XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 VIAJANDO NO TEMPO PARA O CENTRO DA TERRA: HERBERT GEORGE WELLS E JÚLIO VERNE NO ENSINO DE FÍSICA Prof. Ms. Júlio César David Ferreira (UFPR) Este texto traz parte dos resultados de uma pesquisa apresentada no 10º Encontro de Pesquisa em Educação da Região Sudeste, de título: A literatura de ficção científica e a física: suas relações no âmbito do ensino-aprendizagem. Realizaremos aqui uma reflexão sobre as relações entre campos do conhecimento que envolvem diferentes gêneros discursivos: a literatura de ficção científica e a Física. Novamente partimos do pressuposto de que todo professor é professor de leitura, e como decorrência, todas as formas de leitura se complementam e criam entre si pontos de apoio para a construção de sentidos. Assim, buscamos relações entre os livros de Júlio Verne e Herbert George Wells, e os conteúdos escolares de física. Nos livros Viagem ao Centro da Terra (1864), de Júlio Verne e A Máquina do Tempo (1895), de Wells, tomando Bakhtin (1997, 2009) como referencial de análise, encontramos semelhanças entre as situações descritas pelos autores e os enunciados de fenômenos físicos típicos de livros didáticos do ensino médio, com algumas diferenças: a riqueza e complexidade nas quais os textos de ficção científica são produzidos, com enredos que tornam os conceitos científicos altamente contextualizados e favorecem a constituição de temas, ampliando as possibilidades de compreensão do leitor e potencializando a produção de sentidos no ato da leitura. Estas e outras diferenças, também marcadas por elementos comuns, a nosso ver, tornam promissora a aproximação entre a literatura de ficção científica e a física no contexto do ensino-aprendizagem, com o objetivo mais amplo de formar o leitor, um dos papéis centrais da escola. Palavras-chave: Linguagem, Ficção Científica, Ensino de Física, Produção de Sentidos. Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.003899 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 2 1. INTRODUÇÃO A Física envolve vários tipos de leitura, porém, a predominância nos livros didáticos mais utilizados pelos professores é de textos curtos, enxutos, com pouca ou nenhuma referência a elementos próximos ao aluno, livros que melhor se adaptam ao padrão de aula. A leitura de fruição é quase inexistente, devido à falta de contextualização dos conceitos científicos. Em muitos casos, os alunos acabam traumatizando-se, perdendo completamente o interesse pela disciplina, o que se torna um grande obstáculo no processo de aprendizagem (FERREIRA, 2011). O conhecimento científico, formal e abstrato, é importantíssimo no processo de aprendizagem, entretanto cumpre salientar a importância da aproximação entre esse conhecimento altamente estruturado e o conhecimento cotidiano, imediato, vivido pelos alunos. O caráter abstrato (e intrínseco) dos conceitos estudados, não pode ser singular e carente de menções ao conhecimento imediato do aluno. Em relação ao conhecimento imediato e científico, Almeida (2004), com o aporte teórico de Bachelard, nos diz: Tanto quanto a distinção entre conhecimento imediato e científico, essa dinâmica do pensamento científico tem que ser levada em conta, não apenas pelo filósofo que toma esse conhecimento como objeto de análise, mas também pelos que queiram verificar o funcionamento de outros conhecimentos cuja origem de alguma maneira mantenha relação com o conhecimento científico; é o caso de leituras escolares do discurso científico. (ALMEIDA, 2004, p. 32, grifos nossos) A dinâmica do pensamento científico a qual a autora se refere está relacionada à pluralidade do racionalismo pregada por Bachelard, que mesmo não se atendo propriamente ao ensino, permite com sua teoria, uma melhor compreensão da evolução do pensamento científico e as várias instâncias do racionalismo que a norteiam. Se a Física se refere sempre a algo que existe ou pretende que exista, porque o seu ensino é desprovido dos elementos da realidade? Como decorrência temos vários aspectos, mas podemos destacar a dificuldade dos alunos em construir sentidos sobre os conceitos científicos, a dificuldade em estabelecer réplicas – enquanto conceito bakhtiniano e não enquanto respostas aos problemas algébricos que minimamente tangem a Física vivida – ao discurso científico. Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.003900 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 3 2. REFERENCIAL TEÓRICO Destacamos aqui a importância da linguagem como elemento essencial no processo de ensino. A linguagem inscrita no âmbito do Ensino de Física tem despertado muito interesse de pesquisadores. Nesta pesquisa, além de Zanetic (2006), que trata a Ciência como uma parcela da cultura, propondo uma aproximação entre a Física e a Literatura, tomamos como referencial teórico, Almeida (2004), com investigações e reflexões pioneiras sobre a relação entre a linguagem e o Ensino de Física; Robilotta e Babichak (1997) que também voltam seus olhares para o Ensino de Física permeado pela linguagem. Somamos a esses autores, Geraldi (2000; 2006); Smolka (2006) e Brait (2005), que apesar de não tomarem como objeto de estudo o Ensino de Física, desenvolvem suas pesquisas evidenciando a importância da linguagem no ensino-aprendizagem com base na teoria da enunciação de Bakhtin (1997, 2009). Nas aulas de Física, podemos e devemos buscar aproximações entre o objeto de estudo (permeado pela abstração) e o conhecimento imediato e cotidiano do aluno. Essa é uma das formas de por em prática o que Almeida (2004) chama de leituras escolares do discurso científico. Bakhtin (1997, p. 290), referindo-se à significação linguística, afirma: O ouvinte que recebe e compreende a significação (lingüística) de um discurso adota simultaneamente, para com esse discurso, uma atitude responsiva ativa: ele concorda ou discorda (total ou parcialmente), completa, adapta, apronta-se para executar, etc., e esta atitude do ouvinte está em elaboração constante durante todo o processo de audição e de compreensão desde o início do discurso, às vezes já nas primeiras palavras emitidas pelo locutor. Com uma teoria unificadora da linguagem, Bakhtin conseguiu abordar e relacionar os mais diversos aspectos antes separados por disciplinas próprias da linguística, enriquecendo o estudo da linguagem em seu caráter mais notável, o da comunicação, através dos enunciados. Seus estudos definem o enunciado como unidade da comunicação verbal, sendo a oração definida como unidade da língua: “Cada enunciado é um elo da cadeia muito complexa de outros enunciados”. (BAKHTIN, 1997, p. 291) As pessoas não trocam orações, assim como não trocam palavras (numa acepção rigorosamente lingüística), ou combinações de palavras, trocam enunciados constituídos com a ajuda de unidades da língua — palavras, combinações de palavras, orações; mesmo assim, Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.003901 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 4 nada impede que o enunciado seja constituído de uma única oração, ou de uma única palavra, por assim dizer, de uma única unidade da fala [...] (Ibid., p. 297) Para Bakhtin, a comunicação se dá por meio de um exercício social. A situação social e o meio social são os fatores que determinam completamente a estrutura da enunciação. Em outras palavras, quando falamos ocupamos uma posição social e ideológica, intrínsecas da composição e do sentido de nossas enunciações que são frações de uma corrente de comunicação verbal ininterrupta. Nas palavras de Clark e Holquist (2008, p. 235): “Bakhtin concentra-se no número relativamente limitado de fatores que governam a prática dos locutores e o usa como meio de ordenar o número ilimitado de contextos em que tais locutores falam”. Com este aporte teórico, analisamos a literatura de ficção científica representada por livros de Júlio Verne e H. G. Wells. 3. OBJETIVOS Temos como objetivos mais gerais, compreender como a presença da ficção científica no ensino de física pode potencializar o processo de aprendizagem dos alunos, possibilitando uma construção de sentidos mais amplos para os objetos estudados, vistos sob diferentes perspectivas. O presente trabalho, em seu cerne, tem como principal objetivo compreender como as aproximações entre áreas distintas do conhecimento humano – aqui representadas pela ciência e pela literatura de ficção científica – podem contribuir para o ensino de física, potencializando a construção de sentidos e a apropriação dos conceitos científicos pelos alunos do Ensino Médio. 4. PROBLEMA DA PESQUISA Há uma aparente contradição entre a construção de sentidos pelos alunos a partir de textos de diferentes gêneros (dos livros didáticos e dos livros de ficção científica, por exemplo), que fazem referência aos mesmos objetos, vistos sob diferentes perspectivas. Zanetic (2006) alerta para o isolamento entre áreas diversas do conhecimento e os problemas decorrentes desse afastamento. Muitas vezes o conhecimento científico parece envolto por uma bolha, inatingível pela maioria das pessoas, quando na verdade manifesta-se frequentemente em nossas vidas, seja quando utilizamos o computador, seja quando praticamos um esporte. Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.003902 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 5 O conhecimento científico é especializado e rompe com o conhecimento cotidiano na sua constituição. No caso da Física, esse conhecimento é produzido em linguagem formal, com signos abstratos e a linguagem matemática. Como aponta Robilotta e Babichak (1997), o conhecimento físico é altamente estruturado, e a apropriação do mesmo pelos estudantes depende da (re)construção de conceitos que se entrelaçam, formando uma rede complexa que se lança na compreensão de uma importante dimensão da realidade. De acordo com a proposta curricular do estado de São Paulo: A ficção científica estimula a imaginação do adolescente, instigando a busca pelo novo, pelo virtual e pelo extraordinário. Nesse sentido, mesmo os jovens que, após a conclusão do Ensino Médio, não venham a ter qualquer contato com práticas científicas, ainda terão adquirido a formação necessária para compreender o mundo em que vivem e participar dele, enquanto os que se dirigirem para as carreiras científico-tecnológicas terão as bases do pensamento científico para a continuidade de seus estudos e para os afazeres da vida profissional ou universitária. (SÃO PAULO, 2008, p. 42) Segundo Felício (1994, p. 3): “Por diferentes que sejam, a razão e a imaginação, a ciência e a poesia dão acesso igualmente ao universo do espírito, que é irreal enquanto nega a percepção, mas que por isso mesmo é profundamente super-real”. Neste ponto podemos estabelecer um diálogo com Vigotski, colocando a imaginação humana como elemento importantíssimo no desenvolvimento cognitivo e na interpretação da realidade: O edifício erguido pela fantasia pode representar algo completamente novo, não existente na experiência do homem nem semelhante a nenhum outro objeto real; porém ao receber forma nova, ao tomar nova encarnação material, esta imagem cristalizada, convertida em objeto, começa a existir realmente no mundo e a influenciar sobre os demais objetos. Estas imagens cobram realidade. Podem servir de exemplo desta cristalização ou materialização das imagens qualquer aditamento técnico, qualquer máquina ou instrumento. Fruto da imaginação combinadora do homem, não se ajustam a nenhum modelo existente na natureza, mas emanam a mais convincente realidade e vínculo prático com a realidade porque, ao materializar-se, cobram tanta realidade como os demais objetos e exercem sua influência no universo real que nos rodeia. (VIGOTSKI, 1997, p. 24, apud ANDRADE; SMOLKA, 2009, p. 256-257) Em sintonia com estes autores, o que defendemos aqui são as inúmeras possibilidades de construção de sentidos para os conceitos científicos oferecidas pela leitura de ficção científica, que traz consigo diversos elementos propícios à discussão Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.003903 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 6 científica, sempre permeados pelo universo da fantasia, do devaneio, importantes do processo de aprendizagem. Silva (1998), ao tratar do tema ciência, leitura e escola, nos traz três importantes teses: 1ª tese: todo professor, independente da disciplina que ensina, é professor de leitura; 2ª tese: a imaginação criadora e a fantasia não são exclusivamente das aulas de literatura; 3ª tese: as seqüências integradas de textos e os desafios cognitivos são pré-requisitos básicos à formação do leitor. (SILVA, 1998, p.123-127) Basicamente, o que nos leva a buscar na literatura de ficção científica, possíveis caminhos para a apresentação dos conceitos científicos e também para o seu ensino, é a inércia no ensino-aprendizagem de Física. As aulas continuam sendo expositivas, baseadas em livros simplistas e seguidas de listas de exercícios, refletindo em um péssimo aproveitamento dos alunos, por não levar em conta toda a riqueza que envolve a disciplina. (MENEZES, 2005). 5. CAMINHOS METODOLÓGICOS Trata-se de uma análise documental de caráter qualitativo, onde através da leitura e seleção de trechos dos livros, discutimos as possibilidades de inserção das obras de ficção científica no contexto do ensino de Física, pois vemos esta aproximação como um recurso potencializador do ensino da disciplina. Tomamos como categorias de análise, conceitos da teoria de Bakhtin: gêneros do discurso, tema, significação e dialogismo (FERREIRA, 2011). Neste trabalho, tomamos como objetos de análise, livros de Júlio Verne e Herbert George Wells. Em nossa pesquisa de mestrado fizemos uma análise aprofundada da obra de Júlio Verne no contexto do ensino de Física e apresentaremos aqui alguns dos seus resultados. Iniciamos o trabalho com uma pesquisa genérica sobre a obra de Júlio Verne e H. G. Wells, selecionando o material destes renomados autores da literatura de ficção científica, tendo como prioridade a busca por fragmentos que ilustrassem o envolvimento entre a Física e a Literatura. Em muitos casos isso ocorreu no contraste de ambientes: o científico e o literário, o futurista e o primitivo, o concreto e o abstrato. Neste trabalho apresentaremos alguns resultados das análises de Viagem ao Centro da Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.003904 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 7 Terra (1864), de Júlio Verne e A Máquina do Tempo (1895), de H. G. Wells, buscando evidenciar e compreender as aproximações entre esferas distintas da atividade humana: Literatura (Ficção Científica) e Ciências (Física). Uma defesa precursora desse tipo de atividade interdisciplinar foi apresentada pelo físico e escritor inglês Charles P. Snow (1905-1980) quando, há cerca de 40 anos, sugeria que a separação que existia entre as comunidades de cientistas naturais e de escritores dificultava a solução de diversos problemas que envolviam a humanidade à sua época. [...] Snow defendia que uma aproximação entre os dois universos intelectuais era essencial para possibilitar um eficaz diálogo inteligente com o mundo. (SNOW, 1993, apud ZANETIC, 2006, p. 8) 6. DESENVOLVIMENTO Em nossos pressupostos, os conceitos da teoria bakhtiniana dão o embasamento necessário para que possamos identificar importantes características da ficção científica. A análise dos gêneros discursivos, por exemplo, contribui com o a identificação do leitor que os autores buscam em seus textos, muitas vezes empregando o gênero científico mais sistematizado, enquanto em outros momentos, a ausência de rigor permite que leitores construam sentidos sem a necessidade de aprofundamento no estudo dos conceitos. O conceito de tema nos proporciona comparar a forma de apresentação dos conteúdos da Física dos livros didáticos com a dos livros de ficção científica. Nos livros didáticos, em diversos casos, o conceito ou conjunto de conceitos é sintético, asséptico, carente de alguns elementos contextualizadores (que possibilitam o diálogo com outros textos, outras esferas), enquanto nos livros de ficção científica são apresentados vários elementos verbais e não verbais que tornam a constituição do tema mais rica e complexa. Cumpre salientar que não intentamos em nossa pesquisa a comparação entre os livros didáticos e os de ficção. São livros com finalidades diferentes, produzidos sob condições diferentes e principalmente utilizados para desígnios diferentes, contudo, não podemos desconsiderar as semelhanças e diferenças que ambos podem estabelecer reciprocamente, tampouco as reflexões sobre essas características voltadas para o ensino de Física. A significação, que para Bakhtin é o “estágio inferior da capacidade de significar”, é o contraponto para o conceito de tema. Uma significação é idêntica em qualquer instância histórica, cultural e social, devido a seus elementos constituintes que são abstratos, convencionais, sem existência concreta independente, mas que também Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.003905 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 8 são indispensáveis para a construção da enunciação. Os livros simplistas (didáticos ou não), carentes de temas bem desenvolvidos, podem dar a falsa sensação de maior eficácia na compreensão de seu conteúdo quando objetivam os conceitos por vias diretas, altamente abstratas (resumos, diagramas, postulados, equações, etc.), entretando, para Bakhtin a verdadeira compreensão dos enunciados é ativa, é responsiva através das réplicas, e isso só é possível diante da riqueza na composição dos temas que são “estágios superiores reais da capacidade linguística de significar”. O processo dialógico é a base para toda a teoria de Bakhtin. É através do dialogismo que o autor dialoga com o leitor, que ambos dialogam consigo mesmo, e antes de tudo, os discursos dialogam com outros discursos. A obra de Júlio Verne, por exemplo, tem características dialógicas muito particulares. 7. CONSIDERAÇÕES PARCIAIS Nos livros analisados, não só pudemos notar características favoráveis à divulgação das Ciências, à apresentação de conceitos e à contextualização de temas presentes nos livros didáticos, como constatamos com o crivo da teoria de Bakhtin, apropriações de gêneros realizadas pelos autores. As análises nos deram fortes indícios de um grande potencial que a ficção científica possui enquanto elemento contextualizador de situações de conhecimento físico, similares às apresentadas nos exercícios escolares, mas enriquecidas pela aventura, pelo enredo, pela descrição minuciosa dos vários elementos constituintes de um tema. Como exemplo dos resultados de nossas análises, trazemos um trecho de Viagem ao Centro da Terra que consiste em um diálogo onde o personagem Áxel faz uma indagação ao Sr. Otto Lidenbrock, sobre a absurda ideia de penetrar-se a terra até o seu centro: [...] – Sim, não resta a menor dúvida de que o calor eleva-se de um grau em cada vinte e três metros de profundidade abaixo da superfície do globo. Ora, admitindo-se esta constante proporção e sendo o raio terrestre de mil e quinhentas léguas, existe no centro temperatura superior a duzentos mil graus. As matérias no interior da terra encontram-se em estado de gás incandescente, visto que os metais, como o ouro, a platina e as rochas mais duras, não resistem a tal calor. Tenho, portanto, o direito de perguntar se é possível penetrar-se em semelhante meio! (VERNE, 1964, p. 42) Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.003906 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 9 Áxel apoia-se no fato de que o calor está relacionado à profundidade da terra e, através de argumentos matemáticos (próprio das manifestações do gênero científico), atesta a inviabilidade da expedição. Outros parâmetros entram nesta análise: o aumento da pressão atmosférica devido à profundidade, a rigidez das rochas e a escuridão na escavação, que dão a uma cavidade de tais dimensões com um comportamento parecido com o de corpo negro, onde a radiação incidente na superfície (necessária para iluminação do percurso) é quase totalmente absorvida pela cavidade, aumentando vertiginosamente a temperatura. O que nos chama a atenção é a maneira pormenorizada através de dados relativamente precisos pela qual Verne descreve a situação, não deixando de lado o caráter fantasioso da empreitada ao centro da Terra. Ainda no mesmo livro, um trecho onde Áxel descreve de maneira díspar, as intensas mudanças meteorológicas: [...] O tempo, se assim se pode dizer, deverá mudar dentro em breve. A atmosfera carrega-se de vapores saturados de eletricidade formada pela evaporação das águas salinas. As nuvens se abaixam sensivelmente e tomam cor azeitonada uniforme. Os raios elétricos mal conseguem atravessar a opaca cortina baixada sobre o palco onde está representado o drama da tempestade. [...] Nem bem proferiu as últimas palavras, o horizonte do sul muda subitamente de aspecto. Os vapores acumulados condensam-se em água, e o ar, violentamente atraído pra preencher o vácuo produzido pela condensação, transforma-se em furacão. (VERNE, 1964, p.200201) A condensação das nuvens, a tensão elétrica estabelecida devido às cargas elétricas na atmosfera e formação de um furacão são alguns dos itens ilustrados na respectiva descrição, rica em detalhes, a qual, somente um observador muito atento conseguiria notar, além de estar recheada de conceitos físicos. Neste caso, o gênero discursivo empregado por Verne está em uma transição entre o literário e o científico. O estilo, ou seja, a simples escolha das palavras pode remeter à descrições diversas de uma tempestade. Do trecho em questão, muito proveito pode-se tirar desde que se reconheça uma situação sendo descrita sob diferentes perspectivas. Na parte: Os raios elétricos mal conseguem atravessar a opaca cortina baixada sobre o palco onde está representado o drama da tempestade, por exemplo, o leitor se depara com uma situação onde uma tempestade forma-se, moldada estilisticamente por Verne, que, sob o viés do gênero científico, poderia tomar a seguinte forma: A diferença Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.003907 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 10 de Potencial Elétrico criada entre as nuvens, devido ao desequilíbrio de suas cargas elétricas, provoca descargas elétricas, ou seja, os raios. O tema é composto de maneiras diferentes nos dois casos, entretanto as duas formas são importantes e se complementam, ampliando as possibilidades de compreensão. A leitura dos livros de ficção científica representa em alguns casos, o primeiro contato do leitor com o conceito científico, e em outros, o seu estudo mais aprofundado, desde que conduzida por um professor atento às potencialidades de uma boa ficção científica. Ainda a título de resultados de nossas análises, apresentamos um importante trecho de A Máquina do Tempo, de H. G. Wells: – [...] Um cubo instantâneo pode existir? – Não consigo seguir você, – disse Filby. – Um cubo que não dure absolutamente nenhum tempo pode ter uma existência real? – Filby ficou pensativo. – Claramente, qualquer corpo real deve se estender em quatro direções: deve ter Comprimento, Largura, Espessura e Duração, – prosseguiu o Viajante do Tempo. – Mas por uma enfermidade natural da carne, a qual vou lhes explicar em um momento, tendemos a passar por cima desse fato. Há, na realidade, quatro dimensões, três das quais chamamos de planos do espaço, e uma quarta, o Tempo. Existe, no entanto, uma tendência a formar distinção irreal entre aquelas três dimensões e esta, porque nossa consciência se move intermitantemente em um único sentido, ao longo dessa última dimensão, do começo ao fim de nossas vidas. – Isso – disse um homem muito jovem, fazendo esforços espasmódicos para acender seu cigarro sobre o lampião – isso... está muito claro, realmente. – Agora, é interessante que isso seja tão amplamente negligenciado – continuou o Viajante do Tempo, com um leve acesso de alegria. – Eis realmente o que se entende por Quarta Dimensão, embora algumas pessoas que dela falam não saibam o que dizem. É apenas uma outra maneira de olhar para o Tempo. Não há nenhuma diferença entre Tempo e qualquer uma das três dimensões do Espaço, exceto a de que nossa consciência se move ao longo dela. Mas alguns tolos tomaram conta do lado errado da ideia. (WELLS, 1994, p. 12-13). Neste trecho, Wells atinge uma concepção de “tempo” muito próxima à definição postulada no século seguinte por Einstein em sua Teoria da Relatividade: [...] Wells parece prenunciar o que a teoria de relatividade traria a partir de 1905. [...] Percebe-se que algumas das indagações fundamentais da física faziam parte do ambiente cultural da época. (REIS; GUERRA; BRAGA, 2005, p. 31). Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.003908 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 11 Não nos resta dúvida da grande relevância da ficção científica aqui representada por Verne e Wells no contexto do conhecimento científico escolar. Os conceitos presentes nos livros analisados aparecem direta e indiretamente, onde muitas vezes podem ser utilizados para uma leitura de pretexto (GERALDI, 2006), ou seja, um ponto de partida para a discussão sobre assuntos científicos pós-século XIX. Não podemos dizer que se aprende efetivamente a Física lendo somente a literatura de ficção científica, pois não é esse o desígnio da leitura desse gênero, entretanto, pudemos encontrar muitos elementos que somados a um ensino sistematizado dos conceitos, ampliam as oportunidades de compreensão dos alunos assim como a produção de sentidos. Na teoria de Bakhtin, a riqueza na composição do tema emana da diversidade de elementos verbais e não verbais que o constituem. A literatura e a ciência podem reciprocamente compartilhar inúmeros pontos de apoio e também de conflito. O conflito conceitual causado pela literatura no contexto científico é diminuto comparado às possibilidades de construções mais amplas de sentidos que pode suscitar. Tais conflitos podem ser superados quando concebemos a literatura e a ciência como parcelas da cultura humana que igualmente contribuem para a nossa formação intelectual. Em sintonia com a proposta de João Zanetic, acreditamos que a literatura de ficção científica e a física interagem entre si e se complementam. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Maria José P. M. Discursos da Ciência e da Escola: Ideologia e Leituras Possíveis. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004. ANDRADE, Joana de Jesus de; SMOLKA, Ana Luiza Bustamante. A construção do conhecimento em diferentes perspectivas: contribuições de um diálogo entre Bachelard e Vigotski. Ciência & Educação, v. 15, n. 2, 2009, p. 245-268. BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Estética da Criação Verbal. Tradução por Maria Ermantina Galvão G. Pereira; revisão por Marina Appenzeller. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. ______. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Tradução por Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 13. ed. São Paulo: Hucitec, 2009. BRAIT, B. Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. 2. ed. Campinas: Editora UNICAMP, 2005. 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