PRÁTICAS DE LETRAMENTO NO CURRÍCULO ESCOLAR DO ENSINO
MÉDIO
Vanessa Souza da Silva1
Co-autoras: Leandra J. Rocha2 e Mônica Teixeira3
EMENTA
PARTE I: LETRAMENTO NA ESCOLA
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Apresentação de dados estatísticos sobre o ensino da língua materna no Brasil
Um conceito do letramento
Leitura de mundo e leitura da palavra
A linguagem numa perspectiva freireana
PARTE II: PRÁTICAS DE LETRAMENTO
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Atividades práticas de leitura que favorecem o letramento na escola
Trabalhando os gêneros textuais na sala de aula
A leitura crítica da palavra em oposição ao ensino tecnicista da língua materna.
PARTE III: A ORALIDADE NO LETRAMENTO
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A influência da oralidade na escrita
A oralidade e a construção da escrita
Refacção da produção de textos dos alunos: uma oportunidade de crescimento
A leitura crítica da palavra em oposição ao ensino tecnicista da língua materna.
OBJETIVO
Como educadores que somos não é possível fecharmos os olhos diante da questão da
linguagem como “caminho de invenção da cidadania” (FREIRE, 1992, p.41). Se o homem se
constitui via linguagem, não há dúvidas de que a escola é, também, responsável por essa
constituição. Por outro lado, se a escrita é uma das principais chaves para a aquisição do
1
. Licenciatura Curso Letras - UFJF e Especialização em Linguagem, Imagens e Representações entre a Língua e a Literatura – USS
(Vassouras) Professora da Rede Pública do Ensino Fundamental e Médio e Professora da Rede Privada de Pré- vestibular./ E-mail:
[email protected]
2
Licenciatura Pedagogia- UFJF e Especialização em Docência do Ensino Superior- FAA. Professora da
SEE/RJ.Tutora Coordenadora do CEDERJ/ E-mail: [email protected]
3
Licenciatura Pedagogia- UFJF e Especialização em Arte Educação Infantil-UFJF. Professora da Educação Infantil
da Rede Privada..Tutora Coordenadora do CEDERJ/ E-mail: [email protected]
2
conhecimento, ensinar a ler e a escrever de modo a atender os usos sociais que o mundo letrado
requer significa promover a inserção social. Então, quando a escola promove o letramento, ela
está, na verdade, promovendo a inclusão social e dando ao aluno condição para o pleno exercício
da sua cidadania. O letramento se torna, nesse contexto, uma “questão de vida” (BOZZA,
2005,p.249).
Para tanto, o currículo escolar deve oferecer um espaço para que as práticas de letramento
se operacionalizem. O papel transformador da escola amplia-se cada vez mais nessa era marcada
pela competição em que progressos científicos e avanços tecnológicos definem novas exigências
para os jovens que ingressarão no mercado de trabalho. Tal realidade exige uma revisão dos
currículos escolares e da função da escola no que diz respeito à formação de um ser pleno,
permitindo aos jovens ter acesso ao conjunto de conhecimentos socialmente elaborados e
reconhecidos como necessários ao exercício da cidadania. Para ser satisfatória em sua missão, a
escola deve manter a aprendizagem, a permanência e o sucesso escolar, o que só é possível
através do uso legítimo da palavra, em suma, via letramento. Por isso, pretendo compreender
junto com os professores da língua materna do Ensino Médio como efetivar práticas de
letramento no ambiente escolar, valorizando-as como requisito para o exercício da
cidadania.
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PARTE I: LETRAMENTO NA ESCOLA
Apresentação de dados estatísticos sobre o ensino da língua materna no Brasil
Apesar de a presença do ser-leitor ressoar em nossa trajetória ontológica, como diz Zaccur
(2001, p.34), pesquisas da UNESCO4, Nova Escola5, SAEB6e outros órgãos afins retratam que
nossos alunos continuam com deficiências na aquisição de conhecimento da língua materna. De
acordo com dados do último exame do PISA (Programme for International Student Assesment),
exame realizado pela UNESCO em parceria com a OCDE, o Brasil amargou o 37º lugar entre 41
países, evidenciando que nossa nação precisa reverter esse quadro.
4
Ver estatístas da UNESCO pelo site http://www.uis.unesco.org/
O programa Nova Escola – Avaliação do Desempenho Escolar – aplica uma avaliação anualmente nas escolas públicas do Estado do
Rio de Janeiro para averiguar o desempenho dos alunos em Língua Portuguesa e Matemática.
6
Conferir o Relatório SAEB, in http://inesp.gov.br/basica/saeb.
5
3
Fonte: RIBEIRO, Vera M. (org) Letramento no Brasil, reflexões a partir do INAF 2001. São Paulo:
Global,
2004.
Um conceito do letramento
O letramento é uma palavra que entrou há pouco tempo em nossa língua. Inclusive o
dicionário Aurélio não registra essa palavra. Se voltarmos há mais de um século atrás,
encontraremos essa palavra num dicionário de Caldas Aulete intitulado Dicionário
Contemporâneo da Língua Portuguesa, porém com um sentido diferente do que costumamos
usar na atualidade, remetendo ao verbo “letrar” com o sentido de “investigar”, apesar de não se
restringir a isso.
Mesmo sabendo que esse tema se configura sempre num desafio, SOARES (2002, p.18)
define o letramento como resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever, ou seja, “o
estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como conseqüência de ter-se
apropriado da escrita”. Além disso, convém destacar que o letramento focaliza os aspectos
sócio-históricos da aquisição da escrita, devendo ser considerado como um “continuum”
(TFOUNI, 2005).
Entretanto, o letramento se distingue da alfabetização, pois pressupõe que o indivíduo
saiba responder às exigências de leitura e de escrita que a sociedade faz continuamente, ou seja,
4
para uma prática social, não se restringindo à aquisição da língua. 7 Todavia, o indivíduo pode ser
alfabetizado, saber ler e escrever, mas não exercer práticas de leitura, não sendo capaz de
interpretar um texto:
um indivíduo alfabetizado não é necessariamente um indivíduo letrado; alfabetizado é
aquele indivíduo que sabe ler e escrever ; já o indivíduo letrado, o indivíduo que vive
em estado de letramento, é não só aquele que sabe ler e escrever, mas aquele que usa
socialmente a leitura e a escrita, pratica a leitura e a escrita, responde adequadamente às
demandas sociais de leitura e de escrita. (SOARES, 2002, p.40)
Isso nos faz refletir até que ponto a prática docente dos nossos professores tem
contribuído para o exercício da cidadania dos nossos alunos e até que ponto a leitura oferecida
pela escola faz parte do mundo deles, para que a teoria, da palavra, saia do papel e sirva como
instrumento de luta para a assunção plena da cidadania. O que se nota é que muitas pessoas se
alfabetizam, conseguem ler e escrever, mas não são necessariamente capazes de incorporar a
prática da leitura e da escrita para envolver-se com as práticas sociais de escrita:
não lêem livros, jornais, revistas, não sabem redigir um ofício, um requerimento, uma
declaração, não preenchem um formulário, sentem dificuldade para escrever um
simples telegrama, uma carta, não conseguem encontrar informações num catálogo
telefônico, num contato de trabalho, numa conta de luz, numa bula de remédio.”(op. cit.
p.46)
Ao ver que muitos dos nossos alunos fazem parte desses dados e, ao ouvir comentários
como: “O aluno tal não escreve direito, o fulano nada lê, aquela menina nem sabe falar sua
opinião acerca de um texto”, isso nos frustra, pois também é nossa função ser agente de mudança
dessa situação. É função da escola munir o aluno das ferramentas da leitura para que ele,
enquanto cidadão, esteja preparado para o exercício de sua cidadania.
Leitura de mundo e leitura da palavra
Se os índices e estatísticas acusam a dificuldade dos alunos no que diz respeito à palavra,
é sinal que a dicotomia presente no mundo da leitura prevalece e Freire nos indica um caminho
quando afirma que
Ao ler palavras, a escola se torna um lugar especial que nos ensina a ler apenas
as “palavras da escola” e não as “palavras da realidade”. O outro mundo, o dos
7
Para TFOUNI, o discurso letrado, por ser social e historicamente constituído, pode estar também acessível àqueles que não dominam o
código escrito. Ela toma como critério para o exame do letramento enquanto processo sócio-histórico a questão da AUTORIA, na qual o
indivíduo deve ser sujeito do seu próprio discurso, citando o exemplo de uma mulher não alfabetizada que constrói histórias orais com
coerência discursiva (op.cit.:47-63).
5
fatos, o mundo da vida, o mundo no qual os eventos estão muito vivos, o mundo
das lutas, o mundo da discriminação e da crise econômica (todas essas coisas
estão aí) não tem contato algum com os alunos na escola através das palavras que
a escola exige que eles leiam. (FREIRE in ZACCUR, 2001, p. 22)
Assim, é notório que a escola está aumentando a distância entre as palavras que lemos e o
mundo em que vivemos. Se o ato de estudar implica sempre o de ler, mesmo que neste não se
esgote (FREIRE, 1993, p.29), escola como sendo a mais importante agência de letramento deve
ser o lugar que considera a aquisição da escrita como uma prática discursiva que
na medida em que possibilita uma leitura crítica da realidade, se constitui como
um importante instrumento de resgate da cidadania e que reforça o engajamento
do cidadão nos movimentos sociais que lutam pela melhoria de qualidade de vida
e pela transformação social. (FREIRE, 1991 in KLEIMAN, op. cit, p. 48).
Não há dúvidas de que, na sociedade em que vivemos, urge a necessidade de que essa
dicotomia apontada por Freire deixe de existir e que o letramento seja um direito de todos.
Somente quando a leitura da palavra ensinada na escola fizer sentido para o aluno e encontrar
sentido em sua leitura de mundo teremos resultados mais favoráveis no diz respeito ao ensino da
língua materna no Brasil. Somente quando isso acontecer, teremos cidadãos mais aptos de usarem
a palavra como instrumento de transformação social rumo a uma sociedade que faça ouvir a voz
daquele que constrói a sua história e pouco espaço tem para gozar dos seus bens: o povo.
A linguagem numa perspectiva freireana
É de Paulo Freire a perspectiva da linguagem como “caminho de invenção da cidadania”
(FREIRE, 1992, p.41). É através da aquisição da linguagem, que o povo estará apto para lutar
contra a opressão daqueles que se julgam donos do saber, pois sua linguagem é sua arma, é seu
meio de comunicar-se e estar no mundo. Lemos a linguagem, nesse contexto, como a aquisição
do código escrito, pois permite ao homem a sua participação consciente nos eventos sociais da
sociedade letrada.
Ele constituiu uma filosofia de linguagem na qual a leitura e a escrita são consideradas
instrumentos fundamentais de cidadania e, posteriormente, inclusão social. Para ele, a leitura que
faz sentido nos empurra para a vida, nos leva para dentro do mundo que nos interessa viver.
Se ler é, para Freire, uma forma de estar no mundo, a linguagem da escola deve favorecer
essa viagem. Segundo o autor, desde que nascemos, já estamos aprendendo a ler o mundo em que
vivemos. Aprendemos a ler as nuvens do céu sinalizando chuva, o sorriso de um amigo que nos
6
oferece ajuda, o olhar de um conhecido que insinua algo, a casca das frutas que indicam se estão
maduras ou não. E a leitura da palavra não se torna exclusiva em si mesma, é outra forma de
leitura. Por ser mais complexa, exige o outro, pois ninguém aprende sozinho. Nesse contexto,
Freire(1998) ressalta a importância da alfabetização de adultos como um ato político e de
conhecimento e, conseqüentemente, um ato criador.
Assim, o analfabetismo significa a negação ao direito de uma plena cidadania e a
mutilação do sonho e da utopia de desse estar no mundo através da leitura. Para Freire, o
analfabetismo limita a capacidade de ler o mundo e realiza violências como:
A de castrar o corpo consciente e falante de mulheres e de homens, proibindo-os
de ler e de escrever, com o que se limitam na capacidade de, lendo mundo,
escrever sobre sua leitura de e, fazê-lo, repensar a própria leitura. Mesmo que
não zere as milenar e socialmente criadas relações entre linguagem, pensamento
e realidade, o analfabetismo as mutila e se constitui num obstáculo à assunção
plena da cidadania. E as mutila porque, nas culturas letradas, interdita
analfabetos e analfabetas de completar o ciclo das relações entre linguagem,
pensamento e realidade, ao fechar a porta, nestas relações, ao lado necessário da
linguagem escrita.(1993, p. 8)
Assim, a linguagem e sua aquisição tornam-se pilares de participação social e de luta por
um mundo mais justo e, conseqüentemente, mais inclusivo. Essa linguagem, na perspectiva
freireana prevalece não só como caminho de invenção da cidadania mas, também, como palco de
lutas e conquistas do povo. E sua aprendizagem requer uma visão dinâmica dos seus ensinantes,
desfazendo a dicotomia da leitura de mundo e da palavra, pois a leitura desta não encontra
sentido sem aquela, ao contrário nela se completa e fomenta mudanças de atitude nos seus
usuários, que a utilizarão como veículo de assunção da plena cidadania.
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PARTE II: PRÁTICAS DE LETRAMENTO
Atividades práticas de leitura que favorecem o letramento na escola
Testes de leitura como o PISA8 mostram que nossos alunos conseguem decifrar o texto e ter
uma idéia geral sobre o seu assunto, mas que, se passar disso, não apresentam êxito. Isso leva-nos
a refletir sobre o nível de letramento que é oferecido em nossas escolas . Nas turmas de Ensino
8
PISA – Sistema de testes e rendimento escolar organizado pelos países membros da Otganização para Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE).
7
Médio tais dados se tornam um nó ainda maior, pois pressupomos que os alunos sairão desse
nível de escolaridade capazes de corresponder às exigências que as práticas de leitura lhes
impõem. Isso sinaliza que urge a necessidade de práticas de leitura que desfaçam a dicotomia
apontada por Freire.
Sem dúvida, o espaço das aulas de Língua Portuguesa é considerado como o “lugar” das
práticas de letramento pela maioria dos educadores, mesmo que a este não se limite. E não há
dúvida que o ensino da língua materna deve apontar para uma reflexão sobre o uso da língua na
vida do aluno e na sociedade. Nesse contexto, as práticas devem visar a um saber lingüístico
amplo, onde a comunicação seja o pilar das ações, permitindo que o aluno a use como
“instrumento que o define como pessoa entre pessoas”, como determinam os Parâmetros
Curriculares do Ensino Médio.
Nessa perspectiva, as práticas de letramento estarão mergulhadas no emaranhado de relações
nas quais o aluno está inserido, fazendo parte do seu contexto social vivido e pressupondo uma
visão sobre o que é linguagem verbal. Partindo da premissa de que a unidade básica da linguagem
verbal é o texto, o aluno do Ensino Médio deve, por excelência, ser considerado um produtor de
textos:
Aquele que pode ser entendido pelos textos que produz e que o constituem como
ser humano. O texto só existe na sociedade e é produto de uma história social e
cultural, único em cada contexto (...) O homem visto como um texto que constrói
textos.(PCN : ensino médio, 2002, p.139)
Uma das atividades que contemplam esse perfil de trabalho com a linguagem,
favorecendo o letramento na escola é, sem dúvida, o trabalho com notícias de jornal em sala de
aula. Além de colocar o aluno com uma gama de informações sobre o contexto sócio-políticoeconômico da sua região, país e mundo, permite que ele desenvolva sua capacidade de interação
com o lido e conheça diversas formas de expressar o mesmo assunto, além de permitir que ele
consiga emitir juízos de valor sobre sua realidade com mais consistência.
Nossa experiência em sala de aula atuando com o Ensino Médio nos levou a concluir que
o educando tem um conhecimento superficial dos fatos que são veiculados pela mídia, e neste
recorte, pela imprensa escrita. Observamos que a superficialidade se restringe especificamente à
manchete. Quando determinado assunto que integra as primeiras páginas de um jornal de grande
circulação é trazido ao debate, percebemos que o educando não possui informações necessárias
8
capazes de possibilitar argumentações contra ou a favor sobre determinado assunto.É assim que
concordamos com a fala de KLEIMAN :
“A compreensão de um texto é um processo que se caracteriza pela utilização de
conhecimento prévio: o leitor utiliza na leitura o que já sabe, o conhecimento
adquirido ao longo de sua vida. É mediante a interação de diversos níveis de
conhecimento, como o conhecimento lingüístico, o textual, o conhecimento de
mundo, que o leitor consegue construir o sentido do texto.” (KLEIMAN, 1995,
p.13)
Diante de tal perspectiva o papel da escola é o de auxiliar este educando a se apropriar de
informações que o tornem capaz de um diálogo entre o texto e o mundo. Evidenciamos que tal
apropriação passa por um único viés que é a leitura.
O jornal em sala de aula não pode se restringir, por exemplo, à finalidade de recorte de
palavras oxítonas, paroxítonas ou proparoxítonas, mas se constituir numa ferramenta para a
compreensão da realidade local e global, um elemento integrador de propostas, opiniões,
reflexões, conclusões parciais, pois as verdades não são fechadas e imutáveis. Através da
utilização dos jornais em sala de aula podemos estabelecer uma ponte entre os conteúdos eleitos
na formulação do currículo da escola e a realidade dinâmica do educando. Esta ponte certamente
contribuirá para a formação de um educando mais crítico e conseqüentemente desejoso de
transformar a realidade social que hoje se caracteriza por ser uma sociedade de exclusão.
Todavia, este trabalho como qualquer outro a ser realizado pela escola não pode perder a
dimensão de articular saber e sabor. Ou seja, não podemos perder de vista que o prazer é o grande
passaporte para qualquer atividade da escolarização, não deixando a largo a questão da leitura e
da produção de textos, nos quais os assuntos debatidos a partir dos jornais podem e devem servir
como temas geradores.
Trabalhando os gêneros textuais na sala de aula
Se queremos que nossos alunos do Ensino Médio sejam leitores proficientes e autores de
variados tipos de textos, precisamos muni-los de instrumentos necessários para tal. O letramento
dos educandos que concluem a educação básica, pressupõe o domínio dos diversos gêneros do
discurso. Assim, o trabalho com esses gêneros na sala de aula é requisito para um consistente
ensino da língua materna. Com certeza os alunos que mostram pouca habilidade nos testes e
exames sobre o ensino da língua materna e letramento apresentam dificuldades em diferenciar os
gêneros e utilizá-los.
9
Na Grécia Antiga, se observarmos o campo da Literatura, o termo gênero literário foi
usado para fazer distinção entre três categorias de enunciado, a saber, o épico, o dramático e o
lírico. No século XX, o termo gênero tornou-se um conceito teórico de grande valia no campo da
Lingüística Textual, que faz referência a gêneros textuais. De acordo com a concepção dialógica
da linguagem, com base em Bakhtin, teremos o conceito gêneros do discurso, que tem como
premissa a noção de que todo enunciado tem em comum o fato de que remete a um sujeito, a uma
fonte enunciativa e que esse mesmo enunciado provém de um querer dizer orientado ao seu
enunciador, sendo regido por normas. Ele enriquece o tema quando afirma que
Ignorar a natureza do enunciado e as particularidades do gênero que assinalam a
variedade do discurso em qualquer área do estudo lingüístico leva ao formalismo
e à abstração, desvirtua a historicidade do estudo, enfraquece o vínculo existente
entre e a língua. (1997, p.282)
Nesse caminho, trabalhar os gêneros do discurso com os alunos é um imperativo se
queremos efetivar práticas de letramento em nossas salas de aula. Assim, a melhor direção é levar
os alunos à compreensão da variedade de enunciados como textos literários e não literários,
charges, filmes, cartazes, desenhos, músicas, etc., conduzindo, dessa forma, os alunos ao
estabelecimento de relações entre os diversos textos, inferências, deduções e reflexões.
Sabendo que cada gênero tem sua própria constituição e caracterização, o professor
conduzirá o aluno à reflexão sobre o tipo de texto que ele escreve, preocupando-se com o
objetivo do texto escrito, com o destinatário e qual o papel assumido pelo aluno ao escrever um
texto. Sob esse prisma, os gêneros do discurso são vistos como ferramenta para o trabalho de
produção de texto do aluno, que deve perceber que quando enunciamos, estamos lançando mão
de formas de discurso constitutivas de gêneros previamente existentes. Segundo BOTELHO
(2004), “eles fixam dado meio, o regime de funcionamento da língua. Trata-se de um estoque de
enunciados esperados protótipos de maneiras de dizer ou não de não dizer em um espaço sóciodiscursivo”.
Como resultado, aluno terá a capacidade de ler diferentes textos, de gêneros diversos
como contos, crônicas, romances, entrevistas, editoriais, reportagens, tirinhas, poemas, etc.,
interagindo com eles de forma prazerosa e crítica. Além disso, será capaz de ativar o seu
conhecimento textual e o seu conhecimento de mundo de forma mais dinâmica e diversa. Afinal,
pretendemos um nível de letramento dos alunos de Ensino Médio que lhes possibilite não apenas
ser um decifrador de sinais, mas mobilizar seus conhecimentos para dar coerência às
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possibilidades do texto e, conseqüentemente, da vida. É o domínio da palavra que permitirá ao
aluno reler e, se preciso, ressignificar a própria vida. Os resultados não param por aí. Bakhtin
afirma que
Os gêneros do discurso organizam a nossa fala da mesma maneira que organizam
as formas gramaticais (sintáticas). Aprendemos a moldar nossa fala às formas do
gênero e, ao ouvir a fala do outro, sabemos de imediato, bem nas primeiras
palavras, pressentir-lhe o gênero, adivinhar-lhe o volume (a extensão aproximada
do todo discursivo), a cada estrutura composicional, prever-lhe o fim.
(BAKHTIN, 1997, p.302)
Ao trabalhar os variados gêneros, o professor do Ensino Médio propicia ao aluno uma
possibilidade variada desse aluno organizar o próprio discurso, tendo consciência de que, ao
escrever um texto, ele saberá optar por essa ou aquela modalidade da língua, definirá o tipo de
linguagem a ser utilizada de acordo com o objetivo estabelecido para aquele texto. É o estudo
vivo da língua que vai de encontro à vida dos educandos, pois permite um diálogo entre texto e
leitor, conhecimento de mundo e conhecimento da palavra, leitura de mundo e leitura da palavra.
Além disso, o diálogo que os textos suscitam permitem o desenvolvimento do senso crítico do
aluno em oposição à aprendizagem mecânica da palavra.
A leitura crítica da palavra em oposição ao ensino tecnicista da língua materna
Qualquer ensino que vise a uma leitura crítica da palavra prevê a quebra de paradigmas no
que diz respeito ao ensino tecnicista da língua materna. Entendemos como ensino tecnicista da
língua materna aquele que é voltado apenas para as técnicas de seu funcionamento,
desarticulando-a da vivacidade que lhe é pertinente. Não se pode pensar uma língua que
signifique técnicas e regras que não possibilitam o seu efetivo uso interacional.
Entretanto, ainda é comum em muitas salas de aula observar-se o ensino da língua
materna restrito a regras gramaticais e mais regras de ortografia enquanto o aluno desconhece a
noção de prosa, poesia, conto, crônica, romance, texto dissertativo, descritivo e outros. E o mais
interessante, é que depois de o aluno passar toda a educação básica aprendendo regras, ele não
demonstra saber usá-las e alguns afirmam não se lembrar do seja uma simples conjunção. Parece
que há algo errado nessa situação. O que confirma que o ensino tecnicista da língua grita por
reformulação. Esse quadro se torna um escândalo maior quando esses alunos participam de
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exames e testes para averiguar como é o ensino da língua materna no país e os resultados
amargam os últimos lugares.
Segundo GERALDI (1996), o ensino tradicional da língua não favorece um ensino da
qualidade. O conhecimento da descrição da língua não melhora o desempenho no uso da mesma.
Deve-se refletir, então, sobre como aumentar a capacidade comunicativa dos alunos e de
construir possibilidades de novas interações dos alunos, através de práticas significativas da
linguagem e não de repetição de regras gramaticais sem contexto. Nesse contexto, urge que se
adote uma concepção educacional que se alicerce na construção da capacidade crítica do aluno:
O risco que se corre numa visão instrumentalista do ensino de língua é o de
abandono do significado das expressões (e as cartilhas estão cheias de “textos”
sem significados), ou da aprendizagem da forma das expressões com conteúdos
totalmente alheios ao grupo social que, aprendendo a forma, estará preparando-se
para, ultrapassado o segundo momento, definir participativamente “um amplo
projeto de transformação social”. (GERALDI, 1996, p.33)
Dentro desse prisma, o ensino da língua irá ao encontro de uma leitura crítica da palavra,
pois não se reduz à simples utilização de gramáticas, livros didáticos e dicionários, com
conteúdos engessados e programados, direcionados para uma aula-monólogo onde apenas o
professor fala e os alunos recebem, como se fossem depósitos vazios e o ensino gramatical é um
fim em si mesmo. Sobre isso, Freire nos indica um caminho quando afirma que
A regência verbal, a sintaxe de concordância, o problema da crase, o sinclitismo
pronominal, nada disso era reduzido por mim a tabletes de conhecimentos que
devessem ser engolidos pelos estudantes. Tudo isso, contrário, era proposto
curiosidade dos alunos de maneira dinâmica e viva, no corpo mesmo dos textos,
ora de autores que estudávamos, ora deles próprios, como objetos a serem
desvelados e não como algo parado, cujo perfil eu descrevesse. ( FREIRE,
2005, p.16/17)
Essa leitura crítica da palavra proposta aqui pressupõe uma relação dialógica da palavra,
compreendendo o ensino da língua como processo, sempre relacionado ao ato de descoberta do
aluno. Privilegia a ação discursiva, o texto e a palavra do aluno no lugar de palavras e noções
gramaticais fragmentadas. Objetiva um aluno crítico, cuja linguagem é instrumento não só de
interação, mas de transformação social.
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PARTE III: A ORALIDADE NO LETRAMENTO
A influência da oralidade na escrita
Quando falamos em oralidade na escola precisamos ter em mente que a fala é uma parte
da língua que se externaliza. Como nos ensina Vygotsky, é algo que se revela após a elaboração
de um pensamento. Além disso, a manifestação da oralidade dos alunos envolve não só uma
elaboração mental como também reflete o contexto social no qual eles estão envolvidos e,
portanto, deve ser respeitada.
As manifestações culturais orais não se traduzem apenas em formas de comunicação,
constituem modos específicos de transmissão de conhecimentos sociais. Atualmente não
podemos conceber a dissociação entre a oralidade e a escrita, pois ambas se complementam numa
sociedade que utiliza intensamente a mídia como forma de comunicação.
Identificamos o processo de letramento ao longo das vidas dos sujeitos e portanto a
incorporação da cultura oral destes sujeitos pertencentes às classes populares nos leva a concluir
que realmente a língua que articulamos nos forma e nos faz ser. Ela está em movimento
permanente e é por este movimento que não identificamos erros ou acertos. Entendemos que a
postura política implícita na pedagógica reconhece e respeita as variedades lingüísticas existentes
na sala de aula, bem como os diferentes modos de aprender de cada aluno.
Paulo Freire nos ensina que tanto é cultura a poesia dos poetas letrados, como a poesia do
cancioneiro popular. Desse modo, não existe a melhor manifestação cultural, mas diferentes
formas de manifestação de uma cultura. Assim, transcrevemos abaixo dois textos que se
traduzem para que possamos exemplificar nosso pensamento.
Patativa do Assaré (In ARAÚJO, 2005, p.63)traduz as palavras de Freire em sua poesia:
Poetas niversitáerio,
Poetas de Cademia,
De rico vocabularo
Cheio de mitologia;
Se a gente canta o que pensa,
Eu quero pedir licença,
Pois mesmo sem português
Neste livrinho apresento
O prazê e o sofrimento
De um poeta camponês.
(...)
13
A oralidade e a construção da escrita
Todo falante possui conhecimentos intuitivo-práticos a respeito de sua língua e estes são
produzidos na vida cotidiana e não adquiridos apenas na escola. Assim, o processo de letramento
se coloca frente ao desafio de romper com os preconceitos e passar a incorporar as variedades e
diversidades lingüísticas presentes no cotidiano da sala de aula. Desta forma, reconhece-se a
presença de normas lingüísticas diferentes da norma padrão e entende-se o processo de
letramento como uma prática social nas dimensões histórica, política, sócio-cultural,
antropológica, psicológica, lingüística e pedagógica.
A variedade lingüística que o aluno traz consigo pode ser trabalhada como referência para
a aprendizagem de outras variedades e para a aprendizagem da própria norma culta. O importante
é que o professor esclareça que cada situação requer do falante uma modalidade específica da
linguagem.
Assim, o conceito de “erro” deve ser visto sob outro prisma. Muitos estudiosos da
lingüística afirmam inclusive que não existe erro quando se trata do uso de uma língua. Para eles,
o que existe é a adequação a uma determinada situação comunicativa, uma vez que o conceito de
certo e errado estão ligados a um uso da língua padronizado. Estamos diante do que é aceitável
ou não, de acordo com o nível de adequação à norma exigida por determinada situação. Quando,
por exemplo, o falante diz “a gente queremos” o entendimento não sofre alteração, mas a pessoa
que assim fala fica comprometida diante dos que a escutam. Então, o “erro” é uma inadequação
do uso da língua, tem caráter extralingüístico, indo além do nível da produção da fala e
transbordando para um nível de aceitabilidade social.
Cabe, então, ao professor instrumentalizar o aluno de recursos que o permitam utilizar
esta ou aquela variedade lingüística, sabendo quando utilizar a norma culta, a linguagem oral, as
gírias, etc. A oralidade serve, nesse contexto como mais um recurso para se trabalhar a
construção da língua escrita e não um processo isolado, fechado em si mesmo. Afinal, a língua é
viva e se renova na boca do povo.
Podemos, também, trabalhar as diferentes variedades lingüísticas utilizando a poesia
presente nas canções populares, como o exemplo abaixo, que serve para posteriores comentários
do professor sobre a adequação ou não desse tipo de variante nas redações escolares, nos
trabalhos formais ou nas conversas cotidianas e informais. A oralidade assume, então, um
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importante papel no letramento do aluno, permitindo uma comparação e a escolha do melhor
modo de transmitir uma mensagem, tendo em vista os objetivos do falante.
Refacção da produção de textos dos alunos: uma oportunidade de crescimento
A produção de textos é uma das práticas que mais demonstra o nível de letramento dos
alunos. Entretanto, a simples produção dos mesmos sem que os alunos reflitam sobre o que
escreveram e como escreveram desperdiça uma grande chance de crescimento. Quando
produzimos um texto, precisamos coordenar uma série de aspectos: o que dizer, como dizer, a
quem dizer, que recursos utilizar e outros. Mas quando o texto já está pronto, o que fazer? Na
maioria das vezes, o professor corrige os texto e os devolve para os alunos, que sua vez,
guardam os mesmos sem observar as anotações feitas pelo mestre.
Como que a tarefa de corrigir fica quase sempre por conta do professor, é ele quem
assinala os erros de norma e de estilo, a adequação do tema à proposta, anotando, às margens,
possíveis comentários que nem sempre os alunos entendem. Às vezes, quando é exigido que o
aluno releia o seu texto, muitos não identificam seus erros. Todavia, a refacção na produção
de textos dos alunos permite que o aluno se distancie de seu próprio texto para atuar sobre ele
criticamente. Na maioria das vezes, o texto “pronto” é resultado de várias versões e a refacção
permite a reestruturação do texto.
Uma maneira de fazer essa refacção produção de texto do aluno é pedir que ele releia o
seu texto observando se os aspectos abordados acima (como dizer, o que dizer, a quem dizer,
etc.) foram seguidos. Essa releitura é a base de tudo, pois a partis dela já se parte para uma
segunda versão do texto. Em seguida, uma proposta interessante é que o professor separe a
turma em pares (organizados pelo professor que conhece o texto dos alunos, ou seja, sabe
como eles escrevem) para que os alunos leiam a redação de um colega e façam possíveis
interferências. Essas interferências serão assistidas e orientadas pelo professor, que mediará
todo processo segundo os seus objetivos. Isso permite que o aluno consiga um distanciamento
do seu texto e observe no texto do colega possíveis falhas que ele costuma praticar no próprio
texto mas não consegue “ver”. Ao retornar para o próprio texto, o aluno tem uma diferente
visão de como dizer o mesmo tema e de como a linguagem do colega é próxima ou não da
sua e da que deveria ser utilizada para o assunto tratado. Caso o professor ache interessante, o
aluno poderia trocar de dupla e repetir o processo.
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O estudo dos tópicos gramaticais não garante que o aluno do Ensino Médio possa se
apropriar deles na hora da produção dos seus textos e amplie os seus instrumentos expressivos
para produzir textos coerentes e adequados às propostas apresentadas em sala. Daí a importância
de o professor ampliar a prática de análise lingüística dos alunos e, conseqüentemente, seu nível
de letramento. Dentro desse contexto, a refacção na produção de textos dos alunos permite um
amadurecimento do aluno em relação ao seu próprio texto, pois ao se distanciar do seu texto e
retornar ao mesmo e ao ler os textos dos colegas, os alunos apreendem formas diferentes de
escrever a analisar diversas temáticas em sala. Além disso, esse trabalho permite que o professor
trabalhe tanto os aspectos relacionados às características estruturais dos diversos tipos textuais
como também gramaticais de forma contextualizada e dinâmica, instrumentalizando o aluno para
dominar a modalidade escrita da língua e o senso crítico diante dos textos produzidos por ele.
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práticas de letramento no currículo escolar do ensino médio