivo, mesmo que sua dialética esteja fundada numa ficção. Quando estes
dois pólos se amalgamam ou se desconectam, por exemplo, em sua coincidência
em uma só pessoa, ou quando a força de lei basta a si mesma como entidade
autônoma, flutuando independentemente de qualquer potestas e de qualquer
conteúdo normativo, quando a exceção torna-se a regra, então, para Agamben, o
sistema jurídico pode metamorfosear-se em máquina letal (a política institucional
pode convergir, ou inexoravelmente convergirá, para uma tanapolítica).306
Não é outra a conclusão que se chega ao analisarmos a
estruturação da política contemporânea disseminada a partir de seu respectivo
modelo de democracia de massas. Vigência sem significado sintomática não
apenas da política e do direito, mas a própria tradição ocidental como um todo é
engolfada no vácuo de um niilismo que nada revela, que se mantém como pura
forma, grau zero de conteúdo cujo nada estaria representado de maneira
exemplar na cultura do espetáculo (que, não obstante isso, pretende estar em
304
―Se é verdade que a articulação entre vida e direito, anomia e nómos produzida
pelo estado de exceção é eficaz, mas fictícias, não se pode, porém, extrair disso a
conseqüência de que, além ou aquém dos dispositivos jurídicos, se abra em algum lugar um
acesso imediato àquilo de que representam a fratura e, ao mesmo tempo, a impossível
recomposição. Não existem, primeiro, a vida como dado biológico natural e a anomia como
estado de natureza e, depois, sua implicação no direito por meio do estado de exceção. Ao
contrário, a própria possibilidade de distinguir entre vida e direito, anomia e nómos coincide
com sua articulação na máquina biopolítica. A vida pura e simples é um produto da máquina e
não algo que pré-existe a ela, assim como o direito não tem nenhum fundamento na natureza
ou no espírito divino. Vida e direito, anomia e nómos, autorictas e potestas resultam da fratura
de alguma coisa a que não temos acesso senão por meio da ficção de sua articulação e do
paciente trabalho que, desmascarando tal ficção, separa o que tinha pretendido unir.
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p. 132.
305
Ibidem. Idem.
306
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p.131.
todas as plagas do planeta). Próteses, não-lugares e parques temáticos:
metáforas exemplares para representar o atual estádio da cultura ocidental, sua
modernidade.
Por toda a parte da terra os homens vivem hoje sob o bando de uma lei e
de uma tradição que se mantém unicamente como ‗ponto zero‘ do seu
conteúdo, incluindo-os em uma pura relação de abandono. Todas as
sociedades e todas as culturas (não importa se democráticas ou
totalitárias, conservadoras ou progressistas) entraram hoje em uma crise
de legitimidade, em que a lei (significando com este termo o inteiro texto
da tradição em seu aspecto regulador, quer se trate da Torah hebraica,
da Shariah islâmica, do dogma cristão ou do nómos profano) vigora como
puro ‗nada da Revelação‘.307
É preciso não esquecer, entretanto, que o outro lado funesto desta
vil moeda é a manifestação, de forma proliferada, da vida nua que constitui a
produção e fundamento latente deste vazio, aparecimento que se comprova, de
maneira flagrante, com uma rápida leitura diária de qualquer periódico jornalístico
do presente.
Se faz imperioso pensar, portanto, qual a política que resta nos
escombros do presente, ou, simplesmente, o que significa agir politicamente no
mundo contemporâneo? Como desativar este nada, nulificá-lo? Questão que –
inevitavelmente - deve ser pensada quando nos vemos na contingência de um
direito e de uma política institucional sem relação com a vida, e de uma vida sem
relação com o direito. No interior da fratura entre estes dois pólos, na lacuna
aberta por sua desconexão, é preciso (para Agamben) pensar um espaço para a
ação humana que ainda possa ser chamado de político (não mais eclipsado pela
soberana estatalidade).308
Todavia, antes mesmo de buscar tais respostas (colocadas em
termos quase geracionais à teoria política e, por que não, jurídica contemporânea)
é preciso esquecer toda e qualquer tentativa nostálgica de tentar reafirmar a
prevalência (ou um retorno a) de um pretenso estado democrático de direito, ou de
normas e direitos fundamentais estatalizados, buscando confinar assim o estado
de exceção nos seus limites temporais e espaciais (fazer novamente da exceção
307
308
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Op. cit. p. 59.
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. p.133.
uma dimensão marginal da regra). Ora, além de tais conceitos estarem
constitutivamente fundamentados na exceção aqui analisada, para falar com
Agamben, ―o que está em questão agora são os próprios conceitos de estado e
direito.‖309
Chegamos em um tempo onde, ainda mais que outrora, parece ser
premente a advertência contida em um aforismo de Kafka, escrito em um tom
muito semelhante ao que, posteriormente, Walter Benjamin irá usar em sua oitava
tese de seus escritos sobre a história: ―Von einem gewissen Punkt an gibt es keine
Rückkehr mehr. Dieser Punkt ist zu erreichen.‖ (―A partir de um certo ponto não há
mais retorno. Esse é o ponto que deve ser alcançado.‖)310
Fazer deste exílio irretornável um local onde ainda possam ser
possíveis as centelhas da esperança (não por um além redimido, mas pela própria
possibilidade do inaudito e do imprevisível) – estacas para a catástrofe eminente –
tornar efetivo este estar no mundo tal qual é (despido de mitologemas),
singularmente integral, parece representar uma vereda ainda transitável nos
obscuros labirintos em que fomos lançados.
Constatação que implica, mesmo que de modo provisório, a
abordagem do último fragmento desta dissertação.
3. As categorias benjaminianas de um estado de exceção
efetivo contraposto ao estado de exceção fictício (v.g., de matriz
schimittiana), revelam-se como debate central da teoria política e da própria
teoria do direito contemporâneo. É preciso não olvidar, principalmente, de
suas implicações temporais (como um combate também de concepções de
tempo).
Podemos pensar a exceção fictícia como uma temporalidade de
miragem que se estabelece dentro do próprio tempo (mesmo ela, instância de
309
310
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. cit. P. 131.
KAFKA, Franz. Aforismos. (Tradução Silveira de Souza). Edição Virtual. s/d.
exterioridade gelidamente pressuposta, nada mais é que um desdobramento do
tempo-vida efetivo... Relegado à dissimulação).
Estar na ex-ceção efetiva é estar desde sempre lançado no limiar
do tempo que é - estar em sua porta sempre aberta; uma porta, uma soleira, que é
sua própria chave. Exige pensar que a própria vida se configura na exceção, é a
exceção, na medida em que, ab initio, aleatoriamente vindos do nada de algum
lugar, já fomos condenados (a-bando-nados) - em sentença inexorável e
irrecorrível - à morte (ao irremediável retorno ao nada de onde viemos), e o tomarse conta - lançar-se frente a frente – desta contingência e deste ser-para-morte,
também pode ser o primeiro passo para tornar efetiva a vida que nos resta,
sempre vivida diante (ou, em) um insalvável,311 ou melhor, salva apenas em seu
ser irreparável.
Um ser que não é nunca ele mesmo, mas é só o existente. Não é nunca
existente, mas é o existente, integralmente e sem refúgio. Ele não funda,
nem destina nem torna nulo o existente: é apenas o seu ser exposto, a
sua auréola, o seu limite. O existente já não reenvia para o ser: ele é no
meio do ser e o ser é inteiramente abandonado no existente. O existente
já não reenvia para o próprio ser: ele é no meio do ser e o ser é
inteiramente abandonado no existente. Sem refúgio e, todavia, salvo –
salvo no seu ser irreparável. O ser, que é o existente, é para sempre
salvo do risco de existir como coisa ou de ser anda. O existente,
abandonado no meio do ser, é perfeitamente exposto.312
A exceção fictícia mantém-se nos simulacros temporais de
referências: o tempo cronômetro, o tempo relógio, a linearidade, o progresso, o
fluxo-processo da história interpretável como destino, desenvolvimento, fim, ponto
de chegada, redenção. Na exceção efetiva as referências (externalidades) são
abolidas, é este o ensinamento que a tradição dos oprimidos nos traz: a
indistinção entre um fora e um dentro; bíos e zoé; tempo e vida; espaço e tempo.
311
―Apenas podemos ter esperança naquilo que é sem remédio. Que as coisas
estejam assim ou de outra maneira – isto é ainda no mundo. Mas que isso seja irreparável,
que o assim seja sem remédio, que nós possamos contempla-lo como tal – isto é a única
passagem para fora do mundo. (O caráter mais íntimo da salvação: que sejamos salvos só no
instante em que já não queremos sê-lo. Por isso, nesse instante, existe salvação – mas não
para nós)‖. AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Op. Cit. p. 83.
312
AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Op. Cit. p. 81.
Benjaminianamente falando, entretanto, essas não são as únicas
implicações da exceção efetiva. Temos aí a advertência para a abolição de uma
temporalidade monoliticamente espacializada na tríade de um passado fechado
(enrijecido em fatos-cadáveres), um presente homogêneo e vazio, e o não-lugar
de um futuro que tudo arrasta em sua trajetória contínua.
Para Benjamin, agora em sua sexta tese sobre o conceito de
história, ―o dom de atear ao passado a centelha da esperança pertence somente
àquele historiador que está perpassado pela convicção de que também os mortos
não estarão seguros diante do inimigo, se ele for vitorioso.‖313 Um passado que
depende e está no presente (para lembrar de uma citação de Faulkner muito
apreciada por Hannah Arendt, ―o passado nunca está morto, ele nem mesmo é
passado‖314), que não está incólume em um reduto inatingível, mas os eventos do
próprio presente podem afetar o passado (até mesmo suprimi-lo). A catástrofe é
possível, como também é possível a capacidade humana, uma profana e débil
força messiânica, de evitá-la.315
A ação política, para Benjamin, não pode menosprezar tal relação
com a história:
313
BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de história. In: LÖWI, Michel. Walter
Benjamin: aviso de incêndio. Op. cit. p. 65.
314
Apud: ARENDT, Hannah. Prefácio. A quebra entre passado e o futuro. In: Entre o
passado e o futuro. Op. cit. p. 37.
315
―‘Pertence às mais notáveis particularidades do espírito humano, [...] ao lado de
tanto egoísmo no indivíduo, a ausência geral de inveja de cada presente em face de seu
futuro‘, diz Lotze. Essa reflexão leva a reconhecer que a imagem da felicidade que cultivamos
está inteiramente tingida pelo tempo a que, um vez por todas, nos remeteu o decurso de
nossa existência. Felicidade que poderia despertar inveja em nós existe tão-somente no ar
que respiramos, com os homens com quem poderíamos ter podido conversar, com as
mulheres que poderiam ter se dado a nós. Em outras palavras, na representação da felicidade
vibra conjuntamente, inalienável, a [representação] da redenção. Com a representação do
passado, que a história toma por sua causa, passa-se o mesmo. O passado leva consigo um
índice secreto pelo qual ele é remetido à redenção.Nos nos afaga, pois, levemente um sopro
de ar que envolveu os que nos precederam? Não ressoa nas vozes a que damos ouvido um
eco das que estão, agora, caladas? E as mulheres que cortejamos não têm que jamais
conheceram? Se assim é, um encontro secreto está marcado entre as gerações passadas e a
nossa. Então fomos esperados sobre a terra. Então nos foi dada, assim como a cada geração
que nos precedeu, uma fraca força messiânica, a qual o passado têm pretensão. Essa
pretensão não pode ser descartada sem uso. O materialista histórico sabe disso.‖ Tese II.
BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de história. In: LÖWI, Michel. Op. cit. p. 48.
Para o pensador revolucionário, a chance revolucionária própria de cada
instante histórico se confirma a partir de cada situação política. Mas ela se
lhe confirma não menos pelo poder chave desse instante sobre um
compartimento inteiramente determinado, até então fechado, do passado.
A entrada nesse compartimento coincide estritamente com a ação política;
e é por essa entrada que a ação política, por mais aniquiladora que seja,
pode ser reconhecida como messiânica. (A sociedade sem classes não é
a meta final do progresso na história, mas, sim, sua interrupção, tantas
vezes malograda, finalmente efetuada).316
Ressalte-se que frente à historia objetiva, à história tal qual foi,
temos um deslocamento que se volta para a própria narratividade desta história. É
nessa rota que se sobressai a categoria, retomada por Benjamin de Goethe, de
Ursprung (origem), ou Urphänomene, não como um retorno melancólico a uma Ur
pré-histórica ou um saudosismo por uma realidade pré-capitalista artesanal, porém
o Ursprung entendido como fragmento que contém, em si, em sua integralidade
monadológica, uma centelha relampejante do passado que pode, segundo,
Jeanne Marie Gagnebin, representar um ―salto (Sprung) para fora da sucessão
cronológica niveladora à qual uma certa forma de explicação histórica nos
acomodou.‖ Só assim, através da recuperação, ao estilo de um colecionador, dos
cacos da história, estilhaços apresentados em sua “exterioridade e excentricidade”
(sem submissão a uma mediação exterior causal), é que o historiador poderá
―quebrar a linha do tempo,‖ operando ―cortes no discurso ronronante e nivelador
da historiografia tradicional.‖317
A pesquisa se detém e se mantém no estudo do fenômeno, não para dar
dele uma descrição ingenuamente positivista, mas, pelo contrário, para
lhe restituir sua dimensão de objeto ‗bruto‘, único e irredutível; ela o
imobiliza nessa brutalidade para preservá-lo do esquecimento e da
destruição, cujas explicações já prontas são formas correntes. (...) Tratase muito mais de designar, com a noção de Ursprung, saltos e recortes
inovadores que estilhaçam a cronologia tranqüila da história oficial,
interrupções que querem, também, parar esse tempo infinito e indefinido,
como relata a anedota dos franco-atiradores (Tese XV), que destroem os
relógios na noite da revolução de Julho: parar o tempo para permitir ao
316
Tese XVII das Teses sobre o cocneito de história. BENJAMIN, Walter. Teses sobre
o conceito de história. In: LÖWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Op. Cit. p.
134.
317
GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo:
Perspectiva, 2004. p.10.
passado esquecido ou recalcado surgir de novo (ent-springen, mesmo
radical que Ursprung), e ser assim retomado e resgatado no atual.318
O historiador ―arquetípico‖, na vereda da perspectiva benjaminiana,
seria Marcel Proust. Porquanto, segundo Gagnebin
A grandeza das lembranças proustianas não vem de seu conteúdo, pois
a bem da verdade a vida burguesa nunca é assim tão interessante. O
golpe de gênio de Proust está em não ter escrito ‗memórias‘, mas,
justamente, uma ‗busca‘, uma busca das analogias entre passado e o
presente. Proust não reencontra o passado em si – que talvez fosse
bastante insosso –, mas a presença do passado no presente e o
presente que já está lá, prefigurado no passado, ou seja, uma
semelhança profunda, mais forte do que o tempo que passa e que se
esvai sem que possamos segurá-lo. A tarefa do escritor não é, portanto,
simplesmente relembrar os acontecimentos, mas ‗subtraí-los às
contingências do tempo em uma metáfora‘.319
Um trecho exemplar de Ursprung na escritura proustiana está na
figura dos bolinhos (chamados madalenas) com chá que o protagonista, no frio do
presente, saboreia (ao pensarmos a integralidade do fragmento monadológico não
devemos deixar de lado também sua dimensões tácteis, sensoriais, que a
influência platônica certamente ajudou a extirpar da filosofia ocidental), sendo tal
fragmento de experiência uma chave que descortinará todo um mundo de sua
infância, em Combray, que perdido estava na penumbra do esquecimento...
E mal reconheci o gosto do pedaço de madalena molhado em chá que
minha tia me dava (embora ainda não soubesse, e tivesse de deixar para
muito mais tarde tal averiguação, por que motivo aquela lembrança me
tornava tão feliz), eis que a velha casa cinzenta, de fachada para a rua,
onde estava o meu quarto, veio aplicar-se, como um cenário de teatro, ao
pequeno pavilhão que dava para o jardim, e que fora construído para
meus pais ao fundo da mesma (esse truncado trecho da casa que era só
o que eu recordava até então); e, com a casa, a cidade toda, desde a
manhã ou à noite, por qualquer tempo, a praça para onde me mandavam
antes do almoço, as ruas por onde eu passava e as estradas que
seguíamos quando fazia bom tempo. E, como nesse divertimento japonês
de mergulhar numa bacia de porcelana cheia d‘água pedacinhos de
papel, até então indistintos e que, depois de molhados, se estiram, se
delineiam, se colorem, se diferenciam, tornam-se flores, casas,
personagens consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores do
nosso jardim e as do parque do Sr. Swann, e as ninféias do Vivonne, e a
318
10.
319
GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. Op. cit. p.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin ou a história aberta. In: BENJAMIN,
Walter. Magia e técnica, arte e política. Op. cit. p. 15
boa gente da aldeia e suas pequenas moradias, e a igreja e toda
Combray e seus arredores, tudo isso que toma forma e solidez, saiu,
cidade e jardins, de minha taça de chá.320
O jogo - a dança humana - entre rememoração e esquecimento,
mnemon e amnésia, isso é o que está no centro do texto (no sentido romano
daquilo que se tece, como a teia de Penélope) de Proust, à luz da reflexão de
Benjamin:
Sabemos que Proust não descreveu em sua obra uma vida como ela de
fato foi, e sim uma vida lembrada por quem a viveu. Porém, esse
comentário ainda é difuso, e demasiadamente grosseiro. Pois o
importante, para o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas o
tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência.
Ou seria preferível falar do trabalho de Penélope do esquecimento? A
memória involuntária, de Proust, não está mais próxima do esquecimento
que daquilo que em geral chamamos de reminiscência? Não seria esse
trabalho de rememoração espontânea, em que a recordação é a trama e
o esquecimento a urdidura, o oposto do trabalho de Penélope, mais que
sua cópia?321
Raduan Nassar, em seu belíssimo ―Lavoura Arcaica‖, nas
rememorações de André, seu protagonista, lançará uma imagem poética
extremamente pertinente sobre o limiares entre memória e vida, memória e
esquecimento... Ur-didura górdia que o tempo, como algoz, Cronos-Saturno que
deglute seu filhos, submete-nos em cada instante.
(...) o tempo, o tempo, esse algoz às vezes suave, às vezes mais terrível,
demônio absoluto conferindo qualidade a todas as coisas, é ele ainda
hoje e sempre quem decide por isso a quem me curvo cheio de medo e
erguido em suspense me perguntando qual o momento, o momento
preciso da transposição? que instante, que instante terrível é esse que
marca o salto? que massa de vento, que fundo do espaço concorrem
para levar ao limite? o limite em que as coisas já desprovidas de vibração
deixam de ser simplesmente vida na corrente do dia-a-dia para ser vida
nos subterrâneos da memória; (...)322
É preciso ressaltar que o Ursprung, em sua urdidura textual, não
está além dos objetos, da materialidade, ao contrário, está indissoluvelmente
depositado nesta, em uma ―constelação saturada de tensões‖. Caberia à pesquisa
320
PROUST, Marcel. No caminho de Swann. (Em Busca do Tempo Perdido I).
(Tradução Mário Quintana). 3ª ed. Porto Alegre: Globo, 2006. p. 47.
321
BENJAMIN, Walter. A Imagem de Proust. In: Magia e técnica, arte e política. Op.
Cit. p. 37.
322
NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica. 3º Ed. São Paulo: Cia das Letras, 1989. p.
99.
histórica conferir, a esta constelação, um choque através do qual esta cristalizarse-ia em mônada, conservando – e isso é paradigmático nas análises de Benjamin
sobre o séc. XIX a partir de Baudelaire - ―na obra a obra de uma vida, na obra de
uma vida, a época, e na época, todo o decurso da história.‖323
O Urphänomen benjaminiano revela-se a partir de uma arché
imersa nas aparências, na matéria concreta na qual se abrigam os seres humanos
no mundo, matéria constitutiva desta mesma humanidade, sem disjunções. Está
em simetria com a idéia temporal do estado de exceção efetivo na medida em que
se configura como integralidade onde palavra e coisa; idéia e experiência; corpo e
alma; escrita e vida (e mesmo espaço e tempo) conjugam-se, indistinguem-se em
uma constelação material de significados que está, desde sempre, presa ao
mundo e nele tem sua condição de possibilidade.
―Maravilha da aparência‖ que Hannah Arendt, teórica que
certamente recebeu desta metodologia inestimáveis influências, irá sintetizar de
uma forma extremamente apropriada em seu ensaio biográfico sobre Benjamin;
trecho que, por falar por si mesmo, apresentamos como remate a este fragmento:
Quando Adorno criticou a ‗apresentação aberta de atualidades‘ de
Benjamin (Briefe, vol. II, p. 793), pegou o ponto exato; era precisamente o
que Benjamin fazia e queria fazer. Fortemente influenciado pelo
surrealismo, era a ‗tentativa de capturar o retrato da história nas
representações mais insignificantes da realidade, por assim dizer em
suas raspas‘ (Briefe, vol. II, p. 685). Benjamin tinha paixão pelas coisas
pequenas, até minúsculas; Scholem conta de sua ambição de colocar
cem linhas escritas na página comum de um caderno de notas, e da sua
admiração por dois grãos de trigo na seção judaica do Museu Cluny,
‗onde uma alma irmã inscrevera na íntegra o Shema Israel.‘ Para ele, a
dimensão de um objeto era inversamente proporcional à sua significação.
E essa paixão, longe de ser um capricho, derivava imediatamente da
única concepção de mundo que teve uma influência decisiva sobre ele, a
convicção de Goethe sobre a existência fática de um Urphänomen, um
fenômeno arquetípico, uma coisa concreta a ser descoberta no mundo
das aparências, na qual coincidiriam ‗significado‘ (Bedeutung, a mais
goetheana das palavras, é recorrente nos textos de Benjamin) e
aparência, palavra e coisa, idéia e experiência. Quanto menor fosse o
objeto, tanto mais provável pareceria poder conter tudo sob a mais
concentrada forma; daí seu deleite em que dois grãos de trigo
323
Tese XVII, das teses sobre a filosofia da história. BENJAMIN, Walter. Teses sobre
o conceito de história. In: LÖWI, Michel. Op. cit. p. 130.
contivessem todo o Shema Israel, a essência mesma do judaísmo, a
mais minúscula essência aparecendo na mais minúscula entidade, de
onde, em ambos os casos, tudo o mais se origina, embora em significado
não possa ser comparado à sua origem. Em outras palavras, o que
desde o início fascinou Benjamin nunca foi uma idéia, sempre foi um
fenômeno. ‗O que parece paradoxal em tudo que é, com justiça,
chamado de belo é o fato de que apareça‘ (Schriften, vol. I, p. 349), e
esse paradoxo – ou, mais simplesmente, a maravilha da aparência –
sempre esteve no centro de todas as suas preocupações.324
A maravilha da aparência do Urphänomen. Talvez essa seja a
vereda de volta, o caminho para trás, que Bucéfalo, o novo advogado livre do
conquistador, traça na transfiguração da existência em escrita, e da escrita em
existência. Quiçá esteja aí o desatar de um nó górdio ainda pendente de solução
para nós, contemporâneos.
Nó, porém, não mais rompido com a espada de Alexandre, mas
através da eqüestre mordida de Bucéfalo. Lembremo-nos de um provérbio
saltimbanco... ―Conselho em forma de enigma. – ‗Se o laço não deve romper – é
preciso antes morder.‖325
324
ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. (Tradução Denise Bottmann).
São Paulo : Companhia das Letras,1987. p. 142.
325
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. (Tradução Paulo Cezar de Souza).
São Paulo: Cia das Letras, 2005. p. 69.
Considerações finais
As
linhas tecidas nessa dissertação visam, em primeiro lugar,
formar uma malha que se mantém unida no propósito principal de compreensão o porquê dos fragmentos heurísticos. O trabalho arma-se em pedaços soltos mosaicos, micro constelações de significados - pela simples razão de que não há
mais espaço - na teoria política e jurídica do presente – para os grandes corpus
exegético-metodológicos, seja no sentido de uma suposta (ulterior) formação de
tais monumentos, seja no sentido da contemporânea (in)existência de tais
solidificações como ponto de partida para o caminhar teórico.
Não há circunscrição e delimitação no texto, assim como não há
pretensão alguma de esgotamento de determinado assunto. Lançamos e
esboçamos configurações, nada mais.
Aproximamo-nos, nesse sentido, à bela porém trágica postura
teórica impressionista,326 muito mais por incapacidade de fechamento –
incapacidade de colocar formas no informe das mônadas significativas - que por
técnica metodológica deliberada.
Algo que não nos impede, porém, de apresentar algumas
constantes que permearam o núcleo de justificação deste trabalho, três locais que
apresentamos à guisa de provisória conclusão.
326
―Todo impressionismo é, em sua essência, uma forma de transição e, a esse título,
rejeita o fechamento, a modelagem final imposta pelo destino ou impondo-se a ele – não por
princípio, mas por incapacidade de chegar a tanto (...). O impressionismo sente e avalia as
grandes formas rígidas, prometidas à eternidade, como violências feitas à vida, à sua riqueza
e à sua policromia, à sua plenitude e à sua polifonia; ele não cessa de glorificar a vida e pôr
toda forma a seu serviço. Mas, com isso, a essência da forma torna-se problemática. A
empresa heróico trágica dos grades impressionistas consiste justamente em que essa forma –
da qual não pode escapar, pois é único meio possível de sua substancial existência – ele
pedem e impõem sempre algo que contradiz sua destinação, ou mesmo a suprime, porque
deixando de se fechar, soberana e acabada em si, a forma deixa de ser forma. Uma forma
servil, aberta à vida, não poderia existir.‖ LUKÁCS, G. Posfácio à memória de Simmel (1918).
In: SIMMEL, Georg. Filosofia do amor. (Tradução Eduardo Brandão). 3º ed. São Paulo :
Martins Fontes, 2006. p. 203.
1. No tempo em que o direito ocidental se vê reduzido – no mundo
das sociedade espetacularizadas de massa – às derivas da decisão, ou melhor,
extravia-se na e para a decisão (de acordo com as rotas e fenômenos tratados no
decorrer do texto), imprescindível é a revisão crítica de toda e qualquer tentativa
celebratória de ver nesta centralidade decisionista a panacéia para boa parte das
aporias jurídico-políticas que acometem, de maneira catastrófica, nosso tempo.
Por outro lado, é preciso ter em mente que as reconfigurações da estatalidade não
implicam o fim deste modelo até hoje vigente de Estado, trazem, ao contrário,
nada mais que novos desafios à sua compreensão (ainda temos aí, de maneira
até então inaudita, o imiscuir-se de uma força de lei mortífera). O extravio do
jurídico exige primeiramente a revisão do quadro de referências fundado no
normativismo positivista e, para as teorias que pretendam não se vincular à
temporalidade vazia e homogênea do que está dado nos dispositivos que
presidem a máquina antropológica contemporânea, o confronto com as matrizes
sistêmicas.
2. A força de lei evidencia-se em categoria chave para pensar o
mundo contemporâneo. Não só nos aspectos jurídico-políticos, mas culturais (o
que está disseminadamente presente na vigência sem significado - o nada abissal
de revelação - dos artefatos do espetáculo). Ou melhor, a política institucional do
ocidente se vê pressurizada frente a um espetáculo que já a capturou. Estamos
diante, hoje, de uma maquinaria política contaminada (até a mais recôndita de
suas peças) por uma hipertrofiada vigência sem significado do sublime dispositivo
improfanável espetacular. A biopolítica contemporânea nada mais indica que a
produção, em escala hi-tech, da vida nua por esta máquina antropológica.
3. Porém, tal como Agamben insiste em lembrar, não basta o
reconhecimento desta vigência sem significado, este niilismo imperfeito que
Scholem (e, por que não?, também Schmitt) diagnosticou. É preciso nadificar até
mesmo este nada. Benjaminianamente falando, se realmente vivenciamos a
ubiqüidade da exceção, se a exceção tornou-se a regra, é preciso criar um estado
de exceção efetivo, desativando o misticismo (o embrujamiento, o fetiche-feitiço)
corporificado na força de lei; da exceção vinculada a um poder de vida e morte.
É nesse momento, no ocaso do político institucional fundado na
pura pressuposição dos mitologemas, é que se abre a oportunidade de pensarmos
o próprio local autônomo do político, um político não mais eclipsado pelas
instâncias soberanas jurídico-estatais nem mesmo pelos dispositivos da oikonomia
contemporânea. O que resta é pensar, novamente, o significado do próprio agir
humano.
Sobre este agir só podemos antecipar que, como condição de sua
possibilidade, terá de assumir a temporalidade messiânico-profana da vida e do
tempo que resta, em sua integralidade. Uma ação que não tenha como resíduo, tal
como na Grécia antiga, uma vida nua. Agir inscrito na práxis insalvável, numa
multifacetada temporalidade prenhe de possibilidades - pois fundada na
contingência - que possa se inscrever em outros horizontes de sentido
(kairológicos) que não aqueles que o mecanismo claustricamente reconhece como
tais.
Ad conclusan, uma ação, tal como Benjamin a intuiu, que exija o
tornar teoria da vida e o tornar vida da teoria. O verbo que se faz carne e a carne
que se faz verbo. Humana. Demasiadamente, integralmente.
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