ENTREVISTA Foto: Mário Bredariol AVALIAR... O quê? Quem? Como? Quando? Medir, quantificar, dar notas... Como se pensa hoje a avaliação do processo de ensino e aprendizagem? O professor pernambucano Janssen Felipe da Silva fala desse assunto na entrevista às professoras Leda Cavalcante e Veralúcia Lopes. instrumentos, que todos se pautem pelos critérios dos objetivos que foram definidos – e comunicados aos alunos e alunas. Essa decisão não mais será tomada para punir ou selecionar, mas sim para avaliar se o ensino está dialogando com as aprendizagens. É possível avaliar juntos o ensino e a aprendizagem? Como vem sendo vivida a avaliação no processo educativo? Qual o caminho para mudar o processo avaliativo? Tudo deve começar pela escola, que precisa estabeHoje predominam formas de avaliação que podem lecer objetivos e critérios em seu planejamento e em ser consideradas como um instrumento de exclusão. seu projeto político-pedagógico. É indispensável ter Há uma cultura de mensuração que classifica e exclareza a respeito do que se pretende avaliar, para clui o aluno, seleciona os melhores. O professor copoder realizar o que se pretende, e saber qual metomeça a excluir já no modo de organizar seu trabalho dologia adotar e quais recursos utilizar. Cada contex– ele se baseia em um tipo de ensino, para o qual to tem suas especificidades. E, ao se construir esse acredita que há um tipo de aprendizagem, instrumento de avaliação, ele tem de ser No livro Pedagogia da Autonoe o aluno que não consegue se aproximar coerente com a prática pedagógica do mia, Paulo Freire afirma que o comdesse modelo é classificado e excluído do professor e com o que foi ensinado. Não promisso político e pedagógico do processo. Enfim, é uma visão classificase pode ensinar de uma forma e avaliar ato de ensinar é garantir a aprenditória, punitiva e coercitiva, sendo um insde outra – é preciso haver coerência. E é zagem significativa do educando. trumento de controle da conduta comporaí que ocorre a grande mudança: os insAprendizagem que conduza à constamental e cognitiva do aluno. É preciso trumentos de avaliação são aplicados no trução de uma cidadania engajada com a constituição de uma sociedacriar uma cultura que de fato avalie. momento em que se ensina. O professor de ética, bonita, humanizada, que cria situações de aprendizagem e, ao supere toda forma de opressão, de Na prática, de que modo criar essa mesmo tempo, produz situações de avadesumanização. Para Freire, educar nova cultura? liação. Segundo Paulo Freire, ensinamos é um ato de comunhão de sujeitos se a aprendizagem tiver acontecido; se O professor que só apresenta um tipo de que constroem significados, que nonão aconteceu aprendizagem, não ocoraula e quer adequar todos os alunos pode meiam o mundo, recriando-o. reu o ensino. ser comparado com um alfaiate que faz só um tipo de roupa para todo mundo vesComo criar espaços de ensino e aprendizagem? tir. O professor deve compreender, primeiro, que a prática avaliativa não está dissociada do contexto do traPara cada tipo de conteúdo – conceitual, factual, probalho pedagógico. Não adianta querer mudar o sistecedimental e atitudinal – há formas específicas de ma avaliativo sem mudar também o trabalho pedagóensinar e, conseqüentemente, de avaliar. Os instrugico e as condições de trabalho do próprio professor. mentos de avaliação atendem à multiplicidade dos As pesquisas no campo de educação mostram que conteúdos e à multidimensionalidade do sujeito a avatodos aprendem, mas de forma e em ritmo diferentes. liar. O aluno deve ser avaliado não só nos aspectos Cabe a cada educador descobrir a forma e o ritmo de cognitivos, mas em sua plenitude, o que hoje costuaprender de cada aluno, para reconstruir sua prática ma se chamar a “integralidade do sujeito”. Mas é inpedagógica. dispensável que haja uma coerência interna nesses 40 TV E SCOLA “ Cabe ao educador descobrir a forma de aprender de cada aluno, e reconstruir sua própria prática pedagógica. ” reguladora. Quer dizer, se o aluno não aprendeu os conceitos, procedimentos e atitudes que constam no meu planejamento, então eu volto para regular meu trabalho, para pensar como vou atendê-lo. Minha preocupação é conscientizá-lo do que ele aprendeu e da maneira pela qual está aprendendo, para que ele se auto-avalie e se auto-regule. A avaliação somativa expressa minha atuação em um tempo pedagógico determinado, para que eu possa repensar minha prática e dar um parecer sobre o aluno; em outras palavras, a avaliação somativa avalia a qualidade da totalidade do objeto avaliado em um período pedagógico previsto. As avaliações diagnóstica, reguladora e somativa compõem uma perspectiva de avaliação formadora, que busca acompanhar o processo de ensino. Ao se avaliar a aprendizagem também está se avaliando o ensino, pois está se questionando a forma ensinada e sua adequação às várias aprendizagens encontradas em sala de aula, levando à avaliação da prática pedagógica. É o momento para o professor repensar sua prática e rever sua organização pedagógica, contextualizando-a. Quanto mais ele conhecer as formas pelas quais os alunos aprendem, melhor será sua intervenção pedagógica. Ou seja, avaliação é a mediação entre o ensi- Não perca, na OUTUBRO E quanto à auto-avaliação do professor? no do professor e as aprendizagens do alu- programação 3 Há reflexões fundamentais: O que vou avano, é o fio da comunicação entre formas de da TV Escola liar? O que é fundamental no que ensino? O ensinar e formas de aprender. É preciso conA série Avaliação e que é relevante cognitiva e socialmente no siderar que os alunos aprendem diferenteaprendizagem, mente porque têm histórias de vida diferen- produzida pela TV Escola, que estou ensinando? Alguns objetivos prévios certamente não serão atingidos, pois ducom a consultoria do tes, são sujeitos históricos, e isso condiciorante o processo de ensino vão emergindo professor Janssen na sua relação com o mundo e influencia novas questões – se o professor não estiver sua forma de aprender. Avaliar, então, é tamatento às dificuldades apresentadas pelos alunos, para bém buscar informações sobre o aluno (sua vida, sua ajustar seu trabalho, não atingirá as metas iniciais. Os comunidade, sua família, seus sonhos...), é conheobjetivos precisam ser flexibilizados durante o procescer o sujeito e seu jeito de aprender. so de ensino. Avaliação diagnóstica, reguladora, somativa... O que significa isso? Que instrumentos o professor pode utilizar? O professor não pode planejar pensando em um aluno ideal, mas sim no contexto real de sua sala de aula. Para conhecer o aluno real, se faz necessária uma avaliação diagnóstica, ou prognóstica, que dirá quem são esses indivíduos, qual é sua perspectiva histórica e cognitiva. No momento seguinte, o professor quer ver como o que ensinou contribuiu para modificar o aluno, não para dar nota, mas para verificar se atingiu os objetivos pretendidos – esta é a avaliação Um exemplo. Para trabalhar a construção de um texto, preciso ter ensinado o que é texto. E quando pedir para o aluno construir um texto, devo ter um instrumento para me orientar na análise do que ele escreveu. O instrumento pode ser uma ficha de checagem, individual ou coletiva. De modo geral, anotarei em uma coluna o que acho fundamental ser avaliado e, nas outras, os focos avaliativos: coerência, coesão, concordância nominal, verbal etc., com um espaço para re- TV E SCOLA 41 “ JANSSEN FELIPE DA SILVA lecionou Avaliação Educacional da Aprendizagem na Universidade Federal de Pernambuco e na pósgraduação da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (Facho). É professor do curso de magistério do Instituto Profissional Maria Auxiliadora, e também do ensino fundamental da rede municipal do Recife. Atua como consultor do MEC na rede de formadores do Programa Parâmetros em Ação, e coordenou a série de vídeos Avaliação e aprendizagem, da TV Escola. Avaliar não é apenas constatar, mas sobretudo analisar, interpretar, tomar decisões e reorganizar o ensino. gistrar se a produção do texto atingiu ou não o que foi pedido e qual a decisão a tomar em relação aos problemas que aparecerem. Avaliar não é apenas constatar, mas sobretudo analisar, interpretar, tomar decisões e reorganizar o ensino. ENTREVISTA Janssen Felipe da Silva Como dar atendimento individual, trabalhando com classes numerosas? ” tais para o professor repensar sua prática, questionar a concepção de ensino e aprendizagem e dos conteúdos que serão trabalhados. Ele não vai subtrair conteúdo, nem deixar de ensinar, imaginando que o aluno não vá entender. Precisará se aproximar do processo de aprendizagem dos alunos e deixar de lado o planejamento rígido, em busca de um planejamento flexível. Mas isso somente será possível com uma boa fundamentação teórica, pois educação não é improviso – é intencional, é planejada. O professor pode agrupar os alunos por nível de desenvolvimento cognitivo, ou por zona de desenvolvimento proximal. E depois propor desafios pedagógiComo é um planejamento flexível? cos aos grupos, de acordo com seus níveis de aprendizagem. Seguindo Piaget, o desafio tem de ser suÉ importante que a escola seja um espaço de aprenperável, pertinente ao nível de aprendizagem de dizagem não só para o aluno, mas fundamentalmenquem está aprendendo. te para o professor. Também é imprescindível que os Exemplificando com uma brincadeira, dizemos professores, em equipe, possam socializar suas forque existem três tipos de aluno: o primeiro que apermas de planejar e de avaliar e que questionem suas reia o professor, o segundo que aperreia o profesposturas pedagógicas. O professor precisa ter oporsor, e o terceiro que fica tentando fazer a tunidade de continuar sempre a aprender. tarefa. O primeiro termina a atividade em Para Piaget, o ensino Na formação continuada ele adquire conceinão deve ser um desafio muidois minutos, não era desafio para ele. O tos novos, e passa a questionar os que já to fácil, senão o aluno apesegundo olha a tarefa e não entende nada, tem. E com tudo isso descobre novos caminas repetirá o que já sabe; e não consegue nem interpretar o desafio. nhos para o planejamento. Mas também são não pode ser muito difícil, O terceiro é aquele que encontra um deimportantes sua sensibilidade pedagógica e pois o aluno não poderá lansafio e tenta superá-lo. O que faltou aos os conhecimentos que acumulou em sua exçar mão do que já sabe. dois primeiros? Atividades pertinentes a periência. A sala de aula é como um laboraseu nível de aprendizagem. É preciso que tório da prática pedagógica e da aprendizao professor atualize sua prática, a partir dos instrugem, um ambiente de investigação e um lugar de pesmentos avaliativos; ele tem de criar situações por quisa didática, de produção de saberes e desenvolvimeio das quais o aluno descubra alguma coisa. Só mento de competências. existe situação de aprendizagem quando o aluno é Os alunos e a família podem entender esse novo desafiado a descobrir, a utilizar o que sabe para consconceito? truir o que ainda não sabe. Esse desafio não é muito difícil para os professores? A formação continuada ajuda o professor a repensar sua prática. Ele precisa questionar o que é aprendizagem, o que é ensino e a função social do que está sendo ensinado. Esses três elementos são fundamen- 42 Os pais pedem notas, porque estão acostumados com a avaliação classificatória. Cabe à escola ajudá-los a entender o processo de avaliação, definindo seu projeto político-pedagógico. Um projeto político-pedagógico construído coletivamente, com significado, serve de referência para o planejamento dos professores. E esse projeto deve ser muito bem TV E SCOLA explicado aos pais, de preferência nos primeiros dias de aula. Naturalmente, a mudança não acontecerá do dia para a noite. Mas a insistência em promover reuniões nas quais os professores expliquem aos pais como ensinam, por que ensinam daquela forma e, conseqüentemente, por que avaliam de maneira diferente sustentará o diálogo entre escola e família. Que esse diálogo nunca seja para dizer que o aluno é ruim, mas para informar como ele está aprendendo. Como conduzir o diálogo com os pais e com os alunos? Há muitas maneiras, mas veja por exemplo o relato de uma professora de primeira série. Ao final de uma etapa de ensino, depois da aplicação de vários instrumentos avaliativos, ela enviou cartas aos pais de cada aluno, informando o que a criança aprendera, o que não conseguira aprender, e o que ela pretendia fazer. A carta não substituiu o boletim, mas ao acompanhá-lo deu significado a ele. É importante frisar que a nota diz pouco sobre a aprendizagem, apenas classifica o aluno numa escala de valor, numa hierarquia. A carta dessa professora foi um parecer diagnóstico, favorecendo a conscientização dos pais para o processo de mudança. Como corrigir os erros dos alunos? Quando o aluno erra dentro de uma lógica, ele erra tentando superar um desafio. O professor precisa estar atento para compreender como o estudante está construindo seu conhecimento, suas hipóteses, suas competências. Quando o educador faz do erro fonte de castigo, o aluno deixa de criar hipóteses, de se arriscar, com medo de ser punido – isso favorece a formação de pessoas omissas, nãocríticas, não-criativas. Estimular o aluno a continuar tentando e superar suas dificuldades favorece seu crescimento como aprendiz e como pessoa, fazendo com que ele se sinta mais seguro e confi- TV E SCOLA ante; desenvolve sua capacidade crítica, estimulando-o a ser autônomo. De que outras maneiras a avaliação pode ajudar no processo de aprendizagem? Criando situações para que os alunos questionem, ao procurar agrupá-los por zonas de desenvolvimento proximal e apresentar desafios que sejam pertinentes. Também podemos agrupar alunos que já dominaram determinado conhecimento com aqueles que ainda não dominaram, os que sabem ajudarão os outros a questionar, os próprios colegas criarão desafios. A avaliação é o mapeamento da aprendizagem do aluno e do ensino e nesse momento o professor pode fazer uma reflexão consistente da prática pedagógica e reconstruí-la, criando desafios que conduzam o aluno a superar seus estágios cognitivos. Como a escola deve refletir sobre a reprovação? Ainda hoje colocamos a responsabilidade total nas costas do aluno. Quando a escola se centra no ensino uniforme, acreditando que existe um aluno ideal e uma única forma de aprender, quem não se aproxima dessa uniformidade é punido, fica com o estigma de fracassado e, conseqüentemente, é excluído da escola e da sociedade. Ao excluir o aluno em situação de aprendizagem estamos promovendo sua exclusão de uma vida digna, da possibilidade de se construir como cidadão. Precisamos criar uma nova cultura educativa, que construa uma nova cultura avaliativa e um novo sentido para o sistema de ensino. As entrevistadoras Leda Cavalcante é licenciada em Biologia e Veralúcia Lopes, em Letras. Além do magistério, ambas têm atuado como consultoras na Secretaria de Educação de Pernambuco e em pesquisas do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep/MEC) e do Fundescola. 43