Direito ASPECTOS RELEVANTES DO CRIME DE INFANTICÍDIO: UMA ABORDAGEM SOBRE A ELEMENTAR DO ESTADO PUERPERAL Autora: Priscila Franco Orientador: Professor Carlos André Bindá Praxedes PRISCILA FRANCO ASPECTOS RELEVANTES DO CRIME DE INFANTICÍDIO: UMA ABORDAGEM SOBRE A ELEMETAR DO ESTADO PUERPERAL Monografia apresentada ao curso de graduação em Direito da Universidade Católica de Brasília, como requisito parcial para obtenção do Título de (Bacharel) em Direito. Orientador: Carlos André Bindá Praxedes. Brasília 2008 Monografia de autoria de Priscila Franco, intitulada “ASPECTOS RELEVANTES DO CRIME DE INFANTICÍDIO: UMA ABORDAGEM SOBRE A ELEMENTAR DO ESTADO PUERPERAL”, apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito da Universidade Católica de Brasília, defendida e aprovada em de novembro de 2008, pela banca examinadora abaixo assinada: ____________________________________________________ Prof.Carlos André Bindá Praxedes Orientador Universidade Católica de Brasília – UCB ____________________________________________________ Examinador (a) Universidade Católica de Brasília – UCB ____________________________________________________ Examinador (a) Universidade Católica de Brasília – UCB Brasília 2008 Dedicação especialmente à minha mãe, mulher de coragem, lutadora amável, amiga, maravilhosa e a responsável por mais uma vitória de minha vida, sempre me dando muita força e amor. AGRADECIMENTO A Deus pela oportunidade; Em especial à minha mãe que sempre acreditou em meu potencial e sempre me incentivou; A toda a minha família que são os pilares da minha formação; Ao professor Carlos André Bindá Praxedes, meu orientador, o qual muito me ajudou na conclusão deste trabalho; Aos professores da banca examinadora pela aceitação do convite e pelo compartilhamento dos conhecimentos. RESUMO FRANCO, Priscila. Aspectos relevantes do crime de infanticídio: Uma abordagem sobre a elementar do estado puerperal. 2008. 69 f. Trabalho de conclusão de curso (Graduação) – Faculdade de Direito. Universidade Católica de Brasília, Taguatinga, 2008. Por meio da pesquisa bibliográfica, o tema da presente monografia é concernente ao infanticídio: a influência do estado puerperal da parturiente, cujo objetivo é abordar a questão do dolo no crime de infanticídio juntamente com a influência do estado puerperal. Foi possível alcançar o resultado de que a parturiente age realmente com o dolo e este tema possui grande relevância jurídica, porque engloba a situação psicológica do agente que comete o delito. Palavras-chave: Infanticídio. Estado Puerperal. Concurso de Pessoas no Infanticídio. ABSTRACT FRANCO, Priscila. Important aspects of infanticide: A puerperal state element approach. 2008. 69 f. Trabalho de conclusão de curso (Graduação) – Faculdade de Direito. Universidade Católica de Brasília, Taguatinga, 2008. By means of the bibliographical research, the present monograph theme is concerning to the infanticide: parturient state puerperal influence, whose goal is to board the fraud matter in the infanticide crime together with the state puerperal influence. It was possible to reach the result of that for parturient really acts with the fraud and this theme owns great juridical relevance, because it embodies agent's psychological situation who commits the delict. Key words: Infanticide. Been Puerperal. Contest of People in the Infanticide. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................8 1 ASPECTO HISTÓRICO DO INFANTICÍDIO......................................................12 1.1 O QUE É INFANTICÍDIO................................................................................12 1.2 DISTINÇÃO DE INFANTICÍDIO PARA O ABORTO.......................................15 1.3 ORIGEM E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO INFANTICÍDIO .............................16 1.4 SURGIMENTO DO INFANTICÍDIO NO CPB .................................................25 2 CRIME................................................................................................................29 2.1 SUJEITO ATIVO E PASSIVO.........................................................................29 2.2 DOLO E SUAS CONSIDERAÇÕES ...............................................................36 2.3 DOLO DA PARTURIENTE .............................................................................38 3 CLASSIFICAÇÃO DOUTRINÁRIA....................................................................41 3.1 SOB A INFLUÊNCIA DO ESTADO PUERPERAL..........................................41 3.2 LIMITE TEMPORAL .......................................................................................43 3.4 PERÍCIA MÉDICO-LEGAL .............................................................................51 4 CONCURSO DE PESSOAS ..............................................................................55 4.1 CONCURSO DE AGENTES E PARTICIPAÇÃO NO INFANTICÍDIO.............55 4.2 CONSUMAÇÃO E TENTATIVA .....................................................................61 CONCLUSÃO ...........................................................................................................64 REFERÊNCIAS.........................................................................................................66 8 INTRODUÇÃO A presente pesquisa caracteriza-se por levantar informações pertinentes ao tema “Estado Puerperal da Parturiente”, no âmbito do crime de Infanticídio, previsto no artigo 123 do Código Penal Brasileiro: Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após com pena de detenção de dois a seis anos. O vocábulo infanticídio, originou-se da fusão de dois radicais latinos: infans (criança) e caedere (matar), podendo ser definida, lato sensu, como dar morte a uma criança. Entretanto, para o Direito Brasileiro, infanticídio não é a morte de uma criança qualquer. Para ter uma definição de infanticídio compatível com o atual ordenamento jurídico (stricto sensu), é necessário que se leve em consideração cada elemento formador do tipo contido no artigo 123 do Código Penal Brasileiro. O maior impedimento ao progresso da humanidade é a fossilização das leis. Desde os primórdios da civilização, o crime de infanticídio tem sido tratado de maneiras diversas, ora sendo punido de forma severa, ora recebendo um tratamento indulgente. Com o advento do Iluminismo, ganhou força, no mundo ocidental, a corrente de pensamento que defendia um tratamento mais benigno para o crime de infanticídio, sobretudo quando exercitado por motivo de honra. Após a adoção, pela primeira vez, do infanticídio como crime privilegiado, no Código Penal Austríaco (1803), as legislações penais elaboradas a partir do século XIX passaram a defender a atenuação da pena pelo infanticídio, não tendo sido diferente no Brasil, quando, em 1830, houve a sanção do Código Criminal do Império que, seguindo a orientação reinante da época, passou a considerar o infanticídio como figura excepcional, cominando-lhe pena sensivelmente mais amena e mitigada. 9 O referido diploma legal previu a redução da pena não apenas para a mãe que matasse o filho recém-nascido para ocultar desonra própria, como para terceiro que matasse um neonato por motivos diversos. Já em 1890, com a publicação do Código Penal Republicano, a pena cominada ao crime de infanticídio foi aumentada, passando o delito em questão a ser considerado como a morte dada a recém-nascido, isto é, infante, nos sete primeiros dias de seu nascimento pela mãe, por motivo de honra ou até mesmo por terceiro. Atualmente, desde a elaboração do CPB de 1940, sob influência do Código Penal suíço de 1937, o crime de infanticídio passou a conter em sua definição um critério fisiológico ao invés do psicológico presente nas leis anteriores, figurando no artigo 123 do referido diploma legal brasileiro como: "matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após"; sendo que, para este delito, a pena cominada é a de detenção por dois a seis anos. Para a legislação atual, o infanticídio é um delito de natureza privilegiada em função da influência do estado puerperal da parturiente. Assim, colocando em confronto as figuras típicas, do crime de infanticídio com a do homicídio, seja ele qualificado ou simples, facilmente perceberemos a extrema brandura ou benignidade que conferiu o diploma legal ao tratamento jurídico do infanticídio, cominando-lhe pena sensivelmente mais amena, tanto na quantidade como na qualidade. No delito de infanticídio, a própria mãe, contrariando os impulsos da natureza, dirige sua conduta criminosa contra o próprio filho, ser indefeso e desprotegido. No homicídio, em regra, o sujeito elimina a vida de um desafeto, pelos mais variados motivos, onde a vítima, a princípio, possui as devidas condições para se defender. O interesse em abordar este assunto deve-se ao fato de que um dos principais objetivos do atual ordenamento jurídico é a proteção da pessoa física e o fato da identificação com o tema proposto, no que se refere ao maior direito: à vida. O Direito existe para dar a todos o que lhes pertence, isto é, o direito de viver em sociedade, solucionar atritos e dar rumos para a sociedade, viver em harmonia e o 10 respeito pela vida humana. Neste caso, nada adiantaria a Constituição assegurar outros diretos fundamentais, como a igualdade, a intimidade, a liberdade, o bemestar, se não erigisse a vida humana num desses direitos. Este pensamento é muito relevante para a sociedade, pois é uma aposta no futuro e um trabalho de conscientização da coletividade como um todo que não adianta exilar e tratar como párias essas mães, porque a prova mais cabal é a perícia médico-legal. Atualmente não se pode comparar com antigamente: as mães solteiras e sozinhas não tinham outras opções de vida, de crescimento, tornando-se alvo de humilhações e do desprezo da sociedade, cometendo o infanticídio. O objetivo deste trabalho é abordar a questão do dolo no crime de infanticídio juntamente com a influência do estado puerperal. Assim, o Código Penal Pátrio possui alguns equívocos, os quais dão margem para se construírem doutrinas com o fim de minimizar a tipificação de um ato ilícito, tendo como conseqüência recompensadora a imposição de sanções mais brandas para crimes que ferem princípios constitucionais invioláveis, como o direito à vida, tendo como certo o pensamento: quem infringe a lei penal deve sofrer pena proporcional à gravidade do seu ato. Aos novos estudantes de Direito Penal, esta pesquisa tem o motivo precípuo de mostrar que todos os estudiosos desta e de qualquer outra área do Direito têm a obrigação de questionar sempre acerca da eficácia e destinação das normas impostas pelo poder estatal, tornando, conseqüentemente, cada vez mais correta a sua aplicação. Tendo como indagação problemática (a mãe age dolosamente ao cometer o infanticídio?), cuja hipótese é (a mãe age dolosamente e sua vontade é livre; o afetado é o aspecto psíquico. Por isso, é fundamental a análise da perícia médicolegal), esta pesquisa pretende demonstrar, ainda, que o tema proposto tem relevância para o meio acadêmico, sobretudo porque tem relação com outros ramos da ciência, tais como medicina, psicologia e sociologia, alcançando maior número de leitores interessados no tema. 11 Por meio da pesquisa bibliográfica, a presente análise tem como objetivo geral demonstrar que a mãe sob a influência do estado puerperal no que diz respeito a questões psicológicas, está sujeita ao crime de infanticídio. Para isso, torna-se imprescindível percorrer os específicos: definir infanticídio; analisar a origem do infanticídio e a evolução histórica do infanticídio; identificar o sujeito ativo no crime de infanticídio, incluindo o sujeito passivo no crime de infanticídio; observar o crime do tipo doloso; dolo da parturiente; conceituar estado puerperal; verificar os fatores psicossociais; mostrar o papel da perícia médico-legal; conhecer circunstâncias elementares do crime e concurso de agentes no infanticídio; diferenciar infanticídio e aborto; além de examinar se este tipo penal admite tentativa. 12 1 ASPECTO HISTÓRICO DO INFANTICÍDIO 1.1 O QUE É INFANTICÍDIO Defini-se infanticídio como “um homicídio privilegiado, cometido pela mãe contra o filho em condições especiais” 1 . Dessa forma, o sujeito passivo desse tipo penal é o neonato ou o nascente, isto é, aquele que é morto durante o parto ou logo após seu término: Analisando-se a figura do infanticídio, percebe-se que se trata, na verdade, de uma modalidade especial de homicídio, que é cometido levando-se em consideração determinadas condições particulares do sujeito ativo, que atua influenciado pelo estado puerperal, em meio a certo espaço de tempo, pois que o delito deve ser praticado durante o parto ou logo após. 2 Igualmente, Guilherme de Souza Nucci explicita que trata-se do homicídio cometido pela mãe contra seu filho, nascente ou recém-nascido, sob a influência do estado puerperal. É uma hipótese de homicídio privilegiado, em que, por circunstâncias particulares e especiais, houve por bem o legislador conferir tratamento mais brando à autora do delito, diminuindo a faixa de fixação da pena (mínimo e máximo). Embora formalmente tenha o legislador eleito a figura do infanticídio como crime autônomo, na essência não passa de um homicídio privilegiado como já observamos. No tempos remotos, matavam-se os recémnascidos ao escassear alimentos, ou assim que eram oferecidos em cerimônias religiosas. Todavia, era delito matá-los quando eram disformes ou se defeituosos fisicamente de forma grave que evidenciava sua futura inaptidão para a guerra. O infanticídio não pode ser confundido com aborto, uma vez que este é a interrupção da gravidez antes de seu término, isto é, cessa a gravidez antes do parto, causando a morte do feto. Já o infanticídio ocorre durante ou após o parto, que se dá com a ruptura da bolsa e é finalizado quando a placenta é expulsa do corpo da mãe. Verifica-se, assim, que o ser vivo é sujeito passivo do crime de infanticídio com o início do parto. Se antes deste, trata-se de aborto. 1 2 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. São Paulo: Atlas, 2002. p. 88. GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Impetus, 2007, p. 87. 13 Por ser um crime material, o infanticídio tem sua consumação com a morte do nascente ou do recém-nascido. Logo, conclui-se que admite tentativa, isto é, iniciada a execução, a morte não acontece por circunstâncias alheias à vontade da parturiente. No que se refere ao fato da mãe que tenta matar o filho que já nasceu morto, vislumbra-se a sua atipicidade na conduta, visto que se trata de crime impossível. Da mesma maneira, uma mãe que mata o próprio filho, de modo culposo, sobre a influência do estado puerperal, não pratica crime algum, nem homicídio tampouco infanticídio, visto que esta última modalidade só admite forma dolosa. Do latim infanticidium, a expressão infanticídio sempre teve no decorrer da história, o significado de morte de criança, especialmente do recém-nascido. Sua prática era comum entre os povos primitivos para evitar que crianças fracas e deformadas continuassem a viver, visando, assim, a constituição de uma raça saudável e vigorosa. 3 O infanticídio - de acordo com a Exposição de Motivos do Código Penal - é considerado um delictum exceptum quando praticado pela parturiente sob a influência do estado puerperal. Na realidade, o infanticídio seria um homicídio privilegiado, cometido pela mãe contra o filho em condições especiais. Entendendo o legislador, porém, que é ele fato menos grave que aqueles incluídos no artigo 121, § 1º, do CP, definiu-o em dispositivo à parte como delito autônomo e denominação jurídica própria, cominando-lhe pena sensivelmente menor que a do homicídio privilegiado. 4 Em vez de, seguindo a lei anterior, adotar o sistema psicológico, fundado no motivo de honra (honoris causa), que é o temor à vergonha da maternidade ilegítima, optou o legislador pelo sistema fisiopsicológico ou fisiopsíquico, apoiado no estado puerperal. Essa orientação tem merecido críticas contundentes por se 3 MAGGIO, Vicente de Paula Rodrigues. Infanticídio e a morte culposa do recém-nascido. Campinas, SP: Millennium, 2004. p. 24. 4 MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de direito penal II: parte especial. São Paulo: Atlas, 2005. p. 88. 14 entender não comprovada a suposta problemática influência do estado puerperal no psiquismo da parturiente. Na jurisprudência, aliás, já se tem entendido que o infanticídio é, inegavelmente, e antes de tudo, um delito social, praticado na quase totalidade dos casos, por mães solteiras ou mulheres abandonadas pelo marido e pelo amásio e que, por isso, o antigo conceito psicológico - a causa da honra - vai, aos poucos, perdendo sua significação limitada e se confundindo com este (conceito fisiopsicológico), por força de reiteradas decisões judiciais. No Código vigente, o infanticídio é definido nos seguintes termos: Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após. Refere-se ao homicídio pela mãe com seu filho, nascente ou recém-nascido, sob a influência do estado puerperal. É uma hipótese de homicídio privilegiado em que houve por bem o legislador conferir tratamento mais brando à autora do delito, dirimindo a fixação da pena mínima e máxima. Apesar de formalmente o legislador tenha elegido a figura do infanticídio como crime autônomo, não passa de um homicídio privilegiado. Na era antiga, matavam-se os bebês recém-nascidos quando escasseavam alimentos, ou quando eram oferecidos em cerimônias religiosas. Tampouco era delito matá-los quando eram disformes ou tivessem um defeito físico grave que evidenciava sua futura inaptidão para a guerra. No primitivo direito romano, somente a mão era incriminada. O pai, em virtude do jus vitae ac necis sobre os filhos, não cometia qualquer crime se matasse o filho acabado de nascer. Este poder estava compreendido no direito de propriedade, pelo que já na República se punia como homicídio a morte do filho realizada secreta ou aleivosamente. Foi no tempo de Constantino que o infanticídio pelo pai começou a ser punido, o que foi reafirmado sob o império Justiniano, cominando-se então pesadas penas para este crime, tradição que se manteve por influência da Igreja. Até ao início do século XIX, punia-se severamente a Europa este crime. Quando o infanticídio passou a receber tratamento privilegiado, levava-se em conta, primordial, a intenção da mãe de ocultar a própria desonra, tanto assim que o Código Penal no tipo penal do infanticídio até 1995 incluía a finalidade específica para ocultar a desonra, o que foi abolido na atual descrição típica. E o Código Penal 1890, que precedeu o de 1940, previa pena privilegiada para a mãe que matasse o filho recém-nascido para ocultar desonra 15 própria. Por outro lado, o Código Penal italiano prevê o infanticídio na hipótese de a mãe matar o filho durante ou após o parto, caso tenha sido abandonada material ou moralmente. A figura típica do Código Penal Brasileiro atual não exige especial para beneficiar a mãe com o delito privilegiado, bastando que ela esteja envolvida pelo estado puerperal. 5 1.2 DISTINÇÃO DE INFANTICÍDIO PARA O ABORTO É distinguido o infanticídio do aborto, pois este somente pode ocorrer antes do início do parto. 6 A morte praticada se adequará à figura típica do homicídio, se não verificar que a mãe tirou a vida do filho recém-nascido sob a influência do estado puerperal. Por outro lado, o simples fato de demorar o recém-nascido para morrer não desnatura, por si só, o delito de infanticídio. Quando a mãe expõe ou abandona o recém-nascido, para ocultar desonra própria, estando ou não sob a influência do estado puerperal, ocorre o crime de exposição ou abandono de recém-nascido, qualificando quando resultar lesão corporal de natureza grave ou morte. Sendo um delito, o infanticídio tem o idêntico núcleo do tipo do homicídio, isto é, matar. E, entretanto, um crime autônomo, em que o legislador entendeu ser o caso de aplicar pena mais amena, em razão da condição diferenciada em que se encontra a autora, isto é, estar sob a influência do estado puerperal e provocar a morte de seu próprio filho nascente ou recém-nascido. Desta forma, é considerado delito privilegiado porque, de qualquer forma, recebe pena bem inferior, tanto na quantidade corno na qualidade, mesmo se a comparação for em relação ao homicídio privilegiado. 5 7 NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 6. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 547. MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de direito penal II: parte especial. São Paulo: Atlas, 2005. p. 92. 7 MAGGIO, Vicente de Paula Rodrigues. Infanticídio e a morte culposa do recém-nascido. Campinas, SP: Millennium, 2004. p. 28-29. 6 16 Assim, verifica-se que como figura típica derivada do homicídio, contém o tipo legal do infanticídio todas as características daquele, com a adição de outros caracteres, chamados elementos especializantes, que lhe deram a natureza privilegiada, a característica de delictum exceptum. 8 É indicado na lei penal que o infanticídio pode ter lugar durante o parto ou logo após. Nesta última hipótese, não há dúvida: inexiste o aborto. Entretanto, o problema mais sensível é descortinar o momento exato em que a criança deixa de ser considerada feto para ser tratada como nascente. O início do parto dá-se com a ruptura da bolsa (parte das membranas do ovo em correspondência com o orifício uterino), pois a partir daí o feto se toma acessível às ações violentas. Assim, começado o parto, torna-se o ser vivo sujeito ao crime de infanticídio. Antes, é hipótese de aborto. 9 1.3 ORIGEM E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO INFANTICÍDIO Observam-se, claramente, três fases distintas quando se avalia a evolução da definição jurídica do infanticídio: de permissão ou indiferença; de reação em favor do filho recém-nascido e de reação a favor da mulher infanticida. Neste primeiro período de permissão ou indiferença, ou período grecoromano, que vai até meados do século V a.C., o infanticídio não constituía crime, sendo sua prática bastante comum, e para a qual não havia reprovação por parte das leis ou dos costumes. Em rituais religiosos, por exemplo, eram comuns infanticídios, havendo registro de sacrifícios feitos ao Deus Moloch, entidade a quem fenícios e cartagineses ofertavam a vida de seus filhos e crianças em geral. Na Grécia e Roma antigas, o pater famílias (pai de família) detinha o direito 8 9 Ibidem, p. 29. NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 6. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 547. 17 de vida e morte sobre seus filhos, sendo também bastante comum que o rei, em determinadas épocas, dada a falta de alimentos, ordenasse a morte dos recémnascidos. Além disso, crianças que nascessem imperfeitas, mal-formadas ou que constituísse desonra ou afronta à família, podiam ser mortas pelos pais depois do nascimento. No segundo período, que perdurou do século V ao XVIII d.C., caracterizou-se pela reação social e jurídica em favor das vítimas de infanticídio, onde as mães, independente do motivo do crime praticado, eram punidas com penas severíssimas. Sob a influência do cristianismo, que ganhou força após ter sido legalizado como religião no Império Romano durante o reinado de Constantino, o infanticídio passou a ser considerado crime gravíssimo, punido com a morte. De acordo com esta nova orientação, encabeçada pela Igreja Católica Apostólica Romana, a vida de um recém-nascido deixou de ser algo sem valor e passou a receber um tratamento mais respeitoso por parte dos juristas, que passaram a considerar que ninguém tinha o direito de tirar a vida de seu semelhante, principalmente em se tratando de uma criança indefesa, frágil e desprotegida. Já estabelecia - no direito Romano - o infanticídio entre os crimes mais severamente punidos, pois não o distinguia do homicídio. Nesta época o crime de infanticídio tanto poderia ter como sujeito ativo a mãe quanto o pai. Também, na Idade Média, não havia diferença entre os crimes de homicídio e infanticídio, porém as penas aplicadas a quem os cometia era de grande crueldade, sendo as mais graves da época. No direito Medieval, a Carolina (Ordenação de Carlos V) relatava em seu artigo 131: As mulheres que matam secreta, voluntária e perversamente os filhos, que delas receberam vida e membros, são enterradas vivas e empaladas, segundo o costume. Para que se evite o desespero, sejam estas malfeitoras afogadas, quando no lugar do julgamento houver para isto comodidade de água. Onde, porém, tais crimes se dão freqüentemente, permitidos, para maior terror dessas mulheres perversas, que se observe o dito costume de 18 enterrar e empalar, ou que, antes da submersão a malfeitora seja dilacerada com tenazes ardentes. 10 Com o passar dos séculos, mais aproximadamente no século XVIII, começou entre os filósofos do direito natural, uma corrente em busca do abrandamento da pena em relação ao infanticídio. No entanto estes começaram a tratar do infanticídio como uma forma de homicídio privilegiado. 11 Em alguns países persistiram com a intolerância antiga, entre eles o Código Napoleônico de 1810 e uma Lei Inglesa de 1927. Por sua vez o Código de 1890 deu ao infanticídio a seguinte tipificação: Matar recém-nascido, isto é, infante, nos sete primeiros dias do seu nascimento, quer empregando meios diretos e ativos, quer recusando a vítima os cuidados necessários à manutenção da vida e a impedir sua morte. Pena-prisão celular por seis a vinte e quatro anos. Trazendo em seu parágrafo único. Se o crime for perpetrado pela mãe, para ocultar a desonra própria: pena de prisão celular por três a nove anos. Tratando desta forma o infanticídio com a mesma pena que cominara ao homicídio, tornando assim injustificável a distinção entre ambos os crimes. Vigoraram, além das leis citadas, no atual ordenamento alguns projetos no espaço temporal que mediou entre os códigos de 1890 até o de 1940, os quais são enumerados a seguir: O Projeto Galdino Siqueira tratava o infanticídio como sendo uma forma de homicídio atenuado, pois a pena aplicada era de dois a oito anos de detenção, para a mãe que matasse o próprio filho, no momento do nascimento ou logo após, para ocultar sua desonra, 12 desconsiderando o infanticídio crime autônomo, mas uma espécie de homicídio privilegiado, “se o crime tiver sido cometido contra recémnascido, quando de seu nascimento ou logo após, e pela própria mãe, para ocultar desonra: pena - detenção por dois a oito anos.” 10 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979. p. 240. RIBEIRO, Gláucio Vasconcelos. Infanticídio: crime típico; figura autônoma; concurso de agentes. São Paulo: Pulares, 2004. p. 31-32. 12 RIBEIRO, Gláucio Vasconcelos. Infanticídio: crime típico; figura autônoma; concurso de agentes. São Paulo: Pulares, 2004. p. 36-37. 11 19 O Projeto Sá Pereira configurava o infanticídio como sendo crime autônomo, demonstrando o estado puerperal como o causador de tal barbaridade, este projeto seguiu como exemplo o Código Suíço de 1916 em seu artigo 107: “Aquela que, durante o parto, ou ainda sob a influencia do estado puerperal, matar o filho recémnascido, será punida com prisão até 3 anos, ou com detenção por 6 meses, no mínimo.” O Projeto Alcântara teve várias edições publicadas, porém retomava o critério do Código Penal de 1830 destacando o privilégio do honoris causae, assim estendendo o privilégio a outras pessoas além da mãe, pois relatava que: “Matar infante, durante o parto ou logo depois deste, para ocultar a desonra própria ou de ascendente, descendente, irmã ou mulher”, impondo uma pena inferior aos demais projetos, pois a pena aplicada era de detenção ou reclusão por dois a seis meses. 13 Esse projeto não levou em consideração as tendências predominantes do pensamento jurídico brasileiro, do início do século XX, em relação ao infanticídio. Tendo tratamento diferenciado os pais, avós, tios e irmãos do recém nascido. O terceiro período teve início por volta do século XVIII e subsiste até hoje na maior parte das legislações penais do mundo ocidental. Surgiu pela nítida reação jurídica em favor da mulher infanticida que, decorrente de idéias mais humanitárias, passou a ser tratada com certos privilégios. Neste período, o Direito sofreu influência das idéias iluministas, sobretudo de Beccaria e Feuerbach, que, no campo jurídico, apresentaram propostas para leis mais humanitárias. Os filósofos do direito natural, propondo diretamente a influenciar os legisladores no sentido de privilegiar o delito, possuíam fortes e relevantes argumentos, como a pobreza, o conceito de honra, bem como a prole portadora de doenças ou deformidades. 14 Todavia, o Código de 1940 trouxe uma visão diferenciada dos demais códigos já mencionados, pois argüiu a influência do estado puerperal, demonstrando que o 13 14 MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de direito penal II: parte especial. São Paulo: Atlas, 2005. p. 43. MAGGIO, Vicente de Paula Rodrigues. Infanticídio e a morte culposa do recém-nascido. Campinas, SP: Millennium, 2004. p. 39. 20 crime de infanticídio deixava de ser uma forma de homicídio privilegiado, mas, sendo um delito autônomo, com denominação jurídica própria. Cujo próprio artigo nos traz: “Matar, sob a influencia do estado puerperal, o próprio filho durante o parto ou logo após: Pena - detenção de 2 a 6 anos”. O Código Criminal de 1830 tipificava o crime de infanticídio, nos seguintes termos: artigo 198. “Se a própria mãe matar o filho recém-nascido para ocultar sua desonra: pena de prisão com trabalho por 1 a 3 anos”. 15 Convém, para contextualizar, adequadamente, recordar que o referido código cominava ao homicídio a pena, no máximo, a de morte; na média, a de galés perpétua, e, no mínimo, a prisão com trabalho por 20 anos. Inexplicavelmente, o terceiro que matasse recém-nascido, nos primeiros sete dias de vida, mesmo que não fosse honoris causae, sujeitava-se a uma pena abrandada (de três a doze anos de prisão) em relação ao homicídio. Essa orientação considerava, equivocadamente, a morte de um infante menos desvaliosa que a morte de um adulto. Por sua vez, o Código Penal de 1890 deu ao infanticídio a seguinte tipificação: Art. 298: Matar recém-nascido, isto é, infante, nos sete primeiros dias do seu nascimento, quer empregando meios diretos e ativos, quer recusando a vítima os cuidados necessários à manutenção da vida e a impedir sua morte: pena de prisão celular por seis a vinte e quatro anos. Parágrafo único. Se o crime for perpetrado pela mãe, para ocultar a desonra própria: pena de prisão celular por três a nove anos. Inspirado pelo Código do Império e pelo Código Português, o legislador de 1890 legislou equivocadamente e destacou para a figura delituosa sui generis, sem limitar o privilegium à hipótese da causa honoris do infanticídio a mesma pena que cominara para o homicídio (seis a vinte e quatro anos). Nesse caso, tornou-se injustificável a distinção dos dois tipos de crimes. Somente quando o infanticídio fosse praticado pela mãe e por motivo de honra aquele diploma legal previa sensível abrandamento da pena (três a nove anos). 15 RIBEIRO, Gláucio Vasconcelos. Infanticídio: crime típico; figura autônoma; concurso de agentes. São Paulo: Pulares, 2004. p. 17. 21 O estudo de uma instituição ou de um determinado instituto jurídico deve ser precedido de uma análise da origem e da evolução, através dos tempos, do objeto pesquisado. O desenvolvimento do ser humano no planeta traz, como conseqüência, novos enfoques das instituições e institutos por ele criados. Para tanto, a História é testemunha fiel. Na Grécia Antiga, o pai era o chefe supremo da religião doméstica, cabendo ao mesmo a direção de todas as cerimônias do culto como bem entendesse, ou antes, como as vira praticar seu pai. Ninguém na família lhe contestava a supremacia sacerdotal. A própria cidade e os seus pontífices nada podiam alterar no seu culto. Como sacerdote do lar, o pai não conhecia hierarquicamente superior algum. Daí deriva todo um conjunto de direitos, dentre os quais o de se desfazer de qualquer recém-nascido que tivesse resultado de seu casamento legítimo. 16 “Em Esparta, quando disforme, era permitida a sua morte (do filho) mediante lançamento nos sorvedouros dos Apotetas, junto ao monte Taigeto.” 17 A própria estrutura jurídica ateniense tornava o infanticídio um crime impossível de ser punido. Em Atenas, não havia um ministério público que sustentasse a causa da sociedade. Cabia à parte lesada, ou ao seu representante legal, intentar o processo. Mesmo um homicídio permaneceria impune, se um parente da vítima não apresentasse como seu paladino. Se o próprio pai do recém-nascido fosse o assassino, não existiria mais ninguém que tivesse direito de levar o crime ao conhecimento dos magistrados e exigir justiça. 18 Os métodos empregados na consumação do infanticídio eram inúmeros, afogamento, apunhalamento, sufocação, esmagamento de crânio, porém o mais usado era a exposição; ou seja, o simples abandono, na esperança de que alguém 16 COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Edipro, 1999.p. 63. DE JESUS, Damásio Evangelista. Infanticídio e concurso de agentes em face do novo código penal. Julgados do tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, São Paulo, 1920, vol. 13, p. 25-56. 18 GLOTZ, Gustave. A cidade grega. São Paulo: DIFEL, 1980, p. 21. 17 22 tivesse piedade do pequenino e o recolhesse. Não se fazia, na Idade Média, diferença entre homicídio e infanticídio. O meio comum de infanticídio, na Inglaterra, era a sufocação indireta da criança pelo corpo de sua mãe, quando ambas estavam deitadas no mesmo leito. As acusadas desta modalidade de sufocação sempre a atribuíam a um acidente, o que, se não as absolvia automaticamente, pelo menos atenuava a punição almejada. Uma particularidade que despertou o interesse dos pesquisadores da baixa Idade Média inglesa foi a brandura das punições nos casos de infanticídio. A pena imposta para a sufocação, no leito, de um filho era de um ano a pão e água e mais dois, adicionalmente, sem carne e sem vinho. Falava-se em penitência, pois a penitente não era recolhida à prisão. Ao contrário das leis inglesa e francesa, a alemã exigia que a acusada confessasse o seu crime. O recurso habitual para a obtenção de confissões era a tortura. Como conseqüência, a crescente valorização da vida da criança fez emergir punições mais severas e freqüentes para as infanticidas. Num determinado momento, porém, os dois fenômenos deixaram de correr paralelamente, tomando cada um a trajetória diferente. Este momento histórico é o iluminismo, cujo marco principal desta mudança é a publicação, em 1764, por Cesare Bonesana Beccaria, o marquês de Beccaria, de seu livro dos delitos e das penas. A obra, acolhido por Voltaire, provocou um debate acirrado sobre a pena de morte, debate este que ainda está longe de acabar. Uma medida de sua repercussão foi a lei toscana que, apenas 22 anos após a exposição de Beccaria, aboliu, pela primeira vez na história, a pena capital. A fim de atingir esta meta o meio ideal é a “doçura das penas”; não sendo necessário que as penas sejam cruéis para serem debatidas. O suficiente é que sejam garantidas. A intimidação nasce não da intensidade da pena, mas de sua extensão. A pena de morte é muito intensa, enquanto a prisão perpétua é muito extensa. 23 A história do direito penal surgiu com o próprio homem, nos tempos primitivos, onde os grupos sociais eram envolvidos em um ambiente mágico e religioso, onde a peste, a seca e demais fenômenos naturais maléficos eram tidos como resultantes das forças divinas denominadas totem, atacadas pela cólera resultante da prática de fatos que exigiam reparação. Para acalmar a ira dos deuses, foi criada uma série de proibições, não obedecidas, acarretavam castigo. 19 A infração totêmica ou a desobediência do tabu levou a coletividade à punição do infrator para desagravar a entidade, gerando-se assim o que, modernamente são denominados crime e pena. As penas, em sua origem remota, eram aplicadas sem nenhuma preocupação de justiça, isto é, não passavam de simples reações instintivas, vingativas e desmesuradas que eram infligidas ao criminoso (ou simplesmente suspeito) pela comunidade, pela própria vítima ou por terceiros, sem nenhuma intervenção de um Estado ou instituição neutra. Em regra, a pena ou castigo infligido constituía, simplesmente, no sacrifício da própria vida do transgressor ou em alguma “oferenda por este de objetos valiosos (animais, peles e frutas) à divindade no altar montado em sua honra”. Sobre as origens do Direito Penal, A punição do homem é a destruição simbólica do crime. E tal exigência é tão imperiosa que, desconhecido o verdadeiro agente, vai, muitas vezes, o ato punitivo incidir sobre qualquer outro, a quem seja atribuído o fato pela própria vítima ou seus parentes, ou por processo de natureza mágica. É a responsabilidade flutuante, em busca de um responsável para a pena, que libertará o clã da impureza com que o crime o contaminou. 20 Entretanto, verifica-se que entre os povos primitivos da humanidade, a morte dos filhos e das crianças não constituía crime nem atentava contra a moral ou os costumes, pois as mais antigas legislações penais conhecidas não fazem qualquer referência a esse tipo de crime, concluindo ser, então, permitida a conduta hoje delituosa. 21 19 MAGGIO, Vicente de Paula Rodrigues. Infanticídio e a morte culposa do recém-nascido. Campinas, SP: Millennium, 2004. p. 39. 20 Ibidem, p. 40. 21 GARCEZ, Walter de Abreu. apud MIRABETH, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 35. 24 Um curioso caso de crime que está morrendo é o infanticídio. O desenvolvimento da sociedade humana e a mudança dos costumes, que passam a aceitar ou tolerar melhor o relacionamento sexual fora do casamento, foram lentamente colocando em desuso esta prática, de tal sorte que hoje os casos são raríssimos. Sendo muito mais simples e seguro que o aborto, o infanticídio foi o primeiro modo de controle de natalidade e de população. Entre os primitivos as vítimas preferenciais eram filhos posteriores ao primogênito (depois de assegurada a perpetuação da espécie) e as meninas, consideradas pessoas de menor valor. Na época de Marco Pólo, o infanticídio já era empregado na China como meio violento de controle da natalidade, com a eliminação das bocas inúteis. Por muito tempo, Roma considerou lícitos a eliminação de neonatos disformes e o abandono dos filhos não desejados. No tempo da fundação de Roma, houve uma lei exigindo que os pais conservassem os filhos vivos até a idade de três anos. Depois, poderiam matar todas as mulheres, com exceção de uma, mas os filhos monstruosos deveriam ser eliminados desde logo, havendo necessidade apenas de prova testemunhal sobre a deformidade. Mesmo que tenha existido, com certeza, a citada lei não foi aplicada com rigor, pois afrontava o direito absoluto do pater familias de vida e de morte sobre os filhos. Com a Lex Pompéia, a morte do filho pela mãe passou a ser incluída no contexto do parricídio (homicídio dos parentes próximos), mas o pai continuou sem punição. 22 Foi trazida pela chegada do Cristianismo uma agravação para a punição do infanticídio. Durante toda a Idade Média este crime foi equiparado ao homicídio agravado, punindo-se o responsável com a pena capital. Destaque-se que a morte dos filhos imperfeitos continuou autorizada, pois a Bíblia assegurava que o homem era a imagem de Deus e, havendo imperfeição, a criança perdia a condição humana e divina. A Constituição Carolina previa um crime especial para as mães que matassem os filhos. Elas deveriam ser empaladas ou enterradas vivas. Para evitar desespero, as condenadas poderiam ser afogadas antes, porém, nos locais onde esta espécie de crime fosse freqüente, a execução do empalhamento ou do enterramento em vida deveria ser precedida de dilaceração do corpo das criminosas 22 FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. Código penal comentado. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 218. 25 com tenazes em brasa. A chegada do Iluminismo e o desenvolvimento do pensamento humanista trouxeram uma reviravolta nesta situação. Iniciou-se a fase de tratamento privilegiado para o infanticídio. O privilégio foi admitido pela primeira vez no Código austríaco de 1803. 23 Os Códigos Penais de 1830 e 1890 privilegiavam o infanticídio independentemente da causa, inclusive o cometido por estranhos. Para o legislador daquela época, matar crianças era menos reprovável que matar adultos. No Código Penal de 1940, não reconheceu o infanticídio honoris causa e contemplou somente o cometido sob a influência do estado puerperal. Na Alemanha, o § 217 do CP, que previa a modalidade honoris causa de infanticídio, foi revogado pela Reforma de 1969, porque a disposição não correspondia mais aos tempos atuais, tendo escasso significado prático. O homicídio do filho nascente ou neonato cometido pela mãe passou a ser enquadrado como privilegiado. O Código Penal francês de 1994 também extinguiu o crime de infanticídio. 1.4 SURGIMENTO DO INFANTICÍDIO NO CPB No artigo 123 do Código Penal brasileiro há a definição de infanticídio: “Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após.” 24 Podem ser tirados, com essa nova redação, dois conceitos básicos que devem ser detalhados para que se compreenda melhor o crime de infanticídio. O primeiro é o ato de matar, que pode ser definido como tirar a vida de alguém. Pode parecer óbvio, ou até redundante, afirmar que matar pressupõe que haja vida anteriormente, mas, nos casos de infanticídio, isso é fundamental, pois significa que o recém-nascido ou o nascente deve ter vida antes da ocorrência do crime para que este se caracterize como infanticídio. Para a medicina legal, a prova de vida mais utilizada é a respiração. Assim é considerado vivo aquele que possuiu respiração, 23 FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. Código penal comentado. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 218. 24 RIBEIRO, Gláucio Vasconcelos. Infanticídio. São Paulo: Pulares, 2004. p. 28. 26 embora se saiba que pode haver vida mesmo sem respiração nos recém-nascidos, para averiguação da existência ou não de vida em tais casos utiliza-se de outros conceitos como prova de vida. Dessa primeira definição, pode-se definir o objeto jurídico do infanticídio que, assim como no homicídio, é a proteção da vida, seja daquele que acabou de nascer ou da transição entre a vida endo-uterina e extra-uterina, como o artigo 123. A segunda que deve ser compreendida é a influência do estado puerperal. É ele que caracteriza o infanticídio. Entende-se por estado puerperal as perturbações psíquicas decorrentes do parto. Nesse ponto há algumas discretas diferenças entre as doutrinas, fato que se explica facilmente ao se perceber que há divergências dentro da própria medicina: Uns chamam de estado puerperal à gravidez, ao parto e ao puerpério que o segue; outros somente a este último; outros consideram durante o tempo da involução fisiológica do útero; alguns o relacionam a involução histológica desse órgão, que pode durar até dois meses. 25 A definição difundida entre as doutrinas como a de Nélson Hungria destaca que o estado puerperal ocorre durante e após o parto, causando distúrbios psíquicos nas mulheres como confusão mental, conturbação da consciência entre outros. Para chegar a essas conclusões, ele se utiliza das teorias de diversos psiquiatras como Krafft, Kõnig, Glelspach e Pelegrine. Isso não significa que todo puerpério acarrete em perturbações psíquicas. 26 A jurisprudência mostra que a influência do estado puerperal é admitida sem dificuldades nos tribunais. O artigo 123 permite ao juiz a avaliação de acordo com perícias médicas no que também se baseiam as decisões que limitam a abrangência temporal do estado puerperal. Outro dado relacionado à abrangência temporal é o seu início. O artigo 123 diz que o infanticídio ocorre durante ou logo após o parto, portado, mesmo que haja discordância na medicina, o início do estado puerperal equivalente ao começo do parto, esse começa com a dilatação e tem seu fim com a 25 RIBEIRO, Gláucio Vasconcelos. Infanticídio: crime típico; figura autônoma; concurso de agentes. São Paulo: Pulares, 2004. p. 28. 26 Ibidem, p. 30. 27 expulsão da placenta. Esse conceito é importante para a distinção entre aborto e o infanticídio. É cometido o crime de infanticídio no lapso temporal entre o início do parto e o término do estado puerperal. Esse término não é explícito no código penal e cabe ao juiz determiná-lo de acordo com as perícias médicas. Como mostra a jurisprudência: O reconhecimento do estado puerperal deve ser interpretado de maneira suficientemente ampla, de modo a abranger o variado período do choque puerperal. A influência deste estado é efeito normal e corriqueiro de qualquer parto e, dada a sua grande freqüência, deve ser admitido sem maior dificuldade (4ª. Câm., Ap. 375.475-3, São Paulo, 24.04.85, Rel. Fernandes Braga.). Como exemplo da ampla aceitação do estado puerperal e de seu conceito nos casos julgados existem outras jurisprudências: “O estado puerperal é, necessariamente, aquele que decorre dos momentos posteriores ao parto. Pode ou não concorrer para o delito, dependendo dos elementos existentes nos autos para esclarecer o assunto num sentido, ou noutro” (3ª. Câm. Crim. do TJSP, Rec. Crim, 77.815-3, SP, Rel. Nelson Fonseca): Ocorre infanticídio com a morte do recém-nascido, causada logo após o parto pela mãe, cuja consciência se obnubilada pelo estado puerperal, que é estado clínico resultante de transtornos que se produzem no psíquico da mulher, em decorrência do nascimento do filho (2ª. Câm. Crim. do TJ, Curitiba, 11.12.80, Rel Acyr Loyola). O Código Penal atual não trata da motivação psicológica, honoris causa. É entendido por causa honoris aqueles casos em que a mulher é mãe solteira ou que deu à luz a um filho legítimo, que gera nas parturientes uma sensação de agonia e desespero: 27 Uma maneira de salvar a dignidade, reputação e o constrangimento ante as mais ingratas perspectivas de um destino de condenada pelo fruto de suas relações clandestinas. Dizem os defensores desse estado: idéia de redimirse pelo infanticídio começa consciente e inconscientemente, formando-se numa alma angustiada e sofrida. De princípio, consegue a mulher esconder a prova do pecado, mas a cada dia começa a crescer o perigo do escândalo que a gravidez lhe trará. Perde a coragem de simular um sorriso, o ânimo é 27 LONGO, Miguel. Comenti al códice penale italiano. Milano: Fratelli Bocca, 1911, p. 347. 28 enfraquecido e as idéias e os sentimentos descoordenados e desconcertantes. Já não demora o tempo em que tornará esconder o momento fatal da desgraça, da desonra e da humilhação ante uma família e uma sociedade impiedosa e inclemente. 28 Apesar de, nos dias de hoje, os preceitos morais não sejam tão rígidos, ainda existe certa censura social. A miséria e ausência paterna, quando em geral as mães são abandonadas por seus maridos ou amásios, também são elementos que levam a parturiente à angústia e ao nervosismo. Isso não significa que a influência do estado puerperal não seja elemento principal na caracterização do infanticídio, mas, além dele a causa honoris também influencia na prática do crime, tendo caráter acessório na caracterização da infanticida. Como é corroborado nas seguintes jurisprudências: O infanticídio é, inegavelmente e antes de tudo, um delito social, praticado, na quase-totalidade dos casos (e é fácil a comprovação pela simples consulta dos repertórios de jurisprudência), por mães solteiras e mulheres abandonadas pelos maridos e pelos amásios. Raríssimas vezes, para não dizer nenhuma, tem sido acusadas deste crime mulheres casadas e felizes, as quais, vias de regra, dão a luz cercadas do amparo do esposo e do apoio moral dos familiares. Por isso mesmo o conceito fisiopsicológico do — sob a influência do estado puerperal — introduzido no nosso Código Penal para eliminar de todo o antigo conceito psicológico — a causa da honra — vai, aos poucos, perdendo sua significação primitiva e se confundindo com este, por força de reiteradas decisões judiciais. 29 O estado puerperal existe sempre, mas nem sempre ocasiona perturbações emocionais na mulher que a possam levar à morte do próprio filho. O processo de parto, com suas dores, a perda de sangue e o enorme esforço muscular, pode determinar facilmente uma momentânea conturbação da consciência. É esse estado que torna a morte do próprio filho um homicídio privilegiado. É claro que essa perturbação pode ocorrer mais facilmente se tratando de mulher nervosa ou angustiada, ou que de à luz a filho ilegítimo. 28 RIBEIRO, Gláucio Vasconcelos. Infanticídio: crime típico; figura autônoma; concurso de agentes. São Paulo: Pulares, 2004. p. 32. 29 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979. p. 254. 29 2 CRIME 2.1 SUJEITO ATIVO E PASSIVO Uma vez que o tipo penal do artigo 123 do Código Penal indicou tanto o seu sujeito ativo como o sujeito passivo, o infanticídio é um delito próprio. Pela redação da figura típica, somente a mãe pode ser sujeito ativo da mencionada infração penal, tendo como sujeito passivo o seu próprio filho. Referindo-se a crime próprio, o infanticídio admite as duas espécies de concurso de pessoas, vale dizer, a co-autoria e a participação. Quanto ao sujeito passivo, a lei penal aponta como infanticídio o fato de causar a morte, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após, podendo-se visualizar, por meio dessas duas últimas expressões, que o delito pode ser cometido tanto contra o nascente, isto é, aquele que está nascendo, que ainda se encontra no processo de expulsão, quanto contra o neonato, isto é, aquele que acabou de nascer, já se encontrando desprendido da mãe. Quanto ao sujeito ativo, compreende-se que o infanticídio é um crime próprio, praticado pela mãe da vítima, já que o dispositivo se refere ao “próprio filho” e ao “estado puerperal”. 30 Puerpério (de puer e parere) é o período que vai da dequitação, isto é, do deslocamento e expulsão da placenta, à volta do organismo materno às condições pré-gravídicas. Sua duração é, pois, de seis a oito semanas, “conquanto alguns limitem o uso da expressão ‘puerpério’ ao prazo de seis a oito dias, em que a mulher se conserva no leito. Fenômeno não bem definido, o estado puerperal é por vezes confundido com perturbações da saúde mental, sendo até negada sua existência por alguns autores. Merece ser transcrita a explicação dos autores já citados: Nele se 30 MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de direito penal II: parte especial. São Paulo: Atlas, 2005. p. 89. 30 incluem os casos em que a mulher, mentalmente sã, mas abalada pela dor física do fenômeno obstétrico, fatigada, enervada, sacudida pela emoção, vem a sofrer um colapso do senso moral, uma liberação de impulsos maldosos, chegando por isso a matar o próprio filho. De um lado, nem alienação mental, nem semi-alienação. De outro, tampouco frieza de cálculo, a ausência de emoção, a pura crueldade (que caracterizariam, então, o homicídio), mas a situação intermédia, pode-se dizer até normal, da mulher que, sob o trauma da parturição e dominada por elementos psicológicos peculiares, se defronta com o produto talvez não desejado, e temido, de suas entranhas. Isso não quer significar que o puerpério sempre acarrete uma perturbação psíquica, pois, “na grande maioria dos casos, se processa normalmente, sem sensível diminuição da capacidade da parturiente de determinar-se livremente”. Nos termos da Exposição de Motivos, “é preciso que fique averiguado ter esta (perturbação psíquica) realmente sobrevindo em conseqüência daquele (estado puerperal), de modo a diminuir a capacidade e entendimento ou de auto-inibição da parturiente”. Não demonstrada ou inocorrente perturbação em decorrência do estado puerperal, não há que se reconhecer infanticídio e sim homicídio (JCAT 59/336). Já se tem entendido, todavia, que a lei presume a existência de uma perturbação psíquica especial, sendo necessária prova contrária para se descaracterizar o infanticídio e punir-se a agente por homicídio, uma vez que “a influência do estado puerperal é efeito normal e corriqueiro de qualquer parto e, dada a sua grande freqüência, deverá ser admitida sem maiores dificuldades” (RJTJESP 30/425; RT 655/272). Não há que se confundir o estado puerperal de simples desnormalização psíquica com as denominadas psicoses puerperais (ou sintomáticas) que configuram doenças mentais, levando-se o fato a exame nos termos de inimputabilidade da agente por força do artigo 26, caput. Mesmo no infanticídio, não se exclui a possibilidade da existência de perturbação da saúde mental que leva à diminuição de pena, nos termos do artigo 26, parágrafo único, invocando Noronha a compatibilidade entre o estado puerperal e o desenvolvimento mental incompleto. Não se pode invocar a redução da pena 31 sob o fundamento de diminuição da imputabilidade advinda da influência do estado puerperal: é que essa causa de semi-imputabilidade já está compreendida no tipo. Problema exaustivamente discutido é o de se saber se responde por infanticídio ou homicídio aquele que colabora na prática de um infanticídio. 31 Fundados no artigo 30, que faz estender ao co-autor ou partícipe circunstância pessoal do agente, quando elementar crime (no caso, a qualidade de mãe e o estado puerperal), opinam pela responsabilidade pelo infanticídio vários doutrinadores. Entendem outros que por ser o estado puerperal condição de natureza personalíssima, incomunicável, não têm aplicação no caso dos artigos 29 e 30 do CP, respondendo o co-autor ou partícipe por homicídio. Qualquer ser humano isolado ou associado pode ocasionar a ocisão de um ser nascente ou de um recém-nascido. Todavia, em se tratando de um delito excepcional, as legislações adotaram diversos critérios para determinar quais as pessoas que podem ser consideradas sujeitos ativos do delito. 32 Num primeiro grupo congregam-se as legislações que apenas admitem como sujeito ativo a mãe, pois não concebem, rigorosamente, que seja a conduta do infanticídio praticada por outra pessoa. Esse critério, restringindo exclusivamente o benefício à mãe, ou é adotado por considerarem personalíssima a circunstância elementar do estado puerperal, o qual não admite foros de comunicabilidade ou é determinado por se entender que o motivo de honra, única e exclusivamente pode abalar a reputação daquela, a ponto de fazê-la sentir o impulso de destruir o fruto da sua vergonha. 31 32 MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de direito penal II: parte especial. São Paulo: Atlas, 2005. p. 90. RIBEIRO, Gláucio Vasconcelos. Infanticídio: crime típico; figura autônoma; concurso de agentes. São Paulo: Pulares, 2004. p. 80. 32 Há legislações, como a italiana e a portuguesa que estendem o benefício a toda pessoa que dê morte ao neonato ou ao infante. 33 Os doutrinadores justificam a posição dessas legislações, alicerçados na necessidade de ser mantida a homogeneidade do seja para evitar a quebra das regras gerais quanto co-autoria, seja em razão de que as circunstâncias subjetivas não ser consideradas como meras atenuantes. Há crimes que podem ser praticados por qualquer pessoa, crimes comuns. Exemplos: o homicídio, o furto, o estelionato, a calúnia. Outros necessitam de determinadas condições do sujeito ativo para a sua ração, como crimes próprios. O infanticídio é um crime próprio, porque a figura típica exige sujeito ativo e que possua a condição natural de ser parturiente, e a condição natural de ser parentesco (ser mãe do nascente ou do neonato). Logo, pode-se esclarecer-se a diferença entre crime próprio e crime de mão própria. O primeiro é aquele que só pode ser cometido por determinada categoria de pessoas, eis que o sujeito ativo precisa possuir uma especial capacidade penal. Já o crime de mão própria é aquele que só pode ser cometido pelo sujeito em pessoa. Exemplo deste crime é o de testemunho, porque ninguém poderá mandar outrem praticar falso testemunho em seu lugar. A conseqüência de tal distinção é que, no crime próprio, o sujeito ativo pode determinar a outrem a sua execução, e este terceiro autor também será. No crime de mão própria, ao revés, ninguém o comete por intermédio de outrem. Portanto, neste crime os estranhos podem intervir como partícipes, mas não como autores. Assim, sujeito ativo do infanticídio é a mãe: “o infanticídio é o crime da genitora, da puérpera. É, portanto, a mãe que se acha sob a influência do estado 33 RIBEIRO, Gláucio Vasconcelos. Infanticídio: crime típico; figura autônoma; concurso de agentes. São Paulo: Pulares, 2004. p. 81. 33 puerperal.” 34 Enfatizando ainda mais o sujeito passivo do infanticídio, o código atual ampliou o conceito de infanticídio: o sujeito passivo do mesmo já não é apenas o recém-nascido, mas também o feto nascente. Fica dirimida a dúvida que se apresentava no regime do Código anterior, quando o crime se realizava na fase de transição da vida uterina para a vida extra-uterina. 35 Nelson Hungria já afirmava: Deixou de ser condição necessária do infanticídio à vida autônoma do fruto da concepção. O feto vindo à luz já representa, do ponto de vista biológico, antes mesmo de totalmente desligado do corpo materno, uma vida humana. Sob o prisma jurídico-penal, é, assim, antecipado o início da personalidade. 36 A lei usa a expressão durante o parto ou logo após. Conseqüentemente, o crime apresenta um início preciso, mas um fim impreciso. A primeira parte refere-se ao feto nascente, que “é aquele em plena expulsão, mesmo que ainda não tenha respirado.” 37 A dificuldade surge quando se procura o sentido da segunda parte da expressão, que corresponde, na lei italiana, ao termo immediatamente dopo il parto. Aquela diz respeito ao feto recém-nascido que “e o feto que já nasceu.” 38 O critério mais seguido é aquele que concilia a expressão logo após o parto com a permanência do estado puerperal: O puerpério, de seu lado, pode prolongar-se. Não se fala, evidentemente, das psicoses puerperais (estas se iniciam entre a primeira e a segunda semana após o parto), nem das psicoses da lactação (ocorrem depois da sexta semana do puerpério). Fala-se daquelas perturbações psíquicas coexistentes com o parto. Elas podem continuar depois dele, sem interrupção. É claro que se a mulher mata o filho durante manifestação dessa 34 RIBEIRO, Gláucio Vasconcelos. Infanticídio: crime típico; figura autônoma; concurso de agentes. São Paulo: Pulares, 2004. p. 82. 35 NORONHA, Edgar de Magalhães. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 45. 36 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979. p. 257. 37 PATARO, Oswaldo. Medicina legal e prática forense. São Paulo: Saraiva, 1976, p. 285. 38 RIBEIRO, op. cit., p. 83. 34 perturbação, matou-o logo após o parto. E o infanticídio, então, deve ser reconhecido. 39 Só pensando desta forma, pode-se enfrentar difíceis hipóteses, como a que se segue: a mulher, na ocasião do parto, cai em inconsciência provocada por grande hemorragia. Continua inconsciente, prolongando-se o seu estado por muitos dias. Recobra-se, convenientemente tratada e, imediatamente após seu retorno à consciência, mata o filho. No exemplo trazido à colação, está caracterizado o infanticídio, apesar do tempo decorrido entre o parto a morte do feto, eis que a mulher ainda se achava sob a influência do estado puerperal. O puerpério pode se prolongar por tempo que avança bem em da data do parto. Nem por isso a morte do filho, pela própria mãe se considera como infanticídio, se não se verificar tenha ela agido sob a sua influência e durante o parto ou logo após o mesmo. 40 Na elaboração do quesito acerca do assunto, cumpre ao juiz atentar ao verbo da ação típica legal, que é o de agir a ré sob a influência daquele estado. 41 São cabíveis mais duas observações, no que concerne ao sujeito passivo do crime de infanticídio. A primeira é a de que prescinde o delito da viabilidade, isto é, da capacidade de viver fora do seio materno, da adaptação às condições e regularidades de vida exterior. Um recém-nascido inviável é sujeito passivo do crime, contanto que tenha nascido com vida. A jurisprudência tem considerado a prova do nascimento com vida, para a caracterização do infanticídio, como se observa no seguinte acórdão: “Infanticídio. Prova técnica estabelecendo que a criança nasceu a termo e com vida. Resposta negativa dos jurados a essa evidência. Decisão contrária à prova dos autos. Recurso provido.” 42 39 PANASCO, Wanderley Lacerda. Medicina legal. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 352. FERNANDES, Paulo Sérgio Leite. Aborto e infanticídio. São Paulo: RT, 2006. p. 145. 41 RIBEIRO, Gláucio Vasconcelos. Op. cit, p. 84. 42 RIBEIRO, Gláucio Vasconcelos. Infanticídio: crime típico; figura autônoma; concurso de agentes. 40 35 A segunda observação consiste no fato de que ainda que disforme ou monstruoso, o neonato goza da tutela legal. E não há razão para, em uma sociedade civilizada, excluí-lo dessa proteção. Há de tratar-se, obviamente, de feto expulso do claustro materno e com vida. Sendo um ovo degenerado, mas sem vida, não pode ser sujeito passivo do delito. Em se tratando do sujeito passivo, a vítima do delito é o filho nascente ou recém-nascido, tendo a lei penal antecipado o início da personalidade. Não é necessário, assim, que se comprove tenha havido sinal de vida extra-uterina: O recém-nascido apnéico, isto é, que ainda não respirou o ar ambiente, pode ser vítima desse crime, desde que nasceu vivo, verificada a função vital pelo batimento do coração. Do contrário, não haveria crime sempre que se suprimisse a vida no breve instante entre o nascimento e o em que a aspiração devesse iniciar. 43 A prova da existência de vida é feita por meio das docimasias. Não se exige, também, que o recém-nascido tenha vitalidade, havendo infanticídio ainda que se comprove que iria morrer de causas naturais logo depois do parto. Abordando o tipo objetivo, a conduta típica é matar, como no homicídio, sendo comum o crime cometido por sufocação ou ocasionado por fratura de crânio decorrente de golpes com objetos contundentes. Perfeitamente admissível é o delito de infanticídio praticado por omissão; ausência de alimentação, falta de ligadura do cordão umbilical, etc, conforme a jurisprudência: “Responde por infanticídio progenitora que, após o nascimento do filho, não presta os cuidados indispensáveis à criança, deixando de fazer a ligadura do cordão umbilical secionado” (JTACrSP 49/187). O feto abortado, absolutamente inviável por imaturidade, não é sujeito passivo de infanticídio, que exige ser nascente ou recém-nascido. Assim, a morte dele não configura nenhum crime. 44 Tratando-se, porém, de parto prematuro, provocado ou São Paulo: Pulares, 2004. p. 84. MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de direito penal II: parte especial. São Paulo: Atlas, 2005. p. 91. 44 NORONHA, Fragoso. Direito penal. São Paulo: RT, 2006. p. 124. 43 36 não, a morte do produto que alcançou vida extra-uterina, pela mãe, configura infanticídio. Se a conduta da agente foi praticada sobre um natimorto, há crime impossível por absoluta impropriedade do objeto. Embora a prova pericial de vida extra-uterina autônoma comprove a existência de infanticídio, não é ela indispensável, podendo ser suprida por outros elementos. Quando desaparecidos os vestígios, impossível o exame direto, porém, se não existe nenhuma prova de um parto a tempo, não se pode comentar a respeito de cadáver e, conseqüentemente, em infanticídio (RT 497/294). É necessário para a caracterização do infanticídio não só que a mãe tenha agido sob a influência do estado puerperal, mas que o fato ocorra durante o parto ou logo após. O parto inicia-se com a contração do útero e o descolamento do feto e termina com expulso da placenta. 2.2 DOLO E SUAS CONSIDERAÇÕES O elemento subjetivo do crime é o dolo (vontade livre e consciente de praticar um fato definido na lei como crime). É admitido na forma direta, quando a mãe quer o resultado, isto é, a morte do próprio filho e, na forma eventual, quando a mãe não deseja diretamente o resultado, mas assume o risco de produzi-lo. 45 O dolo homicida distingue-se do infanticida porque neste último a vontade do agente é impulsionada por uma influência anímica (proveniente da alma ou do psíquico) que não existe no dolo homicida. Para os defensores do critério psicológico, esta influência anímica origina-se na necessidade do sujeito ativo em ocultar a sua desonra, ao passo que, para os defensores do critério fisiopsicológico, a referida influência surge da perturbação mental sofrida pela mãe durante o puerpério. 45 MAGGIO, Vicente de Paula Rodrigues. Infanticídio e a morte culposa do recém-nascido. Campinas, SP: Millennium, 2004. p. 131. 37 A influência anímica não se confunde com o dolo, pois, enquanto o dolo é o elemento subjetivo do tipo, ela reside no tipo penal e consiste na característica psicológica determinante do justo ou do injusto, e que permite a adequação típica do delito. Os defensores do critério fisiopsicológico, na defesa de suas posições, incorreram em flagrante contra-senso, argumentando que a mãe infanticida nada sabe sobre a conduta praticada em razão da obnubilação (perturbação da consciência) produzida pelo estado puerperal. Ora, como pode a mãe agir com dolo, de forma voluntária e consciente, estando sob uma perturbação psíquica que não lhe permite entender a licitude de sua conduta? Para a caracterização do infanticídio, é necessário que em decorrência do puerpério, a mulher venha a sofrer uma relativa incapacidade autodeterminação. Se o puerpério agravar o estado psíquico em mulher predisposta a certa anormalidade e, conseqüentemente, causar-lhe uma doença mental que lhe retire a inteira capacidade de autodeterminação, matando o filho, não haverá o crime por ausência de agente culpável. Ao tipificar o delito, o legislador não previu a modalidade culposa e, assim, nos termos do disposto no parágrafo único do artigo 18, do Código Penal; salvos os casos previstos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente. E, desta forma, não há infanticídio culposo. Neste sentido: Pronúncia. Infanticídio. Ausência de prova da intenção da recorrente de matar o próprio filho. Despronúncia. lnexistindo nos autos a prova de que a mãe quis eu assumiu o risco de morte do filho, não se configura o crime de infanticídio, cm qualquer de suas formas, eis que inexiste para a espécie a forma culposa (TJES - Rec. Rel. Des. José Eduardo Grandi Riberito - RT 632/331). Cogitou-se necessidade de se criar uma figura culposa e preterdolosa para o infanticídio. Quanto à primeira figura não se conseguiu justificar juridicamente a compatibilidade da culpa em sentido estrito e o estado puerperal. Quanto à segunda figura, para justificar o preterdolo, Pedio criou um exemplo que, resumidamente, a 38 mãe deixa a criança no terraço em um dia de muito frio, para evitar que visita inesperada veja o recém-nascido e, quando a visita se retira, verifica-se que a criança está morta. 46 Relativamente ao preterdolo, discorda-se de Pedio, pois, no exemplo supra, verifica-se um caso típico de abandono de recém-nascido, com o resultado morte, porque, neste caso a conduta visa a ocultar a desonra própria de natureza sexual, a boa fama ou a reputação, onde, a morte não é querida e, por outro lado, o infanticídio requer o dolo direto ou eventual. 2.3 DOLO DA PARTURIENTE Culpa é a conduta humana voluntária - ação ou omissão - que produz resultado antijurídico, não querido, mas previsível e, excepcionalmente previsto, que podia, com a devida atenção, ser evitado. Para Paulo José da Costa Júnior: “a culpa é a prática voluntária de uma conduta, sem a devida atenção ou cuidado, da qual defluiu um resultado previsto na lei como crime, não desejado nem previsto, mas previsível.” 47 O crime é “culposo quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia” (CP, artigo 18, II). No estudo da teoria do crime culposo, verifica-se que a palavra culpa, em sentido amplo (lato sensu), equivale à culpabilidade, isto é, compreende o dolo e a culpa em sentido estrito (stricto sensu). As várias teorias que procuram fundamentar a culpa acabam formando dois grandes grupos: as objetivas e as subjetivas. As primeiras encontram a essência da culpa, principalmente, em uma especificação objetiva da conduta; as segundas encontram no elemento psicológico o seu conteúdo nuclear. 48 46 PEDIO, Tommaso. Infanticídio. São Paulo: Scipione, 1954, p. 56. COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Tratado de direito penal. Campinas: Bookseller, 1999. p. 84. 48 MAGGIO, Vicente de Paula Rodrigues. Infanticídio e a morte culposa do recém-nascido. 47 39 Entretanto, a opinião mais acertada fundamenta a culpa na previsibilidade que, como bem afirma Magalhães Noronha, “remonta aos romanos e vem atravessando os séculos”. Já definira a culpa como “a voluntária omissão de diligência em calcular as conseqüências possíveis e previsíveis do próprio fato.” 49 A doutrina da previsibilidade é indispensável para fundamentar um juízo de culpabilidade ou reprovação. Assim, somente se pode censurar culposamente alguém, com base na possibilidade de se prever o que não foi previsto, (ou, se previsto, que não tenha sido admitida a possibilidade de produção do resultado), onde, o autor poderia e deveria ter conduta compatível com as circunstâncias, evitando o resultado danoso. Está a culpa como elemento do tipo penal relacionada à inobservância do dever de cuidado objetivo, isto é, significa que, ao homem em sociedade, incumbe o dever de praticar todos os atos da vida com as cautelas necessárias para que do seu atuar não resulte danos a bens jurídicos alheios. O cuidado objetivo é o que um homem razoável e prudente - como o juiz teria no lugar do autor. Caso o agente não cumpra com o dever de diligência que aquele teria observado, a conduta será típica, e o causador do resultado, agido com imprudência, negligência ou imperícia. Para saber se o agente deixou de observar o dever de cuidado objetivo, é preciso comparar a sua conduta com o comportamento que teria uma pessoa dotada de discernimento e de prudência, colocada nas mesmas circunstâncias. Assim, o cuidado objetivo terá como parâmetro a conduta que teria a pessoa padrão, de comportamento normal ou prudente. O fato típico culposo tem como elementos: a conduta, o dever de cuidado objetivo, o resultado, a relação de causalidade, a previsibilidade e a tipicidade. Quanto à análise da modalidade culposa no crime de infanticídio, em primeiro lugar, deve-se observar que, do ponto de vista obstétrico, o estado puerperal ou puerpério não é pacífico. Há quem entenda que este período inclui a própria gravidez, o parto 49 Campinas, SP: Millennium, 2004. p. 134. NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. 34. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 140-141. 40 e o tempo necessário para a involução clínica do útero: De acordo com o Código Penal, para caracterizar o crime de infanticídio, a morte do feto ou do recém-nascido, deve ocorrer sob a influência do estado puerperal, porém, durante o parto ou logo após. Neste sentido, para o penalista não interessa o estado puerperal antes ou alguma tempo depois do parto, pois só leva em conta o estado puerperal durante ou logo após o parto. 50 A influência do estado puerperal é a perturbação psíquica em que a mulher, mentalmente sã, mas abalada pela dor física do fenômeno obstétrico, fatigada, enervada, sacudida pela emoção, vem sofrer um colapso do senso moral, uma liberação de impulsos maldosos, chegando por isso a matar o próprio filho. Na realidade, pelo entendimento penal, trata-se de um quadro fisiopsicológico próprio de mulheres, em geral desassistidas e decorrente de gravidez indesejada, que acabam, durante o seu curso, gerando relevantes conflitos emocionais. Este quadro de graves repercussões comportamentais conduz a mãe, neste momento de maior fragilização psíquica, durante o parto, ou logo após, a matar o próprio filho. Em suma, a influência do estado puerperal é uma circunstância de aspecto imprevisível, de espontaneamente duração sem indeterminada, deixar seqüelas, que e quando acaba ocorre, regride tornando-se, evidentemente, um critério duvidoso e de difícil comprovação científica, mas que, em caso de dúvida, sempre se decide em favor do agente. 50 MAGGIO, Vicente de Paula Rodrigues. Infanticídio e a morte culposa do recém-nascido. Campinas, SP: Millennium, 2004. p. 136. 41 3 CLASSIFICAÇÃO DOUTRINÁRIA 3.1 SOB A INFLUÊNCIA DO ESTADO PUERPERAL Inconfundível é o estado puerperal com as chamadas psicoses puerperais que ocorrem no período pós-parto, em mulheres já predispostas a certa anormalidade. Essas manifestações psicopatológicas, com quadros clínicos bem definidos, encontram no puerpério condições propícias para sua instalação. Assim, os fatores físicos, representados pela exaustão; químicos, proporcionados pelas alterações hormonais e psicológicos, oriundos da tensão emocional, se associam para precipitar um surto ou episódio psicótico. 51 Assim como o estado puerperal não é psicose; não é caso de semi-alienação, onde o trauma do parto precipita as manifestações anormais, já precondicionadas pela constituição mórbida (mulher histérica, perversa, débil etc.); como também não é estado normal, chegar à definição de estado puerperal como “um transtorno mental transitório incompleto, por ser de curta duração e porque não chega a constituir um estado de alienação mental. E apenas um estado crepuscular, um estado de obnubilação das funções psíquicas”? O ponto de vista obstétrico do estado puerperal ou puerpério não é pacífico. Há quem entenda que este período inclui a própria gravidez, o parto e o tempo necessário para a involução clínica do útero, porém, de acordo com o Código Penal, para caracterizar o crime de infanticídio, a morte do feto ou do recém-nascido deve ocorrer sob a influência do estado puerperal, porém, durante o parto ou logo após. 52 E necessário, portanto, a relação de causalidade entre o estado puerperal e o crime, pois nem sempre ele produz perturbações psíquicas na mulher, é o que se confere nos termos da Exposição de Motivos do Código Penal. 51 MAGGIO, Vicente de Paula Rodrigues. Infanticídio e a morte culposa do recém-nascido. Campinas, SP: Millennium, 2004. p. 65. 52 Ibidem, p. 66. 42 Esta cláusula (influência do estado puerperal), como é óbvio, não quer significar que o puerpério acarrete sempre uma perturbação psíquica; é preciso que fique averiguado ter esta realmente sobrevindo em conseqüência daquele, de modo a diminuir a capacidade de entendimento ou de auto-inibição da parturiente. Fora daí não há por que distinguir entre infanticídio e homicídio. Neste sentido, verifica-se a jurisprudência que in verbis: “Se não se verificar que a mãe tirou a vida do filho nascente ou recémnascido sob a influência do estado puerperal, a morte praticada se enquadrará na figura típica do homicídio.” (RT 491/292) O estado puerperal é, necessariamente, aquele que decorre dos momentos posteriores ao parto. Pode ou não concorrer para o delito, dependendo dos elementos existentes nos autos para esclarecer o assunto num sentido, ou noutro (TJSP - AC – rel. Des. Acácio Rebouças – RT 375/66). O infanticídio é considerado como delictum exceptum quando cometido pela parturiente sob a influência do estado puerperal. Há, pois, a necessidade de ser apurada tal condição porque, como bem assinala Custódio da Silveira: esta cláusula, como é óbvio, não quer significar que o puerpério acarrete sempre uma perturbação psíquica; é preciso que fique averiguado ter esta realmente sobrevindo em conseqüência daquele, de modo a diminuir a capacidade de entendimento ou de auto-inibição da parturiente. Fora daí não há por que distinguir entre infanticídio e homicídio. (TJSP - Rec. - Rel. Hoeppner Dutra - RJTJSP 21/432). É pacífico o entendimento de que a influência do estado puerperal há simplesmente de diminuir ou reduzir a capacidade de compreensão, discernimento e resistência da parturiente. Assim, verificada a relativa incapacidade de autodeterminação em decorrência do estado puerperal da mãe e a morte do filho nascente ou neonato, estará configurado o crime de infanticídio. Às vezes, dias após o parto, é possível que o estado puerperal cause na mulher uma perturbação psicológica de natureza patológica, que geralmente está associada a uma doença mental preexistente que acaba por anular a capacidade de compreensão e discernimento da parturiente. Neste caso que se tem é a inimputabilidade, isto é, a inexistência de crime por falta de agente culpável. 53 53 MAGGIO, Vicente de Paula Rodrigues. Infanticídio e a morte culposa do recém-nascido. Campinas, SP: Millennium, 2004. p. 68. 43 Durante o período do puerpério, a mulher passa por profunda irritação provocada pelos tremores convulsivos, as dores e os suores, a emoção e a fadiga do fenômeno obstétrico. Essas circunstâncias determinam-lhe um colapso do senso moral, uma desordem mental e uma super excitação frenética, que a priva de sua capacidade de querer e entender, quando dela se reabilita a puérpera não tem a menor lembrança do que ocorreu. 3.2 LIMITE TEMPORAL É determinado pelo Código Penal um limite temporal para que se possa caracterizar o delito de infanticídio. Além de exigir que o fato seja cometido pela mãe, que atua influenciada pelo estado puerperal, causando a morte do próprio filho, determina que esse comportamento seja levado a efeito durante o parto ou logo após. 54 É indicado pela a expressão ‘durante o parto’ o momento a partir do qual o fato deixa de ser considerado como aborto e passa a ser entendido como infanticídio. Dessa forma, é marco inicial para o raciocínio correspondente à figura típica do infanticídio é, efetivamente, o início do parto. A medicina visualiza formas diferentes de início do parto, dependendo da natureza que este assuma. Deve-se trabalhar, portanto, com duas espécies diferentes de parto, que possuem, conseqüentemente, dois momentos distintos de início. A priori, existe o parto considerado normal ou natural: clinicamente, o estudo do parto compreende três fases principais (dilatação, expulsão, secundamento), precedidas de estágio preliminar, o período premunitório. É o período premunitório caracterizado, precipuamente, pela descida do fundo 54 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. São Paulo: Scipione, 2006. p. 91. 44 uterino. As fases do parto podem ser classificadas em: a) Dilatação, ou 1º. período; b) Expulsão, ou 2º. período; c) Secundamento, ou 3º. período. Inicia-se a fase de dilatação, ou primeiro período, no prevalente conceito dos tratadistas, e, ostensivamente, com as primeiras contrações uterinas dolorosas, que começam de modificar a cérvice, e termina quando a sua dilatação está completa. Assim, com a dilatação do colo do útero ou com as contrações uterinas já podemos concluir pelo início do parto normal. Por outro lado, também ocorre, e com muita freqüência, principalmente no Brasil, o parto denominado cesariana, cesárea ou tomotocia, que se entende como o ato cirúrgico consistente em incisar o abdômen e a parede do útero para libertar o concepto aí desenvolvido. Dessa forma, uma vez levadas a efeito as incisões nas camadas abdominais, pode-se entender como já iniciado o parto por meio dessa modalidade. A doutrina tem afirmado, portanto, que o início do parto pode ocorrer, considerando-se os dados acima, em três momentos: a) com a dilatação do colo do útero, b) com o rompimento da membrana amniótica, e) com a incisão das camadas abdominais, no parto cesariana. Uma vez iniciado o parto, não mais se poderá raciocinar em termos de delito de aborto, passando a infração penal a se configurar em homicídio ou em infanticídio, presentes todos os seus elementos. A expressão logo após o parto tem o sentido delimitado pela influência do estado puerperal, isto é, aquele estado de angústia, perturbações etc., que justificam o delictum exceptum. A lei não fixou prazo, como outrora alguns códigos faziam, porém não se lhe pode dar uma interpretação mesquinha, mas ampla, de modo que abranja o variável período do choque puerperal. É essencial que a parturiente não haja entrado ainda na fase da bonança, em que predomina o instinto materno. Tratase de circunstância de fato a ser averiguada pelos peritos médicos e mediante prova 45 indireta. A expressão logo após implica a realização imediata e sem intervalo da conduta delituosa. O importante, porém, é que a parturiente não tenha ingressado na fase de quietação, isto é, no período em que se afirma o instinto maternal. Apesar da autoridade dos autores citados, entende-se que a expressão logo após o parto deve ser entendida a luz do princípio da razoabilidade. A medicina aponta o período de seis a oito semanas como tempo de duração normal do puerpério. Como seria possível, então, entender como infanticídio a morte do filho produzida pela própria mãe, ainda influenciada pelo estado puerperal, dois meses e meio após o parto? Não parece razoável tal entendimento, uma vez que a lei penal usa a expressão ‘logo após o parto’ e não somente ‘após o parto’, se tivesse a intenção de a lei reconhecer o delito de infanticídio a partir do início do parto, agindo a gestante influenciada pelo estado puerperal. Assim, a parturiente somente será beneficiada com o reconhecimento do infanticídio se entre o início do parto e a morte do seu próprio filho houver uma relação de proximidade, a ser analisada sob o enfoque do princípio da razoabilidade. Deseja-se afastar situações que, por aberrantes, fugiriam por completo à dilação da expressão logo após, contida no art. 123 do Código Penal. A medicina informa que o estado puerperal pode durar, como regra, de seis a oito semanas. Se a parturiente, contudo, vier a causar a morte de seu próprio filho, dado o estado prolongado do puerpério, cinco meses após o parto, por mais almejado que seja entender como infanticídio, a expressão logo após, adotada razoavelmente, conduziria ao reconhecimento do homicídio. Para o infanticídio ser reconhecido, haverá necessidade, também, de prova pericial, a fim de que fique evidenciado que, ao tempo da ação ou da omissão, a parturiente encontrava-se sob a influência do estado puerperal, pois, caso contrário, o crime por ela praticado se amoldará à figura do artigo 121 do Código Penal. 46 3.3 Análise dos fatores psicossociais Para reforçar o entendimento de que o estado puerperal pode influir na conduta culposa, torna-se imperativo entender (ou ao menos, procurar entender) as alterações anatômicas e, principalmente, as fisiológicas sofridas pela mulher durante o puerpério. 55 Ao abandonar o critério do motivo de honra e admitir o critério fisiopsicológico, o Código Penal de 1940, atrelando o tipo penal à influência do estado puerperal para a caracterização do infanticídio, acabou criando um desafio à perícia médico-legal, pois, ao exame médico, foi transferida toda a responsabilidade de documentação material deste crime. É fato biológico bem estabelecido que a parturição desencadeia uma súbita queda em níveis hormonais e alterações bioquímicas no sistema nervoso central, cuja disfunção promove estímulos psíquicos com subseqüente alteração emocional. Em situações especiais, como nas gestações conduzidas em segredo, não assistidas e com parto em condições extremas, pode ocorrer um transtorno dissociativo da personalidade com a desintegração temporária do ego. O sintoma característico desse transtorno é uma alteração súbita e geralmente temperária nas funções normalmente integradas de consciência identidade e comportamento motor, de modo que uma ou duas dessas deixa de ocorrer em harmonia com as outras. Alguns desses sintomas estão taxativamente presentes nas autoras de infanticídio que, em regra, são amnésia, alucinações auditivas e o transtorno de despersonalização. 56 Diante dessa evidente superposição de características epidemiológicas e clínicas, pode-se admitir que o estado puerperal, oriundo do atual Código Penal, trata-se de uma modalidade do Transtorno de Estresse Agudo, estabelecido no manual DSM-IV da Academia Americana de Psiquiatria. Em decorrência desse fato, a perícia médico-legal passaria a dispor de elementos para a comprovação material 55 MAGGIO, Vicente de Paula Rodrigues. Infanticídio e a morte culposa do recém-nascido. Campinas, SP: Millennium, 2004. p. 71. 56 Ibidem. p. 72. 47 do estado puerperal. Contudo, a curta duração dos sintomas, o caráter transitório dessa perturbação e a ausência de distúrbio mental prévio fazem desse diagnóstico pericial um verdadeiro desafio, pois muitas vezes, ao realizar o exame, os sintomas desvanecem. Ao examinar uma puérpera, o legista nem sempre disporá de elementos para concluir pela realidade de um estado puerperal. A posição psíquica de desesperança, graça à ruminação silenciosa e anavalhante de angústia e de acanhamento, durante os longos e intermináveis nove meses de gravidez, da mulher ilegitimamente fecundada, sem casamento ou com traição aos deveres conjugais, em marcha progressiva, dia a dia, para o repúdio familiar e o vilipêndio da sociedade, teve descrições delirantes. 57 Tendo como rumo a ratio essendi do privilégio no motivo de honra, entendese que, para as legislações que adotam ou adotaram o critério psicológico, concerne o conceito de honra com a prenhez ilegítima, de modo que a incolumidade moral que se intenta livrar das agruras há de ser a exclusivamente sexual. Desse modo, o privilégio não alcançaria as prostitutas ou mulheres devassas e de comportamentos sexuais notoriamente dissolutos, podendo beneficiar ladras e estelionatárias que se mantivessem sexualmente recatadas, nos parâmetros socialmente dignos. Atualmente, abandonando o monopólio da razão de honra, a legislação pátria alicerçou a tonalização típica do delito em questão no sistema fisiopsicológico ou biopsicológico, o qual não exsurge infenso ou imune a críticas, despontando prestigiosa corrente que propugna e preconiza pelo retorno ao sistema anterior. É assomado o motivo como o fator de menor relevância para a corporificação do infanticídio, prevalecendo, na espécie, o desequilíbrio fisiopsíquico que pode acometer a parturiente no decorrer ou logo após o processo de parto. Assim, motivação à parte conferiu o critério agasalhado pelo código maior amplitude na verificação do infanticídio, compreendendo não só a prenhez ilegítima como, ainda, 57 PEDROSO, Fernando de Almeida. Infanticídio e aborto. Rio de Janeiro: Aide, 1995. p. 235. 48 a gravidez legítima, a havida durante o casamento. Com isso, atrelasse o tipo legal delitivo à ocorrência do crime à influência do estado puerperal. 58 Inexiste razão pela qual a ocisão se realize no puerpério, no decorrer do estado puerperal, em virtude de este nada mais representar do que o conjunto das revelações e aparência fisiológica, acometendo o organismo de toda parturiente durante o fenômeno do parto: dilatação do colo do útero, perda de sangue, contrações, dores e esforço muscular etc. bastando o simples e mero estado puerperal, insofismável seria que toda e qualquer mulher que matasse o seu rebento durante ou logo após o processo de parto haveria de ser considerada infanticida, não sendo a atual realidade. A fim de o crime em epígrafe adquirir silhueta e contornos típicos, imperioso se torna que a parturiente atue sob influência do estado puerperal, que este lhe traga uma desordem ou turvação do espírito, um colapso do senso moral, uma perturbação momentânea no equilíbrio do seu psiquismo e consciência, refletindo nociva e perniciosamente em sua psique, combatendo suas forças emocionais e seus freios inibitórios, diminuindo sua capacidade de discernimento e resistência para a perpetração do ato lesivo. Essa perturbação pode ocorrer mais facilmente se se tratar de mulher nervosa ou angustiada, ou de filho ilegítimo já que se ressalta o motivo de honra pode contribuir, de par com a morbidez fisiológica própria do parto, para os estados de excitação e de angústia que diminuem a responsabilidade da parturiente. Muito infreqüente, rara e comum o estado puerperal a toda parturiente é a sua influência em seu psiquismo, a ponto de obnubilar-lhe a compreensão e reduzir a capacidade de resistência. Bem ilustra a asserção, tornando discutível a própria influência do estado puerperal, o fato de o filicídio ocorrer nas camadas sociais mais pobres. 59 Com base nos dados acima, surge a indagação: que estranhos desígnios teriam eleito somente uma determinada parcela populacional para a influência 58 59 PEDROSO, Fernando de Almeida. Infanticídio e aborto. Rio de Janeiro: Aide, 1995. p. 236. Ibidem, p. 239. 49 puerpérica? O infanticídio é, inegavelmente e antes de tudo, um delito social, praticado, na quase totalidade dos casos, por mães solteiras ou mulheres abandonadas pelos maridos e pelos amásios. Raríssimas vezes, para tido dizer nenhuma, têm sido acusadas desses crimes mulheres casadas e felizes, as quais, via de regra, dão à luz cercadas do amparo do esposo e do apoio moral dos familiares. Por isso mesmo, o conceito fisiopsicológico do infanticídio - sob a influência do estado puerperal - introduzido no nosso Código Penal para eliminar de todo o antigo conceito psicológico - a causa da honra - vai, aos poucos, perdendo sua significação primitiva e se confundindo com este, por força de reiteradas decisões judiciais (RT 421/91). A casual influência do estado puerperal tem a tônica e a característica da transitoriedade, pois é efêmera, temporária e momentânea — em suma, de curta duração. Assim, não se torna praticável constatá-la técnica ou pericialmente, pois possíveis laivos ou vestígios logo se desvanecem. De outro turno, o excídio ocorre em partos clandestinos, sem a presença de pessoas que pudessem interferir para a evitação do acontecimento, de sorte que a carência de testemunhas ressumbra como outro fator que dificulta a comprovação da influência puerperal. Logo, seguindo o princípio in dubio pro reo, culmina-se o brocardo por agraciar um sem-número de verdadeiras homicidas. Diante do exposto seria o retorno ao motivo de honra, em que pese sua menor abrangência, como se pretendia com o projeto de Código Penal de 1969. 60 Uma vez tomando como premissa básica a idéia de estado puerperal como conjunto de reações físicas e psíquicas sentidas pela mulher em face do fenômeno do parto, este se difere de puerpério, ou melhor, também é composto por ele. 61 O parto inicia-se com as contrações do órgão genital interno superior feminino e sua dilatação em sua parte inferior e externa, caracterizada como o primeiro período do parto. No segundo período, tem-se a expulsão do feto e, logo em seguida, a expulsão da placenta, sendo o terceiro período. Com a expulsão da placenta, inicia-se a fase post-partum ou puerpério, que 60 61 PEDROSO, Fernando de Almeida. Infanticídio e aborto. Rio de Janeiro: Aide, 1995. p. 239. RIBEIRO, Gláucio Vasconcelos. Infanticídio: crime típico; figura autônoma; concurso de agentes. São Paulo: Pulares, 2004. p. 72. 50 tem a duração de aproximadamente quarenta dias ou seis a oito semanas. Nesse período, o puerpério - a mulher passa por alta do terceiro dia após o parto, por uma depressão física e psíquica, que, dentro de uma normalidade, caracteriza-se por uma ligeira confusão por parte da mulher com relação ao seu corpo com nova forma após nove meses. Tratando-se da psicologia, a mãe confunde-se com relação à sua troca de papéis, de gestante para o de mãe. São causas desta depressão não só os fatores citados, como também as alterações hormonais, metabólicas, orgânicas em geral, pelas quais passa a mãe. 62 Com o devido acompanhamento médico e familiar da recém mãe e de seu marido essa depressão cessa em alguns dias. Por determinados fatores, internos ou externos, a normalidade em que acontece o parto e o pós-parto pode ser mudada: Puerpério é o período que vai da dequitação (isto é, do deslocamento e expulsão da placenta) à volta do organismo materno às condições prégravídicas [...] . Nele se incluem os casos em que a mulher, mentalmente sã, mas abalada pela dor física do fenômeno obstétrico, fatigada, enervada, sacudida pela emoção, vem a sofrer um colapso do senso moral, uma liberação de impulsos maldosos, chegando isso a matar o próprio filho. [...] podemos dizer até normal’ da mulher que, sob o trauma da parturição e dominada por elementos psicológicos peculiares, se defronta com o produto 63 talvez não desejado, e temido, de suas entranhas. Torna-se imprescindível a explicação sobre as psicoses, fundamentais na caracterização de infanticídio. 64 São estas psicopatias, doenças já presentes nas parturientes, que são desencadeadas com o choque obstétrico do parto: Surgem elas no terreno lavrado pela tara psíquica que se agrava pelos processos metabólicos do estado puerperal ou são uma ‘espécies do genus’, ‘psicoses sintomáticas’, isto é, transtornos psíquicos que se apresentam no curso de enfermidades gerais internas, de infecções agudas, de intoxicações, etc., e cujas lesões não tem uma localização cerebral. 65 62 RIBEIRO, Gláucio Vasconcelos. Infanticídio: crime típico; figura autônoma; concurso de agentes. São Paulo: Pulares, 2004. p. 73. 63 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. São Paulo: Atlas, 2002, p. 89. 64 RIBEIRO, op. cit, p. 77. 65 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979. p. 256257. 51 A similaridade entre surto e psicose está na alienação total da agente, sendo o primeiro um breve momento de inconsciência e o segundo um momento mais prolongado que o primeiro. Ao passo que a psicose é resultado de doença particular da parturiente, culminando por falta de cuidado e acompanhamento médico, nas chamadas psicoses puerperais que podem ocasionar na mãe uma total rejeição ao filho, o surto é de causa desconhecida. É muito diferente a depressão pós-parto do surto e da psicose, porque, neste caso, deprimida, a mãe não se considera capaz de cuidar da criança; a mãe pede auto cuidados, higiene; apresenta sintomas como insônia, disfunção intestinal. Sob o efeito de psicose durante o ato cometido, a mãe infanticida não se arrepende do ocorrido, delira, tem alucinações, é totalmente inconsciente de seu ato perante a sociedade. Já a mãe infanticida, semiconsciente, devido a aspectos externos e internos, apresenta arrependimento, 66 bem como a necessidade de ajuda psiquiátrica par se recuperar do ocorrido, de imediato: É necessário que haja um vínculo causal entre o estado puerperal e a ocisão o criança. É bem certo que tal relação pode deixar de existir, isto é, nem sempre o estado puerperal acarreta a perturbação psíquica que justifica, na espécie, o privilegium legal. Pode ser inexistente a desnormalização do psiquismo da parturiente, e apresentar-se, não um crime cometido num estado particular de responsabilidade atenuada, mas um crime friamente calculado perversamente executado. Na fórmula suíça, é condição suficiente para o delictum exceptum o singelo fato de encontrarse a mulher no processo de parto, presumindo-se, juris et do jure, a sua perturbação psicológica. 67 3.4 66 PERÍCIA MÉDICO-LEGAL RIBEIRO, Gláucio Vasconcelos. Infanticídio: crime típico; figura autônoma; concurso de agentes. São Paulo: Pulares, 2004. p. 78. 67 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979. p. 246. 52 No infanticídio, é necessária a necropsia do feto dentro dos padrões legalmente admitidos, bem como o exame da puérpera: Este exame dirá, em primeiro lugar, se houve ou não parto e se este é recente ou antigo. Acusada uma mulher de ter cometido um infanticídio a verificação pericial de uma gravidez ou de um parto antigo afastará imediatamente à imputação. O exame mental pode ser necessário nos casos de psicoses puerperais ou de estados psicopáticos agravados pela gestação, o parto e o puerpério. 68 Quanto à perícia: “a caracterização do infanticídio constitui a maior de todas as perícias médico-legais pela sua complexidade e pulas inúmeras dificuldades de tipificar o crime. Por isso, foi essa perícia chamada de crucis peritorum - a cruz dos peritos.” 69 O primeiro conceito de vida surgiu das lições de Casper e Galeno, onde, segundo o qual: ‘viver é respirar; não respirar é não ter vivido’. Com o passar do tempo, o conseqüente progresso da ciência médica foi alterando este conceito de vida. Desta forma, a vida própria somente era admitida após ter o ser respirado, onde este passaria a ser denominado de infante. Mais tarde, a medicina legal demonstrou que viver não é só respirar, podendo viver-se sem ter ainda respirado, levando a concluir que a vida própria inicia-se antes da respiração, isto é, a vida biológica independe da vida autônoma. Para caracterizar a vida biológica, basta averiguar, remontando-se ao anterior à expulsão, a presença de vida biológica, isto é, a existência do mínimo de atividades funcionais de que o feto dispõe antes de virá luz, e das quais é o mais evidente atentado à circulação sangüínea. Há duas formas de vida própria: a) vida intra-uterina que se inicia com o rompimento da membrana amniótica, ocasião onde o feto deixa sua condição para se transformar em neonato, também chamada de vida intra-uterina apnéica (sem respiração); e b) vida extra-ulterina que se inicia com o movimento pulmonar respiratório, isto é, no mesmo instante que o neonato passa a ser infante. 68 69 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979. p. 127. HUNGRIA, loc. cit. 53 Esta primeira maneira de vida própria, intra-uterina apnéica, se dá durante o referido lapso temporal, onde o ato passa por uma asfixia fisiológica antes de entrar em contato com o mundo exterior, pelo fato de não mais receber oxigênio da mãe. O segundo modo de vida própria, a extra-uterina, que se inicia juntamente com a atividade pulmonar respiratória do infante, seguida do tradicional choro que é decorrente da diferença de temperatura que é submetida ou pela sobrecarga de anidrido carbônico acumulado em pulmões. O choro ou grito infantil é sinal relevante de vida, embora a criança possa respirar sem gritar. Há, entre a expulsão do feto e o início da respiração, um intervalo irrelevante, porém, há casos em que esse intervalo se prolonga por muitos segundos e até por mais de um minuto. É perfeitamente possível a eventualidade de uma vida apnéica extra-uterina (vida sem respiração), e seria um contra-senso dizer-se que, em tal, situação, o pequenino ser não está vivo, somente porque ainda não respirou. Assim, é evidente a conseqüência da conduta do agente, pois, se esta recai sobre o feto, ligado à vida da mãe pelo fato de ainda não ter a vida própria, o crime será o de aborto, recaindo a partir do momento em que o feto se torna neonato, pelo rompimento da membrana amniótica, o crime será o de infanticídio, mesmo antes de ter sido cortado o cordão umbilical, porém, desde que haja prova da existência de vida por meio da circulação sangüínea. Caso interessante foi exposto por lmpallomeni, onde um feto imaturo vivo, mas absoltamente inviável é espontaneamente expulso, sendo, em seguida morto em decorrência de conduta criminosa da mãe. Não há infanticídio, porque o feto abortado não é sujeito passivo deste delito. Também não é aborto, porque neste exige-se que seja morto dentro ou fora do útero, após a violenta expulsão. Assim, não há crime por ausência de fato típico. 70 É fundamental apurar se a criança nasceu viva, que é possível acontecer, ou se a mãe deu à luz a um natimorto. Diante da ausência de prova da existência de vida no momento da conduta delituosa, verifica-se a impossibilidade jurídica de se 70 MAGGIO, Vicente de P. R. Infanticídio. São Paulo: Millennium, 2004. p. 128. 54 punir a tentativa, por estar caracterizado crime impossível por absoluta impropriedade do objeto. 55 4 CONCURSO DE PESSOAS 4.1 CONCURSO DE AGENTES E PARTICIPAÇÃO NO INFANTICÍDIO Idealize a hipótese em que a parturiente, influenciada pelo estado puerperal, vá até o berçário, logo após o parto, e, querendo causar a morte do próprio filho, por erro, acabe estrangulando o filho de sua colega de enfermaria, causando-lhe a morte. Portanto, a parturiente matou o filho de terceira pessoa, supondo-o ser seu. Pergunta-se: No caso em questão, deverá a parturiente responder pelo delito de homicídio ou infanticídio? No caso apontado, considerando que a parturiente almejava causar a morte de seu próprio filho e, por erro acabou matando o filho de sua colega de quarto, aplica-se a regra correspondente ao erro sobre pessoa, devendo ser responsabilizada pelo infanticídio. Acerca do concurso de pessoas no delito de infanticídio, foi ressaltado que o delito de infanticídio é na verdade um homicídio especializado por vários elementos, sendo um deles a influência do estado. 71 Desse modo, comparativamente, o infanticídio é menos severamente punido do que o homicídio, mesmo que em sua modalidade fundamental. Por essa razão, isto é, em virtude dos vários elementos que tomam o infanticídio especial em relação ao homicídio, pergunta-se: Será possível o concurso de pessoas no crime de infanticídio? O fato deverá ser desdobrado em várias situações para que melhor se possa compreendê-lo. Entretanto partisse do pressuposto de que o terceiro que, em companhia da parturiente, de alguma forma, concorre para a morte do recémnascido ou do nascente, e conhecedor de que aquela atua influenciada pelo estado 71 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979. p. 260. 56 puerperal, pois, caso contrário, perderia sentido a discussão, haja vista que se tal fato não fosse do conhecimento do terceiro, que de alguma forma concorreu para o resultado morte, teria ele que responder, sempre, pelo homicídio. Assim, têm-se as hipóteses: a) a parturiente e o terceiro executam a conduta núcleo do tipo do artigo 123, isto é, ambos praticam comportamentos no sentido de causar a morte do recém-nascido; b) somente a parturiente executa a conduta de matar o próprio filho, com a participação do terceiro; e c) somente o terceiro executa a conduta de matar o filho da parturiente, contando com o auxílio desta. Para que as hipóteses sejam resolvidas corretamente, mister se faz alertar para a determinação contida nos artigos 29 e 30 do Código Penal: “Art. 29. Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade.” “Art. 30. Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime.” O primeiro raciocínio seria no sentido de que a condição de parturiente e a influência do estado puerperal sobre o animus são condições de caráter pessoal. A regra geral determina, assim, que não se comuniquem ao co-participante, salvo nos casos em que figurarem como elementos do tipo. Por elementos ou elementares devemos considerar todos aqueles dos indispensáveis a definição típica, sem os quais o fato se torna atípico ou há, no mínimo, desclassificação. Se, por exemplo, a parturiente mata o próprio filho, logo após o parto, sem que tenha agido influenciada pelo estado puerperal, a ausência dessa elementar (sob a influência do estado puerperal) fará com que seja responsabilizada pelo resultado morte a título de homicídio. Haverá, portanto, uma desclassificação do delito de infanticídio para o crime de homicídio. Percebe-se a importância de se concluir pela existência de uma elementar. As circunstâncias, ao contrário, são dados periféricos à definição típica. Não interferem na figura típica em si, somente tendo a finalidade de fazer com que a 57 pena seja aumentada ou diminuída. No caso em exame, a influência do estado puerperal não pode ser considerada mera circunstância, mas, sim, elementar do tipo do artigo 123, que tem vida autônoma comparativamente ao delito do artigo 121. Em razão disso, nos termos do artigo 30 do Código Penal, se for do conhecimento do terceiro que, de alguma forma, concorre para o crime, deverá a ele se comunicar. Partindo desses pressupostos, deve-se seguir as hipóteses apresentadas. Primeiramente, parturiente e terceiro praticam a conduta núcleo do artigo 123, que é o verbo matar. Ambos, portanto, praticam atos de execução no sentido de causar a morte, por exemplo, do recém-nascido. A gestante que atua influenciada pelo estado puerperal, causando a morte de seu próprio filho logo após o parto, deverá ser responsabilizada pelo infanticídio. O terceiro, que também executa a ação de matar, da mesma forma, deverá responder pelo mesmo delito, conforme determina o artigo 30 do Código Penal. Hungria discorda dessa conclusão, argumentando que o delito de infanticídio é personalíssimo, sendo incomunicável a influência do estado puerperal. Fragoso, ratificando as lições de Hungria, diz ser inadmissível o concurso de pessoas no crime de infanticídio, argumentando que “o privilégio se funda numa diminuição da imputabilidade, que não é possível estender aos partícipes. Na hipótese de coautoria (realização de atos de execução por parte do terceiro), parece evidente que o crime deste será o de homicídio. 72 A não-comunicação ao co-réu só seria compreensível se o infanticídio fosse mero caso de atenuação do homicídio e não um tipo inteiramente à parte, completamente autônomo em nossa lei.” 73 72 apud FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. São Paulo: Scipione, 2006. p. 80. 73 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. São Paulo: Scipione, 2006. p. 80. 58 O infanticídio não é modalidade de homicídio privilegiado. Seria se figurasse como um parágrafo do artigo 121 do Código Penal. Cuida-se de verdadeiro delito autônomo, razão pela qual tudo aquilo que estiver contido em seu tipo será considerado elementar e não circunstância, devendo, nos termos da determinação contida no artigo 30 do Código Penal, comunicar-se ao co-participante, desde que todos os elementos sejam de seu conhecimento. Fosse o delito de infanticídio previsto simplesmente como um parágrafo do artigo 121 do Código Penal, deveria ser reconhecido como modalidade de homicídio privilegiado e, conseqüentemente, seus dados seriam considerados circunstâncias, deixando, a partir de então, de acordo com a mesma regra já apontada no artigo 30 do diploma repressivo, de se comunicar aos co-participantes. Não tendo sido essa a opção da lei penal, todos aqueles que, tendentes juntamente com a parturiente, praticarem atos de execução a produzir a morte do recém-nascido ou do nascente, se conhecerem o fato de que aquela atua influenciada pelo estado puerperal, deverão ser, infelizmente, beneficiados com o reconhecimento do infanticídio. Quando é a própria parturiente que, sozinha, causa a morte do recémnascido, mas com a participação de terceiro que, por exemplo, a auxilia materialmente, fornecendo-lhe o instrumento do crime, ou orientando-a como utilizálo, ambos, da mesma forma, responderão pelo infanticídio, já que a parturiente atuava influenciada pelo estado puerperal e o terceiro que a auxiliou conhecia essa particular condição, concorrendo, portanto, para o sucesso do infanticídio. A última hipótese seria aquela em que somente o terceiro praticasse os atos de execução, com o auxílio e a mando da parturiente, que atua influenciada pelo estado puerperal. Damásio, com precisão, alerta: Se o terceiro mata a criança, a mando da mãe, qual o fato principal determinado pelo induzimento? Homicídio ou infanticídio? Não pode ser homicídio, uma vez que, se assim fosse, haveria outra incongruência: se a mãe matasse a criança, responderia por delito menos grave (infanticídio); se induzisse ou instigasse o terceiro a executar a morte do sujeito passivo, responderia por delito mais grave. O terceiro deveria responder por delito de homicídio. Entretanto, diante da formulação típica desse crime na atual legislação, não há por que fugir do artigo 30 como a influência do estado 59 puerperal e a relação de parentesco são elementos do tipo, comunicam-se entre os fatos dos participantes. Diante disso, o terceiro responde por delito de infanticídio. Não deveria ser assim. O crime de terceiro deveria ser homicídio. Para nós, a solução do problema está em transformar o delito de infanticídio em tipo privilegiado de homicídio. 74 Se o terceiro acede à vontade da parturiente que, influenciada pelo estado puerperal, dirige finalisticamente sua conduta no sentido de causar, durante o parto ou logo após, a morte do recém-nascido ou nascente, em qualquer das modalidades de concurso de pessoas, de acordo com a regra contida no artigo 30 do Código Penal, deverá ser responsabilizado pelo delito de infanticídio. Adotando o Código Penal de 1940 o estado puerperal como circunstância elementar do crime de infanticídio, três posições doutrinárias surgiram quanto à coautoria. Para alguns juristas, como Nelson Hungria, Galdino Siqueira e Heleno Cláudio Fragoso, sendo o estado puerperal uma circunstância de índole biopsicológica personalissima, a sua intransmissibilidade é absoluta não podendo, assim, terceiros invocar o beneficio, sendo, portanto, um privilégio exclusivo da pessoa a que concerne mulher, de mãe, de parturiente, pois, do contrário, instaurarse-ia flagrante contra-senso. A segunda posição é defendida por Frederico Marques, Euclides Custódio da Silveira, Magalhães Noronha, Esther de Figueiredo Ferraz no sentido de se admitir a comunicabilidade a todos os agentes, de forma irrestrita. Essa ostentação está de acordo com a posição proposta por Sebastian Soter na Argentina e com a de Magiore na Itália. Para aqueles autores pátrios a co-autoria é regida pelos princípios da parte geral. De um lado, por não ter o legislador de 1984 (a parte geral do Código Penal, foi totalmente alterada, por meio da Lei 7.209, de 11 de julho de 1984, dando nova redação aos artigos) feito qualquer referência em sentido contrário e de outro, por causa do disposto no artigo 30 do mencionado, visto nele se determinar, serem as 74 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. São Paulo: Scipione, 2006. p. 80. 60 circunstâncias de caráter pessoal, quando elementares do delito, comunicáveis: O benefício limita-se aos terceiros partícipes pois, se estes provocarem a morte do que está nascendo ou do recém-nascido sem a cooperação da parturiente, não se pode aplicar o disposto no artigo 26 (atual artigo 30) do Código Penal, motivo pelo qual responderão por homicídio. 75 Admite-se a comunicabilidade, porém tacha de absurdo esse critério técnicolegislativo, permitindo aos co-partícipes se beneficiarem do tratamento privilegiado da figura autônoma do infanticídio, máxime, quando esta foi erigida a tal em virtude de uma condição personalíssima como e a qualidade de mulher, de parturiente ou de puérpera. Se uma mulher, grávida, sob a influência do estado puerperal, durante ou logo após o parto, mata o próprio filho, é a autora do crime de infanticídio, porque realizou a conduta típica descrita pelo do Código Penal. O problema emerge, quando a hipótese legal é perpetrada de uma pessoa. Fala-se em co-delinqüência, co-autoria, de delinqüentes ou concurso de agentes. O Código Penal, porém, adota a expressão concurso de pessoas. Conforme o caput do artigo 29, do Código Penal, “quem, de modo, concorre para o crime incide nas penas a este na medida de sua culpabilidade”. Dá-se a co-autoria de agentes quando várias pessoas concretizam os elementos descritos pelo tipo. Agora, aquela hipotética mulher não age sozinha; uma terceira pessoa a ajudando cometimento do crime. Ambos conjugam esforços, no sentido de que a morte do nascente ou recém-nascido aconteça. Surge, então, a seguinte dúvida: por qual crime deve responder o participante do crime de infanticídio? Pelo crime de infanticídio, ou pelo de homicídio? Como afirmado anteriormente duas correntes de opinião se formaram, tendo como ponto relevante à questão da comunicabilidade ou não do elemento sob a influência do estado puerperal, constante no tipo do artigo 123 do Código Penal, 75 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. São Paulo: Scipione, 2006. p. 80. 61 àquele (a) que, juntamente com a mãe, mata o filho. A seguir a manifestação pela incomunicabilidade do elemento: Não diz com o infanticídio a regra do artigo 25 (atual artigo 29). Trata-se de um crime personalíssimo. A condição sob a influência do estado puerperal é incomunicável. Não tem aplicação, aqui, a norma do artigo 26 (atual artigo 30), sobre as circunstâncias de caráter pessoal, quando elementares do crime. As causas que diminuem (ou excluem) a responsabilidade não podem, na linguagem técnico-penal, ser chamadas circunstâncias, pois estas só dizem com o maior ou menor grau de criminosidade do fato, isto é, com a maior ou menor intensidade do elemento subjetivo ou gravidade objetiva do crime, o partícipe (instigador, auxiliar ou co-executor material) do infanticídio responderá por homicídio. O privilegium legal é inextensível. A quebra da regra geral sobre a unidade de crime no concursus delinquentium é, na espécie, justificada pela necessidade de evitar-se o contra-senso, que orçaria pelo irrisório de imputar-se a outrem que não a parturiente um crime somente reconhecível quando praticado sob a influência do estado 76 puerperal. Impõe-se, aqui, uma explicação. A lei penal admite outra maneira de concurso de agentes, além da co-autoria. Trata-se da participação, prevista pelo caput do artigo 29, do Código Penal, onde se lê a expressão de qualquer modo. Ocorre, assim, a participação quando o agente, não praticando atos executórios do crime, concorre de qualquer modo para a sua realização. 4.2 CONSUMAÇÃO E TENTATIVA Crime material, o delito de infanticídio se consuma com a morte do nascente ou do neonato, daí a necessidade de ser produzida prova no sentido de se verificar se, durante os atos de execução, estava vivo o nascente ou neonato, pois, caso contrário, pode-se estar diante da hipótese de crime impossível, pelo motivo da total impropriedade do objeto. Tratando-se de crime material, que permite o fracionamento do inter criminis, a parturiente, durante o parto ou logo após, influenciada pelo estado puerperal, pode 76 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. São Paulo: Scipione, 2006. p. 83. 62 ter dirigido finalisticamente sua conduta no sentido de causar a morte do nascente ou neonato, somente não produzindo o resultado por circunstâncias alheias à sua vontade, podendo-se concluir, portanto, pela possibilidade da tentativa. Consuma-se o infanticídio com a morte do filho nascente ou recém-nascido levado a efeito pela própria mãe, mas para que o crime possa existir, é indispensável a existência do sujeito passivo, que só pode ser alguém nascente ou recém-nascido. Se, por exemplo, extemporaneamente o organismo feminino expulsa um feto que, por sua própria imaturidade é inviável, mas tem sua morte inevitável antecipada por ato violento da gestante: estaria diante de aborto ou infanticídio? Em outros termos, haveria crime? Não se trata de infanticídio por faltar-lhe uma elementar normativa, qual seja, durante ou logo após o parto. Essa expulsão extemporânea não se confunde com parto, mesmo prematuro, e a expulsão não foi de alguém nascente, mas somente de um feto inviável, sem maturidade suficiente para ter e manter vida extra-uterina. Em linguagem comum, dir-se-ia que está diante de um aborto. No entanto, não se configura nenhum das modalidades do crime de aborto, posto que a expulsão do feto deu-se espontaneamente. Enfim, o fato praticado pela gestante não constitui crime. Somente se a expulsão do feto tivesse sido provocada estaria diante de um crime de aborto. Convém, no entanto, ter cautela para não confundir com o nascente sem condições de sobreviver fora do útero, pois não mais se exige vida extra-uterina sendo suficiente a vida biológica. Logo, um recém-nascido inviável pode ser sujeito passivo do crime de infanticídio. “As leis não exigem a capacidade de continuação de vida extra-uterina; basta estar vivo”. Como crime material, o infanticídio admite a tentativa e esta se aperfeiçoa quando, apesar da ação finalista do ativo, a morte do filho não sobrevém por circunstâncias à vontade daquele. Iniciada a ação de matar, esta pode ser corrompida por alguém que impede sua consumação, nos termos do artigo 14, inciso II, do Código Penal Brasileiro, “tentado, quando iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente”. 63 Haverá crime impossível quando a mãe, supondo estar viva, praticando o fato com a criança já morta. Não existirá crime igualmente quando a criança nasce morta e a mãe, com auxílio de alguém, procura desfazer-se do cadáver abandonando-o em lugar ermo. 64 CONCLUSÃO Com esta pesquisa, foi possível responder ao problema ora estabelecido. A mãe age dolosamente ao praticar o infanticídio, pois naquele momento a influência do seu estado puerperal é o principal fator, tem-se então que analisar é o dolo do estado puerperal, sua capacidade de discernimento. A influência do estado puerperal é uma circunstância de aspecto imprevisível, de duração indeterminada, que quando ocorre, regride espontaneamente sem deixar seqüelas, e acaba tornando-se, evidentemente, um critério duvidoso e de difícil comprovação científica, mas que em caso de dúvida, sempre se decide em favor do agente. E por isso, só podemos falar em infanticídio após o exame da perícia médico-legal. Assim, se a mãe mata o próprio filho, durante o parto ou logo após, dependendo do nexo causal do estado puerperal com a capacidade de autodeterminação da mulher, é possível que esta responda por homicídio, infanticídio, ou por nenhum delito. O objetivo geral era analisar a influência do estado puerperal e a questão do dolo da parturiente. Portanto, foi notória a obtenção do resultado: um problema de grande relevância, que ocorre porque, na conceituação do delito, o legislador brasileiro acabou cometendo uma falha, ao incluir entre as circunstâncias elementares do crime, uma verdadeira causa de diminuição da responsabilidade penal, isto é, a influência do estado puerperal, Desta forma, surge um problema de ordem axiológica, acarretando uma situação injusta, na hipótese de co-autoria, pois se tratando de uma elementar, não se pode impedir a sua comunicação a todos os agentes. As principais recomendações concretizadas após este estudo podem ser descritas desse modo: o artigo 30 do CPB diz que não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do tipo. Assim, como o estado puerperal é uma elementar, a pessoa que realiza a conduta nuclear do tipo junto com a mãe, se enquadra como co-autor ou partícipe. No entanto, acredito que este privilégio não poderia se estender ao co-autor ou partícipe 65 no caso do infanticídio, devendo estes responderem por homicídio, uma vez que se encontram em perfeitas condições de discernimento. Para dar continuidade a esta pesquisa, deveria ser feita uma outra análise abordando novos pontos sobre concurso de pessoas no delito de infanticídio, novos casos jurisprudenciais entre outros fatores a respeito do estado puerperal da parturiente e a perícia médico-legal. Houve a possibilidade de compreender que o ensejo clássico do tratamento do infanticídio apoiou-se no critério psicológico para a concessão do privilégio, isto é, que a mãe agisse por motivo de honra, visando a ocultar a gravidez ilegítima e fora do matrimônio. Esse critério tornava-se flagrantemente injusto, pelo fato de resguardar a moral pelo aspecto exclusivamente sexual. O Código Penal de 1940, abandonando o monopólio de motivo de honra, na conceituação do infanticídio, passou a admitir o critério fisiopsicológico atrelando o tipo penal à influência do estado puerperal, como motivo determinante para a concessão do privilégio. 66 REFERÊNCIAS BRASIL. Código penal. São Paulo: Rideel, 2008. BRUNO, Anibal. Direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978. COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Tratado de direito penal. Campinas: Bookseller, 1999. COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Edipro, 1999. FERNANDES, Paulo Sérgio Leite. Aborto e infanticídio. São Paulo: RT, 2006. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. São Paulo: Scipione, 2006. FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. Código penal comentado. São Paulo: Malheiros, 2007. GLOTZ, Gustave. A cidade grega. São Paulo: DIFEL, 1980. GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Impetus, 2007. HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. 5. ed. 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