IRRETROATIVIDADE TRIBUTÁRIA COMO MECANISMO DE
ESTABILIZAÇÃO DAS RELAÇÕES JURÍDICAS
FABIANA DEL PADRE TOMÉ
Mestre e Doutora em Direito Tributário pela PUC/SP. Professora nos Cursos de
Graduação, Especialização e Mestrado da PUC/SP. Professora nos Cursos de
Especialização em Direito Tributário da PUC/SP e do IBET. Advogada. Autora de “A
Prova no Direito Tributário” pela Editora Noeses e “Contribuições para a Seguridade
Social à luz da Constituição Federal” pela Editora Juruá.
No interior do sistema, toda forma é delimitada por outra: o passado,
pelo presente; o presente, pelo futuro. (...) A sucessão não tem caráter
temporal em si, mas a referência à estrutura já conhecida passadopresente-futuro permite a integração no paradigma temporal. (JEANCLAUDE COQUET, A busca do sentido)
Tomamos como ponto de partida o posicionamento segundo o qual, para
movimentar-se em direção à maior proximidade das condutas intersubjetivas, as normas
jurídicas precisam passar pelo chamado “processo de positivação”. O fenômeno da
percussão jurídica demanda a existência de um fato que, subsumindo-se à hipótese
normativa tributária, implique o surgimento de vínculo obrigacional. É a fenomenologia da
incidência. Referida operação, todavia, não se realiza sozinha: é preciso que um ser
humano promova a subsunção e a implicação que o preceito da norma geral e abstrata
determina. Na qualidade de operações lógicas, subsunção e implicação demandam a
presença humana. Daí a visão antropocêntrica, requerendo o homem como elemento
intercalar, construindo, a partir de normas gerais e abstratas, outras normas, gerais ou
individuais, abstratas ou concretas.
Essa movimentação das estruturas do direito exige a certificação da
ocorrência do fato conotativamente previsto na hipótese da norma que se pretende aplicar.
Mas, para que o relato ingresse no universo do direito, constituindo fato jurídico, é preciso
que seja enunciado em linguagem competente.
Trata-se de mecanismo que objetiva conferir segurança aos integrantes do
sistema jurídico. Um fato qualquer, de ordem social ou econômica, por exemplo, só
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passará a integrar o ordenamento se constituído em linguagem apropriada, ou seja, se
juridicizado, sendo relatado pela linguagem do direito positivo. Nesse caso, porém, não há
mais que falar em fato social ou econômico: uma vez integrado ao sistema do direito
positivo, ter-se-á “fato jurídico”, desencadeando as consequências ali prescritas.
Anotações dessa natureza evidenciam a circunstância de que, sem norma,
um fato qualquer não adquire qualificação de fato jurídico. É o sistema normativo que
decide quais fatos são jurídicos e quais não são apreendidos pela juridicidade, ou, como
refere LOURIVAL VILANOVA (Causalidade e relação no direito), os fatos que trazem
consequências jurídicas e os fatos que são juridicamente irrelevantes. Advém, então, a
necessidade de lei que disciplinadora das condutas intersubjetivas seja anterior ao fato e à
relação jurídica dele decorrente.
“Impossível conhecer o tempo sem julgá-lo”, já dizia BACHELARD (Le
Rationalisme appliqué). Assim fez o constituinte brasileiro: tomou a estabilidade das
relações jurídicas no tempo como algo a ser prestigiado. A segurança jurídica afigura-se
como sobreprincípio que se realiza, dentre outros preceitos, mediante a irretroatividade da
lei. E essa medida vem assegurada, de forma geral, no art. 5º, XXVI, “a”, da Constituição
da República, estipulando-se que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico
perfeito e a coisa julgada”. Na esfera tributária, o assunto ainda ganha contornos
específicos, mediante o preceito constitucional que veda à União, aos Estados, ao Distrito
Federal e aos Municípios cobrar tributos “em relação a fatos geradores ocorridos antes do
início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado” (art. 150, III, “a”).
À evidência, não pode o legislador fixar o início da vigência da lei em data
anterior à de sua publicação, pois com isso estar-se-ia violando o primado da segurança
jurídica. Tal atitude é ainda mais absurda quando nos lembramos de que “o direito se
realiza no contexto de um grandioso processo comunicacional” (PAULO
DE
BARROS
CARVALHO, Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência), impondo a
necessidade premente de conhecimento das normas jurídicas pelas pessoas a que se
dirigem, sendo o momento dessa ciência o marco preciso do instante em que a norma
ingressa no ordenamento do direito posto.
Efetuadas essas breves considerações, entendemos que o princípio da
irretroatividade tributária é aplicável a todas as normas jurídicas tributárias. Nem se alegue
eventual permissão de tal retroatividade, em função do veiculado no art. 144, § 1o, do
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Código Tributário Nacional. Esse dispositivo prescreve: “Aplica-se ao lançamento a
legislação que, posteriormente à ocorrência do fato gerador da obrigação, tenha instituído novos
critérios de apuração ou processos de fiscalização, ampliado os poderes de investigação das
autoridades administrativas, ou outorgado ao crédito maiores garantias ou privilégios, exceto, neste
último caso, párea o efeito de atribuir responsabilidade tributária a terceiros”. Tal enunciado
refere-se à imediata aplicação da norma de caráter processual ou procedimental. Não se
pode estender seu conteúdo, porém, de modo que venha a acarretar alterações nas relações
jurídicas passadas.
Examinando o que chama de “concepção espacializante do tempo jurídico”,
consequência do impacto de eventual sucessão de normas jurídicas em relação a um fato,
WILSON DE SOUZA CAMPOS BATALHA (Direito intertemporal) discorre: “O tempo jurídico
corta, opera dividindo, secando. Não é fluxo contínuo, não constitui um desenrolar-se, um
evolver, um transformar-se. Opera por cortes e saltos numa realidade que insta, dura e se
transforma paulatinamente. O tempo jurídico, na fixação dos termos e dos prazos fatais,
peremptórios, improrrogáveis ou prorrogáveis, corta a realidade que dura, distinguindo a
legalidade de ontem da legalidade de hoje, separando a validade do que se fez ontem e a
invalidade do que se fez hoje, o útil de hoje e o útil de amanhã, a perda e a aquisição, o
castigo dos que dormiram até o dia ‘x’ e o prêmio dos que permaneceram em ativa
vigilância até a data ‘y’. Mas como esses cortes numa realidade que dura, essas divisões
numa vida social que flui e insta constituíram flagrante injustiça, ou constituíram justiça a
gerar inseguranças, surgiu, no seio do conceito jurídico do tempo, a ideia da
intertemporalidade”. Por isso, tratar de direito intertemporal, o aplicador do direito há de
buscar trilhar caminho que concilie a evolução legislativa com o conceito da estabilidade
das relações humanas.
Posto isso, e tendo em vista que o próprio sistema do direito estabelece
quais fatos são jurídicos e quais não são apreendidos pela juridicidade, quer dizer, os fatos
que desencadeiam consequências de direito e os que são juridicamente irrelevantes, é
inadmissível pretender-se aplicar, com efeitos retroativos, norma que altera o modo pelo
qual os fatos são considerados no ordenamento.
Fonte: Jus Econômico-10/04/2015.
http://www.juseconomico.com.br/artigos/irretroatividade-tributaria-como-mecanismo-deestabilizacao-das-relacoes-juridicas
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