Subeixo: SEGURANÇA Eixo: Qualidade de vida e segurança para todos os brasileiros Instituto Democracia e Sustentabilidade – IDS Subeixo: SEGURANÇA Eixo: Qualidade de vida e segurança para todos os brasileiros Versão atualizada da Plataforma Brasil Democrático e Sustentável – 2014. São Paulo 2014 AGRADECIMENTO Este texto foi elaborado por: - Samira Bueno, socióloga, secretária-executiva da ONG Fórum Brasileiro de Segurança Pública e doutoranda em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas; e - Ana Carolina Pekny, mestre em Conflito e Desenvolvimento pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais e do Desenvolvimento, Genebra, Suíça. Sumário AGRADECIMENTO ......................................................................................... 3 INTRODUÇÃO ................................................................................................ 5 Violência e vitimização .................................................................................. 7 Sistema penitenciário .................................................................................. 13 Política de drogas ........................................................................................ 17 Impunidade penal ........................................................................................ 21 Gestão e modernização da política de segurança pública ...................... 24 Pacto Federativo e financiamento da segurança pública ........................ 32 Pensando soluções ..................................................................................... 38 Conclusão .................................................................................................... 40 INTRODUÇÃO Após 21 anos de regime militar, a reconstrução democrática da década de 80 trouxe consigo mudanças substantivas ao ampliar os canais de participação e representação política, promovendo mais transparência nos procedimentos políticos e o restabelecimento de eleições livres e diretas. No campo dos direitos fundamentais da pessoa humana, tornou inalienável o direito à vida, transformou o racismo em crime inafiançável e estabeleceu garantias à integridade física e moral. No plano dos direitos sociais, ampliou a proteção ao trabalhador, à infância, ao consumidor, ao meio ambiente. No terreno político, universalizou o voto e determinou assistência jurídica aos desprovidos de recursos materiais. A transição para a democracia foi capaz de impor uma inflexão no que diz respeito à valorização dos direitos civis, inaugurando um novo campo de demandas e provocando mudanças, ao menos no âmbito discursivo e na cultura política do país. Renato Sérgio de Lima e Jacqueline Sinhoretto argumentam que apenas após a Constituição Federal de 1988 houve uma postura de valorização dos direitos civis como componente fundamental das políticas de segurança, forçando o Estado brasileiro a repensar a maneira como formular e executar suas políticas públicas. Nesse processo, a defesa dos direitos difusos (direitos humanos, ao meio ambiente, à cultura, do consumidor) são os catalisadores de mudanças no cenário sociopolítico do país, recolocando a temática dos direitos civis na agenda pública1. Não obstante os avanços democráticos propiciados pela nova constituição, a ampliação de todo o tipo de direitos não se converteu na instauração plena do Estado de direito. Persistiram graves violações aos direitos humanos, produto da violência endêmica radicada nas estruturas sociais, e se evidenciou a incapacidade estatal de garantir o controle legal da violência. 1 LIMA, Renato Sérgio de; SINHORETTO, Jacqueline. “Qualidade da democracia e polícias no Brasil”. In: Entre Palavras e Números: violência, democracia e segurança pública no Brasil. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2011. O campo da segurança pública não sofreu as reformas necessárias para garantir que sua arquitetura institucional, saberes e práticas funcionassem em sintonia com o novo modelo vigente. Ao contrário, destacase a continuidade de muitos elementos que continuaram a reproduzir relações que serviram a um governo ditatorial, e a segurança pública continuou a ser pensada apenas na lógica da atividade policial e do Direito Penal. Avanços eventuais na gestão policial e reformas na legislação penal têm se revelado insuficientes para reduzir a incidência da violência urbana, numa forte evidência da falta de coordenação e controle. Nesse contexto, a violência urbana persiste como um dos mais graves problemas sociais no Brasil, resultando em 52 mil pessoas mortas vítimas de homicídio apenas em 2011, número superior a conflitos armados como o da Chechênia, Angola, Iraque, dentre outros. A taxa de mortes por agressão saltou de 22,2 no ano de 1990 para 27,1 a cada 100 mil habitantes em 2011, com variações importantes entre diferentes estados. Como agravante, estudo recente realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)2 calculou que, de 1996 a 2010, quase 130 mil homicídios no Brasil não entraram nas estatísticas de mortes violentas. Isso significa que o número real de assassinatos no país é de cerca de 60 mil ocorrências anuais. Ou seja, se é verdade que o Brasil tem melhorado seus indicadores econômicos e sociais, o quadro de violência do país indica a convivência com taxas de crimes letais muito superiores a outros países e que nos coloca no triste ranking das sociedades mais violentas do mundo, isso sem contar as altas taxas endêmicas de outros crimes violentos, tais como roubos, sequestros, lesões, mortes pela polícia etc.3 O presente artigo busca traçar um panorama geral da segurança pública brasileira, explorando seus dilemas e desafios atuais. Com esse objetivo, seis temas centrais serão tratados a seguir: quadro geral da violência 2 CERQUEIRA, Daniel. Mapa dos Homicídios Ocultos no Brasil. Brasília: Ipea, 2013. 3 LIMA, Renato Sérgio de; SINHORETTO, Jacqueline. “Qualidade da democracia e polícias no Brasil”. In: Entre Palavras e Números: violência, democracia e segurança pública no Brasil. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2011. e vitimização no Brasil; características e falência do sistema penitenciário nacional; ambiguidades da política de drogas; causas e consequências da impunidade penal; gestão e modernização da política de segurança pública; Pacto Federativo e financiamento da segurança pública; e propostas de reforma. Violência e vitimização Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), taxas de homicídio superiores a dez por grupo de 100 mil são consideradas epidêmicas. Infelizmente, os dados nacionais, disponíveis no gráfico 1, revelam que o Brasil mantém taxas de mortes por agressão superiores a 20 por grupo de 100 mil para toda a série, na evidência empírica da incapacidade das políticas públicas de segurança de fornecerem respostas sólidas para a redução de crimes violentos letais. Contudo, é necessário destacar que existem diferenças importantes entre os estados. Gráfico 1: Taxa de mortes por agressão no Brasil (1990-2011) 35,0 30,0 25,0 20,0 23,8 22,2 20,9 19,1 20,2 26,8 25,9 26,2 24,8 25,4 29,1 27,9 28,5 27,3 27,2 27,8 27,4 26,1 26,6 25,5 26,7 21,2 15,0 10,0 5,0 0,0 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); MS/SVS/DASIS – Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM); Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). A tabela 1 apresenta dados mais recentes, produzidos pelas polícias e informados ao Ministério da Justiça. Verifica-se que entre os anos de 2011 e 2012 houve piora significativa nas taxas de homicídios dolosos em alguns estados brasileiros. Em São Paulo, onde as taxas seguem uma tendência decrescente desde 2000, houve um aumento de 14,5% na taxa de homicídios dolosos em 2012. No Ceará, o incremento foi de 32%, levando a taxa estadual ao patamar de 40,6 por 100 mil habitantes. Seguindo tendência oposta, estados como Alagoas e Espírito Santo apresentaram bons resultados, com quedas de 13,6% e 33%, respectivamente. Nesse sentido, ainda que se possa dizer que o Brasil apresenta uma taxa média de homicídios (24,3) muito acima da média global (6,9 em 2012, segundo dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime), há grandes disparidades entre estados e regiões. Tabela 1: Homicídios dolosos – Brasil e Unidades da Federação (20112012) Homicídio doloso Grupos de estados segundo qualidade dos Unidades da Federação Números 2011 dados (1) Brasil Acre Taxas (3) Absolutos (2) 2012 45.149 47.094 2011 2012 Variação (%) 23,5 24,3 3,4 137 173 18,4 22,8 24,2 Alagoas 2.342 2.048 74,5 64,5 -13,6 Amazonas 1.033 1.012 29,2 28,2 -3,5 Bahia 5.431 5.462 38,5 38,5 0,0 Ceará 2.623 3.492 30,7 40,6 32,0 704 787 27,0 29,7 10,2 1.457 985 41,1 27,5 -33,0 Goiás 998 1.297 16,4 21,1 28,4 Mato Grosso 944 933 30,7 29,9 -2,4 433 374 17,5 14,9 -14,6 Minas Gerais 3.630 3.924 18,4 19,8 7,4 Pará 2.914 3.051 37,9 39,0 2,9 Paraíba 1.633 1.476 43,1 38,7 -10,1 Paraná 3.085 3.135 29,3 29,6 1,0 Pernambuco 3.251 3.063 36,7 34,3 -6,5 Rio de Janeiro 4.009 3.814 24,9 23,5 -5,6 Sul 1.717 1.987 16,0 18,4 15,3 São Paulo 4.193 4.836 10,1 11,5 14,5 671 803 32,1 38,0 18,5 1.229 1.458 18,5 21,7 17,4 Distrito Federal Espírito Santo Grupo 1 Mato Grosso do Sul Rio Grande do Sergipe Grupo 2 Maranhão Piauí 341 479 10,9 15,2 39,6 Rondônia 399 400 25,3 25,2 -0,6 Roraima 54 62 11,7 13,2 12,5 Catarina 741 721 11,7 11,3 -3,7 Tocantins 256 296 18,3 20,9 14,3 901 957 28,2 29,6 5,2 23 69 3,4 9,9 193,9 Santa Grupo 3 Grupo 4 onte: Rio Grande do Norte Amapá R M BRASILEIRO E SE RAN A BLI A. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. S o Paulo: FBSP, 2013. (1) Grupo segundo qualidade estimada dos dados. (2) Os dados informados correspondem ao volume de ocorrências policiais registradas e não necessariamente indicam o número de vítimas. (3) Por 100 mil habitantes. Os homicídios não atingem todos com a mesma intensidade. Quando consideradas apenas as mortes de jovens, a taxa de homicídios alcança patamares surpreendentes, tendo chegado a 50,1 por 100 mil habitantes em 2007. Naquele ano, 54,7% das vítimas de homicídio no país se encontravam na faixa etária entre 15 e 29 anos4. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública revelam que 52,6% dos mortos por agressão em 2011 tinham entre 15 e 29 anos. No que se refere à cor dos mortos, 68,3% das vítimas fatais de agressão eram indivíduos de cor preta ou parda. Observa-se desde o ano de 2002 uma tendência nítida de diminuição nos números absolutos de homicídios de indivíduos brancos em paralelo ao aumento nos números para indivíduos 4 WAISELFISZ, Julio J. Mapa da Violência 2010: anatomia dos homicídios no Brasil. São Paulo: Instituto Sangari, 2010. negros. De acordo com dados do Mapa da Violência 20125, a participação da população negra no total de homicídios registrados no país passou de 58,6% em 2002 para 71,1% em 2010. Os dados referentes às capitais são ainda mais graves: em João Pessoa, um branco foi assassinado para cada 129 negros que morreram da mesma forma no ano de 2010. Assim, pode-se dizer que a típica vítima da violência letal no Brasil é jovem, negra e do sexo masculino, já que 91,2% dos mortos por agressão em 2011 eram homens. As armas de fogo são o meio mais utilizado em homicídios, sendo responsáveis por 70% das mortes por agressão em todo o país no ano de 2011. Diversos estudos6 demonstram que existe uma correlação entre a disponibilidade de armas de fogo e as taxas de homicídios: quanto mais armas em circulação, maiores as taxas de homicídio, o que evidencia os desafios à política de controle de armas e de fronteiras. Entre 1980 e 2010, estima-se que 800 mil brasileiros tenham morrido por disparos de algum tipo de arma de fogo. Mais uma vez, quando analisadas as mortes por armas de fogo, o crescimento da mortalidade entre os jovens foi pior do que a média7. Se analisarmos a proporção de mortes por arma de fogo por sexo, verificaremos que este é o instrumento mais utilizado na morte de homens (72,4%), mas entre as mulheres esta proporção é significativamente menor (49,2%). O uso mais frequente de instrumentos penetrantes e meios como sufocação contra vítimas do sexo feminino pode ser indicativo de que os assassinatos de mulheres em geral são resultado da violência doméstica. Outro importante indício que aponta para a mesma conclusão se refere ao lugar em que foram cometidos os crimes: 14,3% dos homicídios masculinos 5 ______. Mapa da Violência 2012: anatomia dos homicídios no Brasil. São Paulo: Instituto Sangari, 2012. 6 KILLIAS, Martin. “International correlations between gun ownership and rates of homicide and suicide”. Canadian Medical Association Journal, 1993; LESTER, David. (1991). “ rime as opportunity: a test of the hypothesis with european homicide rates”. British Journal of Criminology, 1991, pp. 186-188. 7 WAISELFISZ, Julio J. Mapa da Violência 2013: mortes matadas por armas de fogo. São Paulo: Instituto Sangari, 2010. ocorreram na residência da vítima, proporção que sobe para 41% no caso das vítimas mulheres8. Se em seu primeiro ano de vigência a Lei Maria da Penha pareceu ter contribuído para uma queda na taxa desse tipo de crime, pesquisa recente do Ipea revelou que a taxa de homicídio feminino de 2011 superou a de 2001, quando ainda não existia a lei. Apenas nos anos 2000, 43,7 mil mulheres foram assassinadas no país. Os homicídios são, não sem razão, uma das questões que mais causam preocupação e exigem que se tomem providências para contê-los, mas não podemos ignorar o crescimento nos números de outros crimes graves contra a pessoa. Um dado alarmante se refere aos estupros: em 2012, foram registrados 51.101 casos em todo o país, contra 43.869 no ano anterior 9. Podese supor que esse aumento esteja relacionado a uma maior tendência de notificação do crime, como demonstram os dados do Disque 180, a central de atendimento à mulher da Secretaria de Políticas para as Mulheres que fornece importantes orientações sobre como denunciar qualquer tipo de abuso ou violência e registrou um aumento de 240% nas ligações entre 2007 e 2012 10. Ao mesmo tempo, quando se sabe que as taxas de subnotificação de crimes relacionados a agressões sexuais são elevadas, números tão altos inspiram ainda mais preocupação. As ocorrências envolvendo policiais reforçam o grave quadro brasileiro no campo da segurança pública: estima-se que ao menos cinco pessoas morram todos os dias em decorrência de intervenções policiais, ou seja, em 8 ______. Mapa da Violência 2012: anatomia dos homicídios no Brasil. São Paulo: Instituto Sangari, 2012. 9 R M BRASILEIRO E SE Pública. S o aulo: BS , 1 . RAN A BLI A. Anuário Brasileiro de Segurança isponí el em: <http://www.forumseguranca.org.br/produtos/anuario-brasileiro-de-segurancapublica/7a-edicao>. 10 SECRETARIA DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES. Balanço Semestral do Ligue 180 (janeiro a junho de 2012). Brasília: SPM, 2012. Disponível em: <http://www.spm.gov.br/publicacoes-teste/publicacoes/2012/balanco-semestral-ligue180-2012>. 2012 pelo menos 1.890 pessoas morreram vítimas da ação policial. Este dado considera apenas as mortes em supostos confrontos por policiais civis e militares em serviço, ou seja, se considerarmos as mortes cometidas fora de serviço este número é ainda mais expressivo. Para se ter uma ideia, nos Estados Unidos, país com população 60% superior à brasileira e com uma quantidade muito maior de armas de fogo em circulação, o número total de civis mortos pelas polícias em 2012 foi de 410, segundo dados da agência federal de investigação americana (FBI). No México – cuja taxa de homicídio é similar à brasileira – que se encontra numa situação de quase guerra com os cartéis de drogas, 1.652 pessoas foram mortas pelas polícias em 2011. Os dados de vitimização policial demonstram o problema no padrão de uso da força de nossas polícias: as chances de um policial ser vítima de um homicídio no Brasil são quase três vezes superiores a de um cidadão comum. Essas mortes ocorrem, em sua maioria, fora de serviço, quando o policial está fazendo o “bico” para complementar renda e encontra-se sem apoio e muito mais vulnerável. Os dados apresentados revelam que os policiais brasileiros matam e morrem muito, na evidência de um padrão operacional e de uso da força completamente em dissonância com o Estado democrático de direito. Sistema penitenciário Os presídios brasileiros são um retrato das violações de direitos. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública11, existiam, em 2012, 549 mil presos, com um deficit de 211 mil vagas e 38% dos encarcerados em situação provisória, ou seja, que não haviam sido julgados pela Justiça. Estes dados refletem não apenas a crise que o sistema prisional brasileiro vive, com presídios superlotados e detentos vivendo em condições degradantes, mas também remete a outro problema grave com que o Estado 11 R M BRASILEIRO E SE RAN A Segurança Pública. S o aulo: BS , 1 . BLI A. Anuário Brasileiro de isponí el em: <http://www.forumseguranca.org.br/produtos/anuario-brasileiro-de-segurancapublica/7a-edicao>. brasileiro parece ser incapaz de lidar: a influência de grupos e facções criminosas dentro dos presídios em detrimento do controle estatal. Como caso mais recente temos os conflitos entre facções rivais no presídio de Pedrinhas, no Maranhão, que chocaram a sociedade brasileira com uma série de decapitações e foram responsáveis por uma série de ataques na cidade de São Luís no último semestre de 2013; e, como caso mais famoso, a criação do Primeiro Comando da Capital (PCC) nos presídios paulistas na década de 90, que atualmente controla cerca de 90% do sistema prisional do Estado de São Paulo e que veio a conhecimento do público em maio de 2006, no episódio que mobilizou mais de 78 presídios em rebelião simultaneamente e resultou em 439 pessoas mortas apenas entre os dias 12 e 20 de maio num conflito entre policiais e criminosos12. As cenas de barbárie observadas no presídio de Pedrinhas, no Maranhão, chocaram a opinião pública em dezembro de 2013 e fomentaram o debate sobre as péssimas condições em que se encontram estabelecimentos que supostamente deveriam servir a um propósito ressocializador. Se a descoberta de Pedrinhas causou mal-estar, não se pode esquecer que esse é apenas um dos presídios brasileiros em que facções rivais dividindo o mesmo espaço impõem suas próprias regras, e, na disputa por poder, punem inimigos com a morte e toda sorte de tortura. A construção de novos estabelecimentos prisionais é comumente defendida como panaceia para o colapso do sistema penitenciário. Se a superlotação gera uma variedade de consequências trágicas, a ampliação no número de vagas ofereceria uma espécie de solução mágica. Entretanto, considerando-se o ritmo em que cresce a população prisional brasileira, é bastante improvável que a construção de novos presídios pudesse de fato solucionar o problema. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, apenas entre os anos de 2011 e 2012 o número de encarcerados 12 A ORNO, Sergio; SALLA, ernando. “ riminalidade organizada nas prisões e os ataques do ”. Revista Estudos Avançados, São Paulo; 21 (61), pp. 07-29, 2007; DIAS, Camila C. N. PCC: hegemonia nas prisões e monopólio da violência. São Paulo: Saraiva, 2013. passou de 471.254 para 515.482, o que representou um aumento expressivo na taxa de encarceramento nacional. Isso não inclui os presos sob custódia da polícia, que somavam 34.304 indivíduos naquele ano. Dados do 5º Relatório Nacional Sobre os Direitos Humanos no Brasil13 revelam que entre os anos de 2000 e 2010 o número de presos no país cresceu em 113%, dado que ajuda a explicar porque o Brasil tem hoje a quarta maior população carcerária do mundo. Tais como as vítimas preferenciais de homicídio, existe entre os presos um perfil típico, com características bastante semelhantes às daqueles que compõem a maior parcela das vítimas de violência letal no Brasil. Em 2012, 54,8% dos encarcerados tinham entre 15 e 29 anos; na faixa etária de 18 a 24 anos se encontravam 29,5% de todos os detentos do país 14. Negros (pretos e pardos) perfaziam 60,8% da massa carcerária; sua participação na população total do país é de 50,7%15. Naquele ano, 93,8% dos presos eram do sexo masculino, confirmando que os perfis da vítima de homicídio e do encarcerado são muito semelhantes. No tocante à escolaridade da população carcerária, 60% dos detentos sequer haviam completado o Ensino Fundamental, o que equivale a dizer que tinham menos de oito anos de escolaridade. As políticas de encarceramento em massa e uma mentalidade segundo a qual o número de prisões realizadas pela polícia é indicador de sucesso estão por trás dos números mencionados acima. Quando se analisam os dados de encarceramento por tipo penal, fica evidente que a guerra às drogas contribui em grande medida para o déficit de mais de 211 mil vagas de nosso sistema prisional, já que mais 25,3% dos presos do país se encontram encarcerados por crimes relacionados ao tráfico de entorpecentes. Sabe-se que a maior parte destes são pequenos traficantes, cuja prisão não produz qualquer impacto sobre o mercado de drogas ilícitas. Também lotam os presídios brasileiros os presos provisórios ou já condenados por crimes contra 13 NÚCLEO DE ESTUDOS DA VIOLÊNCIA. 5º Relatório Nacional sobre os Direitos Humanos no Brasil (2001-2010). São Paulo: NEV/USP, 2012. 14 Ministério da Justiça – Departamento Penitenciário Nacional (Depen). 15 Censo 2010, IBGE. o patrimônio: em 2012, 49,1% da população carcerária brasileira era composta de indivíduos que cometeram crimes como furto, roubo e receptação. Cabe notar que, naquele mesmo ano, apenas 11,9% dos detentos do país haviam cometido homicídios ou participado de sequestros16. Esse dado contraria o senso comum, segundo o qual os presídios brasileiros estariam cheios de assassinos contumazes e sem possibilidade de reabilitação. O crescimento no número de presos provisórios também merece atenção e sinaliza para a crise do sistema de justiça criminal do país. Em 2012, presos aguardando julgamento representavam 38% da população carcerária, contra 36% no ano anterior. A situação é pior em estados como Amazonas, Pernambuco e Sergipe, onde a proporção ultrapassa 62%. No Piauí, presos provisórios perfazem 65,7% do total de detentos17. Esse quadro é consequência direta da morosidade do sistema de justiça e do desrespeito às garantias individuais de alguns acusados, cujo perfil permitiria que respondessem ao processo em liberdade. Esses mesmos fatores estão relacionados a outro grave exemplo de violação de direitos, o atraso na soltura de presos cujas penas ou prisões provisórias já expiraram. Desde 2008, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) realiza Mutirões Carcerários, espécie de força-tarefa que inspeciona unidades prisionais e analisa processos para identificar casos de detentos que já poderiam estar em liberdade ou gozando de benefícios previstos na legislação penal. Em balanço realizado após quatro anos de atuação, o CNJ revelou que 10% dos 451.828 processos analisados pelo órgão se referiam a indivíduos presos indevidamente. O desrespeito à lei não se resume à prisão indevida. As provisões da Lei de Execução Penal (7.210/1984) são ignoradas diariamente, não sendo garantidos aos detentos seus direitos à educação, ao trabalho, à saúde e assistência social, dentre outros. Outros dispositivos da lei que nunca foram 16 R M BRASILEIRO E SE RAN A Segurança Pública. S o aulo: BS , 1 . BLI A. Anuário Brasileiro de isponí el em: <http://www.forumseguranca.org.br/produtos/anuario-brasileiro-de-segurancapublica/7a-edicao>. 17 Idem. concretizados dizem respeito à assistência ao egresso, que deveria receber apoio em seu processo de reintegração à sociedade, e à divisão dos detentos de acordo com seus perfis, o que exigiria que presos primários e reincidentes ocupassem espaços distintos. Como se sabe, o sistema penitenciário nacional força presos condenados por crimes de baixo potencial ofensivo à convivência com reincidentes e membros de facções criminosas. Algumas das consequências do desrespeito a essa exigência são a violência praticada contra presos recém-chegados e o crescimento do crime organizado, já que a adesão às facções se torna imperativa. O nascimento de grupos criminosos dentro dos estabelecimentos prisionais é um reflexo direto da crise do sistema e, ao mesmo tempo, contribui para aprofundá-la. Não se pode entender o fenômeno da organização criminosa intramuros sem que se leve em consideração fatores como as péssimas condições dos presídios brasileiros, a escassez de servidores e a precarização de seu trabalho e a facilidade na entrada de aparelhos celulares nos estabelecimentos prisionais, o que possibilita a comunicação com membros em liberdade. Soma-se a esses fatores o aumento na desproporção entre presos e funcionários, que torna muitos estabelecimentos prisionais ingovernáveis. Em consequência, facções criminosas se articulam e exercem controle em um vácuo de poder deixado pelas autoridades. De natureza voluntária ou não, a adesão a um desses grupos pode significar o início de uma carreira criminal para detentos condenados por delitos banais. A criação de mais vagas em estabelecimentos prisionais não pode resolver os problemas do sistema penitenciário brasileiro, cuja população cresce em ritmo frenético. Deve-se pensar em políticas que revertam esse processo e na ampliação na aplicação de penas alternativas, que ainda é tímida. A aplicação de penas restritivas de liberdade poderia ser limitada àqueles que cometeram crimes de maior potencial ofensivo, mas as mesmas precisam vir acompanhadas de novas políticas criminais e sobre drogas, visto que um percentual significativo dos encarcerados cumpre pena por roubo e/ou tráfico de drogas e a legislação não prevê penas alternativas nestes casos. Política de drogas A política de drogas vigente no país é baseada em premissas que não encontram respaldo na realidade. Cercado de tabus, o debate sobre o tema caminha a passos lentos, ainda que tenha havido importantes avanços nos últimos anos. Tratadas como uma questão pertencente ao campo da segurança pública, as drogas são vistas como um mal que se deve e pode combater. Claramente inspirada na guerra às drogas travada pelos Estados Unidos, a guerra às drogas à brasileira não foi capaz de produzir os resultados esperados, assim como acontece no país do qual o modelo foi importado. Ao contrário, as drogas são cada vez mais acessíveis e baratas, o que mostra que o modelo proibicionista é ineficaz. De acordo com dados recentemente divulgados pelo Conselho Internacional de Controle de Narcóticos, órgão ligado à Organização das Nações Unidas (ONU), o consumo de cocaína no Brasil mais do que dobrou no país entre os anos de 2005 e 2011. Em paralelo, o consumo do crack se dissemina pelo país e chega a um número cada vez maior de cidades, agravando as condições de vulnerabilidade social daqueles que são seus consumidores preferenciais: os mais pobres e a população em situação de rua. Sancionada em 2006, a Lei nº 11.343/2006 introduziu uma mudança importante na política nacional de drogas. A partir deste momento, indivíduos apreendidos consumindo ou portando drogas para consumo próprio não poderiam ser condenados à pena de prisão. Trata-se de um avanço em relação à legislação anterior, mas isso não quer dizer que o uso de drogas tenha sido descriminalizado. O usuário ainda enfrenta um processo judicial, podendo ser condenado e perder sua primariedade. A lei define o porte ou uso de drogas como crime, razão pela qual o usuário pode ser condenado à prestação de serviços à comunidade ou ao comparecimento compulsório a cursos e programas educativos. Sob esse paradigma, o usuário continua estigmatizado e, temendo represálias legais, pode deixar de procurar assistência médica e social. Tratando o uso de drogas como caso de polícia e o usuário como criminoso, autoridades em diferentes estados e cidades têm recorrido a políticas pouco eficazes e humanas. Nos últimos anos, a Cracolândia paulistana foi manchete frequente de jornais que relatavam operações policiais realizadas na área. Usuários severamente debilitados pelo uso da droga associado à situação de vulnerabilidade social em que se encontravam foram confrontados pela polícia em uma série de ações desastradas. O mesmo aconteceu em cidades como o Rio de Janeiro e outras localidades em que se discute a possibilidade de internação compulsória de usuários de crack. Felizmente, algumas iniciativas inovadoras têm sido postas em prática, voltadas à reinserção social dos dependentes químicos. Na cidade de São Paulo, a Operação Braços Abertos oferece ao usuário uma oportunidade de trabalho e moradia, baseada na premissa de que é preciso devolver a ele condições dignas de vida, ainda que o consumo não seja interrompido. Ao mesmo tempo, o debate sobre políticas de redução de danos se intensifica e ganha mais adeptos. Fosse a Lei nº 11.343/2006 mais clara em sua distinção entre usuários e traficantes, poder-se-ia dizer que a política nacional de drogas inspira mais otimismo. Entretanto, não existe na lei uma definição sobre as quantidades de entorpecentes que configuram consumo e tráfico. À época, alegou-se que o estabelecimento de uma quantidade mínima engessaria a legislação e que os traficantes se adaptariam à lei vigente portando quantidades menores de entorpecentes. Na prática, a falta de clareza faz com que a linha que divide usuários e traficantes seja muito tênue, o que abre espaço para um alto grau de discricionariedade por parte daqueles que aplicam a lei. Em outras palavras, cabe à polícia a tarefa de decidir sobre a classificação de um indivíduo como usuário ou traficante. Quando é aberto um inquérito por tráfico de entorpecentes, o acusado permanece preso até que ocorra a audiência, ocasião em que o juiz poderá rever sua situação, classificando-o como usuário. Pesquisa conduzida pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo18 revelou que alguns delegados preferem deixar a decisão ao juiz; o mesmo vale para promotores de justiça que pedem a prisão provisória de qualquer indivíduo que seja apreendido portando drogas, independente de quantidade. Entende-se que assim é possível garantir que o acusado 18 JESUS, Maria Gorete M. de et al. Prisão Provisória e Lei de Drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo. São Paulo: NEV/USP, 2011. compareça às audiências e que o processo transcorra normalmente. Caso haja um equívoco, o juiz o reparará. Como fica claro, esse modus operandi pode fazer com que muitos usuários fiquem detidos desnecessariamente. Ao mesmo tempo, alguns dos operadores da lei ouvidos admitiram fazer uso de critérios pouco objetivos quando têm que decidir se alguém será enquadrado como usuário ou traficante. Esses critérios incluem características físicas e socioeconômicas, além de possíveis antecedentes criminais. Como resultado, o perfil dos presos enquadrados como traficantes é semelhante: jovens pobres, pardos ou negros, com baixa escolaridade e empregos informais. Os acusados são quase sempre defendidos por defensores públicos com os quais têm pouco ou nenhum contato durante o processo. A pesquisa concluiu que o foco da guerra às drogas ainda é colocado no tráfico varejista, de pequena escala. Existe uma faceta ainda mais trágica dessa guerra e que tem alvos específicos. Em cidades como o Rio de Janeiro, ela assumiu contornos bélicos, caracterizando-se por incursões policiais que deixavam vítimas fatais em todos os lados envolvidos. As mortes de jovens moradores de comunidades que estavam ou supostamente estariam envolvidos com o tráfico era quase justificável, dada a natureza do inimigo e do mal que se buscava combater. Por outro lado, muitos policiais também perderam suas vidas participando da manifestação mais trágica da chamada guerra às drogas, que tinha como outra de suas consequências a corrupção. A instalação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) desde dezembro de 2008 reverte parcialmente esse quadro, mas ainda há muito a ser feito em muitas comunidades nas quais a express o “guerra às drogas” assume significado quase literal. Se não se pode negar que as drogas podem causar danos à saúde dos usuários, tampouco se pode esquecer que o consumo de drogas sempre existiu e que este fato precisa ser enfrentado com políticas públicas humanas e eficazes. É fundamental que se abram oportunidades para que o usuário busque ajuda caso deseje fazê-lo e que o consumo saia da esfera criminal. Infelizmente, os governos têm deixado estas questões para as instituições de segurança, transformando um problema eminentemente de saúde pública em questão exclusivamente de polícia. Recentemente alguns estados americanos autorizaram o consumo da maconha para fins recreativos, o Uruguai aprovou a legalização da produção e venda de maconha no país e a Organização dos Estados Americanos (OEA) divulgou um documento no qual incentiva a análise de uma eventual legalização da maconha como mecanismo para combater o narcotráfico. Ao que tudo indica, o mundo começa a reconhecer que a guerra contra as drogas se mostrou ineficaz e gerou muitas mortes sem ser capaz de reduzir consumo e tráfico de entorpecentes. Impunidade penal Os problemas relacionados à superlotação dos presídios brasileiros parecem contradizer o discurso quase consensual sobre a impunidade penal no país. É senso comum afirmar que as altas taxas de crimes registradas no Brasil estão diretamente relacionadas à certeza da impunidade; em outras palavras, haveria certo estímulo à prática de delitos na medida em que a impunidade levaria potenciais criminosos à conclusão de que o crime compensa. Se é verdade que se prende muito no país, pode-se dizer que se prende mal. Ainda que muitos crimes deixem de receber sanções penais, não se pode afirmar que a justiça criminal brasileira seja pouco rigorosa. Em todos os países, é possível observar a ocorrência do que se conhece por “efeito funil”, segundo o qual os crimes cometidos vão sendo filtrados até que se chegue a um número bem menor de crimes efetivamente julgados. No topo do funil estão os delitos cometidos; no fim, as condenações e prisões. Conforme se avança no funil, há perdas significativas em números, o que quer dizer que o número de crimes que terminam em condenações é muito inferior ao total de crimes cometidos e registrados. A magnitude desse efeito no Brasil é surpreendente, conforme demonstrado por diferentes pesquisas empíricas conduzidas nas últimas décadas. Ainda que as maiores perdas durante o fluxo ocorram em casos de crimes patrimoniais, uma pequena parcela dos inquéritos de homicídios se transforma em processos. O dado encontrado por pesquisa coordenada por Luiz Eduardo Soares19 sobre os homicídios dolosos e latrocínios cometidos no Rio de Janeiro em 1992 é revelador: pouco mais de 19 SOARES, Luiz Eduardo et al. “ ma radiografia da iolência no Rio de Janeiro”. Princípios: revista teórica, política e de informação, São Paulo; n. 35, 1995, pp. 66-76. 8% deles se converteram em processos penais. Essa realidade mudou muito pouco desde então. Muitos homicídios sequer são propriamente investigados. Coordenado por Sergio Adorno e Wânia Pasinato20, estudo sobre impunidade penal analisou o fluxo de diferentes tipos de ocorrências criminais registradas em delegacias da 3º Seccional de São Paulo entre os anos de 1991 e 1997, desde a abertura do boletim de ocorrência até a sentença judicial. Uma das descobertas mais graves foi a de que 40% dos homicídios registrados não foram alvo de investigação, pois apenas 60,1% foram se transformaram em inquéritos policiais. Além disso, concluiu-se que a polícia tende a negligenciar a investigação de crimes de autoria desconhecida, ainda que estes representem a maior parte dos casos de homicídios registrados. O flagrante funciona como poderoso estímulo ao trabalho policial, assim como a informação sobre autoria. Quando analisadas todas as ocorrências de crimes violentos, descobriu-se que apenas 8,1% delas geraram inquéritos policiais. Esse percentual sobe para 87% nos casos de homicídios cujos autores eram conhecidos; o que quer dizer que 13% dos homicídios de autoria conhecida não foram investigados. Esses dados confirmam as conclusões de outros pesquisadores: a falta de provas sobre a autoria ou materialidade dos delitos leva grande parte das ocorrências ao esquecimento e dos inquéritos ao arquivamento. O efeito funil também opera em casos de crimes sexuais. Joana Vargas21 analisou 444 boletins de ocorrência abertos na Delegacia de Defesa da Mulher entre 1988 e 1992. No ano em que a pesquisa foi realizada, em 2001, 71% dos boletins abertos naquele período se encontravam arquivados. Dentre aqueles que se converteram em inquéritos, apenas 55% chegaram à fase processual, e as condenações somaram apenas 9% dos casos inicialmente registrados. O estudo mencionado anteriormente, coordenado por 20 A ORNO, Sergio; ASINATO, Wânia. “Violência e impunidade penal: da criminalidade detectada à criminalidade in estigada”. Dilemas: revista de estudos de conflito e controle social, Rio de Janeiro; 3 (7), 2010, pp. 51-84. 21 VAR AS, Joana . “ adrões do estupro no fluxo do sistema de justiça criminal em ampinas (S )”. Revista Katálysis, Florianópolis; 11(2), 2008, pp. 177-186. Adorno e Pasinato, encontrou estatísticas parecidas: analisando ocorrências registradas entre 1991 e 1997 nas delegacias da 3º Seccional de Polícia de São Paulo, os pesquisadores constataram que, mesmo com autoria conhecida, somente 36,4% dos boletins de ocorrência de estupro foram transformados em inquéritos policiais. Isso quer dizer que mesmo os crimes mais graves – ou seja, aqueles que atentam contra a vida e a liberdade sexual – deixam de ser punidos. Segundo Adorno, o maior gargalo do fluxo se encontra na fase policial. A ineficiência investigativa está por trás da baixa taxa de esclarecimento de crimes em todo o país e se relaciona a aspectos da cultura policial tais como a importância conferida ao flagrante, que funciona como um poderoso estímulo à investigação. Crimes de autoria desconhecida, sem flagrante ou que não foram consumados merecem pouca atenção. No entanto, a impunidade penal é também explicada pela falência do sistema de justiça criminal do país, que não foi capaz de acompanhar o crescimento das taxas de criminalidade nas últimas décadas. O resultado dessa ineficiência é a baixa confiança da população em relação à polícia e à Justiça, vistas como instituições falidas. Quando a descrença em alguns dos mais importantes pilares do Estado democrático de direito é tão profunda, cresce o recurso a soluções como a segurança privada e a crença na alidade da “justiça com as próprias m os”. Os recentes casos de agressão a suspeitos de crimes em cidades como o Rio de Janeiro revelam a extensão da crise de legitimidade das instituições de lei e ordem. Pesquisa realizada22 no primeiro semestre de 2013 revelou que 70% da população brasileira afirmava não confiar nas polícias e 66% não confiava na Justiça. Esses dados colocam em questão a relação dos cidadãos com o sistema democrático (MOISES, 2010) e demonstram a fragilidade das instituições de segurança pública responsáveis por garantir direitos e a manutenção da ordem, bem como impõem dilemas sobre como induzir ações mais associadas à nova ordem social inaugurada em 1988. 22 LIMA, Renato et al. “Estado, polícias e segurança pública no Brasil”. Texto elaborado sob encomenda para subsidiar debate do Centro de Pesquisas Jurídicas Aplicadas da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas. São Paulo: FGV, 2013. Gestão e modernização da política de segurança pública Apesar do cenário dramático que o Brasil tem vivido nas últimas décadas, cuja evidência empírica tem se traduzido nas altas taxas de homicídios e demais crimes violentos, é possível reconhecer avanços significativos em determinados territórios, que focaram suas agendas em ações de modernização, participação social e gestão e representaram ganhos incrementais que merecem ser destacados. O quadro 1, reproduzido de Lima e outros (2013), descreve algumas das principais ações da União, das Unidades da Federação e dos municípios no campo da segurança pública desde a década de 80, na ideia de identificar pontos de convergência e propostas mais eficientes para o aprimoramento do sistema de justiça e segurança pública. A dimensão “ articipação social e direitos humanos” é marcada pela ampliação da participação social no tema da segurança pública com a criação dos conselhos comunitários de segurança, dos gabinetes de gestão integrada, dos Disque Denúncia, dos planos nacionais de direitos humanos e da Primeira Conferência Nacional de Segurança Pública. A dimensão “ ontrole” é inaugurada com a criação da primeira ouvidoria de polícia do país, em 1995, e merece destaque o protagonismo da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, que tem assumido diversas pautas do campo da segurança, tais como a Resolução nº 8/2012, que recomenda a aboliç o dos termos “auto de resistência” e “resistência seguida de morte” nos boletins de ocorrência e inquéritos policiais23. A dimensão “ estão das polícias e novos atores” é marcada principalmente pela implantação do policiamento comunitário, cujas primeiras 23 Atualmente aguardando votação no Congresso Nacional, o Projeto de Lei nº 4.471/2012, de autoria do deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP) recomenda que os “autos de resistência seguida de morte” de er o ser in estigados de maneira semelhante ao que é previsto para os crimes praticados por cidadãos comuns. Isso porque, sendo classificados como tal, estas ocorrências supõem excludente de ilicitude e em geral são arquivadas, sem nem mesmo gerar investigações. estratégias foram desenvolvidas ainda na década de 80 e que propõem a aproximação entre polícia e cidadão para melhoria da atividade policial e da relação entre os atores. Vários programas baseados na estratégia de policiamento comunitário e/ou proximidade foram capazes de reduzir as taxas de crimes violentos letais, como é o caso de São Paulo, na década de 90, com o programa de policiamento comunitário, do projeto Fica Vivo, em Minas Gerais, do projeto Pacto pela Vida, em Pernambuco, e das UPP, no Rio de Janeiro, na primeira década dos anos 2000. Somaram-se a estes programas estratégias de monitoramento dos indicadores criminais e policiais e a criação de metas e sistemas de remuneração variável por desempenho. Estudos apontam que os efeitos organizacionais da implantação de sistemas de metas no campo da segurança podem trazer bons resultados, desde que combinados à criação de mecanismos institucionais para evitar a reclassificação de crimes, tais como um sistema de acompanhamento periódico dos indicadores e auditorias dos dados. A história demonstra que experiências de sucesso na redução de índices de criminalidade estão centradas em sistemas de gestão bem desenhados, capazes de aliar transparência e o uso intensivo de informações com o planejamento operacional das polícias. Casos de sucesso internacionais como o CompStat, em Nova York, nos Estados Unidos, e do Sistema Unificado de Informação de Violência e Delinquência (SUIVD), em Bogotá, na Colômbia, que lograram reduções expressivas nos índices de criminalidade, têm servido de inspiração para diversas experiências brasileiras. No caso brasileiro, no qual o sistema de segurança pública foi desenhado a partir de uma lógica fragmentada – em que duas polícias operam cotidianamente nos mesmos crimes sem compartilhamento de informações –, a implantação de sistemas de informação e gestão capazes de induzir ações integradas tem gerado efeitos positivos: o estado do Rio de Janeiro reduziu em 29% seus índices de crimes violentos letais intencionais entre 2008 e 2012; Pernambuco alcançou redução de 28% de seus homicídios desde a implantação do Pacto pela Vida; o estado de São Paulo reduziu em 70% sua taxa de homicídios entre 2000 e 2011 com forte investimento em mecanismos de gestão, iniciado no fim dos anos de 90. No entanto, por melhores que sejam essas práticas de gestão, sem uma mudança substantiva na estrutura normativa das polícias e do sistema de justiça criminal, o quadro de insegurança hoje existente tenderá a ganhar contornos dramáticos. Uma das lições de países que conseguiram reformar suas polícias, como Irlanda e África do Sul, é que quando a atividade policial deixa de ser autônoma e passa a responder à lógica das políticas públicas, muito se ganha. Para além de soluções puramente técnicas, percebe-se que os problemas da área podem ser mitigados quando a política está efetivamente comprometida na construção de uma nova postura do Estado em relação à sociedade. Quadro 1: Exemplos de ações incrementais e com foco na participação social, na gestão policial e na gestão da informação em segurança pública no país Eixos/Décadas Década de 80 Década de 90 Década de 2000 Disque Denúncia do Rio Disque Denúncia de de Janeiro – 1995 São Paulo – 2000 Criação da primeira Ouvidoria de Polícia, em São Paulo – 1995 Participação social, controle e direitos humanos Criação das primeiras Delegacias de Defesa da Mulher, em São Paulo – 1986 Primeiro Plano Nacional de Direitos Humanos – 1996 Criação dos Gabinetes de Gestão Integrada (GGI) e GGI Municipais (2003) Segundo e Terceiro Planos Nacionais de Direitos Humanos – 2002 e 2009 Criação, em São Paulo, do Programa de Primeira Conferência Acompanhamento de Nacional de Segurança Policiais Envolvidos em Pública – 2009 Ocorrências de Alto Risco Década de 2010 Protagonismo da SDH nos assuntos relacionados às violações de direitos humanos por parte dos agentes de segurança pública (Proar) – 1996 Implantação do Método Giraldi, de Tiro Defensivo, pela Polícia Militar de São Paulo – 1998 Criação dos Conselhos de Segurança (o primeiro foi criado em Maringá, Paraná, em 1994) Criação da Secretaria de Direitos Humanos (SDH) – 1997 Criação do Programa Gestão das polícias e envolvimento de novos atores Desenvolvimento das primeiras estratégias de policiamento comunitário Implementação da Ronda no Quarteirão, Ministério da Justiça filosofia de policiamento no Ceará, e das sanciona primeira portaria comunitário em diversos Unidades de Polícia com diretrizes sobre o uso territórios, em São Paulo Pacificadora (UPP), no da força pelos agentes de – 1997 Rio de Janeiro, ambos segurança pública – 2010 inspirados nos padrões de policiamento comunitário – 2008 Primeiro e Segundo Planos Nacionais de Segurança Pública – 2000 e 2003 Proposta de Criação do Sistema Único de Segurança Pública Criação da Secretaria (Susp) – 2003 Nacional de Segurança Fundo Nacional de Pública (Senasp) – 1997 Segurança Pública (FNSP) – 2001 Modernização da Polícia Federal – 2003 Experiência de integração Programa de das áreas de jurisdição Segurança Pública com das polícias em Rio de Cidadania (Pronasci) – Janeiro (1997), São 2008 Paulo (1998), Ceará (1999) e Pará (1995) Desenho e Implantação de Protocolos Operacionais Padrão – (POPs), em São Paulo e União Implantação de projetos de integração baseados Criação do Infoseg pela em metas e União – 1995 monitoramento (Fica Vivo!, Minas Gerais) – Gestão da 2001 informação Criação do Sistema Criação do Projeto Nacional de Segurança Delegacia Legal, no Rio Pública e Justiça de Janeiro – 1996 Criminal (SinespJC) – 2004 Novas experiências de integração das polícias baseadas em metas, indicadores e monitoramento no Espírito Santo (Estado Presente) e em Pernambuco (Pacto pela Vida) Lançamento dos primeiros editais de Criação do Infocrim, em pesquisas aplicadas em São Paulo – 1999 Justiça Criminal e Segurança Pública pela Senasp – 2004 Criação dos primeiros sistemas estaduais de estatísticas criminais (Lei nº 9.155/1995, em São Paulo; Instituto de Segurança Pública, em 1999, no Rio de Janeiro) Institucionalização do Criação da Rede de Sistema Nacional de Altos Estudos em Informações de Segurança Pública Segurança Pública, (Renaesp) – 2006 Prisionais e sobre Drogas (Sinesp) – 2012 onte: LIMA, Renato Sérgio de et al. “Estado, polícias e segurança pública no Brasil”. Texto elaborado sob encomenda para subsidiar debate do Centro de Pesquisas Jurídicas Aplicadas da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas. São Paulo: FGV, 2013. Pacto Federativo e financiamento da segurança pública A Constituição Federal de 1988 representa, em termos formais, a principal referência no ordenamento jurídico sobre a segurança pública. O artigo 144 da Constituição dispõe sobre os mandatos e atribuições das instituições encarregadas em prover segurança pública. Segundo o texto, a segurança pública, “de er do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio” por meio das olícias Federal, Rodoviária Federal, Ferroviária Federal, Polícias Civis, Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares. Os Corpos de Bombeiros, Polícias Militares e Polícias Civis são gerenciados pelas Unidades da Federação. Às Polícias Militares cabem as funções de polícia administrativa, policiamento ostensivo e preventivo e preservação da ordem pública; à Polícia Civil cabem as funções de polícia judiciária, a apuração, a elucidação, o esclarecimento de crimes e sua autoria. Verifica-se que o artigo 144 apenas define quais são as instituições públicas encarregadas de prover segurança pública, não definindo o que vem a ser segurança pública, e apenas delimitando quais organizações pertencem a este campo24. Como resultado, os ruídos no Pacto Federativo e no modelo bipartido de organização policial herdados de períodos anteriores não foram enfrentados pela Constituição Federal de 1988 e, ao contrário, novas situações de fricção foram criadas com a introdução dos municípios na formulação e execução de políticas de prevenção e combate à violência25. As relações federativas no Brasil no contexto pós-Constituição de 1988 foram marcadas por um panorama complexo, no qual convivem simultâneas e contraditórias tendências centralizadoras e descentralizadoras, sem clara atribuição de competências que fossem capazes de gerar o tão propalado federalismo 24 LIMA, Renato Sérgio de; SINHORETTO, Jacqueline. “Qualidade da democracia e polícias no Brasil”. In: Entre Palavras e Números: violência, democracia e segurança pública no Brasil. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2011. 25 RATTON, José Luiz et al. (orgs.). Crime, Polícia e Justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014. 32 cooperativo26. Entretanto, se as áreas da saúde, educação, assistência social e habitação já promoviam o debate sobre descentralização nas políticas sociais no início dos anos 90, este começou tardiamente no campo da segurança pública, com as primeiras reflexões sobre o assunto apenas no fim dos anos 90. Deste modo, nos anos subsequentes à promulgação da Constituição Federal, o quadro observado no Brasil em relação à segurança pública foi a baixa capacidade de indução e coordenação do governo federal, da proeminência dos estados na implementação de políticas de segurança pública e da ausência dos municípios no debate sobre a área. A entrada em cena do governo federal nos assuntos relacionados a área da segurança pública, por exemplo, veio tardiamente, com a criação da Senasp em 1997. Em relação aos municípios, por muito tempo ausentaram-se do debate sobre segurança com o argumento de que a Constituição Federal indicava que os estados eram os responsáveis por prover segurança pública. É somente à luz do debate sobre descentralização que este dispositivo legal passa a ser reinterpretado e o papel do município passa a ser objeto de análise de estudos acadêmicos, que enfatizam as inovações e os investimentos em termos de arranjo organizacional que esta instância tem criado como forma de mediar os problemas relacionados à segurança pública em nível local27. O primeiro Plano Nacional de Segurança Pública foi lançado em 2000, após a tragédia do ônibus 174 no Rio de Janeiro. Embora bem intencionado, o plano não tinha visão sistêmica acerca da questão da segurança pública em âmbito nacional e não foi capaz de propor ações programáticas com objetivos, metas, prazos e 26 BUENO, Samira; ERES, rsula . “ acto ederati o e financiamento da segurança pública no Brasil”. In: MINGARDI, Guaracy (Org.). Política de Segurança: os desafios de uma reforma. 1ª ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2013. Vol. 1, pp. 125-144. 27 PATRÍCIO, Luciane; RIBEIRO, Ludmila. “Indicadores para o monitoramento e a aliação das políticas municipais de segurança pública: uma reflex o a partir de um estudo de caso”. Revista Brasileira de Segurança Pública; 2008, pp. 06-29. 33 indicadores28, pois previa 124 programas e ações distribuídos de forma difusa pelo país, o que implicou a ausência de coordenação. Na esteira da criação do primeiro Plano Nacional de Segurança Pública é criado o FNSP para garantir o financiamento das ações nos estados e municípios. Entretanto, a ausência de uma visão sistêmica enfraqueceu as possibilidades do FNSP, que acabou por adotar uma política de pulverização de recursos entre diversos entes da Federação. Em 2003, é lançado o Segundo Plano Nacional de Segurança Pública, que tem como principal bandeira a criação do Sistema Único de Segurança Pública (Susp). O Susp pretendia articular as ações federais, estaduais e municipais na área da segurança pública e da justiça criminal, associando integração federativa com autonomia dos órgãos de segurança pública. Em consonância com essa ideia foram propostos os Gabinetes de Gestão Integrada (GGI), que em cada estado trabalhariam a integração das diferentes polícias e apoiariam o planejamento e monitoramento de projetos. Segundo Lima e Sinhoretto29, o Susp apresentou avanços no sentido da modernização do combate ao crime e da maior participação da sociedade na discussão das questões concernentes à segurança. Soares30, por sua vez, ressalta que a criação do Susp não alterou de fato o cenário da segurança pública nacional, visto que não houve a real assunção da coordenação desse processo pela União e nem regulamentação do mesmo pelo Congresso Nacional. Com isso, a prevalência na tomada de decisão sobre processos de prevenção de violência continuou eminentemente dos Estados, com suas diferenciações regionais. 28 BUENO, Samira; ERES, rsula . “ acto ederati o e financiamento da segurança pública no Brasil”. In: MINGARDI, Guaracy (Org.). Política de Segurança: os desafios de uma reforma. 1ª ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2013. Vol. 1, pp. 125-144. 29 LIMA, Renato Sérgio de; SINHORETTO, Jacqueline. “Qualidade da democracia e polícias no Brasil”. In: Entre Palavras e Números: violência, democracia e segurança pública no Brasil. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2011. 30 SOARES, Luiz Eduardo et al. “ ma radiografia da iolência no Rio de Janeiro”. Princípios: revista teórica, política e de informação, São Paulo; n. 35, 1995, pp. 66-76. 34 O FNSP, que deveria dar o respaldo à criação do Susp, continuou a ser operacionalizado em convênios mais pulverizados do que articulados na construção de uma pauta única na segurança pública. Em 2008, o governo federal cria o Pronasci, que propôs a articulação de 19 ministérios, com 94 ações e com intervenções nos diversos entes subnacionais, com foco na população jovem. As ações estruturantes do programa são as dirigidas ao aparato policial (modernização das polícias, formação e valorização profissional dos agentes de segurança, controle interno das instituições de segurança) e as ações localizadas que, em última instância, chegam à população e foram implementadas com base no conceito de “territórios da paz”. Segundo o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)31, o Pronasci é o primeiro programa nacional de segurança pública que foi efetivamente implementado. O programa inova, de acordo com o Inesc, ao focar na qualificação dos profissionais da segurança e ao propor o desenho de ações segundo indicadores sociais e de violência. De certa forma, o Pronasci é resultado, no plano federal, das políticas que começaram a ser desenhadas no início dos anos 2000 e que tomaram os fenômenos do crime, da violência, da desordem e do desrespeito aos direitos humanos como resultantes de múltiplas determinantes e causas e, portanto, compreenderam que não cabe apenas ao sistema de segurança pública e à justiça criminal a responsabilidade por enfrentá-los. Condições socioeconômicas e demográficas, fatores de risco, políticas sociais, estratégias de prevenção, programas de valorização dos policiais, entre outras ações foram mobilizadas e se tornaram importante para as mudanças que o sistema de segurança precisa enfrentar. Entretanto, a implementação do Pronasci acabou por esvaziar o papel do FNSP, visto que seu orçamento entre 2008 e 2010 representou mais que o dobro dos recursos do fundo, o que de certa forma enfraquece a própria concepção do Susp, com programas concorrentes entre si e pouco articulados. 31 INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS. Segurança Pública e Cidadania: uma análise orçamentária do Pronasci, Brasília: Inesc, 2011. 35 Olhando para despesas dos três entes em segurança sistematizadas pela Secretaria do Tesouro Nacional, verificamos que o Brasil gastou em 2011 mais de R$ 54 bilhões com segurança pública, aproximadamente 1,3% do PIB nacional. Contudo, estima-se que 35% dos gastos das Unidades da Federação sejam, na verdade, despesas previdenciárias. Considerando que boa parte das despesas com policiamento, que representam outros 35% dos gastos, são gastos com folha de pagamento das polícias, pouco sobra para investimento e modernização da área. Gráfico 2: participação percentual da União, Unidades da Federação (UF) e municípios nas despesas declaradas na função "segurança pública" – Brasil (2006-2011) 100% 3,0 3,2 3,7 3,8 4,7 86,2 83,6 81,8 80,9 79,9 5,2 90% 80% 70% % 60% 50% 84,2 Municípios UF's 40% União 30% 20% 10% 10,9 13,2 14,6 15,4 15,4 10,6 2006 2007 2008 2009 2010 2011 0% Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional; SIAFI – STN/CCONT/GEINC; FINBRA; IBGE; FBSP. Na análise das despesas da União, estados, distrito federal e municípios chamam a atenção: a. o aumento nominal de recursos destinados à segurança pública, realizado pelas Unidades da Federação ano a ano, não foi suficiente para manter a participação dessas unidades no total de recursos gastos pelas três esferas do Poder Executivo; b. a redução de 21% das despesas da União na área entre 2010 e 2011, 36 desencadeada pela mudança de gestão do governo federal e, em certa medida, pela interrupção de parte significativa dos recursos previstos no Pronasci; c. o aumento expressivo de recursos na função “segurança pública” declarado pelos municípios que, em apenas seis anos, sofreram um incremento de 128%. Tabela 2: Despesas declaradas na função “segurança pública” – União, Unidades da Federação (UF) e municípios (2006-2011) União UF Municípios Total 2006 2007 2008 2009 2010 2011 4.438.869.383,16 5.904.096.238,99 7.023.318.467,41 8.161.732.945,45 7.779.444.615,76 5.744.128.534,30 35.224.631.863,76 37.392.585.037,67 39.417.481.233,10 42.946.410.795,42 40.418.313.510,12 45.657.770.444,81 1.220.762.909,51 1.433.171.993,47 1.769.386.394,99 2.005.377.175,54 2.359.209.740,29 2.793.429.039,10 40.884.264.156,43 44.729.853.270,13 48.210.186.095,50 53.113.523.916,41 50.556.967.866,17 54.195.328.018,21 Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional; SIAFI – STN/CCONT/GEINC; FINBRA; IBGE; FBSP. Já os dados da tabela 2 demonstram que municípios saltaram de um patamar de despesas com segurança pública equivalente a 3% dos gastos públicos na área, em 2006, para 5,2%, em 2011. Os municípios assumiram um papel mais ativo (antes eles já financiavam gastos operacionais das polícias, como aluguéis, contas de consumo e manutenção e combustíveis das viaturas), porém esbarram numa série crise de financiamento de suas ações na área. Não há fontes de receitas específicas e há uma forte competição pelos repasses voluntários da União que, a partir de 2001, com o FNSP, incluiu os municípios no rol de habilitados a receber recursos para essa área. A União, por sua vez, aumentou sensivelmente seus gastos até 2010, mas, após a posse de Dilma Rousseff, reverteu tal tendência e retomou o patamar de 2006, primeiro ano do segundo mandato de Lula. Já as Unidades da Federação (estados e Distrito Federal) estavam diminuindo suas participações na área, mas, em 2011, com a retração da União, voltaram a ser responsáveis por cerca de 85% dos gastos públicos com segurança pública, em muito justificados pelas folhas de pagamentos dos aproximadamente 600 mil policiais civis e militares do país. Até 2010, na medida em que as transferências voluntárias da União aumentaram, os estados redirecionaram suas receitas para outras áreas. 37 Seja como for, o país gasta o equivalente a países desenvolvidos e, nem por isso, consegue reverter o quadro de medo e insegurança, muito em função de um modelo falido de organização policial e de administração de conflitos. É possível supor que o crescimento dos gastos com segurança pública é um efeito inevitável de se optar por manter um sistema disfuncional na prevenção da violência e na garantia de direitos e que, para continuar de pé, exige volumes crescentes de investimentos. Todavia, essa opção não se dá pelo sucesso desse sistema em fazer cumprir o monopólio estatal da violência e oferecer serviços de qualidade. Ao contrário, ela parece guardar mais relação com os sentidos e prioridades políticas que o tema assume para os dirigentes políticos. Pensando soluções Diante do quadro exposto, é consenso entre os especialistas que o modelo de segurança pública brasileiro está falido e não é capaz de oferecer as respostas necessárias para garantir segurança, direitos e cidadania para a população. Desse modo, faz-se necessário pensar em reformas estruturais do modelo, com uma agenda de modernização e democratização da segurança pública. Nesta perspectiva, em 2013 o senador Lindbergh Farias (PT-RJ) propôs a PEC 51, que tem por objetivo mudanças radicais na arquitetura institucional da segurança pública. A emenda constitucional é comumente entendida como a PEC da desmilitarização das polícias, mas essa não é a única medida prevista por ela. Na realidade, trata-se de uma proposta de reforma mais ampla e profunda das polícias brasileiras, que tem como alguns de seus objetivos melhorar a eficácia da investigação policial e dar fim ao embate histórico que coloca policiais militares e civis em campos opostos, quando o trabalho em conjunto seria capaz de gerar melhores resultados. De fato, esse embate é um dos responsáveis pela ineficiência investigativa observada no país e tem suas raízes na manutenção de duas forças policiais de ciclo incompleto. Uma das medidas contidas na PEC 51 é a da criação da polícia de ciclo completo, ou seja, o estabelecimento de forças policiais estaduais que fossem responsáveis, ao mesmo tempo, por tarefas de policiamento ostensivo e investigação criminal. Sob o atual arranjo da segurança pública vigente no país, são responsáveis por cada uma dessas tarefas as Polícias Militar e Civil, 38 respectivamente. Por essa razão, diz-se que os estados brasileiros têm polícias de ciclo incompleto. A ideia por trás da defesa do ciclo completo é a de que a estrutura atual torna o trabalho da polícia ineficiente, já que os policiais que estão nas ruas não são os mesmos que investigam os crimes, o que quer dizer que a polícia investigativa está longe dos locais em que acontece a prática delituosa. A falta de cooperação e comunicação entre as duas polícias representa um obstáculo ao trabalho policial eficiente. São inúmeras as possibilidades de arranjos para a criação de polícias de ciclo completo, ou seja, esta proposta não implica que cada estado tenha apenas uma polícia, mas é possível pensar a criação de inúmeras forças policiais, desde que o trabalho não seja fragmentado. A PEC 51 prevê ainda que as polícias sejam ordenadas em carreira única, o que aumentaria a coesão interna e o respeito mútuo. Isso porque atualmente há duas formas de entrada na Polícia Militar, assim como na Polícia Civil. Na Polícia Militar, por exemplo, há dois tipos de policiais, praças e oficiais. Os primeiros se queixam frequentemente dos privilégios garantidos aos últimos e de uma suposta discriminação sofrida dentro da corporação. Uma das consequências diretas da existência de duas formas de acesso à polícia é precisamente a falta de coesão interna à corporação, que mina a cooperação e prejudica seu trabalho. Realizada por uma parceria entre a Senasp e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a pesquisa O que Pensam os Profissionais da Segurança Pública no Brasil32 revelou que 77% dos policiais militares brasileiros defendem mudanças na estrutura e no modelo organizacional da corporação, assim como 51,9% dos delegados e agentes consideram necessário reformar a Polícia Civil. Assim, as medidas previstas na PEC 51 vão ao encontro das aspirações da própria polícia, ao contrário do que se possa frequentemente supor. Também são previstas outras mudanças importantes na arquitetura institucional da segurança pública, a saber: revisão do papel e das responsabilidades dos municípios na área, que são hoje quase exclusivamente limitadas à criação de guardas civis municipais; expansão das responsabilidades da União, sobretudo em matéria de sistemas de informações e formação policial; e 32 RAMOS, Silvia et al. O que Pensam os Profissionais da Segurança Pública no Brasil. Brasília: Senasp e PNUD, 2009. 39 aumento do controle externo da atividade policial, com maior participação da sociedade civil. Em evidência, a desmilitarização é apenas uma das medidas previstas pela PEC 51 e é baseada na premissa segundo a qual a forma de organização militar não é a mais adequada às funções exercidas pela polícia. Entende-se que falta ao trabalho da Polícia Militar mais flexibilidade, maior grau de descentralização, valorização do trabalho na ponta do sistema e mais autonomia para adoção de iniciativas que mobilizem a sociedade – e que a estrutura militarizada e fortemente hierarquizada existente hoje não pode comportar. Os desafios no campo da segurança pública são imensos e, por óbvio, não serão solucionados apenas focando nas questões policiais. O Poder Judiciário e o Ministério Público precisam assumir suas parcelas de culpa pelo quadro atual. Contudo, mudanças como as propostas pela PEC 51 certamente gerariam grandes transformações no cenário vigente, aumentando a eficiência das polícias, melhorando as condições de trabalho de seus profissionais, o que consequentemente auxiliaria na redução dos índices de criminalidade e na sensação de insegurança. A PEC 51 representa importantes avanços no campo, mas não pode ser encarada como a solução para todos os problemas da segurança pública. As dificuldades de funcionamento e articulação entre as instituições do campo são um reflexo de uma arquitetura institucional que estimula antagonismos e se mostra cada vez mais ineficiente. Faz-se necessário discutir outras reformas profundas e de natureza estrutural, já que as reformas incrementais realizadas até o momento, ainda que importantes, não foram capazes de reverter o quadro de falência do sistema explicitado acima. Conclusão Quando se fala em falência do sistema, não se trata de exagero. Convivemos com indicadores de criminalidade altíssimos, nosso sistema de justiça criminal é ineficiente, as prisões são verdadeiras instituições medievais, as polícias não têm se mostrado capazes de coibir ou solucionar crimes, nossos policiais são mal pagos e estão entre os que mais matam e mais morrem em todo o mundo. Os órgãos de segurança pública e justiça criminal não têm sido capazes de prover serviços de qualidade ou de reduzir a sensação de insegurança, e a população não confia nas 40 instituições responsáveis pela manutenção da ordem. Diante desse quadro, podemos afirmar que, se avanços foram obtidos desde a Constituição Federal de 1988, estes constituem ganhos incrementais e localizados que não foram capazes de alterar, de fato, o quadro nacional. Um tema fundamental para pensarmos em desenvolvimento, a segurança pública ainda obedece a uma lógica reativa e acaba sendo pouco discutida de forma qualificada no debate público. A ampliação e o aprofundamento do debate passam pelo envolvimento de novos atores, tais como entidades da sociedade civil, que podem fazer contribuições importantes em direção à ruptura de velhos paradigmas e à formulação de novos discursos e práticas. Pensar em soluções concretas e resultados de longo prazo passa necessariamente por discutir reformas estruturais do modelo vigente, que enfrentem temas como a articulação de competências entre os entes da Federação, as possibilidades de financiamento da segurança pública e a reforma do modelo policial, com requisitos mínimos para as instituições no que diz respeito à accountability e à prestação de contas. 41