Livre adaptação do conto "Pai contra mãe", de Machado de Assis, entremeado com pequenas crônicas de Nireu Cavalcanti sobre a escravidão, extraídas dos autos do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. QUANTO VALE OU É POR QUILO?, filme do diretor Sérgio Bianchi, revela as mazelas e contradições de um país em permanente crise de valores. Com essas linhas, Bianchi costura dois recortes temporais: " Século XVIII - Comércio de escravos em expansão; o senhor branco dita as leis; a Casa Grande e a Senzala. Tempos atuais - Exclusão social; época de um novo tipo de mercado composto por organizações nãogovernamentais e associações beneficentes. As ONGs, como são chamadas, tentam preencher a ausência do Estado no âmbito social e, algumas, se locupletam com o dinheiro público; elevada taxa de criminalidade urbana. O filme faz, pois, uma contundente analogia entre o antigo comércio de escravos e a exploração da miséria pelo marketing social: a solidariedade de fachada. O que vale é o lucro, não importando se esse é obtido com a venda de um escravo ou através de projetos sociais com orçamento superfaturados. O filme desenha um painel de duas épocas aparentemente distintas, mas, no fundo, semelhantes na manutenção de um perverso contexto social-econômico, embalado pela corrupção impune, pela violência e pela injustiça social. . O filme começa com a história de uma escrava que conseguiu comprar sua liberdade, no final do século 18. Trabalhando e poupando, ela conseguiu ter uma pequena propriedade e alguns escravos. Mas, eis que aparecem alguns capitães-do-mato em seu rancho. São caçadores de escravos fugitivos. Eles prendem um de seus cativos. Ela protesta, mas não adianta. Seguindo os caçadores, ela vê que eles entregam o negro na casa de um senhor branco. A negra bate à porta do senhor branco. Mostra os papéis que provam ser ela a proprietária do escravo. O senhor branco fecha a porta na cara dela. Revoltada, ela grita: "lugar de ladrão é na cadeia". Resultado: é processada e condenada por perturbação da ordem pública. Trata-se de um caso verdadeiro. Esta cena mostra que ser proprietário no Brasil não basta. É preciso ser branco também. Mesmo hoje, ter um automóvel novo e ser negro é motivo suficiente para ser vítima de batidas policiais ou coisa pior. Mas o caso revela outra coisa, também. É o mecanismo de repasse da dominação. A negra liberta também tem seus escravos. É natural, diz o narrador do filme. É assim que funcionava o sistema na época. Só que esse mecanismo continua a funcionar, diz o filme. Ao longo do filme, eles se repetirão, com os devidos registros e datas. No conto "Pai contra Mãe", de Machado de Assis, uma escrava grávida fugitiva é capturada pelo capitão do mato Candinho, que recebe uma recompensa que o possibilita criar seu filho com “dignidade e liberdade”. Nos dias atuais, quando uma ONG implanta o projeto de informática em uma comunidade carente da periferia. Arminda, que trabalha no projeto, descobre que os computadores comprados foram superfaturados e, por isso, precisa ser eliminada. Candinho, um jovem desempregado cuja esposa está grávida, torna-se matador de aluguel para conseguir dinheiro para sobreviver.. Apesar disso, a tia do matador explica que serviços como o que ele faz conta com gente muito mais profissional e treinada. Enquanto ela fala, aparece a cena mais corajosa do filme. Um camburão invade o calçadão da Praça da Sé no meio da madrugada. Os policiais arrancam crianças-de-rua de seu sono, ao pé de uma árvore. Jogam-nas dentro do compartimento dos presos. Tudo indica que o destino delas será o extermínio. Outra, nos dias atuais, quando uma ONG implanta o projeto de informática em uma comunidade carente da periferia. Arminda, que trabalha no projeto, descobre que os computadores comprados foram superfaturados e, por isso, precisa ser eliminada. Candinho, um jovem desempregado cuja esposa está grávida, torna-se matador de aluguel para conseguir dinheiro para sobreviver.. Uma cena nos tempos de hoje. Uma Kombi chega na madrugada para ajudar mendigos. Distribuir cobertas, sopa e café. Logo em seguida, um outro grupo chega em outra perua. É expulso pela líder do primeiro veículo. Ela quase diz "esses mendigos são meus. Caiam fora". . Voltando ao passado escravista, o filme conta a história de uma escrava idosa que tenta juntar o dinheiro suficiente para se libertar. Conhece uma senhora branca que não é rica, mas é esperta. Paga a liberdade da velha escrava em troca do trabalho dela por mais um ano, pago com juros. O investimento dá resultado. A velhinha acaba tendo que trabalhar por mais 3 anos antes de se ver livre de sua "benfeitora". O paralelo é claro. Tanto no tempo da escravidão, como na época atual, há um espaço para fazer jogadas. Num caso, são os brancos pobres explorando negros cativos. No outro, são empreendedores espertos da solidariedade transformando a miséria em fonte de riqueza. De um lado, continuam sendo quase todos brancos. De outro, quase todos são negros. Continuam os casos registrados. Na época do império, um negro é alugado para fazer a contabilidade de uma empresa. Acusado de roubo, foge. É preso e violentamente espancado. Seu proprietário processa o dono da empresa que o alugou. Prova que o escravo não roubara nada. Exige indenização, dizendo que seu patrimônio foi danificado. Ganha a causa e recupera com lucros o investimento perdido na recuperação do escravo. É desse jeito que nasceu o capitalismo. Seres humanos eram mercadorias. Depois no capitalismo maduro, tornaram-se menos do que isso. Apenas objetos de exploração. Mas hoje, também há os que nem isso são mais. São os desempregados, mendigos, presidiários, crianças abandonadas. Seguindo a linha de "Cronicamente Inviável" (2000), Sérgio Bianchi desenvolve em "Quanto vale ou é por quilo?" uma crítica ácida e contundente, que traz à tona elementos cruciais da sociedade brasileira, revelando princípios e contradições implícitos nas mais diversas práticas cotidianas. Desta vez o grande alvo são as organizações do “terceiro setor”. Esse tema é abordado na obra através da atuação da Stiner Empreendimentos Assistenciais, dirigida por Marco Aurélio (Hérson Capri) e Ricardo Pedrosa (Caco Ciocler). Trata-se de uma empresa especializada em investimentos sociais que, entre outros, desenvolve um projeto de “Inclusão Digital” em regiões periféricas. No decorrer da trama fica evidente que concorrência na captação de recursos impõe às organizações assistenciais uma prática cada vez mais pragmática que, longe de se contrapor, reforça os princípios excludentes do mercado. No cenário construído por Bianchi, o desdobramento da atuação da Stiner é a formação de um esquema de superfaturamento na compra de computadores que atenderiam determinada comunidade carente. Neste momento, destaca-se Arminda, que decide denunciar os desvios de verbas públicas da empresa. . O que parece ser uma alternativa a tudo isso surge com o personagem do presidiário negro. Numa cela superlotada ele olha para a câmera e explica "Quando éramos escravos, éramos máquinas. Investimentos de capital. Tínhamos que ser mantidos alimentados e saudáveis. Agora, somos escravos sem senhor". E conclui: "Na democracia, só existe liberdade para quem pode consumir". Esse mesmo personagem foge da cadeia. Pagou para isso e, agora, quer recuperar o investimento. Seqüestra um dos sócios de uma ONG. Consegue receber o resgate, depois de enviar uma orelha e outros pedaços do refém à sua esposa. Chama a isso de redistribuição de renda. FINAL DO FILME Enquanto isso, a negra Arminda descobre o superfaturamento na compra dos computadores feita por uma ONG para sua comunidade. Consegue provas da maracutaia. Exige que a entidade use o dinheiro que desviou para comprar computadores decentes. Sem conseguir ser atendida, ela invade uma festa da entidade e grita: "Lugar de ladrão é na cadeia". Diante disso, os pilantras e seus amigos políticos decidem resolver o problema. O matador-de-aluguel é convocado. Vai atrás de Arminda, tal como o capitão-do-mato fizera com a escrava fugida. Arminda morre com um tiro. O filme acaba. A sensação é de que não há saída. Mas, há um final alternativo. Depois de iniciados os letreiros finais, a cena se repete. Dessa vez, Arminda convence o matador a poupar sua vida. Propõe formar um grupo para seqüestrar todos "os filhos da puta que roubam dinheiro do Estado". Agora sim, o filme acaba . O problema é que o final alternativo também não aponta soluções. Claro que a vontade é concordar com Arminda e sair fazendo justiça com as próprias mãos. Mas, justiça será feita mesmo é coletivamente. A partir da organização dos de baixo para exigir políticas públicas reais. ONGs desonestas e entidades "pilantrópicas" devem ser condenadas. Elas seqüestram o dinheiro público usando os pobres como reféns. Mas, seqüestrar os seqüestradores não resolve. Eles só existem porque se beneficiam do esquema maior do poder. Da terrível distribuição de renda e da secular dominação racista. REFLEXÕES FINAIS A análise de "Quanto vale ou é por quilo?" pode parecer, à primeira vista, algo em grande medida desnecessário, já que se trata de um filme bastante direto e claro com relação aos seus propósitos. Porém, a partir da crítica ferrenha apresentada pelo roteiro do filme, pode-se abstrair elementos subjacentes ao “terceiro setor”, que vão muito além dos elementos explicitados na trama. Apesar de não fazer referência a esta problemática, o filme possibilita o questionamento do próprio termo “terceiro setor”. Como identificar como um setor à parte um conjunto de organizações que não tem autonomia alguma em relação ao mercado e ao Estado, pois funcionam dentro dos limites do primeiro e dependem essencialmente de financiamentos do segundo? Além disso, a crítica aos projetos sociais desenvolvidos por ONGs e empresas socialmente responsáveis pode ir muito além da afirmação da possibilidade de existência de corrupção no seu interior. A eficácia quase nula de um projeto de “inclusão digital” em favelas sem condições básicas de infra-estrutura revela limites cruciais das organizações do “terceiro setor”. Ações focalizadas, direcionadas a “clientelas” específicas, possuem efeito bastante restrito em uma sociedade de desigualdades tão profundas como a nossa. Constituem tambem fatores de grande funcionalidade a falta de responsabilidade do Estado frente à questão social, em tempos de ascensão do neoliberalismo. Gradativamente, a noção de indivíduo portador de direitos universais dá lugar à idéia de cliente receptor/consumidor de serviços sociais, plenamente de acordo com os moldes e imperativos do mercado. Nesse sentido, a analogia, estabelecida por Bianchi, com o período da escravidão tem o objetivo de mostrar que valores como dignidade, solidariedade e justiça social podem variar e ser facilmente apropriados em função do lucro. Por isso, pode-se dizer que, apesar do risco de cair em anacronismos ao comparar épocas tão distintas, a proposta de Bianchi tem a positividade de estimular e instigar a reflexão acerca de um fenômeno tratado comumente de forma exaltativa e acrítica em nossa sociedade, como é o caso do “terceiro setor”. Bianchi busca, através de situações extremas, chocar e constranger o expectador, mostrando contextos em que a solidariedade vira moeda de troca, esvaziando-se e se transformando em engrenagem de reprodução dos interesses dominantes. . O longa enfoca um tema extremamente polêmico, a falência das instituições no Brasil, mostrando uma solidariedade de fachada que visa o lucro, seja ele social, político ou econômico. Uma “indústria da miséria” extremamente útil, desde ontem, com a comercialização dos escravos e hoje, com a criação dos intitulados projetos de assistência social. O filme de Bianchi se coloca na contra-corrente de um ascendente “pensamento altruísta”, que tem na ideologia do voluntariado a solução para todos os males da humanidade e na “responsabilidade social” das empresas o selo da mercantilização da compaixão. Nele, a forte identidade nacional é dissecada pela hipocrisia e cinismo nas histórias da vida cotidiana do Brasil de hoje e de duzentos anos atrás. Mas também sobram ataques aos governos. Há, por exemplo, uma propaganda governamental que conta as maravilhas envolvidas com a criação de empregos através da construção de presídios. Um outro comercial cita o dinamismo da ação solidária. Um entusiasmado locutor diz que cada criança desamparada gera 5 empregos. A lógica é óbvia. Multiplicar o número de criminosos e crianças pobres para criar empregos! Mas tudo isso tem uma galinha dos ovos de ouro. É o acesso aos fundos públicos. Seminários e cursos ensinam como agarrar essa galinha sem ficar só com as penas nas mãos. O caminho passa por conhecer a pessoa certa na hora certa e no lugar adequado. A taxa de acesso varia entre 15% e 20%, claro. Uma conta muito didática é exposta. Diz o filme que são cerca de 10 mil crianças de rua no Brasil. As verbas públicas reservadas para dar conta do problema seriam de, mais ou menos, 1 milhão de reais. Este milhão dividido pelas 10 mil crianças seria suficiente para lhes pagar escola particular do primário até a faculdade, por exemplo. Mas esse dinheiro precisa passar por ONGs, entidades assistenciais e empresas "solidárias". Tal como no caso da senhora escrava e da branca esperta a liberdade tem intermediários prontos a lucrar com isso. Talvez o diretor peque por uma posição excessivamente pessimista, mas, presta um serviço inestimável ao apontar o dedo em direção aos mais “respeitáveis” e veneráveis senhores e senhoras de nossa sociedade que “ajudam” tantos com seus míseros milhões, sem esquecer é claro que qualquer “caridade” pode ser abatida do seu imposto de renda. Sem dúvida “Quanto vale ou é por quilo?” desassossega e incomoda, pois expõe uma indústria de caridade, uma disputa por migalhas e a escravidão que ainda existe no Brasil.