Silvio Luís Ferreira da Rocha Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) Universidade de Brasília Faculdade de Direito Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal. Monografia Final de Curso “VIGILÂNCIA SANITÁRIA DE ALIMENTOS E PROTEÇÃO À SAÚDE DO CONSUMIDOR” Silvio Luís Ferreira da Rocha Tutor: Maria Augusta de Mesquita Souza Diretor da Faculdade de Direito: Prof. José Geraldo de Souza Júnior Coordenadora de Pós-Graduação:Profa. Loussia Musse Felix Coordenadores do Curso: Prof. José Geraldo de Souza Júnior e Prof. Márcio Iorio Aranha Consultora de Saúde: Dr. Conceição Aparecida Pereira Rezende Consultor Jurídico: Prof. Sebastião Botto de Barros Tojal Consultora de Ensino a Distância:Profa. Maria de Fátima Guerra de Souza Consultora de Metodologia e Monografia Final de Curso: Profa. Loussia Musse Felix Brasília, 03 de fevereiro de 2003. Silvio Luís Ferreira da Rocha 2 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) Sumário Introdução p.01 Capítulo I – A atividade de Vigilância Sanitária 1. O conceito jurídico de saúde e as políticas públicas de concretização do Direito à Saúde 2. O conceito de Vigilância Sanitária e suas atribuições 3. O enquadramento jurídico da atividade de vigilância sanitária 4. Forma de organização da Vigilância Sanitária 4.1Agências Reguladoras 5. Competências da Agência de Vigilância Sanitária p.02 Capítulo II – Saúde: Direito Básico do Consumidor 1. Considerações gerais 2. Modelos de proteção dos consumidores 3. Objetivos gerais e principais eixos de orientação da política que visa à promoção dos interesses dos consumidores 4. Características do Direito do Consumidor p.17 p.17 p.19 Capítulo III – A atuação da vigilância sanitária como instrumento proteção da saúde do consumidor 1. A saúde como eixo de proteção do consumidor 2. Segurança alimentar 3. Conclusão p.02 p.03 p.04 p.05 p.06 p.14 p.20 p.21 de p.24 p.24 p.25 p.34 Silvio Luís Ferreira da Rocha 3 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) Introdução. O direito à saúde, enquanto direito ao bem estar físico, psíquico e emocional, que deve ser assegurado pelo Estado mediante a realização de políticas públicas, é, também, objeto de proteção do direito do consumidor. Saúde e segurança do consumidor são dois eixos básicos de proteção do consumidor e nesse ponto a atuação da Vigilância Sanitária, especialmente na segurança que os alimentos devem ter antes de consumidos, é fundamental. A atuação da Vigilância Sanitária em tema de segurança alimentar ocorre pela aplicação de alguns princípios, entre eles, o da preservação da saúde e da segurança humana. Este é, de fato, a principal finalidade do agir da Vigilância Sanitária em segurança alimentar: zelar para que os alimentos comercializados sejam seguros ao consumo humano. Para realizar o objetivo de cuidar da produção, distribuição e comercialização de alimentos seguros, a Vigilância Sanitária, constituída na forma de agência reguladora, conta com importantes instrumentos. Um deles é o denominado princípio da precaução, que permite a Vigilância Sanitária agir quando houver a suspeita ou a probabilidade da ocorrência de danos à saúde da pessoa pelo consumo de determinado alimento. O interessante do princípio da precaução é que não há necessidade de certeza da ocorrência do dano. A mera suspeita, ainda que não comprovada, é suficiente para justificar o agir preventivo da Vigilância Sanitária. As medidas tomadas com base no princípio da precaução são, por natureza, provisórias e devem vir acompanhadas de diligências investigatórias que comprovem ou não o temor de dano pelo alimento ou produto a ser comercializado. A presente monografia objetiva demonstrar que a proteção do consumidor em matéria de segurança de alimentos passa por uma melhor compreensão do direito sanitário. Na consecução desse objetivo tratei da forma de estruturação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária e discorri sobre as suas competências. Depois, procurei tratar da evolução do direito consumidor e demonstrar que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária pelo modo de atuar no tema da segurança alimentar constitui um instrumento importante de controle da qualidade dos alimentos e tutela da saúde do consumidor, na medida em que a ela cabe interditar e retirar do mercado alimentos considerados nocivos ou supostamente nocivos a sua saúde. Silvio Luís Ferreira da Rocha 4 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) Capítulo I A Atividade de Vigilância Sanitária Sumário: 1 O Conceito jurídico de Saúde e as políticas públicas de concretização do Direito à Saúde. 2 O conceito de vigilância sanitária e suas atribuições. 3 O enquadramento jurídico da atividade de vigilância sanitária. 4 A forma de Organização da vigilância sanitária. 4.1 Agências Reguladoras. 5. Competências da Agência de Vigilância Sanitária. 1 O Conceito jurídico de Saúde e as políticas públicas de concretização do Direito à Saúde. O termo saúde apresenta um significado claro e determinado, que é o de ausência manifesta de doença e um significado impreciso que é o de bem-estar físico, mental e social.1 Estes foram os significados acolhidos pela Constituição Federal em seu texto.2 A saúde – ausência manifesta de doença e bem-estar físico, mental e social – enquanto bem ou interesse juridicamente protegido foi elevada à categoria de essencial e fundamental ao pleno desenvolvimento da pessoa humana e incluída no rol de direitos sociais da pessoa humana (C.F, art. 6o).3 A saúde, direito fundamental da pessoa humana, deve ser realizada e concretizada essencialmente pelo Estado com a colaboração supletiva e subsidiária da iniciativa privada (C.F, arts. 196 e 199). A saúde, por ser direito, pode ser exigida. O sistema concede autorização à pessoa humana ou a entidades que a defendam para que demande do Estado a implementação de políticas públicas satisfatórias que assegurem ora a ausência de doença, ora o bem estar físico, mental e social da pessoa. A força obrigatória dos preceitos 1 Cf.DALLARI, Sueli Gandolfi.Os Estados brasileiros e o direito à saúde,São Paulo: Hucitec, 1995. p.30. Cf. DALLARI, Sueli Gandolfi. Os Estados brasileiros e o direito à saúde, São Paulo: Hucitec, 1995.p.30. De acordo com a referida autora, “a Lei Maior da República estipulou critérios para que a saúde seja corretamente determinada em seu texto. Assim, vinculou sua realização às políticas sociais e econômicas e ao acesso às ações e serviços destinados, não só, à sua recuperação, mas também, à sua promoção e proteção. Em outras palavras, adotou-se o conceito que engloba tanto a ausência de doença, quanto o bem-estar, enquanto derivado das políticas públicas que o têm por objetivo, seja apenas a política, seja sua implementação, traduzida na garantia de acesso – universal e igualitário – às ações e serviços com o mesmo objetivo (C.F.,art. 196). 3 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo: Revista dos Tribunais,1990. 6a. edição, p.253, define os direitos sociais como “prestações positivas estatais, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se conexionam com o direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao aferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade”. 2 Silvio Luís Ferreira da Rocha 5 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) constitucionais seria um dos traços característicos da natureza dirigente que pode ser atribuída a nossa Constituição.4 No âmbito do Estado a realização do dever de assegurar a saúde se traduz pela concepção, gestação e implantação de políticas públicas, definidas como “programas de ação governamental visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados”.5 Em outras palavras, cabe ao Estado conceber e implantar programas de ação governamental que objetivem a alcançar níveis adequados de erradicação, tratamento e cura de doenças, bem como conceber e implantar programas de ação governamental que objetivem promover o bem estar físico, mental e social da pessoa humana. Estas políticas públicas tiveram os seus contornos delineados na Constituição Federal. Entre elas: a) reduzir o risco de doenças e outros agravos; b) promover, proteger e recuperar a saúde mediante ações e serviços com acesso universal e igualitário; c) promover o controle e a fiscalização de procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde; d) produzir medicamentos e equipamentos; e) executar ações de vigilância sanitária e epidemiológica; f) ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde; g) formular e executar ações de saneamento básico; h) incrementar o desenvolvimento científico e tecnológico. Algumas destas políticas, especialmente a relacionada à promoção proteção e recuperação da saúde foram organizadas sob a forma de um sistema único de saúde, com a observância das diretrizes de descentralização, atendimento integral e participação da comunidade. Interessa, no entanto, nesse estudo, as ações de vigilância sanitária, enquanto protetora da saúde, e sua correlação com o direito do consumidor. 2.O conceito de Vigilância Sanitária e suas atribuições. A vigilância Sanitária é um subsetor específico da Saúde Pública.6 As ações da vigilância sanitária visam objetivamente o controle sanitário do ambiente, dos alimentos, dos produtos e serviços envolvidos no complexo das relações econômicas e sociais, com vistas a minimizar ou eliminar os potenciais riscos que a concepção ou a manipulação inadequada desses produtos e serviços pode causar. Como afirma Ediná Alves Costa, “a natureza das ações de Vigilância Sanitária é eminentemente preventiva, perpassando todas as práticas médico-sanitárias, da promoção à proteção, recuperação e reabilitação da saúde, devendo atuar sobre fatores de riscos e danos e seus determinantes associados a produtos, insumos e serviços relacionados com a saúde, com o ambiente e o ambiente do trabalho, com a circulação internacional de transporte, 4 TOJAL, Sebastião Botto de Barros. A Constituição dirigente e o direito regulatório do Estado Social: o Direito Sanitário, p.36, in Manual Conceitual do Curso de Especialização à distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal. Para o citado autor, “está, pois, o Estado juridicamente obrigado a exercer ações e serviços de saúde visando a construção da nova ordem social, cujos objetivos, repita-se, são o bem-estar e a justiça sociais, pois a Constituição lhe dirige impositivamente essas tarefas”. 5 Cf.BUCCI, Maria Paula Dallari BUCCI. Direito Administrativo e Políticas Públicas, p.239. Texto disponibilizado para os participantes do Curso de Especialização à distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal. 6 Para o histórico da evolução da Vigilância Sanitária no Brasil ler o excelente artigo “Constituição da Vigilância Sanitária no Brasil” de autoria de Ediná Alves COSTA e Suely ROZENFELD. Silvio Luís Ferreira da Rocha 6 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) cargas e pessoas. A natureza dessas questões confere às ações do campo da Vigilância Sanitária um caráter universal de certos aspectos das práticas médico-sanitárias à reprodução e manutenção da vida, inserindo-a numa lógica normativa e ética internacional”.7 Ainda de acordo com a referida autora, a Vigilância Sanitária no Brasil teria as seguintes funções: “Normatização e controle de bens, da produção, armazenamento, guarda, circulação, transporte, comercialização e consumo de substâncias e produtos de interesse da saúde, de suas matérias-primas, coadjuvantes de tecnologias, processos e equipamentos; “Normatização e controle de tecnologias médicas, procedimentos e equipamentos e aspectos da pesquisa em saúde; “Normatização e controle de serviços direta ou indiretamente relacionados com a saúde, prestados pelo Estado e modalidades do setor privado. “Normatização e controle específico de portos, aeroportos e fronteiras, abrangendo veículos, cargas e pessoas; “Normatização e controle de aspectos do ambiente, ambiente e processos de trabalho e saúde do trabalhador”.8 3.O enquadramento jurídico da atividade de vigilância sanitária. A atividade de vigilância sanitária foi estudada de forma preponderante no âmbito da atividade relativa ao denominado poder de polícia. A identificação da atividade de vigilância sanitária com o exercício de poder de polícia e, portanto, limitada, essencialmente, às funções de fiscalização é antiga. A Vigilância Sanitária historicamente sempre foi concebida como uma atuação de controle sobre o que pode ameaçar a saúde da coletividade: o nocivo. De acordo com Ediná Alves Costa, “ As primeiras ações desse campo não foram instituídas com o modo de produção capitalista, tampouco sob o domínio da Medicina, pois desde épocas imemoriais as sociedades, sob os mais diversos modos de produção da vida social, vêm tentando exercer controle sobre elementos essenciais à vida em coletividade e que podem gerar ameaças à saúde. A ancestralidade dessas práticas remontam às preocupações das organizações sociais com o nocivo, noção social e historicamente definida como fundamento para a imposição de medidas de controle. Desde sua origem tais ações visam o controle sanitário do ambiente, dos alimentos, do exercício da medicina e farmácia e, gradativamente, de numerosos produtos, tecnologias e serviços – objetos de trocas comerciais – intrinsecamente envolvidos no complexo saúde-doença-cuidadoqualidade de vida”.9 De acordo com Ediná Alves Costa e Suely Rozenfeld, “O modelo criado para regular as relações produção-consumo desenvolvidas na Vigilância Sanitária, no Brasil, ao longo do tempo, se tem calcado no poder de polícia, 7 Vigilância Sanitária e Proteção da Saúde, in Manual Conceitual do Curso de Especialização à distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal, p.391. 8 Cf. COSTA, Ediná Alves, Vigilância Sanitária e Proteção da Saúde, in Manual Conceitual do Curso de Especialização à distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal, p.391. 9 Vigilância Sanitária e Proteção da Saúde in Manual Conceitual do Curso de Especialização à distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal, p.375. Silvio Luís Ferreira da Rocha 7 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) com pouca visibilidade para o público e até mesmo para os profissionais de saúde. Sua ação mais visível é a fiscalizadora, mesmo quando insuficientemente exercida. O poder de polícia é inerente ao Estado, é um poder-dever que se concretiza na elaboração de normas jurídicas e técnicas e na fiscalização de seu cumprimento, assim limitando as liberdades individuais, e as condicionando aos interesses coletivos assegurados pelo Poder Judiciário”.10 O tema poder de polícia remete à delimitação dos direitos individuais de liberdade e propriedade realizados pela lei, mas que dependem de averiguação no caso concreto da efetiva extensão a ser realizada pela Administração Pública. Em outras palavras: não cabe à Administração estabelecer restrição ou limitação à propriedade e liberdade que não esteja prevista na lei. Cabe a Administração, diante da limitação imprecisa, identificar claramente naquele caso concreto os seus limites. O exercício da chamada atividade do poder de polícia está ligado a intervenções gerais e abstratas (regulamentos) ou concretas e específicas (atos: autorizações, licenças) do Poder Executivo que visam a condicionar o exercício da liberdade e da propriedade, de modo a impedir o exercício prejudicial à coletividade. Os traços característicos dessa atividade são o de provir privativamente de autoridade pública, o de ser imposta coercitivamente pela Administração e o de abranger genericamente as atividades e as propriedades. De acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello, “...são traços característicos da atividade de polícia: a) provir privativamente de autoridade pública, donde se excluir de seu âmbito a reclusão compulsória de louco, promovida por parente, por exemplo; b) ser imposta coercitivamente pela Administração, pelo quê nela não se alberga o direito de vizinhança, ainda quando as imposições dele decorrentes sejam asseguradas de modo coativo, mas por injunção do Judiciário, provocado, como é óbvio, pelo particular interessado; c) abranger genericamente as atividades e propriedades, daí escaparem de seu campo os monopólios fiscais, posto que beneficiam a uma só atividade ou patrimônio, ao invés de favorecerem as atividades ou patrimônios em geral”.11 Ocorre que numa sociedade complexa, altamente industrializada, a importância da vigilância sanitária não pode ser reduzida a aspectos meramente fiscalizadores. As ações da vigilância sanitária são ações de saúde, mas, também, ações de organização econômica da sociedade. 4. Forma de organização da Vigilância Sanitária. No âmbito federal o sistema optou atualmente por organizar a Vigilância Sanitária mediante a criação de uma Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).12 10 Constituição da Vigilância Sanitária no Brasil, in Marcos históricos e conceituais, p.17. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros,2000. p.669-670. 12 O Sistema Nacional de Vigilância Sanitária é composto da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), o Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (CONASS), o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS), os Centros de Vigilância Sanitária Estaduais, do Distrito Federal e Municipais (VISAS), os Laboratórios Centrais de Saúde Pública (LACENS), o Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS), a Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), e os Conselhos Estaduais, Distrital e Municipais de Saúde, no que respeita às ações de vigilância sanitária. 11 Silvio Luís Ferreira da Rocha 8 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) O exercício dessa atividade administrativa foi atribuído a uma agência reguladora. Cabe tecer, portanto, algumas considerações em torno das agências reguladoras. 4.1 Agências Reguladoras. O tema Agências Reguladoras é novo no Direito brasileiro e intrigante porque rico em controvérsias, como a ocorrência de delegação legislativa do Poder Legislativo para as Agências Reguladoras e a interferência das normas editadas por estas Agências Reguladoras em atividades tradicionalmente reservadas aos particulares, como os contratos de prestação de assistência médica. Não há uma legislação geral que as discipline. Elas foram criadas por leis específicas e, no âmbito federal, entre outras, temos a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel); a Agência Nacional de Águas (ANA); Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa); A Agência Nacional de Petróleo (ANP) a Agência Nacional de Saúde (ANS) e a Agência Nacional de Fomento. Por essa descrição é possível verificar de plano que as Agências Reguladoras não se debruçam sobre uma atividade específica. Elas abrangem a integralidade da atividade econômica recaindo sobre serviços públicos (energia elétrica, telecomunicações, águas); polícia administrativa (vigilância sanitária); atividade econômica monopolística (petróleo); atividade administrativa de fomento (agência nacional de fomento) e atividade econômica privada (prestação de assistência médica). Daí a impossibilidade de traçar um denominador comum a partir das atividades que estas Agências se propõem a regular. O denominador comum que existe entre elas é intrínseco, reside na própria forma como foram estruturadas, do conjunto de suas competências e prerrogativas. Daí também reside o maior problema dessas Agências: como aplicar uma estrutura uniforme à tão diversas atividades econômicas submetidas a regimes jurídicos distintos? O debate nos anos noventa em países em desenvolvimento girou em torno da Reforma do Estado. A premissa de que o Estado Social estava em crise e, portanto, não tinha condições de atender com certo grau de eficiência as demandas populares levou os idealizadores da Reforma, sobretudo pessoas ligadas à Ciência da Administração e da Economia, a proporem uma redução da intervenção do Estado mediante a adoção de um amplo plano de privatização, que compreenderia a passagem para a iniciativa privada de serviços e atividades exploradas até então com exclusividade pelo Estado, na crença de que isso melhoraria a eficiência do Estado. Daí o surgimento de temas como a quebra de monopólios, a transferência da titularidade de empresas antes controladas pelo Estado para particulares e, especialmente, ao que interessa ao nosso tema, a flexibilidade do regime de serviços públicos, antes prestados tão somente pelos modos de concessão e permissão e que passaram a adotar um novo modelo que segundo Dinorah Adelaide Musetti Grotti, “... consistiria na passagem de um sistema de titularidade pública sobre a atividade, concessões fechadas, direitos de exclusividade, obrigação de fornecimento, preços administrativamente fixados, caráter temporário e regulação total da atividade, até o mínimo detalhe, para um sistema aberto, presidido pela liberdade de empresa, isto é, liberdade de entrada (prévia autorização vinculada), com determinadas obrigações ou encargos de „ serviço universal´, mas com liberdade de preços e modalidades de prestação, com liberdade investimento e amortização e, em definitivo, no regime de Silvio Luís Ferreira da Rocha 9 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) concorrência aberta, como qualquer outra atividade comercial ou industrial, em que tem que lutar pelo cliente.”13 Nesse contexto de crise do Estado temos a crise dos meios regulatórios. Os mecanismos de regulamentação tradicionais, como o recurso ao poder hierárquico e o controle administrativo, teriam se mostrado burocrático e ineficiente, principalmente pela complexidade que as cenas da vida moderna ganharam. A regulamentação tradicional baseada na busca de modelos e na imposição de sistemas rígidos de controle deveria dar lugar a uma regulamentação (também chamada de regulação) baseada na autonomia dos entes administrativos e das partes envolvidas e numa maior cooperação entre eles. Para isso duas alterações seriam necessárias: admitir ordenamentos setoriais e dar maior autonomia aos entes administrativos. O ordenamento setorial corresponderia a uma especialização das fontes do direito com a perca da lei do lugar de destaque que ocupava. Nessa concepção a evolução do ordenamento poderia ser resumida como a passagem de um ordenamento monocêntrico, uniforme, marcado por grandes codificações, que serviriam para disciplinar um número indeterminado de situações, para um ordenamento constituído de microssistemas, composto de leis especiais, a partir de um determinado enfoque, como o consumidor, criança e adolescente, e, portanto, com uma área de incidência menor, mas ambos tendo como fonte a lei, para, por último, ordenamentos setoriais nos quais haveria uma especialização das fontes, isto é, as normas seriam produzidas por órgãos especializados que desempenhariam a chamada função reguladora social. Os chamados ordenamentos setoriais buscam reger as atividades empresariais ou profissionais de interesse coletivo. Desta forma, determinadas atividades que dependam de prévio ato ou contrato administrativo habilitador, como as autorizações, licenças, permissões e concessões, seriam disciplinadas por um conjunto de normas editadas por órgãos do Estado, diverso do legislativo, quando o legislador julgar necessário maior rigidez do controle estatal ou pelos próprios indivíduos ou empresas, quando autorizadas pela Lei. Esses entes do Estado, que teriam competência normativa, são alheios à Administração Central e com Ela não entretém vínculos de hierarquia ou de significativo controle. Eles são denominados Agências Reguladoras e devem desempenhar a função reguladora social consistente em: fiscalizar atividades; exigir o cumprimento dos contratos administrativos; estabelecer o valor das tarifas; exercer o poder disciplinar sancionatório; resolver controvérsias; exercer amplos poderes normativos. A justificativa para essa autonomia decorreria da necessidade de especialização técnica dos órgãos e entes administrativos por setores, que teriam, assim, poder decisório nas matérias de sua competência. 13 Teoria dos Serviços Públicos e sua transformação, p.24. In: SUNDFELD, Carlos Ari (org.). Direito Administrativo Econômico, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p.62. Silvio Luís Ferreira da Rocha 10 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) As Agências Reguladoras seriam o melhor instrumento para a implementação dos ordenamentos setoriais e teriam por características o dinamismo, a independência, a especialização técnica e a valorização das soluções consensuais. As Agências Reguladoras no Brasil buscaram inspiração no Direito Norte-Americano. Cabe a elas a tarefa de regular um determinado setor econômico relacionado ou não com a prestação de serviços públicos. A elas cabe, fundamentalmente, a função de reguladora social. No Brasil as Agências Reguladoras são entes administrativos dotados de autonomia, independência e especialidade que assumem, em nome do poder político, a função de regular um dado segmento da atividade econômica ou de um dado conjunto de interesses sociais. Encontramos na Constituição Federal no artigo 21, inciso XI, a menção a esse “novo poder regulador” dado a Agência Reguladora. Diz o referido artigo: Compete à União, „explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais‟. A condição de órgão regulador prevista inicialmente para os serviços de telecomunicações foi estendida no âmbito infra-constitucional aos demais serviços públicos (energia elétrica, águas) e até mesmo a serviços governamentais ou particulares ( saúde). Em todas essas agências o traço comum repousa na competência regulamentar. A doutrina bate-se a respeito dos limites do exercício dessa competência, levando em conta o nosso sistema constitucional. Assim, toda a discussão surge em razão da concepção constitucional de competência regulamentar, que destoa daquela competência normativa atribuída as Agências Reguladoras. Floriano de Azevedo Marques confessa ter dificuldades em inserir a Agência Reguladora dentro da estrutura clássica da tripartição de Poderes. E com relação à ação reguladora explica que ela envolve não só a concretização das políticas públicas, elaboradas pelo poder político, como lhe confere uma certa margem construtiva o que configura uma dimensão política irrenunciável. Para ele não há uma incompatibilidade entre a atividade reguladora da Agência e o princípio da legalidade, mas sim entre a atividade reguladora da Agência e um princípio da legalidade que imponha que a norma legal descreva precisamente o conteúdo, a forma, a oportunidade e a ocasião do exercício da atividade regulatória. De acordo com ele, “Em crise está não o princípio da legalidade, mas o conteúdo totalizador da prescrição legal. A relação das agências reguladoras com o Direito se dá em face de uma nova legalidade: a lei define as metas principais e os contornos da atividade do órgão regulador, cometendo-lhe ampla margem de atuação. Atuação, esta, que segue um novo tipo de discricionariedade, pautado fundamentalmente pelos objetivos definidos na lei para serem implementados no setor regulador.”14 14 MARQUES NETO, Floriano Azevedo. Direito das Telecomunicações e Anatel p.24. In: SUNDFELD, Carlos Ari (org.). Direito Administrativo Econômico, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p.95. Silvio Luís Ferreira da Rocha 11 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) Benedicto Porto Neto, após reconhecer que a ANATEL exerce atividade normativa, entende que toda atuação da ANATEL é controlada, disciplinada e limitada pela lei, de modo que não se pode dizer, pelo menos no caso específico da ANATEL, que haja violação ao princípio da legalidade. Ainda segundo o referido autor, a ANATEL não estaria invadindo competência reservada ao Presidente da República para editar regulamentos para a fiel execução de leis (art. 84, IV, da CF) na medida em que ele admite que uma lei pode atribuir a um outro ente, diverso da Presidência da República, a competência para complementar leis. De acordo com Benedicto Porto Neto, o Presidente da República possui esta competência privativa de regulamentar a lei quando esta não a tenha atribuído para outra pessoa e exemplifica com situações antigas de atribuição de função normativa a outros entes da Administração, como no caso do Conselho Monetário Nacional, Banco Central e Comissão de Valores Mobiliários.15 Para Carlos ARI SUNDFELD, “a constitucionalidade da lei atributiva do poder normativo as agências depende de o legislador haver estabelecido standards suficientes, pois do contrário haveria delegação pura e simples de função legislativa. Quando reconheço ser constitucionalmente viável que elas desfrutem de um tal poder, de modo algum estou sugerindo que elas produzam „ regulamentos autônomos‟ ou coisa parecida, pois todas as suas competências devem ter base legal – mesmo porque só a lei pode criá-las, conferindo-lhes (ou não) poderes normativos”.16 Em sentido contrário o pensamento de José Roberto PIMENTA OLIVEIRA para quem, face à diversidade de realidades normativas, é praticamente impossível transplantar-se o modelo das Agências Americanas para o Brasil. De acordo com ele, “proíbe-se no Brasil regulamentos independentes ou autônomos, sendo admissíveis apenas os regulamentos executivos. “As delegações disfarçadas são proibidas no Brasil. Haveria delegação disfarçada toda vez que a lei remete ao Executivo a criação de regras que configuram o direito ou que geram obrigação, dever ou restrição à liberdade ou, em resumo, quando permitem ao regulamento inovar inicialmente na ordem jurídica. “Além disso, a competência regulamentar é exclusiva do Chefe do Poder Executivo e qualquer ato normativo expedido por autoridade administrativa de hierarquia menor não apresenta caráter regulamentar, restringindo-se a ter seus efeitos na órbita interna do órgão emissor.17 Analisando a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) observa o mesmo autor que a lei e o decreto estabeleceram os limites da ação regulatória da Agência de modo demasiadamente genéricos. Com efeito, os padrões orientadores da atuação da ANEEL foram estabelecidos pela Lei 9.478, de 6.8.1997 devendo a concretização deles decorrer da atividade regulatória da ANEEL que poderá inovar a ordem jurídica, dentro do 15 A Agência Nacional de Telecomunicações, p.6. In: SUNDFELD, Carlos Ari (org.). Direito Administrativo Econômico, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p.291. 16 Serviços Públicos e Regulação Estatal. Introdução às Agências Reguladoras, p.11. In: SUNDFELD, Carlos Ari (org.). Direito Administrativo Econômico, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p.27. 17 A regulação e o direito da energia elétrica.A ANEEL e Serviços de Energia Elétrica, p. 7-8. In:SUNDFELD, Carlos Ari (org.). Direito Administrativo Econômico, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p 336-.337. Silvio Luís Ferreira da Rocha 12 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) marco regulatório do setor de energia elétrica. A delegação legislativa não serve para fundamentar essa atividade regulatória.18 José Roberto PIMENTA OLIVEIRA recorre à distinção doutrinária das situações jurídicas estabelecidas em decorrência das relações administrativas ditas de supremacia geral e de supremacia especial. Na relação administrativa de supremacia geral, como a que se dá com o exercício do poder de polícia, por exemplo, o princípio da legalidade domina de forma absoluta: o atuar administrativo só é possível mediante prévia autorização legal, pois se reconhece que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5o,II, da CF). Na relação administrativa de supremacia especial temos uma relação específica entre a Administração e o particular que justifica o manejo por parte da Administração de poderes inerentes a essa relação administrativa, como nos casos em que os particulares passam a: a) integrar o corpo de agentes administrativos; b) celebrar contratos com a administração; c) recebem a outorga de uso privativo de bens públicos; d) recebem a outorga para exercer atividades de titularidade administrativa, como ocorre nas concessões, permissões e autorizações de serviço de energia elétrica. Neste caso temos uma implícita autorização legal para a criação de outras regras jurídicas necessárias ao desenvolvimento da relação jurídica.19 José Roberto Pimenta propõe, no entanto, os seguintes limites: i) a título de exercer uma supremacia especial, as autoridades administrativas não podem definir as condições do direito de ingresso na relação jurídica a ser travada; somente a lei poderá determinar as condições de admissão e as formas de prestação; ii) a eficácia jurídica das regras editadas, restringe-se ao âmbito interno da relação de sujeição especial; a Agência não pode criar obrigações, deveres ou ônus que possa afetar a esfera juridicamente protegida de outrem estranho ao campo de incidência de seu poder regulador; iii) não podem contrariar o regulamento, a lei e a Constituição e de acordo com esses parâmetros considera que a expressão poder regulador deve ser entendida como adstrita ao exercício da supremacia especial.20 O problema, a nosso ver, só existe se for admitido existir uma competência reguladora autônoma das Agências Reguladoras. Não há problemas ou apenas falsos problemas se a competência das Agências Reguladoras for restringida à expedição de normas infralegais executivas. A solução do problema passa pela distinção que deve ser feita entre os agentes envolvidos na relação, a natureza da atividade fiscalizada e regulada e a concepção do ordenamento jurídico a respeito do poder regulamentar. As Agências Reguladoras regulam, entre outras, as matérias de telecomunicações, energia elétrica, vigilância sanitária, saúde, águas e petróleo. Estas atividades estão submetidas a regimes jurídicos diferentes. Telecomunicações, energia 18 A regulação e o direito da energia elétrica.A ANEEL e Serviços de Energia Elétrica, p. 7-8. In:SUNDFELD, Carlos Ari (org.). Direito Administrativo Econômico, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p 336-.337. 19 A regulação e o direito da energia elétrica.A ANEEL e Serviços de Energia Elétrica, p.11. In:SUNDFELD, Carlos Ari (org.). Direito Administrativo Econômico, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p.340. 20 A regulação e o direito da energia elétrica.A ANEEL e Serviços de Energia Elétrica, p.11-12. In:SUNDFELD, Carlos Ari (org.). Direito Administrativo Econômico, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p 340-341. Silvio Luís Ferreira da Rocha 13 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) elétrica e águas são por dicção constitucional serviços públicos que devem ser prestados diretamente pelo Estado ou mediante o regime de concessão ou permissão. Vigilância Sanitária, por sua vez, é atividade administrativa fiscalizadora, restritiva da propriedade e liberdade do indivíduo, a ser exercida diretamente e exclusivamente pelo Estado, vedada a delegação. Saúde é serviço governamental. Quando prestado pelo Estado constitui serviço público; quando prestado pelo particular constitui atividade privada, submetida, apenas, às limitações administrativas impostas pelo interesse público. Configura erro, portanto, supor que uma entidade definida como Agência Reguladora possa exercer sua competência normativa e fiscalizadora do mesmo modo sobre tão diferentes atividades. As atividades delegadas, como telecomunicações, energia elétrica e águas, mediante concessão ou permissão, criam entre o concedente e o concessionário uma relação de sujeição especial, a partir do contrato de concessão ou da permissão, que sujeitam o concessionário a modificações das cláusulas pactuadas, respeitado o equilíbrio econômico financeiro, que torna desnecessária a invocação da discussão em torno da competência regulamentar do Poder Público. E isso porque se reconhece ao Estado, nas atividades delegadas, uma autonomia muito ampla, não limitada pelo princípio da intangibilidade, de modo que o conteúdo do contrato de concessão, a exceção do objeto, pode ser modificado sempre que o interesse público o justifique. Daí a possibilidade da Agência Reguladora editar normas relacionadas com a prestação do serviço público em favor do interesse público. Os cuidados com essa atividade normativa, como dito acima, limitam-se a impossibilidade de: i) a título de exercer uma supremacia especial definir as condições do direito de ingresso na relação jurídica a ser travada; somente a lei poderá determinar as condições de admissão e as formas de prestação; ii) criar obrigações, deveres ou ônus que possam afetar a esfera juridicamente protegida de outrem estranho ao campo de incidência de seu poder regulador. Os usuários estão imunes ao poder regulador da Agência Reguladora. Eles têm os seus direitos e deveres estabelecidos e limitados por lei. iii) contrariar o regulamento, a lei e a Constituição. As atividades submetidas ao poder fiscalizador do Estado demandam outro tratamento. Tais atividades não se submetem ao poder regulador autônomo da Agência Reguladora. Com efeito, a Vigilância Sanitária e a competência para autorizar o exercício da atividade na área de saúde não podem ser exercidas ao prazer da Administração. A Administração submete-se ao princípio da estrita legalidade, de modo que apenas lei, em sentido formal e material, pode criar obrigações para os particulares submetidos a essa atividade fiscalizadora. Não se trata apenas de delimitar o exercício da competência regulamentar. É mais do que isso: nenhuma restrição ao atuar dos particulares pode ser realizada por norma que não esteja amparada ou fundada em norma legal. Portanto, a competência normativa da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por exigência do sistema, só pode ser a de expedir normas executivas, isto é, que dêem concretude às normas legais, sem, contudo, inovar a ordem jurídica e mais, a Agência Silvio Luís Ferreira da Rocha 14 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) Nacional de Vigilância Sanitária, por expressa submissão ao princípio da legalidade estrita, só poderá agir para conformar o comportamento dos administrados se estiver autorizada pela lei a tanto. A competência regulamentar da Agência Nacional de Saúde Suplementar, por outro lado, manifesta-se em dois segmentos: atividade fiscalizadora e atividade reguladora das relações entre as operadoras dos planos de saúde e os consumidores. A atividade fiscalizadora constitui típica manifestação do poder de polícia, ficando submetida ao princípio da estrita legalidade. A atividade reguladora da Agência Nacional de Saúde Suplementar confronta, a nosso ver, com o princípio da legalidade, previsto no artigo 5º, inciso II, da CF e com o princípio da autonomia privada. Esse poder regulador acaba por ingressar em uma área até então alheia à regulamentação pela Administração e vedada a este tipo de manifestação administrativa: o da autonomia privada. Não cabe a rigor a manifestação da competência regulamentar da Administração em se tratando de atos da autonomia privada. A referida manifestação ocorre nos casos em que o atuar da Administração, previsto na lei, necessita da expedição de norma regulamentadora. A intervenção administrativa mediante competência normativa infralegal, em área reservada a autonomia privada, desrespeita a Constituição. O exercício da autonomia privada encontra-se previamente delimitado pela lei. A lei, em sentido formal e material, é a única que pode condicionar o exercício da autonomia privada, estabelecendo limites que devem ser respeitados. A expedição de atos regulamentares pela Agência Nacional de Saúde Suplementar que versam a respeito de matérias compreendidas no campo de manifestação exclusiva da autonomia privada afronta o princípio da legalidade e insere a Administração (indireta) num campo de atuação reservado com exclusividade aos particulares. Ao lado da competência normativa, as agências reguladoras apresentam outras características. Uma delas é a independência. As Agências Reguladoras devem ser independentes. Esta independência deve ocorrer em relação às pessoas envolvidas na atividade, isto é, em relação a: a) ao produtor da utilidade; b) ao consumidor; c) ao poder público. Em relação ao produtor da utilidade, a Agência Reguladora deve ter total independência, o que não significa que a atividade reguladora deva ser exercida contra o regulado. O órgão regulador deve divisar os interesses gerais que tutela, dos interesses específicos dos regulados. Um dos principais mecanismos previstos para que ocorra de forma efetiva esta independência é chamada quarentena, que impede que dirigentes do agente regulador ocupem posição de relevo no ente regulado. Esse mecanismo impede: a) a transferência de informações relevantes do órgão regulador para o regulado e b) que a Sociedade perca a Silvio Luís Ferreira da Rocha 15 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) confiança no regulador ao pressupor que toda a atividade reguladora desenvolver-se-ia em perigosa promiscuidade.21 No caso da Agência Nacional de Telecomunicações, autarquia especial criada pela Lei Geral de Telecomunicações, Lei 9.472, de 1997, a independência frente ao produtor da utilidade é assegurada pela proibição dos conselheiros exercerem outras atividades, salvo a de professor universitário (art. 28) e pelo impedimento deles defenderem interesses perante a própria Agência antes de completado um ano de desligamento (art. 30). Trata-se de um impedimento parcial que não impede que o ex-conselheiro assuma cargo ou função em alguma empresa fiscalizada pela ANATEL e longe, portanto, de representar a denominada quarentena. A independência da Agência Nacional de Energia Elétrica frente ao produtor da utilidade se dá pela proibição do ex-dirigente da ANEEL de prestar direta ou indiretamente, independentemente da forma ou natureza do contrato, qualquer tipo de serviço às empresas sob sua regulamentação ou fiscalização, inclusive controladas, coligadas ou subsidiárias pelo prazo de doze meses seguintes a saída do cargo. O exdirigente, durante esse prazo, continuará vinculada à autarquia (art. 9o). Outrossim, a independência da Agência Nacional de Saúde diante do produtor da utilidade se dá, também, pela proibição, no prazo de doze meses subseqüentes, de representar qualquer pessoa ou interesse perante a Agência e deter participação, exercer cargo ou função em organização sujeita à regulação da ANS (art. 9º). A atividade do órgão regulador deve desenvolver-se com independência frente ao poder político, sob pena de se converter em mera longa manus do núcleo estratégico estatal. A especificidade e a especialidade interditam que a atividade reguladora seja pautada pela interferência política. A independência em relação ao Poder Público que a instituiu é assegurada pela independência de seus dirigentes, que depois de nomeados, preenchidos certos requisitos, passam a gozar de estabilidade. No caso da ANATEL os conselheiros passam a ter estabilidade no cargo, podendo perder o mandato apenas em caso de renúncia, decisão judicial transitada em julgado ou processo administrativo disciplinar (art. 26 da Lei 9.472, de 1997). Na ANEEL, na ANVISA e na ANS, após quatro meses de exercício do mandato, o dirigente somente perderá o cargo se cometer ato de improbidade administrativa, for condenado criminalmente por sentença ou acórdão transitado em julgado ou descumprir sem justificativa o contrato de gestão (artigo 8º da Lei 9.427 de 26 de dezembro de 1996, artigo 12 da Lei 9.782 de 26 de janeiro de 1999, artigo 8º da Lei 9.961 de 28 de janeiro de 2000). As Agências ANEEL, ANVISA e ANS têm em comparação com a ANATEL a independência dos dirigentes reduzida quer pela possibilidade de exoneração ad nutum no início do mandato, quer pela exigência da assinatura do contrato de gestão, cuja previsão genérica de descumprimento pode ensejar o desligamento do diretor do cargo. 21 Cf. MARQUES, Floriano Azevedo.A nova regulação estatal e as agências independentes, p.14. In:SUNDFELD, Carlos Ari (org.). Direito Administrativo Econômico, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p.85. Silvio Luís Ferreira da Rocha 16 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) Discute-se a respeito da constitucionalidade da estabilidade concedida aos dirigentes dessas Agências na medida que o artigo 37, II, da CF prescreve que os cargos de confiança são de livre nomeação e exoneração. Ambas as restrições ao poder de livre nomeação e exoneração pelo Chefe do Poder Executivo foram consideradas constitucionais pelo STF no julgamento da medida cautelar pedida na ADIN 1.949-0, relator o Ministro Nelson Jobim. A independência das Agências Reguladoras frente ao poder público é assegurada, também, pela autonomia gerencial garantida pela prerrogativa de arrecadação e aplicação de suas próprias receitas. A todas foram asseguradas receitas próprias, algumas provindas da cobrança de taxas decorrentes do exercício do poder de polícia legalmente atribuídos a elas (v.g art. 18 da Lei 9.961; art. 12 da Lei 9.427 de 26 de dezembro de 1996; art. 23 da Lei 9.782 de 26 de janeiro de 1999).No caso da ANATEL a gestão do FISTEL Fundo de Fiscalização das Telecomunicações lhe foi transferida. A independência se manifesta, ainda, pela ausência de vinculação hierárquica a qualquer instância de governo e por derradeiro a inexistência de instância revisora hierárquica dos seus atos, ressalvada a revisão judicial. Não há, portanto, entre a Agência Reguladora e o Poder Político um vínculo de subordinação hierárquica que submeta as decisões da Agência Reguladora ao controle da Administração Direta que a criou. A independência da Agência Reguladora deve manifestar-se também em relação ao consumidor. De acordo com Floriano Azevedo Marques Neto, o órgão regulador deve ter compromisso forte com os consumidores, mas não pode transformar-se num simples e incondicional defensor do interesse do consumidor, sob pena de: a) descurar da proteção do interesse do indivíduo que não pode usufruir o serviço; b) levar em situações limites ao aniquilamento de parcela dos exploradores, acarretando a monopolização do mercado específico; c) ceder a pressões de grupos específicos de consumidores, errar e criar pleitos indenizatórios dos prestadores de serviços que via equilíbrio econômico-financeiro acarretarão gastos públicos.22 Outra característica das Agências Reguladoras é a capacidade de arbitrar os interesses envolvidos sendo necessário, para tanto: a) deter o conhecimento técnico disponível presente e futuro, o que pressupõe quadro de funcionários competentes e especializado e permanente acompanhamento dos rumos do setor e b) contar com uma política clara e democraticamente definida para o setor. 5. Competências da Agência de Vigilância Sanitária. Cabe examinar as competências da Agência de Vigilância Sanitária relacionadas direta ou indiretamente com a proteção da saúde e previstas na Lei 9.782, de 26 de janeiro de 1999. Dentre elas, cabe a Agência de Vigilância Sanitária: a) estabelecer normas e padrões sobre limites de contaminantes, resíduos tóxicos, desinfetantes, metais pesados e outros que envolvam riscos à saúde; b)conceder registros de produtos, segundo as normas de sua área de atuação; c) exigir, mediante regulamentação específica, o credenciamento ou a certificação de conformidade no âmbito do Sistema Nacional de 22 A nova regulação estatal e as agências independentes, p.15. In:SUNDFELD, Carlos Ari (org.). Direito Administrativo Econômico, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p.86. Silvio Luís Ferreira da Rocha 17 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial – SINMETRO, de instituições, produtos e serviços sob regime de vigilância sanitária, segundo sua classe de risco; d) interditar, como medida de vigilância sanitária, os locais de fabricação, controle, importação, armazenamento, distribuição e venda de produtos e de prestação de serviços relativos à saúde, em caso de violação da legislação pertinente ou de risco iminente à saúde; e) proibir a fabricação, a importação, o armazenamento, a distribuição e a comercialização de produtos e insumos, em caso de violação da legislação pertinente ou de riscos iminentes à saúde; f) cancelar a autorização, inclusive a especial, de funcionamento de empresas, em caso de violação da legislação pertinente ou de risco iminente à saúde; h) regulamentar, controlar e fiscalizar os produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública, entre eles, medicamentos de uso humano, suas substâncias ativas e demais insumos, processos e tecnologias; alimentos; aditivos alimentares; cosméticos, produtos de higiene pessoal e perfumes; saneantes destinados à higienização, desinfecção; conjuntos, reagentes e insumos destinados a diagnóstico; equipamentos e materiais médico-hospitalares, odontológicos e hemoterápicos e diagnóstico laboratorial e por imagem; imunobiológicos e suas substâncias ativas, sangue e hemoderivados; órgãos, tecidos humanos e veterinários para uso em transplantes ou reconstituições; cigarros, cigarrilhas, charutos e qualquer outro produto fumígero, derivado ou não do tabaco. A referida lei definiu novas atribuições da Vigilância Sanitária como o monitoramento da qualidade de bens e produtos, por meio de programas especiais, sistema de vigilância farmacológica e toxicológica, e sistema de informação, e o controle de produtos fumígenos. Foram deixados de lado, no entanto, temas como o meio ambiente, a ecologia, a saúde do trabalhador e a informação e educação sanitária da população.23 No que diz respeito à segurança alimentar, tema da presente monografia, vigora no Brasil, por força de certa confusão legislativa, uma superposição de competências fiscalizadoras e reguladoras entre o Ministério da Saúde e o Ministério da Agricultura. Ao Ministério da Saúde, por meio de órgãos próprios, foram atribuídas competências para fiscalizar drogas, medicamentos e alimentos, ao passo que ao Ministério da Agricultura remanesceria a competência para classificar e inspecionar produtos e derivados animais e vegetais. Essa dualidade de fontes não teria amparo na Constituição Federal de 1988, que no artigo 200, VII, atribuiu ao Sistema Único de Saúde, no qual não está incluído o Ministério da Agricultura, a função de “fiscalizar e inspecionar alimentos compreendida o seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para o consumo humano”. Neste sentido cabe trazer à colação trechos da lição de Hélio Pereira Dias, “Conforme já disse anteriormente neste trabalho, a Constituição Federal, no seu artigo 200, VII, atribuiu ao Sistema Único de Saúde, no qual não se inclui o Ministério da Agricultura, a função de “FISCALIZAR E INSPECIONAR ALIMENTOS, COMPREENDIDO O SEU TEOR NUTRICIONAL, BEM COMO BEBIDAS E ÁGUAS PARA O CONSUMO HUMANO”. “A Lei Orgânica de Saúde nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, manteve-se coerente com a Constituição ao assegurar no seu artigo 61, VIII, que estão incluídas no campo de atuação do Sistema Único de Saúde – SUS a fiscalização e inspeção de alimentos, água e bebidas, para consumo humano, bem assim, o controle e a fiscalização de serviços, produtos e substâncias que, direta ou indiretamente, se relacionem com a saúde, 23 Ediná Alves COSTA e Suely ROZENFELD, Constituição da Vigilância Sanitária no Brasil, in Marcos históricos e conceituais, p.39. Silvio Luís Ferreira da Rocha 18 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) compreendidas todas as etapas e processos da produção ao consumo, cometendo ao Ministério da Saúde, na condição de órgão responsável pela direção nacional do SUS, o papel de controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde, conforme o artigo 16,XII, além de exercer ações de vigilância sanitária, em geral, inclusive sobre alimentos, juntamente com os estados e os municípios... “ Bem é de ver, ainda, que a Medida Provisória 1.549-34, de 11 de setembro de 1997, ao definir os assuntos que constituem área de competência de cada Ministério, limitou-se a repetir, no caso do Ministério da Agricultura, aquelas mesmas funções do vetusto Decreto-lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967, atribuindo-lhe a classificação e inspeção de produtos e derivados animais e vegetais e ao Ministério da Saúde, a vigilância de saúde, especialmente drogas, medicamentos e alimentos. “Urge, portanto, que se ponha fim a esses desencontros finalísticos das duas Pastas, compatibilizando-se as normas infraconstitucionais, eliminando-se de vez os conflitos existentes, evitando-se perplexidades que o Direito repele. “É o caso da Lei nº 7.889, de 23 de novembro de 1989, resultante da Medida Provisória nº 94, de 23 de outubro de 1989, que, contrariando de frente a nova Carta Política, a pretexto de dar nova redação à vetusta Lei nº 1.823, de 1950, que dispunha sobre a inspeção sanitária e industrial dos produtos de origem animal, insiste em atribuir aos órgãos federais e estaduais da Agricultura o controle dos mesmos produtos, reservando ao Setor Saúde apenas a fiscalização e controle “nas casas atacadistas e nos estabelecimentos varejistas, ou melhor, nos supermercados, feiras livres, mercados e congêneres. “Bem é de ver que as últimas leis que se sucederam à Constituição dispondo sobre a organização dos Ministérios, mantiveram a superposição de competências entre os Ministérios da Saúde e da Agricultura, cometendo ao primeiro a vigilância de alimentos em geral e ao segundo a inspeção de produtos e derivados animais e vegetais. É o caso da recente Lei nº 9.649, de 27 de maio de 1988 (Art. 14,III, “g” e XVIII, “f”).24 24 Direitos e obrigações em saúde,p.220-221. Silvio Luís Ferreira da Rocha 19 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) Capítulo II Saúde: Direito Básico do Consumidor. Sumário: 1. Considerações gerais. 2. Modelos de proteção dos consumidores. 3. Objetivos gerais e principais eixos de orientação da política que visa à promoção dos interesses dos consumidores. 4. Características do Direito do Consumidor. 1. Considerações gerais A saúde em sua dúplice dimensão não só constitui um direito fundamental da pessoa humana, como também um bem jurídico protegido do chamado direito do consumidor. A proteção jurídica ao consumidor é um fato. Diversos países consagram proteção explícita aos interesses dos consumidores ou têm uma legislação geral disciplinando as relações de consumo. A existência de leis próprias de proteção ao consumidor é uma experiência relativamente recente. Razões de ordem econômicas, sociais e políticas levaram à elaboração de leis gerais de proteção ao consumidor ou de regulamentação das relações de consumo. O problema da proteção ao consumidor tem como pré-requisito as mudanças no sistema de produção que deram origem à indústria moderna e ao processo de concentração econômica. Antes da industrialização e do surgimento de grandes empresas nacionais e transnacionais, a proteção do consumidor não era solicitada de forma mais adequada. A regulamentação das relações de consumo e a proteção do consumidor é um fenômeno comum em países industrializados. A mecanização dos meios de produção, isto é, a substituição da força humana pela força mecânica e o conseqüente aumento da produção e criação de uma rede de distribuição e comercialização desses produtos, incrementada, cada vez mais, por descobertas técnicas agravaram os problemas relacionados ao consumo e levou a um colapso do sistema que vislumbrava no consumidor o senhor do processo econômico, provocando a necessidade de reavaliação dos mecanismos jurídicos existentes. Com efeito, no estágio inicial do capitalismo e para a economia clássica não havia sentido em proteger o consumidor, pois o consumidor era considerado a origem de todo poder e iniciativa em matéria econômica, já que o mercado existia para satisfazer as suas necessidades. De acordo com Alberto do Amaral Jr., “Para a economia clássica não há sentido em se falar na proteção do consumidor. Afinal, para o liberalismo novecentista, o consumidor é considerado a fonte última de todo poder e iniciativa em matéria econômica. Os bens por ele adquiridos resultam de suas necessidades internas ou daqueles que provêm de seu ambiente. A afirmação da soberania do consumidor implica a existência de um ciclo unidirecional de mensagens Silvio Luís Ferreira da Rocha 20 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) que ao se iniciar no consumidor passa pelo mercado e chega ao produtor, indicando o que deve ou não ser produzido”.25 A livre regulação dos interesses do consumidor pelo mercado mostrou-se falha. O mercado tornou-se restrito em razão do crescimento dos grupos econômicos. A falta de concorrência entre as empresas, aliada a formação de grandes grupos oligopolísticos restringiam a oferta de produtos e serviços, disponíveis aos consumidores, além de resultar na elevação artificial de preços. Além disso, o processo de informação do consumidor, importante para que ele escolha racionalmente e livremente o que consumir, era individual e unilateral. O processo decisório sobre o que informar cabia, com exclusividade, ao fornecedor. Este, como óbvio, ao selecionar o tipo de informação omitia aquelas relacionadas a pontos negativos ou fracos dos produtos e serviços, como o custo, o perigo, a durabilidade. Ademais, o processo informativo recorria ao uso de mensagens publicitárias, predispostas a provocar e incitar o consumo do que propriamente informar. As necessidades dos consumidores não decorrem exclusivamente das necessidades biológicas destes ou do ambiente que os cerca, mas sim, em grande parte, das campanhas publicitárias que as forjam. A igualdade formal entre os contratantes não passava de um mito, que servia para esconder a desigualdade real entre fornecedor e consumidor. A desigualdade entre fornecedor e consumidor era reforçada por fatores como a regulamentação das relações de consumo pelo fornecedor mediante a inserção de cláusulas de adesão e condições gerais, inegociáveis, imodificáveis ou pela cadeia de intermediários que se interpunha entre o ele e o fornecedor ou, ainda, e pela impessoalidade de certos modos de distribuição, como a comercialização de produtos e serviços por meios eletrônicos ou mecânicos; pela falta de informação e falta de competência técnica e jurídica do consumidor que lhe permitisse debater os termos do negócio e pela desorganização do consumidor, enquanto sujeito de direitos. A falha na organização dos consumidores também contribuía para o fracasso do modelo de proteção baseado na livre regulação. Com efeito, a heterogeneidade dos consumidores, decorrente do fato de que “todos são consumidores”, não importa a classe, a cor e o credor, impedia uma representação adequada dos interesses dos mesmos. Com efeito, com tantos fatores diversos, como classe social, nível de escolaridade, nível de emprego, era difícil identificar um discurso que reunisse a todos em torno de interesses comuns. A par dessas circunstâncias econômicas houve, também, considerações de caráter social que devem ser lembradas e que levaram ao desenvolvimento de um movimento social profundo que visava promover os interesses dos consumidores. Com efeito, acidentes dramáticos provocados por bens de consumo contribuíram para alimentar um movimento de reação popular que fez nascer na opinião pública dúvidas sérias sobre a capacidade empresarial de assegurar o progresso social e a melhoria das condições de vida dos cidadãos. Basta lembrar alguns produtos defeituosos, mundialmente conhecidos pelos danos produzidos, como a Talidomia-Contergan, um sedativo que ministrado no período de 25 Proteção do Consumidor no Contrato de Compra e Venda. São Paulo: Revista dos Tribunais,1993. p. 67. Silvio Luís Ferreira da Rocha 21 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) gravidez provocou deformidade física em milhares de crianças entre 1958 e 1962; o MER29, medicamente anticolesterol que, entre 1960 e 1962, provocou graves efeitos secundários, em especial lesões na vista em mais de 5000 (cinco mil) pessoas; a Salk, vacina usada na Califórnia contra a poliomielite, mas que por ser portadora de vírus ativo causou doenças em crianças; Stalinon, medicamento posto a venda no ano de 1953 na França para o tratamento de certas doenças de pele e que causou a morte e a invalidez de muitas pessoas. Ideais igualitários despertaram o desejo de maior repartição do poder com a sociedade e ideais democráticos exigiram maior participação de todos nos mecanismos decisórios. A repartição de recursos no seio do sistema econômico e social não deveria limitar-se às riquezas, mas, também, a informação, a conhecimentos. Tivemos, então, muitas iniciativas dignas de louvor, como o estabelecimento de um sistema de reparação dos danos causados por produtos e serviços perigosos a partir do princípio da solidariedade social; o estabelecimento de sistemas coletivos e neutros de informação, que visavam contrabalancear o caráter unilateral da publicidade e o estabelecimento de controles abstratos sobre o conteúdo das transações de consumo. Estas considerações de caráter social foram captadas pelo político. Assim, nos Estados Unidos e na Europa, o poder político percebeu o movimento de opinião pública favorável à proteção do consumidor e sustentou a necessidade de o Estado intervir com vistas a corrigir as falhas do sistema do mercado, que funcionava com o livre jogo das forças econômicas. O Estado chamou para si a responsabilidade de assegurar a promoção, a defesa e a representação dos interesses dos consumidores. 2.Modelos de proteção dos consumidores As transformações já mencionadas, que resultaram numa sociedade industrial, mostraram a inadequação dos instrumentos jurídicos existentes para proteger efetivamente os interesses dos consumidores. Foi adotado um novo modelo, chamado de adaptativo, por propor o reconhecimento de diversos direitos específicos ao consumidor, destacado como um sujeito de direito específico, passível de proteção, como ocorreu em 1962, nos Estados Unidos, com a mensagem enviada ao Congresso pelo Presidente J. Kennedy, na qual ele propôs uma política de consumo amparada em quatro direitos fundamentais: segurança; informação; escolha e ser ouvido ou como ocorreu em 1973, na Europa, por ocasião da reunião da Assembléia Consultiva do Conselho da Europa que recomendou fosse reconhecido ao consumidor cinco (5) direitos fundamentais: proteção da saúde e segurança; proteção aos seus interesses econômicos; reparação de prejuízos; informação e educação e direito à representação.26 Nesse modelo a regulamentação passa a ser um instrumento privilegiado que põe em prática uma política de ajuda ao consumidor. O direito do consumidor corrige as falhas do mercado e responde às preocupações sociais de uma política ativa de consumo que visa a reduzir o custo imposto à coletividade pelo comportamento privado de seus atores econômicos, bem como garante ao consumidor, através de idéias democráticos e igualitários, um mínimo de proteção imperativa e intangível.27 26 Cf. BOURGOIGNIE, Thierry.Elements por une droite de la consommation. Bruxelas: Story-Scientia, 1988. p.163. 27 Ibidem, p.165. Silvio Luís Ferreira da Rocha 22 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) 3. Objetivos gerais e principais eixos de orientação da política que visa à promoção dos interesses dos consumidores. O consumidor é o sujeito reconhecido pela política de proteção. Essa política de proteção tem por objetivo principal promover os interesses do consumidor na ordem e econômica e reencontrar o lugar e a influência que a teoria tradicional reconhecia a eles, mas que o desenvolvimento sócio-econômico da sociedade moderna os fez perder. Ela objetiva, ainda, corrigir as insuficiências existentes, estabelecer um certo equilíbrio entre as partes e valorizar certos temas, considerados essenciais e imodificáveis, como a informação, o acesso à justiça, à saúde. Como características a política de proteção ao consumidor revela uma natureza fundamentalmente coletiva; ela apela para a reavaliação do papel e da importância do consumidor, enquanto grupo coletivamente constituído no sistema econômico, e objetiva fornecer-lhes instrumentos que permitam um melhor equilíbrio das relações entre consumidores e fornecedores. Cinco são os principais eixos de orientação da política de proteção dos interesses dos consumidores. A educação é a pedra angular do edifício a construir. Os objetivos da política de educação do consumidor são, no entanto, vagos, incertos, imprecisos. A política de educação condiciona o sucesso de outras medidas de política protetora dos consumidores ao aumentar-lhes a capacidade de utilizarem as informações que lhe são fornecidas, de exprimir as suas demandas e necessidades, de apreender a dimensão jurídica dos atos de consumo; de exigir o cumprimento dos direitos. A informação do consumidor é indispensável ao sucesso de qualquer programa de proteção ao consumidor, porque permite que ele escolha, de modo racional e livre se irá consumir e o que consumir. A eficácia do processo de informação do consumidor depende, no entanto, da sua completude ou exaustão. Diz-se completa a informação que recai sobre todos os elementos essenciais e acidentais que conhecidos permitem ao consumidor tomar uma decisão esclarecida. A informação deve recair sobre circunstâncias tais como o preço, a qualidade, as características, os riscos, as condições de pagamento, as obrigações acessórias; os direitos, o conteúdo do contrato, os meios de defesa em caso de litígio e os custos da transação. A eficácia do processo de informação depende, também, da pluralidade das fontes de informações, devendo ser fornecida unilateralmente pelo fornecedor pela publicidade, embalagem, pré-contratos ou por terceiros interessados ou desinteressados, como centros de informações de consumidores, que divulgam testes comparativos ou programas públicos e privados de certificação de qualidade (INMETRO/PROCONS). O processo de informação do consumidor deverá respeitar os interesses e a diversidade do grupo de consumidores, que está estratificado de acordo com os critérios de educação, idade e profissão. Saúde e segurança também são objetos de preocupação do direito do consumidor. O processo de informação do consumidor, muitas vezes, é ineficaz, o que exige que o consumidor, presumidamente informado, seja protegido em certas matérias. Silvio Luís Ferreira da Rocha 23 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) Daí a tomada de medidas que previnam riscos à saúde e segurança do consumidor, como a proibição de comercializar produtos e serviços perigosos ou a obrigação de retirar do mercado os produtos e serviços que põe em perigo à saúde ou à segurança do público ou o controle da publicidade que incentiva o consumo do tabaco, álcool e medicamentos ou a imposição de restrições à liberdade de contratar, como a proibição de transferir a carga dos riscos do consumo somente para o consumidor. A incolumidade econômica do consumidor é, também, objeto de proteção. Daí a criação de normas que protejam o consumidor dos vícios de inadequação dos produtos e serviços e que proíbem a existência de cláusulas contratuais consideradas abusivas. Essas intervenções buscam assegurar um nível mínimo de proteção ao consumidor, ao qual não é permitido revogar. Esse mínimo de proteção procura garantir o consumidor contra os riscos decorrentes de (1) informações enganosas, incompletas ou confusas; (2) práticas comerciais suscetíveis de falsear o consentimento; (3) defeitos e danos ligados ao uso dos produtos e a serviços oferecidos ao consumidor no mercado; (4) atentados a seus interesses econômicos em virtude de práticas restritivas de concorrência, de preços ilícitos ou anormais e de oferta de créditos excessivos. 4) imposição de condições contratuais unilaterais e abusivas. Uma política de ajuda verdadeira ao consumidor deve prever mecanismos que o permitam expressar em juízo suas pretensões. Daí a necessidade de facilitar o ingresso do consumidor em juízo, mediante a simplificação de procedimentos, a celeridade da justiça e a redução de custos. O interesse coletivo dos consumidores requer que eles estejam organizados e sejam representados de modo eficaz por associações. 4. Características do Direito do Consumidor O Direito do consumidor caracteriza-se pluridisciplinar, pela sua unidade, autonomia e natureza coletiva. por ser instrumental; O direito do consumidor fornece os instrumentos necessários à realização de escolhas políticas, econômicas e sociais definidas no quadro da política de ajuda ao consumidor. É um instrumento de auxílio ao consumidor e de implantação da política de defesa do consumidor. O direito do consumidor é fundamentalmente pluridisciplinar; ele resiste a toda tentativa de aplicação dos critérios tradicionais de classificação das disciplinas jurídicas em função das regras estudadas: direito civil, comercial, penal, judiciário, administrativo. A sua classificação, a exemplo do direito do trabalho, econômico e da concorrência, é fundada sobre a função da regra jurídica. Essa classificação funcional atravessa as diversas disciplinas das categorias jurídicas tradicionais. Assim, do direito civil o direito do consumidor colhe o modo de formação e conclusão das compras e vendas. A função de consumir exerce-se pela conclusão das compras e vendas. As disposições do direito das obrigações e dos contratos encontram no campo do direito do consumidor um quadro natural de aplicação. O direito do consumidor recorre aos conceitos gerais de direito civil, como ordem pública, bons costumes, boa fé, lesão, abuso de direito, que permitem Silvio Luís Ferreira da Rocha 24 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) estabelecer um controle abstrato dos abusos nos contratos de consumo. Recorre, também, ao dever de aconselhar, colocado a cargo do profissional na fase pré-contratual e aos princípios da responsabilidade civil, com algumas ressalvas. As regras do direito comercial vão se aplicar, por exemplo, em matéria de prova. Também são úteis as regras que prescrevem as condições de acesso ao exercício de certas atividades, como seguro, transporte, organização de viagens, serviços bancários e financeiros. O direito do consumidor partilha as preocupações macrojurídicas do direito econômico, pois, como ele, pretende organizar o sistema econômico e assegurar um melhor funcionamento. O direito do consumidor, pela leitura nova que ele implica do desenvolvimento econômico e social que o cerca, precipita a natureza dinâmica ou normativa do direito econômico. O direito do consumidor faz do acesso à justiça um componente essencial de sua intervenção e condição de eficácia de suas iniciativas. Trata de assegurar que a organização judiciária e os procedimentos que regem os conflitos permitam à expressão efetiva dos consumidores, que atuem isoladamente ou em grupo. De uma maneira geral o legislador toma iniciativas em favor do consumidor e recorre a técnicas de direito penal com vistas a garantir os direitos e obrigações consagradas pelas disposições legislativas. A noção de consumidor engloba a do usuário de serviços públicos. O usuário de serviços públicos tem uma situação privilegiada. Ele é, de uma parte, o consumidor a quem deve ser aplicado os textos gerais que regem as relações de mercado com os prestadores profissionais de serviços e de outra parte ele terá uma proteção particular derivada dos grandes princípios constitutivos do regime de serviços públicos, principalmente os da regularidade, continuidade e igualdade dos usuários diante do serviço público. O Direito administrativo contribui igualmente para a organização dos interesses do consumidor ao estipular sanções administrativas para o descumprimento de deveres estabelecidos pela legislação de proteção ao consumidor. O direito sanitário serve como instrumento de proteção à saúde do consumidor. Em diversas áreas, principalmente, segurança alimentar, segurança de produtos e serviços, o referencial técnico e teórico do direito sanitário presta-se a coibir condutas perigosas ou potencialmente perigosas aos consumidores. Com efeito, numa sociedade de consumo e complexa muitos são os riscos à saúde e segurança dos consumidores, que podem ser prevenidos ou reprimidos com o agir da vigilância sanitária, que atua, justamente, no âmbito das relações sociais de produção e consumo. De acordo com Ediná Alves Costa e Suely Rozenfeld: “Na dinâmica contraditória e complexa desses processos são gerados muitos riscos e danos à saúde do indivíduo e da coletividade, assim como ao meio ambiente e à economia do consumidor. As ações de Vigilância Sanitária se inserem no âmbito das relações sociais de produção e consumo, onde se origina a maior parte dos problemas de saúde sobre os quais e preciso interferir. Tais problemas podem advir de falhas, ou defeitos, em algum ponto da cadeia de produção, ou de ilicitudes intencionais de fabricantes, comerciantes ou prestadores de serviços. Assim, existe a necessidade de Silvio Luís Ferreira da Rocha 25 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) regulação das relações de produção e consumo, se reconhece a vulnerabilidade do 28 consumidor e se criam instrumentos para proteger a saúde de toda a coletividade”. O Direito do consumidor aborda situações jurídicas comuns sob o ângulo de um sujeito novo reconhecido: o consumidor. O que guia a manifestação do direito do consumidor é a necessidade de promover os interesses dos consumidores diante do poderio de seus parceiros econômicos, produtores, distribuidores e portadores de serviços. O Direito do consumidor evita os passos da especialização. Ele é o direito dos não-especializados, dos não profissionais, dos particulares que em razão da hipossuficiência, da ignorância, merecem proteção. A unidade do direito do consumidor se dá pela unidade do objeto e de suas preocupações, isto é, a promoção dos interesses do consumidor. A pluridisciplinariedade do direito do consumidor não impede que seja elaborada uma legislação na qual a principal utilidade consiste em: fornecer uma decisão precisa de consumidor; confirmar a existência de direitos subjetivos fundamentais reconhecidos ao consumidor; fixar as orientações principais do sistema normativo de proteção do consumidor. O Direito do consumidor, no seu modelo adaptativo caracteriza-se por sua dimensão coletiva. Há uma preocupação pelo reconhecimento, promoção e representação dos interesses coletivos e difusos dos consumidores, embora o Direito do consumidor preocupe-se, também, com a dimensão individual. 28 Constituição de Vigilância Sanitária no Brasil, in Marcos históricos e conceituais, p.16. Silvio Luís Ferreira da Rocha 26 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) Capítulo III A atuação da vigilância sanitária como instrumento de proteção da saúde do consumidor. Sumário: 1. A saúde como eixo de proteção do consumidor. 2. Segurança Alimentar. 3. Conclusão. 1. A saúde como eixo de proteção do consumidor. A saúde como bem jurídico tutelado do consumidor recebeu lugar de destaque. O primeiro aspecto do termo saúde levado em conta pelo legislador foi o de ausência de malefícios ao corpo do consumidor quando protege a incolumidade física do consumidor. Nesse sentido propugna a lei protetora que o consumidor não seja exposto a riscos que possam atingir a sua incolumidade física e psíquica e daí o artigo 8º da Lei 8.078 proibir, expressamente, a colocação no mercado de produtos ou serviços que acarretem riscos à saúde ou segurança dos consumidores que não possam ser considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição. Cuida-se, em última análise, da imposição de uma obrigação geral de segurança a cargo dos fornecedores e que pode ser assim resumida: os fornecedores são obrigados a colocar no mercado apenas produtos e serviços seguros. Pode haver uma pequena variação a respeito da exata noção do que podem ser considerados produtos e serviços seguros. Assim, para uns produtos e serviços seguros são os que não apresentam riscos notáveis, incompatíveis com o modo de utilização e inaceitáveis tendo-se em conta as regras técnicas. Para outros, produtos e serviços seguros são os que não apresentam nenhum tipo de risco ou que não podem causar danos, ou, ainda, os que atendam às legítimas expectativas dos consumidores.29 O legislador brasileiro optou por ligar a segurança dos produtos e serviços à legítima expectativa do consumidor frente à natureza e forma de utilização dos produtos e serviços para considerar inseguro o produto ou serviço que não atenda às legítimas expectativas de segurança (artigo 8º, combinado com o artigo 12, § 2o da Lei 8.078). A Lei 8.078 não pretendeu disciplinar a utopia de produtos sem riscos ao consumidor. Os riscos à saúde e a segurança são aceitos desde que normais, previsíveis e contidos nos limites da razoabilidade e aceitabilidade (artigo 8º e 9º da Lei 8.078). Assim, é possível classificar os produtos e serviços existentes no mercado em duas grandes categorias. Produtos e serviços inofensivos à saúde humana e produtos e serviços perigosos à saúde humana. Os produtos e serviços perigosos à saúde humana podem apresentar graus de periculosidade. Os produtos e serviços que apresentam alto grau de nocividade ou periculosidade têm a sua produção e introdução no mercado proibida (art. 10 da Lei 8.078). Os produtos e serviços que apresentam níveis aceitáveis de nocividade ou periculosidade têm a sua produção e introdução no mercado admitida (art. 9º da Lei 8.078), cabendo ao 29 Cf. Françoise Maniet, La transposition de la directive 92/59/CE relative à la sécurité générale des produits dans lês Etats membres de l’Union européenne, p.11. In: Revue Européene de Droit de La Consommation, 1997, p.185. Silvio Luís Ferreira da Rocha 27 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) fornecedor o ônus de informar de maneira adequada e ostensiva o consumidor dos riscos de utilização. Os produtos e serviços inofensivos à saúde humana podem tornar-se perigosos aos ser humano quando portadores de defeitos, os chamados produtos e serviços defeituosos, que têm uma periculosidade não inerente ou natural, mas adquirida justamente pela existência de defeitos. Os defeitos dos produtos podem ser classificados em defeitos de projeção, fabricação ou de omissão ou insuficiência de informações ou instruções. Os defeitos de projeção ou construção derivam de um erro na projeção de uma escolha inadequada de materiais, ou, ainda, de uma técnica de fabricação. Os defeitos de fabricação ocorrem durante o processo de fabricação e são causados por falhas no processo produtivo. Os defeitos de informação resultam da falta, insuficiência ou inadequação de informações, instruções e advertências sobre o uso e perigos do produto. A noção de produto ou serviço defeituoso depende de exame e valoração. O Código de Defesa do Consumidor especificou algumas dessas circunstâncias, objetivando prestar auxílio ao magistrado na delicada e complexa tarefa de concretizar o conceito de defeito. Desta forma, o Código de Defesa do Consumidor recorreu a circunstâncias como a apresentação do produto, o uso e os riscos que razoavelmente se esperam do produto e a época em que o produto foi colocado em circulação que devem ser sopesadas pelo magistrado para constatar se há ou não defeito no produto ou no serviço introduzido no mercado. A esse respeito, Silvio Luís Ferreira da Rocha teve a oportunidade de se manifestar: “A primeira das circunstâncias especificada é a „apresentação do produto‟. Representa a idéia de que o defeito não deriva só do produto em sí, do seu conteúdo ou natureza intrínseca, mas de forma externa como é apresentado ao público consumidor. “A segunda circunstância especificada pelo legislador é o „uso e os riscos que razoavelmente se esperam do produto‟. Na apreciação do caráter defeituoso do produto, o Código de Defesa do Consumidor não se ateve apenas ao uso do produto, mas a todos aqueles razoavelmente previsíveis. O fornecedor deverá, portanto, levar em conta também outros usos razoavelmente previsíveis que possam ser feitos do produto comercializado e não apenas a utilização conforme fim pretendido em condições normais. “A terceira circunstância é a „época em que o produto foi colocado em circulação‟. Assim, o critério decisivo é o de que o produto satisfaça as legítimas expectativas de segurança do público consumidor no momento de sua colocação no comércio, sem que do seu aperfeiçoamento ulterior possa inferir-se a existência de defeito naquele momento”.30 Nessa atividade de controle e estipulação dos riscos à saúde razoáveis, aceitáveis, normais é que ressalta a importância da vigilância sanitária. O agir, o atuar da vigilância sanitária é que permitirá ao Estado proteger a saúde e a segurança do consumidor ao submeter a controle os graus de riscos de determinados produtos e serviços. Tomemos como paradigma os alimentos. 2. Segurança alimentar. 30 A responsabilidade pelo fato do produto no código de defesa do consumidor, p. 10. In: Revista Direito do Consumidor, 5, p.44. Silvio Luís Ferreira da Rocha 28 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) A vigilância sanitária exerce papel importante naquilo que se pode chamar de segurança alimentar ou de segurança dos alimentos, isto é, a garantia de que os alimentos consumidos não serão os responsáveis por danos à saúde e a segurança do ser humano. A preocupação com a segurança alimentar é tanta que nenhum país abre mão de medidas sanitárias preventivas ou de precaução relacionadas com alimentos com o intuito de preservar a saúde de sua população. Mário Frota considera que a segurança alimentar constitui preocupação dominante em qualquer latitude e cita, como exemplo, o problema dos abates clandestinos para consumo público, os escândalos da encefalopatia espongiforme bovina, as dioxinas nas aves. Aduz que o regime da segurança alimentar está consignado no Regulamento 178/2002 de 28 de janeiro, editado pela União Européia, para observância estrita no seu território, e que nele a proibição de colocação no mercado de quaisquer gêneros alimentícios que não sejam seguros.31 São considerados inseguros os gêneros alimentícios prejudiciais à saúde e os impróprios para consumo humano. O conceito de segurança é construído de forma negativa. Alimento seguro é o que não seja prejudicial ou impróprio ao consumo. Para a determinação da insegurança do gênero alimentício há que ser analisado as condições normais da sua utilização e as informações que são fornecidas ao consumidor. A determinação da prejudicialidade à saúde de um gênero alimentício leva em conta o provável efeito imediato e o efeito a longo prazo desse gênero alimentício sobre a saúde da pessoa que o consome e sobre as gerações seguintes; os potenciais efeitos tóxicos cumulativos e as sensibilidade sanitárias específicas de uma determinada categoria de consumidores, quando o gênero alimentício lhe for destinado.32 A determinação da impropriedade ao consumo humano de um gênero alimentício leva em conta se o consumo é inaceitável em função do uso a que se destina, quer por motivos de contaminação, de origem externa ou outra, quer por putrefação, deterioração ou decomposição.33 À segurança alimentar são aplicados os princípios da preservação da vida e da saúde humanas; o da proteção da saúde e bem-estar animal; o da preservação do ambiente; o da precaução; o da transparência; o da salvaguarda dos interesses econômicos do consumidor e o da partilha da responsabilidade. O princípio da preservação da vida e da saúde é o que sustenta toda a concepção da segurança alimentar. De acordo com tal princípio, não serão colocados no mercado quaisquer gêneros alimentícios que não sejam seguros, não o sendo os que se mostrem prejudiciais à saúde e os impróprios para o consumo humano. Ao lado dele há o princípio da proteção da saúde e bem-estar animal que proíbe que sejam colocados no mercado e fornecidos a animais produtores de gêneros alimentícios alimentos que não sejam seguros, assim entendidos dos que tenham efeito 31 Segurança Alimentar – Imperativo de cidadania, p.1. In: Revista de Direito do Consumidor, n. 44, p.68. Cf. FROTA, Mário. Segurança Alimentar – Imperativo de cidadania, p.2. In: Revista de Direito do Consumidor, n. 44, p.69. 33 Cf. FROTA, Mário. Segurança Alimentar – Imperativo de cidadania, p.2. In: Revista de Direito do Consumidor, n. 44, p.69. 32 Silvio Luís Ferreira da Rocha 29 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) nocivo na saúde humana ou animal ou que tornem inseguros os gêneros alimentícios produzidos pelos animais. O princípio da salvaguarda do ambiente propõe a conciliação da produção de alimentos com um ambiente ecologicamente equilibrado. Dele decorrem programas de controle dos agrotóxicos, da gestão da água. A segurança alimentar está informada, também, pelos princípios da precaução e da prevenção. Pelo princípio da precaução podem ser adotadas medidas profiláticas todas as vezes que houver probabilidade da ocorrência de dano. São pré-requisitos de aplicação do princípio da precaução: avaliação científica que revele uma incerteza quanto à superveniência de um dano ou uma incerteza quanto à gravidade do dano. Quer dizer, não há um juízo de certeza quando a ocorrência de um dano ou quanto a sua extensão e intensidade. Os conhecimentos científicos permitem perspectivar um perigo para a saúde sem autorizar a conclusão da existência certa do perigo. Presentes a incerteza e a gravidade do risco o princípio da precaução autoriza e exige uma ação urgente que se reveste de duas condições formais: caráter transitório e diligências investigatórias. A medida tomada em precaução durará enquanto não forem concluídas todas as diligências determinadas com o fim de eliminar a incerteza que paira quanto à existência e a extensão do dano.34 O princípio da precaução é importantíssimo para a proteção da saúde do cidadão a ser exercida pela vigilância sanitária. Tal princípio não é, no entanto, amplamente divulgado na comunidade jurídica, o que contribui para que o Poder Judiciário suspenda, muitas vezes, algumas medidas de precaução justamente com o argumento de que não restou demonstrado, de modo suficiente, a possibilidade de ocorrência de prejuízos, quando, na verdade, o atuar da vigilância sanitária deve ocorrer ainda na fase de incerteza da ocorrência do dano. O princípio da prevenção permite a adoção de medidas que tenham por objetivo reduzir um perigo identificado. Ele é aplicado no caso de haver uma forte probabilidade de prejuízos as pessoas. Não há incerteza quanto à superveniência de um prejuízo, como ocorre com o princípio da precaução.35 O princípio da salvaguarda dos interesses econômicos do consumidor de alimentos busca fornecer-lhes elementos para que façam escolha de alimentos com conhecimento de causa de modo a evitar práticas fraudulentas ou enganosas, adulteração dos gêneros alimentícios. O princípio da partilha de responsabilidade acaba por partilhar a responsabilidade pela segurança dos alimentos entre o Estado e os operadores econômicos. Ao Estado cabe editar legislação alimentar compatível com essas diretrizes; realizar o controle e verificação do atendimento dos requisitos relevantes da legislação pelos operadores econômicos em todas as fases de produção, transformação e 34 Cf. FROTA, Mário. Segurança Alimentar – Imperativo de cidadania, p.8-9. In: Revista de Direito do Consumidor, n. 44, p.74-75. 35 Cf. FROTA, Mário. Segurança Alimentar – Imperativo de cidadania, p.8-9. In: Revista de Direito do Consumidor, n. 44, p.74-75. Silvio Luís Ferreira da Rocha 30 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) distribuição mediante um serviço de inspeção idôneo e eficiente; estabelecer um sistema que avalie, gerencie e evite os riscos; definir as sanções civis, administrativas e criminais.36 Aos operadores econômicos, isto é, aos agentes que atuam em todas as fases de fabricação, transformação e distribuição, cabe zelar para que os gêneros alimentícios e os alimentos para animais colocados no mercado sejam seguros, isto é, observem as disposições que regem o segurança de alimentos, sob pena de serem responsabilizados administrativamente, civilmente e penalmente.37 Tomamos como caso paradigmático o mal da vaca louca. A Encefalopatia Espongiforme Bovina (EEB), mais conhecida como "doença da vaca louca" é uma das formas das Encefalopatias Espongiformes Transmissíveis (EET). Essas doenças são fatais e caracterizadas por degeneração esponjosa do cérebro com sinais e sintomas graves. O período de incubação da doença é de quatro a cinco anos, no entanto a letalidade ocorre muito rapidamente após o aparecimento dos sintomas. A EEB, encefalopatia que ataca o gado, é uma das diversas formas de doença neurológica transmissível que afeta diversas espécies animais. Várias espécies de mamíferos podem espongiformes como martas, alces, cervo mula e felinos. apresentar encefalopatias As ovelhas apresentam uma encefalopatia espongiforme conhecida como "scrapie" e está presente há mais de 200 anos na Grã-Bretanha e outros países. Em seres humanos, uma das formas de encefalopatia espongiforme transmissível é denominada Doença de Creutzfeldt-Jakob (CJD). A doença de CreutzfeldtJakob (DCJ) é uma das Encefalopatias Espongiformes Transmissíveis que ocorre no homem. Os sintomas mais freqüentes são demência progressiva e tremores musculares de extremidades. É uma doença rara, com incidência mundial de aproximadamente um caso para cada um milhão de pessoas.38 A Anvisa, diante da ocorrência de alguns casos da doença de Creutzfeldt Jakob (DCJ) e a forte suspeita de sua relação com a encefalopatia espongiforme bovina em países europeus, tomou algumas medidas preventivas e editou algumas resoluções, abaixo citadas, relacionadas com o tema. Resolução - RDC nº 306, de 14 de novembro de 2002 Retificação - 19 de novembro de 2002 Para o cumprimento do art. 2º da RDC nº 305, de 14 de novembro de 2002, é obrigatória a apresentação das informações conforme disposto no anexo desta Resolução,quanto ao ingresso, à comercialização e à exposição ao consumo, dos produtos (acabados, semi-elaborados ou a granel) para uso em seres humanos, contendo matéria-prima cujo material de partida seja obtido a partir de tecidos/fluidos de animais ruminantes, além dos 36 Cf. FROTA, Mário. Segurança Alimentar – Imperativo de cidadania, p.13-14. In: Revista de Direito do Consumidor, n. 44, p.80-81. 37 Cf. FROTA, Mário. Segurança Alimentar – Imperativo de cidadania, p.13-14. In: Revista de Direito do Consumidor, n. 44, p.80-81. 38 Informações obtidas no site da ANVISA: www.anvisa.gov.br. Silvio Luís Ferreira da Rocha 31 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) documentos já previstos na legislação vigente. Parágrafo único. As informações a que se refere este artigo são pré-requisitos para o pleito de autorização de embarque da mercadoria no exterior. Resolução - RDC nº 305, de 14 de novembro de 2002 Ficam proibidos, em todo o território nacional, enquanto persistirem as condições que configurem risco à saúde, o ingresso e a comercialização de matéria-prima e produtos acabados, semielaborados ou a granel para uso em seres humanos, cujo material de partida seja obtido a partir de tecidos/fluidos de animais ruminantes, relacionados às classes de medicamentos, cosméticos e produtos para a saúde, conforme discriminado. Resolução - RDC nº 19, de 18 de janeiro de 2002 (em PDF) Publica a atualização dos produtos e matérias-primas, sujeitos ao controle sanitário na importação, de acordo com o artigo primeiro da Portaria SVS/MS nº 772, de 02 de outubro de 1998, republicada no DOU de 04 de novembro de 1998. Portaria GM/MS nº 216, de 15 de fevereiro de 2001 Constituir Comissão Especial para diagnóstico e prevenção da doença de Creutzfeldt-Jakob (nvDCJ), possivelmente relacionada à EEB Dentre essas medidas, a principal é a Resolução - RDC nº 305, de 14 de novembro de 2002 que proibiu em todo o território nacional, enquanto persistirem as condições que configurem risco à saúde, o ingresso e a comercialização de matéria-prima e produtos acabados, semi-elaborados ou a granel para uso em seres humanos, cujo material de partida seja obtido a partir de tecidos/fluidos de animais ruminantes, relacionados às classes de medicamentos, cosméticos e produtos para a saúde, conforme discriminado. Resolução - RDC nº 305, de 14 de novembro de 2002 A Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, no uso da atribuição que lhe confere o art. 11, inciso IV, do Regulamento da ANVISA, aprovado pelo Decreto nº 3.029, de 16 de abril de 1999, c/c o § 1º do art. 111, do Regimento Interno aprovado pela Portaria nº 593, de 25 de agosto de 2000, republicada em 22 de dezembro de 2000, em reunião realizada em 5 de novembro de 2002, considerando o disposto no Art. 7º, Capítulo II, da Lei n.º 9.782, de 26 de janeiro de 1999; considerando a ocorrência da epizootia de encefalopatia espongiforme bovina (EEB) em países europeus; considerando a ocorrência de casos da variante da Doença de CreutzfeldtJakob - vDCJ em humanos, constatada em países europeus, e a forte suspeita de sua relação com a encefalopatia espongiforme bovina; considerando os países de risco definidos pelo Escritório Internacional de Epizootias -OIE; considerando os critérios definidos pelo Código Zoosanitário Internacional Silvio Luís Ferreira da Rocha 32 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) para determinação do enquadramento de um país ou zona a respeito de encefalopatia espongiforme bovina; considerando que diversos países adotam legislações restritivas acerca das encefalopatias espongiformes transmissíveis (EETs); considerando a necessidade de adotar medidas para prevenir a população brasileira contra as encefalopatias espongiformes transmissíveis; considerando a existência de evidências epidemiológicas que demonstram a relação dessas enfermidades em seres humanos com o consumo de produtos cárneos e derivados, elaborados de ruminantes infectados; considerando a possibilidade de transmissão de substâncias patogênicas a humanos por produtos de origem animal utilizados em procedimentos de diagnóstico e tratamento; considerando o risco potencial de transmissão da doença pela utilização de tecidos e órgãos humanos de pessoas de países onde a vDCJ vem se manifestando; considerando as medidas brasileiras adotadas no sentido de proibir, por tempo indeterminado, a importação de ruminantes vivos, das espécies bovina, ovina, caprina, bubalina e ruminantes silvestres e seus produtos derivados para consumo humano e ou alimentação animal, e ouvida a Comissão Especial constituída na Portaria 216, de 16 de fevereiro de 2001, do Ministro de Estado da Saúde; considerando a necessidade de estabelecer regras e procedimentos para a importação de produtos sujeitos ao controle sanitário; considerando que a importação de matéria-prima, produto semi-elaborado e a granel , utilizados na produção de alimentos para consumo humano, estão previstos em legislação específica do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento - MAPA, Adotou a seguinte Resolução da Diretoria Colegiada e eu, DiretorPresidente-Substituto, determino a sua publicação: Art.1º Ficam proibidos, em todo o território nacional, enquanto persistirem as condições que configurem risco à saúde, o ingresso e a comercialização de matéria-prima e produtos acabados, semi-elaborados ou a granel para uso em seres humanos, cujo material de partida seja obtido a partir de tecidos/fluidos de animais ruminantes, relacionados às classes de medicamentos, cosméticos e produtos para a saúde, conforme discriminado: 1 - tecidos/fluidos de categoria de infectividade I, conforme a classificação constante no anexo 4, de animais provenientes dos países de risco geográfico 2, 3 ou 4 conforme estabelecido pelo "European Commission`s Scientific Steering Geographical BSE Risk Classification", equivalentes às categorias de risco geográfico 2, 3, 4 e 5, tendo como referência o enquadramento do país ou zona definido pelo Código Zoosanitário Internacional relativo à encefalopatia espongiforme bovina, conforme descrito no Anexo 5. 2 - tecidos/fluidos de categorias de infectividade II e III, conforme a classificação constante no anexo 4, de animais provenientes dos países de risco geográfico 3 ou 4 conforme estabelecido pelo "European Commission`s Scientific Steering Geographical BSE Risk Classification", equivalentes às categorias de risco geográfico 3, 4 e 5, tendo como referência o enquadramento do país ou zona definido pelo Código Zoosanitário Internacional relativo à encefalopatia espongiforme bovina, conforme descrito no Anexo 5. § 1º Os países não classificados pelo "European Commission`s Scientific Silvio Luís Ferreira da Rocha 33 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) Steering Geographical BSE risk classification" e/ou Código Zoosanitário Internacional incluem-se nesta proibição sendo considerados de risco máximo. § 2º Ficam excluídos do disposto neste artigo os surfactantes pulmonares, condicionados à apresentação de documentação descrita em regulamento específico. Art 2º O ingresso, a comercialização e a exposição ao consumo de matéria-prima e produtos originários de tecidos/fluidos de animais ruminantes, utilizados como componentes na produção de medicamentos, cosméticos e produtos para a saúde, ficam condicionados à apresentação e aprovação pela autoridade sanitária de documentação descrita em regulamento específico, conforme discriminado: 1 - matéria-prima obtida de tecidos/fluidos de categoria de infectividade IV, conforme a classificação constante no anexo 4, de animais provenientes dos países de risco geográfico 1, 2, 3 ou 4 conforme estabelecido pelo "European Commission`s Scientific Steering Geographical BSE Risk Classification", equivalentes às categorias de risco geográfico 1, 2, 3, 4 e 5, tendo como referência o enquadramento do país ou zona definido pelo Código Zoosanitário Internacional relativo à encefalopatia espongiforme bovina, conforme descrito no Anexo 5. 2 - matéria-prima obtida de tecidos/fluidos de categorias de infectividade II e III, conforme a classificação constante no anexo 4, de animais provenientes dos países de risco geográfico 1 ou 2 conforme estabelecido pelo "European Commission`s Scientific Steering Geographical BSE Risk Classification", equivalentes às categorias de risco geográfico 1 ou 2, tendo como referência o enquadramento do país ou zona definido pelo Código Zoosanitário Internacional relativo à encefalopatia espongiforme bovina, conforme descrito no Anexo 5. 3 - matéria-prima obtida de tecidos/fluidos de categorias de infectividade I, conforme a classificação constante no anexo 4, de animais provenientes dos países de risco geográfico 1 conforme estabelecido pelo "European Commission`s Scientific Steering Geographical BSE Risk Classification", equivalentes às categorias de risco geográfico 1 , tendo como referência o enquadramento do país ou zona definido pelo Código Zoosanitário Internacional relativo à encefalopatia espongiforme bovina, conforme descrito no Anexo 5. Art 3º Ficam proibidos, em todo o território nacional, enquanto persistirem as condições que configuram risco à saúde, o ingresso, a comercialização e a exposição ao consumo de aditivos alimentares e dos alimentos embalados, prontos para consumo, destinados à alimentação humana, originários de tecidos/fluidos de ruminantes provenientes dos países de risco geográfico 3 e 4 conforme estabelecido pelo "European Commission`s Scientific Steering Geographical BSE Risk Classification", equivalentes às categorias de risco geográfico 3, 4 e 5, tendo como referência o enquadramento do país ou zona definido pelo Código Zoosanitário Internacional relativo à encefalopatia espongiforme bovina, conforme descrito no Anexo 5 . Art 4º Esta Resolução não se aplica aos produtos acabados para diagnóstico in vitro, entretanto o fabricante deverá descrever no material informativo dos produtos que contenham material de partida obtidos a partir de tecidos/fluidos de animais ruminantes, os riscos de uma contaminação potencial com EETs (encefalopatias espongiformes Silvio Luís Ferreira da Rocha 34 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) transmissíveis) e os procedimentos de biosegurança, incluindo a expressão: Potencialmente infectante. Art 5º Ficam excluídos das restrições previstas nesta Resolução os produtos derivados de leite e de lã obtida de animais vivos. Art.6º Ficam proibidos, em todo o território nacional, enquanto persistirem as condições que configuram risco à saúde, o ingresso de órgãos e tecidos de origem humana de pessoas residentes no Reino Unido e na República da Irlanda. Parágrafo único. Incluem-se na proibição de que trata este artigo os produtos derivados de tecidos e órgãos humanos, tais como hormônios hipofisários humanos e quaisquer outros materiais implantáveis, injetáveis, ingeríveis ou aplicáveis ao organismo humano por qualquer outra via. Art. 7º Fica proibida a utilização de componentes de sangue e tecidos humanos obtidos de pessoas de qualquer nacionalidade que tenham residido no Reino Unido ou na República da Irlanda por período igual ou superior a seis meses consecutivos ou intermitentes, a partir de 1980, bem como de pessoas que apresentem distúrbios clínicos compatíveis com a Doença de Creutzfeldt-Jakob (DCJ). Art. 8º A reutilização de materiais e instrumental médico-cirúrgico utilizado em pessoas com quadro clínico indicativo de DCJ fica condicionado à adoção de medidas de processamento constantes no Anexo 1 desta RDC. Art. 9º É obrigatória a adoção de precauções para o manuseio de pacientes, tratamento de artigos e superfícies, manipulação e descarte de materiais e amostras de tecidos constantes nos Anexos 2 e 3 desta RDC. Art. 10 As exigências sanitárias constantes desta resolução serão extensivas aos procedimentos de importação já iniciados e produtos em trânsito em portos, aeroportos e fronteiras. Art. 11 A autoridade sanitária de portos, aeroportos e fronteiras poderá, no momento da importação de outros produtos não referidos supra, exigir a comprovação de que são isentos de substâncias obtidas das espécies animais citados no Art. 1º. Art. 12 A Agência Nacional de Vigilância Sanitária adotará medidas específicas em relação a produtos não discriminados nesta Resolução e que venham a ser considerados de risco potencial previstos. Art. 13 Ficam revogadas a Resolução da Diretoria Colegiada - RDC nº 213, de 30 de julho de 2002 e a Resolução da Diretoria Colegiada - RDC nº 251 de 9 de setembro de 2002. Art. 14 Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação. RICARDO OLIVA A leitura da Resolução – RDC-305, de 14 de novembro de 2002demonstra a aplicação dos princípios que regem e disciplinam a segurança dos alimentos. Silvio Luís Ferreira da Rocha 35 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) Com o objetivo de evitar a ocorrência de sérios danos à saúde dos consumidores de produtos cárneos e derivados, elaborados de ruminantes infectados, a Vigilância Sanitária proibiu, por tempo indeterminado, o ingresso e a comercialização de matéria-prima e produtos acabados, semi-elaborados ou a granel para uso em seres humanos, de aditivos alimentares e dos alimentos embalados, prontos para consumo, destinados à alimentação humana cujo material de partida seja obtido a partir de tecidos/fluídos de animais ruminantes provenientes dos países de risco. Ao agir desta forma, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária atendeu ao princípio da responsabilidade que lhe cabe, como órgão do Estado, de eliminar riscos potenciais à saúde dos consumidores. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária também fez incidir o denominado princípio da precaução. No caso, o perigo estava identificado e consistia na disseminação entre a população do consumo de produtos e derivados de animais infectados com encefalopatia espongiforme, o que no ser humano pode levar ao desenvolvimento da Doença de Creutzfeldt-Jakob – DCJ. Cuida-se de aplicação do princípio da prevenção, como dito, porque o perigo e os riscos advindos do consumo de produtos e derivados de animais infectados são perfeitamente conhecidos e comprovados. Não há, como no caso da incidência do princípio da precaução, de uma dúvida quanto à superveniência de um prejuízo. Não obstante as providências tomadas, caso houvesse descumprimento dessa resolução e produtos e derivados de animais infectados fossem introduzidos no país, caberia a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por aquilo que se denominou de rastreabilidade, uma das formas de assegurar a segurança dos gêneros alimentícios, detectar a origem e seguir o rastro do alimento em todas as suas fases econômicas produção, incorporação, comercialização e consumo de modo a inibir a comercialização e o consumo de todos os produtos nos quais foram incorporados os produtos e derivados de animas infectados. A vigilância sanitária tem o dever de agir. A sua omissão pode levar a autarquia a responder pelos danos sofridos pelo consumidor. A Constituição Federal de 1946, no art. 194, acolheu a teoria objetiva, o que perdura, até hoje, como pode comprovar o § 6º do art. 37 da C.F. Pela teoria objetiva o Estado está obrigado a indenizar os prejuízos causados a terceiros por seus servidores, independentemente da prova de culpa deles na pratica do ato ou na omissão. Irrompe a responsabilidade e o conseqüente dever de indenizar toda a vez que a Administração por intermédio de seus agentes praticar atos ou omitir-se na prática de atos e disso resultar danos aos administrados. A responsabilidade do Estado pressupõe: a) que o ente obrigado a indenizar seja uma pessoa jurídica de direito público ou de direito privado prestadora de serviços públicos. Portanto, pela interpretação do texto constitucional estão excluídas da regra da responsabilidade objetiva as entidades de direito privado que executem atividade econômica; b) a existência de dano causado a terceiro; c) o nexo de causalidade entre a atividade administrativa e o dano e d) que o ato que causou o dano tenha sido praticado por Silvio Luís Ferreira da Rocha 36 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) agente público no exercício de função pública, a pretexto de exercê-la, ou, ainda, por pessoa que tenha se valido da condição de agente.39 A omissão ou o mau proceder da Agência Nacional de Vigilância Sanitária que causar danos à saúde do consumidor poderá acarretar-lhe a obrigação de responder pelos danos, desde que estabeleça o nexo de causalidade entre o agir ou o omitir e os prejuízos sofridos pelo consumidor de alimentos. Há a necessidade de demonstrar que o Estado não agiu ou agiu mal no desempenho de suas responsabilidades no campo da segurança alimentar. 3.Conclusão A saúde, ausência de doença e bem estar físico e psíquico assegurado por políticas públicas efetivas, é objeto de proteção pelo Código de Defesa do Consumidor e pela atuação da Vigilância Sanitária. A Vigilância Sanitária, um serviço público específico, descentralizado, organizado sob a forma autárquica, na modalidade especial, denominada agência reguladora, goza da competência ampla e geral de cuidar, entre outros, de temas caros à saúde da população como a segurança alimentar. Neste campo – o da segurança alimentar – deve ser realçado os princípios da precaução e da prevenção como instrumentos específicos do atuar da vigilância Sanitário e como importantes meios de prevenção da ocorrência de danos à saúde das pessoas, que necessitam de melhor compreensão pelo Poder Judiciário a fim de evitar-se a imagem de arbitrariedade que possa aparentar a atividade desempenhada pela Vigilância Sanitária. A atividade desempenhada pela Vigilância Sanitária no campo da segurança alimentar é apenas um exemplo dos muitos que poderiam ser dados que demonstra a importância da atividade realizada pela Vigilância Sanitária e a conexão que existe entre ela e a proteção do consumidor a partir do denominador comum que é a saúde e a segurança. Não é exagero afirmar que a proteção estatal à saúde do consumidor no campo da segurança alimentar repousa no rol de competências (poderes-deveres) atribuídos pela lei à Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Competências que, no campo da segurança alimentar, mal exercitadas podem acarretar sérios danos à saúde das pessoas e a conseqüente responsabilidade do Estado por tais danos. 39 Cf. BANDEIRA DE MELLO,Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Malheiros, 12ª edição, p. 811. Silvio Luís Ferreira da Rocha 37 Curso de Especialização a distância em Direito Sanitário para Membros do Ministério Público e da Magistratura Federal Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) Bibliografia ARANHA, Márcio Iorio e TOJAL, Sebastião Botto de Barros.Manual Conceitual do Curso de Especialização à distância em Direito Sanitário. AMARAL JÚNIOR. Alberto do. Proteção do consumidor no contrato de compra e venda.São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio.Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 12a. ed.,2000. BOURGOIGNIE,Thierry.Élements por une theorie du droit de la consommation. Bruxelas: Editora Story-Scientia, 1988. COSTA, Ediná Alves e ROZENFELF, Suely.Constituição da Vigilância Sanitária no Brasil. In Marcos históricos e conceituais, p.15-40; _______. Conceitos e área de abrangência. In Marcos históricos e conceituais, p.41-47. DALLARI, Sueli Gandolfi. Os Estados brasileiros e o direito à saúde.São Paulo: Editora Hucitec, 1995. DIAS, Helio Pereira. Direitos e Obrigações em Saúde. Starprint, 2002. FROTA, Mario.Segurança Alimentar – Imperativo de Cidadania. In: Revista de Direito do Consumidor, 44, p.68-96. GRINOVER, Ada Pellegrini...[et al.].Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. São Paulo: Editora Forense Universitária, 2000. MANIET, Françoise.La transposition de la directive 92/59/CE relative à la sécurité générale des produits dans lês Etats membres de l’Union européene. In: Revue Européenne de Droit de La Consommation, 1997:176-193. ROCHA, Silvio Luís Ferreira da.A responsabilidade pelo fato do produto no Código de Defesa do Consumidor. 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