De Wells a Welles: rádio e ficção científica
Sergio Endler*
Resumo:
As principais características da obra de Wells que deu origem a peça radiofônica A
Guerra dos Mundos são abordadas neste texto para estabelecer uma comparação com sua
adaptação por Welles para o rádio.
Historicamente, é atribuída a Júlio Verne (1828-1905) uma afirmação, no
mínimo, muito curiosa para um escritor. “Ele mente”, teria enunciado em comentário o autor
francês após a leitura de uma das obras escritas pelo inglês Herbert George Wells (18661946). Outro comentarista1 refere-se, ainda, à famosa frase em termos diferentes. “Ele
inventa”, teria sido a afirmação de um Verne algo perturbado. (Já a obra em questão seria O
primeiro homem na lua, publicada por Wells em 1901). Ora, é bastante curioso que um
escritor faça referência à obra de um outro naqueles termos. Na realidade, já ancião, o
angustiado Júlio Verne pressente a estatura maior representada por Wells, nome que vem
para dividir a autoria e a glória do pioneirismo na ficção científica moderna.
Desde a sua estréia, com A máquina do tempo, em 1895, Wells encontra
sucesso junto ao público e à crítica. Os especialistas e escritores, não raro, erguem
comparações entre Verne e Wells, estabelecendo vantagens freqüentes para o último. Oscar
Wilde, por exemplo, afirma que Wells é um Verne científico. Já na opinião do argentino Jorge
Luís Borges, Wells é um admirável narrador, um herdeiro das concisões de Swift e Edgar A.
Poe. Segundo Borges, Verne não passa de um jornalista laborioso e risonho que escreve
para adolescentes. Wells, conclui Borges, escreve para todas as idades do homem.2 Ernesto
Sábato ressalta que o inglês escreve a literatura fantástica da Revolução Industrial.3
*
Sergio Francisco Endler é professor pesquisador na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, em
São Leopoldo (RS), onde atua nas disciplinas de Rádio e Teoria da Comunicação, desde 1986. É graduado em
Comunicação Social pela FABICO/Ufrgs e Mestre em Teoria da Literatura pela PUC/RS. Como jornalista,
trabalhou nos jornais Zero Hora e Correio do Povo. E, ainda, nas Rádios Gaúcha, Guaíba, Sucesso e
Bandeirantes AM.
De fato, no conjunto da obra deste precurssor da moderna ficção científica,
existe a recorrência ao fantástico, traduzida na aparição de naves espaciais e seres de outros
planetas, em entrechos repletos de suspense e magia. Nos enredos, a aparição de aspectos
pontuais da realidade serve como artifício para garantir a verossimilhança e a atmosfera
realista necessária ao jogo ficcional.
Já a literatura de antecipação garante-se, em Wells, também pelo
estabelecimento de cenários onde perfilam-se os meios de comunicação de massa (como
fonógrafos, rádios, telas) lado a lado com invenções e ameaças futuristas inusitadas. Em
Wells, os elementos fantásticos funcionam como verdadeiros arautos da crítica à ciência
positiva. Ali, para o narrador, os graves problemas sociais modernos não estão resolvidos
pelo progresso da ciência. E, para que a realidade injusta altere-se, é necessário o
aparecimento de forças externas, extras, extra-ordinárias. Se o autor-empírico Wells, real e
histórico, é considerado um cidadão pacifista, humanista, progressista e socialista, logo,
algumas destas qualidades devem estar presentes no narrador correspondente de A guerra dos
mundos.
É neste endereçamento rumo ao extra-ordinário, para ultrapassagem do
cotidiano pueril e injusto, que Wells constrói/reconstrói em narrativa o mito. O mito enquanto
recriação de mundo, narração do mundo, reinvenção narrada de tudo. Ali, a estratégia
narrativa é jogar para fora, buscar a catarse, mesmo que através da catástrofe, ação
perniciosa e dolorosa, como são as mortes em cena, as dores veementes, conforme definição
clássica.4
Há um século, Wells publicava a mais famosa, a mais copiada e a mais referida
novela sobre invasores marcianos. Na obra, a Terra é colonizada após exauridos os recursos
de sobrevivência em Marte. A destruição tem início na pequena cidade inglesa de Woking
(Wells aloca o primeiro ataque em cenário visto dos fundos da sua casa). Logo, Londres é
destruída e, a seguir, todo o planeta. Os invasores constróem torres de guerra com trinta
metros de altura e atacam com raios térmicos. São semelhantes a polvos, possuem tentáculos,
olhos esbugalhados e um bico frontal. Mas, sobretudo, são indestrutíveis. Os invasores são,
ainda, verdadeiros vampiros de homens, aos quais aprisionam.
No enredo, Wells refere-se a milhões de seres humanos desesperados, errantes.
Uma fuga cega, um estouro de boiada, sem organização nem
destino. Seis milhões de pessoas em marcha, sem armas nem
provisões, nem alvo: o começo do fim para a humanidade e
para a civilização.5
Sombrio, o narrador constata: estamos no começo da evolução, cujo fim os
marcianos já atingiram. Mas, quando tudo é desolação e destruição, a máquina de guerra
marciana começa a ruir. Sem anticorpos contra doenças, os marcianos morrem atacados por
bactérias.
Quatro décadas após a aparição da obra original, em livro, Orson Welles
(1915-1985) torna célebre A guerra dos mundos em radiofonização pela CBS. Da Europa,
Wells escreve desgostoso, acusa Welles por má utilização da obra, com finalidades diversas
da original.
De fato e, necessariamente, a radiofonização de Welles apresenta e compõe
uma outra obra. Mas, a “culpa” não é tão somente do diretor. As mudanças são estruturais e
envolvem outros nomes.
Pouco ou nada é atribuído a Howard Kock, roteirista, e Paul Stewart 6,
produtor do espetáculo. Mas, na verdade, quanto existe da técnica e da arte de ambos no
produto final daquela novela radiofonizada? Sem dúvida, Wells poderia contra eles, também,
bradar.
Mas, a grande novidade mesmo desta nova versão da novela de Wells é a
formatação dela em novo médium e, logo, o jornalismo ficcionalizado ao longo de todo o
enredo. De fato, rompendo com o trido autor-obra-leitor, o rádio instaura-se como novo
suporte técnico, possibilitando inédita riqueza formal para a obra. Assim, o rádio é
responsável pelo incremento da forma, dotando a narrativa inicial de uma oralidade que
reforça o mito e oportuniza ao enredo novos sons e silêncios.
Não apenas a manipulação do rádio, com seu novo código e gramática
próprios, redimensiona a obra de Wells. Em termos discursivos, a versão de Welles-KockStewart é também inventiva ao mimetizar o próprio rádio. Logo, o modelo “música e notícia”
trivial serve de elemento dramático importante, estabelecendo-se ali uma metanarrativa.
Dentro deste novo pacto radiofônico estipulado por um narrador coletivo, a
polifonia de vozes atinge e envolve o ouvinte, chamando pela participação imaginária, como
nos espaços de indefinição criados semanticamente. Com isso, o pré-sentido estabelecido pelo
texto completa-se na audição.
No radiojornal mimetizado em A guerra dos mundos, tem voz o discurso
científico, o discurso militar, o discurso político e, até mesmo, o popular, além do jornalístico
propriamente dito. Os discursos verossímeis garantem a atmosfera de realidade. Mas,
paradoxalmente, eles estão a serviço do fantástico, da instauração do desconhecido. E este
logo gera a tensão, também pelo aparecimento do novo e da ameaça.
A peça, que mimeticamente recria a onipotência e a onisciência da própria
mídia, reordena os signos e realiza-se como linguagem comunicativa. Sobre os objetos,
construídos discursivamente, desdobra-se a metalinguagem. E, já, no interior desta ficção,
onde o narrador-coletivo é um demiurgo, também o ouvinte quase tudo sabe e quase tudo
“vê”. Mesmo sob pânico.
Nas articulações de clímax e anticlímax, nas alternâncias de tensão e
relaxamento, a peça estrutura-se representando ações. Como numa tragédia grega, a
radiofonização do drama baseia-se numa imitação (imita-se mimeticamente o mundo pela
linguagem, que deve ser verossímel).
Com A guerra dos mundos, em 1938, a ágora grega transporta-se no tempo e
no espaço. Questões primordiais como a criação e a destruição, o bem e o mal, o verdadeiro e
o falso - estruturados em pares dialéticos perfeitos – são revisitadas em encenação.
Mas, como ironicamente sublinha o texto lido por Welles ao final da peça,
realimentando o pacto radiofônico voz-ouvinte, após “aniquilar o mundo” e “destruir a CBS”,
o invasor pode bem ser, apenas, uma máscara feita numa abóbora oca, porque é Halloween.
Isto é, a vida não é, inteiramente, uma tragédia. Mas é, sempre, teatro.
Notas bibliográficas
1. SSO, Ernani. Nós somos os marcianos. In: ____ et alii. Os preferidos do público – os
gêneros da literatura de massa. Petrópolis : Vozes, 1987.
2. BORGES, Jorge Luis. O primeiro Wells. In: Wells, H.G. A máquina do tempo. Rio de
Janeiro : Francisco Alves, 1981.
3. SÁBATO, Ernesto. Obras II, Ensayos. Buenos Aires : Losada, 1970.
4. ARISTÓTELES. Poética. São Paulo : Abril, 1973 (Os pensadores).
5. Folha de São Paulo, Caderno Mais, p. 15, 29 mar. 1998.
6. LEAMING, Barbara. Orsan Welles, uma biografia. Porto Alegre : L&PM Editores,
1987.
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