REFLEXÕES SOBRE A RELAÇÃO EDUCAÇÃO E SAÚDE, O CAPITALISMO E
O LIBERALISMO NAS JUSTIFICATIVAS AO FRACASSO ESCOLAR1.
Adriéle Cristina de Souza Meurer2
Cezar Ricardo Freitas3
Durante muito tempo fala-se sobre o fracasso escolar no âmbito da educação
brasileira, este vem sendo explicado por diferentes concepções que, em sua maioria são
relacionadas às questões sociais, patológicas focalizadas no indivíduo. Numa sociedade
de classes, é importante compreender quais são as justificativas a este suposto fracasso
escolar a partir da relação entre os organismos internacionais, o capitalismo, o liberalismo
e a relação estabelecida entre a educação e saúde.
No contexto do capitalismo pode-se considerar que a escola adquire o significado
de instrumento de ascensão social nos países capitalistas liberais estáveis a partir do ano
de 1848:
a escola adquire significados diferentes para diferentes grupos e
segmentos de classes, em função do lugar que ocupam nas relações
sociais de produção. Neles, a escola é valorizada como instrumento real
de ascensão e de prestígio social pelas classes médias e pelas elites
emergentes. Como instituição a serviço do desenvolvimento
tecnológico necessário para enfrentar as primeiras crises do novo modo
de produção, de modo a racionalizar, aumentar e acelerar a produção
(PATTO, 1996, p. 26).
1 Este artigo é resultado da Monografia “A relação entre Educação e Saúde e as justificativas do Fracasso
Escolar: Primeiras Aproximações”, defendida no Curso de Especialização em História da Educação
Brasileira, do Centro de Educação, Comunicação e Artes – CECA, da Universidade Estadual do Oeste do
Paraná – UNIOESTE.
2 Graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. Especialista em
História da Educação Brasileira pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. Mestranda
do
Programa
de
Pós-Graduação
stricto
sensu
em
Educação
Área
de
concentração:
Sociedade,
Estado
e
Educação
Nível de Mestrado.
3 Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Educação
Área de concentração: Sociedade, Estado e Educação. Doutorando em Educação, pela Universidade
Estadual de Maringá – UEM.
Com a Revolução Francesa, a escola universal e gratuita, antes privilégios de
poucos, torna-se uma realidade. A escola imposta como instrumento de unificação
nacional passou a ser desejada pelas classes trabalhadoras, quando se apercebem da
desigualdade embutida na nova ordem e tentam escapar, pelos caminhos socialmente
aceitos, da miséria de sua condição (PATTO, 1996, p. 29).
Este aumento da demanda social por escola e a expansão dos sistemas nacionais
de ensino trouxeram alguns problemas:
De um lado a necessidade de explicar as diferenças de rendimento da
clientela escolar; de outro, a de justificar o acesso desigual desta
clientela aos graus escolares mais avançados. Tudo isto sem ferir o
principio essencial da ideologia liberal segundo o qual o mérito pessoal
é o único critério legítimo de seleção educacional e social (PATTO,
1996, p. 40). (grifos do autor)
Com a I Guerra Mundial, a crença no poder da escola foi abalada:
O século XX tem início desmentindo a idéia de que a escola obrigatória
e gratuita viera transformar a humanidade para redimi-la da ignorância
e da opressão. A posse do alfabeto, da constituição e da imprensa, da
ciência e da moralidade não havia livrado os homens da tirania, da
desigualdade social e da exploração (PATTO, 1996, p. 27).
Os liberais receberam um duro golpe na sua crença dos superpoderes da escola:
Esse conflito mundial desferiu um duro golpe nos liberais que
acreditavam nos superpoderes da escola, e os levou a investirem contra
a pedagogia tradicional, na elaboração de uma pedagogia que
promovesse espiritualmente o ser humano (PATTO, 1996, p. 27).
A crítica a pedagogia Tradicional desconsidera que bem ou mal a população em
geral estava se instruindo e se politizando, portanto a burguesia partindo da crítica a
escola tradicional, responsabilizou-a pelos desastres sociais:
Se a escola não estava formando democratas isto se devia ao fato de ela
mesma não ser democrática. À pedagogia da imposição deveria se opor
uma pedagogia calcada nos conhecimentos acumulados pela psicologia
nascente a respeito da natureza do desenvolvimento infantil que
substituísse o verbalismo do professor pela participação ativa do aluno
no processo de aprendizagem (PATTO, 1996, p. 27).
A crença dos liberais na possibilidade da escola realizar uma sociedade de classes
igualitária, pautada no mérito pessoal, contou com a psicologia científica a qual coube
buscar a explicação e a mensuração das diferenças individuais, tornando-se uma
expressão da nova ordem social que emerge do mundo feudal, sendo fundamental à
compreensão da natureza e da pesquisa e do discurso educacionais sobre a reprovação
escolar que vigoravam nos países capitalistas (PATTO, 1996, p. 28).
A idéia do mérito pessoal e da igualdade de oportunidades foi reforçada pela
psicologia:
No âmbito da liberal-democracia, é compreensível que a preocupação
com a superdotação e sua contrapartida, a subdotação intelectual, tenha
sido a principal atividade da psicologia nos setenta anos após a
publicação da primeira obra de Galton4.Se as aparências já faziam crer
que as oportunidades estavam igualmente ao alcance de todos – pois é
inegável que, em comparação com a estática sociedade feudal, a nova
ordem possibilitou grande mobilidade social – a psicologia veio
contribuir para a sedimentação desta visão de mundo, na exata medida
em que os resultados nos testes de inteligência , favorecendo via de
regra os mais ricos, reforçavam a impressão de que os mais capazes
ocupavam os melhores lugares sociais (PATTO, 1996,p.40).
No século XIX as explicações das dificuldades de aprendizagem escolar
articulam-se em duas vertentes: das ciências biológicas e medicina, com pressupostos
racistas e elitistas e da psicologia e pedagogia, uma concepção menos heredológica5 da
conduta humana, mais atenta às influências ambientais e mais comprometida com os
ideais liberais democráticos, nos países capitalistas no decorrer de todo o século XX, esta
ambigüidade será a característica do discurso a respeito das dificuldades de aprendizagem
(PATTO, 1996, p.40).
Durante os trinta primeiros anos do século XX, a avaliação dos “anormais
escolares” tornou-se sinônimo de avaliação intelectual:
Nesta época, os testes de QI adquiriram um grande peso nas decisões
dos educadores a respeito do destino escolar de grandes contingentes de
crianças que, na Europa e na América, conseguiam ter acesso à escola.
No entanto, a incorporação de alguns conceitos psicanalíticos veio
mudar não só a visão dominante de doença mental como as concepções
4 Francis Galton 1822-1911. foi um antropólogo, meteorologista, matemático e estatístico inglêsGalton
tinha um intelecto prolífico, e produziu mais de 340 artigos e livros em toda sua vida. Ele também criou o
conceito estatístico de correlação e a amplamente promovida regressão em direção à média. Ele foi o
primeiro a aplicar métodos estatísticos para o estudo das diferenças e herança humanas de inteligência, e
introduziu a utilização de questionários e pesquisas para coletar dados sobre as comunidades humanas, o
que ele precisava para obras genealógicas e biográficas e para os seus estudos antropométricos. Como um
pesquisador da mente humana, ele fundou a psicometria (a ciência da medição faculdades mentais) e a
psicologia diferencial.Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Francis_Galton.
5 Heredologia: Ciência que analisa a partir de características hereditárias.A questão das raças é um
exemplo, de acordo com a raça a capacidade de aprendizagem.
correntes sobre as causas das dificuldades de aprendizagem. A
consideração da influência ambiental sobre o desenvolvimento da
personalidade nos primeiros anos de vida e a importância atribuída à
dimensão afetivo-emocional na determinação do comportamento e seus
desvios provocou uma mudança terminológica no discurso da
psicologia educacional: de anormal, a criança que apresentava
problemas de ajustamento ou de aprendizagem escolar passou a ser
designada como criança problema (PATTO, 1996, p.43-44. Grifos do
autor).
Na década de trinta, com a disseminação dos conhecimentos de psicologia e o
advento do escolanovismo, a ênfase volta-se para a atribuição do fracasso às diferenças
individuais, baseada na concepção de genialidade hereditária, apoiando-se nos estudos de
Darwin (princípio da evolução das espécies), difundida por Galton, já em 1869,
influenciando no movimento dos testes mentais bastante marcantes na década de 1890.
Os casos de dificuldade de aprendizagem começam a ser diagnosticados e tratados por
psiquiatras, dando origem a medicalização do fracasso. Porém, essa explicação é
fortemente marcada pela teoria racista em que se considerava a superioridade da raça
branca em relação aos índios, negros e mestiços (FORGIARINI; SILVA,2007 p. 4).
Até a década de 30 a grande parte das concepções sobre o fracasso estavam
relacionadas à teoria racista, a explicação as dificuldades de aprendizagem deixa de ser
de racial, passando a ser cultural a partir da década de 40. Não são mais as raças que são
inferiores e sim as culturas, as crianças pobres faziam parte de um meio cultural com
deficiência de estímulos, valores, hábitos, habilidades e normas, o que dificultaria a
aprendizagem (FORGIARINI; SILVA,2007, p. 5).
A nova palavra de ordem é a higiene mental escolar. Com intenções
preventivas, as clinicas de higiene mental e de orientação infantil
disseminaram-se no mundo, a partir da década de vinte e se propõe a
estudar e corrigir os desajustamentos infantis (PATTO, 1996, p.44)
(grifos do autor).
Em 1940, a psicologização do fracasso escolar tornou-se ainda maior
Nesse sentido, o movimento de higiene mental (...) colaborou para
justificar o acesso desigual das classes sociais aos bens culturais, ao
restringir a explicação de suas dificuldades de escolarização ao âmbito
das disfunções psicológicas. [...]. Seu prestígio foi tão forte que
suplantou, na explicação do fracasso escolar, uma das premissas do
pensamento escolanovista que não podia ser negligenciada: a de que a
estrutura e funcionamento da escola e a qualidade do ensino seriam os
principais responsáveis pelas dificuldades de aprendizagem (PATTO,
1999, p.45 -46)
O movimento de higiene mental ajudou a instalar a escola seletiva. Este
movimento dissimulava a seletividade com procedimentos técnicos e verdades cientificas
de difícil constentação na época (PATTO, 1996, p.45).
A forte tendência social torna o pobre o grande depositário de todos os defeitos, os
adultos
das
classes
subalternas
são
considerados
mais
agressivos,
relapsos,
desinteressados pelos filhos, inconstantes, viciados e imorais (PATTO, 1996, p.48-49).
Percebe-se que a “deficiência” é sempre do oprimido:
Dizem para o oprimido que a deficiência é dele e lhe prometem uma
igualdade de oportunidades impossível através de programas de
educação compensatória que já nascem do fracasso quando partem do
pressuposto de que seus destinatários são menos aptos à aprendizagem
escolar. Mesmo assim, fazem renascer com estes programas, a
esperança da justiça social, mais uma vez graças ao papel
democratizante atribuído à escola compensatória que supostamente
reverterá às diferenças ou deficiências culturais e psicológicas que as
classes “menos favorecidas” seriam portadoras (PATTO, 1996, p.50)
(grifos nossos).
Até a década de 1970, o fracasso escolar era justificado por características
biológicas, psicológicas e sociais dos alunos. O termo social era empregado no sentido de
déficit cultural dos usuários das escolas públicas. Os psicólogos educacionais, de
formação psicanalítica, psiconeurológica ou cognitivista, não apresentavam a dimensão
pedagógica do processo. Durante os anos de 1970 tentou-se superar, ainda, o discurso
fraturado sobre as causas do fracasso escolar que passou a ser explicado pela teoria da
Carência Cultural, por meio do qual se afirmava que as deficiências (déficit) do ambiente
cultural das chamadas classes baixas produziam a deficiência no desenvolvimento
psicológico infantil, ocasionando as dificuldades de aprendizagem e de adaptação escolar
(FORGIARINI; SILVA,2007, p. 9).
Ainda nos anos 1970 as teorias de Althusser (1974), Bourdieu (1974), Bourdieu e
Passeron (1975) Establet e Baudelot (1979) apresentaram uma outra forma de se pensar o
papel da escola:
(...) introduziram a possibilidade de se pensar o papel da escola no
âmbito de uma concepção crítica de sociedade. Mais especificamente,
forneceram as ferramentas conceituais para o exame das instituições
sociais enquanto lugares nos quais se exerce a dominação cultural, a
ideologização, a serviço da reprodução das relações de produção; na
escola, o embaçamento da visão da exploração seria produzido,
segundo esta teoria, principalmente pela veiculação de conteúdos
ideologicamente viesados e do privilegiamento de estilos de
pensamento e de linguagem característicos dos integrantes das classes
dominantes, o que faria do sistema de ensino instrumento a serviço da
manutenção dos privilégios educacionais e profissionais dos que detêm
o poder econômico e o capital cultural (PATTO, 1996, p.114).
As apropriações destas idéias nas pesquisas ficaram mais no âmbito da
divulgação, do que domínio da pesquisa do fracasso escolar:
A apropriação destas idéias parece ter sido mais fiel nos inúmeros
ensaios voltados para a sua análise e divulgação do que no domínio da
pesquisa do fracasso escolar propriamente dita. Aqui, a convivência da
teoria da reprodução com a convincente teoria da carência cultural,
aliada a uma concepção positivista de produção de conhecimentos,
resultou em distorções conceituais que levaram a aplicação da
concepção da escola como aparelho ideológico de Estado a
descaminhos teóricos (PATTO, 1996, p. 114).
Ressalta-se dos anos de 1970,
(...) uma das características que diferenciou a pesquisa do fracasso
escolar foi à investigação crescente da participação do próprio sistema
escolar na produção do fracasso, através da atenção ao que se
convencionou chamar de fatores intra-escolares e suas relações com a
seletividade social operada na escola (PATTO, 1996, p.118).
Durante os anos de 1980,
Até a década de 1980, as tentativas de explicação do fracasso escolar
estavam voltadas para culpabilizar principalmente o sujeito que sofria o
fracasso e a sua família, como se fossem seres inertes, soltos no tempo e
no espaço. E raras vezes o foco dos estudos voltou-se para a instituição
escolar como um dos fatores determinantes deste problema. Mas,
quando o fizeram, também foi num sentido de atribuir à culpa a esta e a
quem nela trabalha, não a relacionando com o contexto social e político
(FORGIARINI; SILVA,2007,p.6).
O ano de 1997 foi um marco na mudança de enfoque. Um grupo de pesquisadores
da Fundação Carlos Chagas desenvolveu um conjunto de subprojetos de pesquisa
voltados para a investigação da participação do sistema escolar no baixo rendimento das
crianças dos segmentos sociais mais pobres. Os resultados destes projetos levaram a
outros subprojetos dedicados à pesquisa mais detalhada dos mecanismos intra-escolares
de seletividade social da escola, privilegiando a investigação de aspectos estruturais,
funcionais e da dinâmica interna da instituição escolar (FCC, 1984 apud PATTO, 1996,
p.118).
No contexto dos anos 80, ressaltam-se três tendências para as causas do fracasso
escolar:
(...) com estudos da realidade escolar a partir do materialismo histórico,
três tendências se configuraram: continuaram as tentativas de encontrar
as causas das dificuldades de aprendizagem e de ajustamento escolar no
desenvolvimento psíquico do aprendiz; num mesmo relato de pesquisa
a política educacional antidemocrática e o aprendiz eram
simultaneamente responsabilizados pelos maus resultados do ensino, o
que configurava um “discurso fraturado”; concepções críticas e nãocríticas da escola na estrutura econômico-social capitalista passaram a
conviver num mesmo projeto, o que indicava apropriação superficial da
nova referência teórica (ANGELUCCI et al 2004 , p. 57).
No contexto dos anos de 1990, as políticas educacionais estiveram subjugadas aos
interesses do capital estrangeiro, sob as determinações do Banco Mundial e FMI,
momento em que houve a reorganização da ideologia liberal de acumulação do capital,
denominada de neoliberalismo. Para garantir esta soberania, utilizou- se, nas Diretrizes
Educacionais, de palavras chaves como: desregulamentação, descentralização e
flexibilização, as quais visavam estimular à autonomia, a liberdade, a independência, a
iniciativa e a criatividade, desencadeando o esvaziamento de conteúdos da escola pública
brasileira (FORGIARINI; SILVA, 2007, p.11).
No artigo “O estado da arte da pesquisa sobre o fracasso escolar (1991-2002): um
estudo introdutório” Angelucci
et al (2004),
as autoras apresentam as pesquisas
relacionadas ao fracasso escolar desenvolvidas na cidade de São Paulo, tanto nos cursos
de Pedagogia e Psicologia das universidades, quanto nos da Fundação Carlos Chagas,
onde foram localizadas 71 obras,
das quais 32 doutorados e 39 mestrados
(FORGIARINI; SILVA, 2007,p.11). Desta forma, as autoras pontuam que o fracasso
escolar é compreendido nestas obras como:
- problema psíquico: a culpabilização das crianças e de seus pais (foco no aluno);
- problema técnico: culpabilização do professor (foco no professor);
- questão institucional: a lógica excludente da educação escolar (foco na política
pública como determinante do fracasso escolar);
- questão política: cultura escolar, cultura popular e relações de poder (foco nas
relações de poder estabelecidas no interior da instituição escolar, mais especificamente na
violência praticada pela escola ao estruturar-se com base na cultura dominante e não
reconhecer – e, portanto, desvalorizar – a cultura popular) (FORGIARINI; SILVA, 2007,
p.11-12).
A categorização destas pesquisas:
[...] possibilitou o levantamento de alguns aspectos preliminares,
reveladores dos caminhos que a pesquisa vem percorrendo na última
década. Chamou a atenção a presença significativa de pesquisas que
concebem o fracasso escolar como fenômeno estritamente individual, o
que pode ser observado pelo grande número de obras que constam das
categorias “Distúrbios de desenvolvimento e problemas de
aprendizagem”, “Remediação do fracasso escolar” e “Papel do
professor na eliminação do fracasso escolar”. A primeira centra no
aluno
a
responsabilidade
pelo
fracasso,
atribuindo-lhe,
predominantemente, problemas cognitivos, psicomotores ou
neurológicos. Já as duas outras categorias responsabilizam ora o aluno
ora o professor e propõem soluções predominantemente técnicas, de
base teórica comportamental ou cognitivista, para eliminar o fracasso.
Como era de se esperar, as pesquisas constitutivas das três primeiras
categorias da Tabela 1 concentram-se no lugar acadêmico em que se
produz e pratica psicologia. Da mesma forma, a crítica à psicologizacão
do fracasso escolar ocorre nesse mesmo lugar. Assim como a atribuição
de responsabilidade ao professor é freqüente nas pesquisas que
relacionam fracasso escolar e incapacidade técnica, o trabalho docente
também é alvo das pesquisas que inserem o fracasso escolar na lógica
excludente da escola pública fundamental. No entanto, essas pesquisas,
ancoradas numa perspectiva crítica da relação escola-sociedade, partem
do princípio de que, para entender o trabalho docente, é preciso
considerar o lugar da escola em uma sociedade de classes. Ainda com
base na categorização apresentada, observa-se que catorze teses
procuram discutir o fracasso escolar em suas relações com as políticas
educacionais, bem como com a macropolítica: trata-se de pesquisas que
procuram realizar uma análise do capitalismo — ou, mais
especificamente, do neoliberalismo — em suas implicações na
produção do fracasso escolar ( ANGELUCCI et al 2004 , p. 59).
Percebe-se desta maneira, que o fracasso escolar continua sendo relacionado à
saúde, sendo medicalizado, psicologizado, sendo sempre considerado um problema do
indivíduo, ou do professor ou da escola sempre desarticulado do contexto social, isso
gera mitos e preconceitos:
Uma das características fundamentais da vida cotidiana é a existência
de juízos provisórios: provisório porque se antecipa à atividade possível
do confronto com a realidade; nem sempre é confirmado, sendo muitas
vezes refutado no infinito processo da prática. Quando um juízo
provisório é refutado no confronto com a realidade concreta, seja por
meio da ciência ou mesmo por não encontrar confirmação nas
experiências de vida do indivíduo, e mesmo assim se mantém
inabalável, imutável e cristalizado contra todos os argumentos da razão;
não é mais um juízo provisório, mas um preconceito (COLLARES;
MOYSÉS, 1996, p.24-25).
Se concebermos que o fracasso escolar é causado por problemas individuais,
relacionados à questões biológicas a escola, entendida como instituição social concreta,
integrante de um sistema sociopolítico concreto – apresenta-se como vítima de uma
clientela inadequada (COLLARES; MOYSÉS, 1996, p.27).
Este processo de biologização é conhecido no contexto histórico
[...] nos momentos de grande tensão social, de movimentos
reivindicatórios importantes, a resposta da sociedade sempre foi no
sentido de biologizar as questões sociais que se haviam transformado
em foco de conflitos. Nesse processo, sempre houve o respaldo de uma
ciência de matriz positivista, cujos interesses coincidem com os de uma
determinada classe social. Porém, essa corrente filosófica insiste sempre
em se apresentar como ciência pura, neutra, objetiva, como se não fosse
construída por homens concretos, inseridos em um sistema social
estratificado em classes, com motivações contraditórias (COLLARES;
MOYSÉS, 1996, p.27).
Com o processo de biologizar questões sociais, atingem-se dois objetivos
complementares: isentar de responsabilidades todo o sistema social, inclusive em termos
individuais e, usando a expressão de Ryan (1976), “culpabilizar a vítima” (COLLARES;
MOYSÉS, 1996, p.28).
Ao separar os alunos entre “os que não irão aprender” e “os que aprendem”
legitima-se uma exclusão tanto escolar quanto na vida social:
Uma exclusão que já havia sido estabelecida muito antes, pelo estrato
social em que nasceu, mas que, de todo modo, necessita do aval de
alguma instância, reconhecida como competente, para poder se manter
por gerações e gerações (COLLARES; MOYSÉS, 1996, p.59).
A exclusão é reforçada e naturalizada pelos princípios liberais de igualdade,
democracia e individualidade. Considera-se que na escola as igualdades de oportunidades
existem logo a democracia está acontecendo, mais são as características individuais que
determinam seu sucesso ou o seu suposto fracasso. Esta exclusão é necessária a sociedade
capitalista e é respaldada pela escola órgão reconhecidamente competente. (COLLARES;
MOYSÉS, 1996, p.59).
A Medicina também se torna um órgão competente para respaldar o fracasso
escolar, quando,
Nesta maneira de pensar o processo saúde/doença, não há espaço para
determinantes como políticas públicas, condições de vida, classe social.
A ignorância é a grande responsável pelas altas prevalências de doença.
Então, a solução só pode ser por meio do “ensino”. Neste campo, a
Medicina exerce seu papel normatizador com grande eficiência. E essas
idéias perduram até hoje, seja na formação de profissionais, seja no
famoso “senso comum”, reflexo das concepções ideológicas
dominantes (COLLARES; MOYSÉS, 1996, p.74).
A partir da consolidação do capitalismo a Medicina passa com mais intensidade a
normatizar a vida dos indivíduos:
Se a Medicina, desde suas origens, cumpre o papel social de normatizar
a vida de indivíduos e de grupos sociais, a partir da consolidação do
capitalismo passa a fazê-lo com intensidade maior eficiência. A
normatização da vida tem por corolário a transformação dos “problemas
da vida” em doenças, em distúrbios. Surgem, então, os “distúrbios de
comportamento”, os “distúrbios de aprendizagem”, a “doença do
pânico”, apenas para citarmos alguns entre os mais conhecidos. O que
escapa às normas, o que não via bem, o que não funciona como
deveria... tudo é transformado em doença, em um problema biológico
(COLLARES; MOYSÉS, 1996, p.74- 75).
Cria-se o mito de que a doença impede a aprendizagem:
Para os profissionais da Saúde e da Educação, a doença impede a
aprendizagem. Porém, que tipo de doença, em que gravidade?
Aparentemente, essas questões não se colocam. Estar doente, não
importa a gravidade (ou sua ausência) nem a época da vida em que se
esteve doente, nem o tempo (tanto faz se aguda ou crônica, se dura dias
ou a vida toda), é um estado absoluto. A doença, nesse imaginário, não
admite modulações. O processo saúde/doença é transformado em saúde
total ou doença total. Perde sua relação de determinação com as
condições de vida, com a inserção do grupo familiar nos estratos
sociais, nos meios de produção. Torna-se a-histórico. Uma tal
concepção de saúde e doença, que prioriza ao extremo o aspecto
biológico, que foca sua atenção quase que exclusivamente no indivíduo,
tanto em termos de determinantes como de soluções, avançando no
máximo até a família, realmente não pode admitir condicionantes.
Afinal, uma hemácia será sempre uma hemácia, independente da região
geográfica e da classe social (COLLARES; MOYSÉS, 1996, p.76).
Acreditar que as crianças não aprendem por que são doentes, porque são pobres é
afirmar ainda mais o preconceito, pois ser pobre é conseqüência de um modelo de
desenvolvimento político imposto ao país; ser pobre é nascer numa casa em que já se era
pobre (COLLARES; MOYSÉS, 1996, p.76).
As classes com menos condições financeiras e seus integrantes são alvos de
muitos preconceitos. Esses preconceitos e estereótipos fazem parte de uma visão de
mundo ideológica e mistificadora. Precisamos estar atentos para os mitos de que somos
porta-vozes (PATTO, 1985, p.53):
O que se enxerga é aquilo que nossa concepção política e filosófica do
mundo nos permite enxergar. Dependendo da posição de nosso mirante,
de sua altitude (que será tanto maior, quanto maior o conhecimento
prévio e a disponibilidade para um olhar sem preconceitos e
desvinculado de interesses de classe), maior a amplitude do horizonte
que pode ser descortinado. Romper com preconceitos é essencial para
subir a mirantes mais privilegiados. E deles, pode-se romper com outros
preconceitos, e por ai... Mas infelizmente, a maior parte das pessoas
ainda está presa a grilhões dos preconceitos mais elementares, mais
frágeis. E, por sua fragilidade, tão sólidos (COLLARES; MOYSÉS,
1996, p.189-190).
Desta forma, educação e saúde não apenas justificam o fracasso escolar como
passam a explicar a vida do indivíduo na sociedade civil:
Amplia-se assim, em espirais, o círculo de justificativas, num espaço
ideológico muito maior. As afinidades ideológicas entre educação e
saúde, que num primeiro plano explicam e legitimam as condições de
saúde da população e o fracasso escolar, interagem durante toda a vida
do individuo para justificar sua exclusão da sociedade civil
(COLLARES; MOYSES, 1987, p.74).
Considera-se que o processo de medicalização do fracasso escolar se expandiu
rápido e facilmente, pois,
este processo responde às expectativas da sociedade em diferentes
níveis. Ao se localizar o problema na criança, como uma “doença”
intrínseca e inerente a ela, isenta-se de responsabilidades a família, a
professora, o sistema escolar e, por fim, todo o sistema político
(COLLARES; MOYSES, 1987, p.75).
A medicalização também ocorre de acordo com a classe do aluno, o que reforça o
caráter ideológico da mesma:
Para a “criança pobre”, o mau rendimento escolar é sinônimo de retardo
de desenvolvimento por desnutrição. Para a “criança rica”, é sinônimo
de disfunção neurológica. Em ambos os casos, o estigma de doente é o
mesmo e os prejuízos psicológicos (que podem ser permanentes)
também. A grande diferença é que para uma existe tratamento, embora
demorado e oneroso: não por coincidência, é para a criança que se
insere em uma família que pode pagá-lo (COLLARES; MOYSES,
1987, p.77).
Reiteramos, portanto que a educação e a saúde, respectivamente, justificam uma o
fracasso da outra, sustentando o modelo de desenvolvimento capitalista pela exclusão dos
indivíduos. É preciso compreender que a saúde é resultado das condições de vida dos
indivíduos, que são determinadas pela sua inserção no processo de produção e
reprodução de usa existência. Portanto, saúde não se ensina, mas precisa ser
problematizada enquanto o direito de toda a população a viver em condições adequadas
(COLLARES, MOYSES, 1989, p.86). A educação também não deve servir apenas como
uma defensora dos interesses do capital, propagando os princípios liberais, culpando os
indivíduos e isentando o modo de produção capitalista, deveria contribuir, dessa forma,
para romper com seu papel histórico de legitimar e justificar desigualdades e injustiças
sociais (COLLARES, MOYSES, 1989, p.86). Desta forma,
A escola, como instituição a serviço da sociedade capitalista assume e
valoriza a cultura das classes dominantes; assim, o aluno proveniente
das classes dominadas nela encontra padrões culturais que não são os
seus e que são apresentadas como “certos”, enquanto os seus próprios
padrões são ou ignorados como inexistentes, ou desprezados como
“errados”. Seu comportamento é avaliado em relação a um “modelo”,
que é o comportamento das classes dominantes; os testes e provas a que
é submetido são culturalmente preconceituosos, construídos a partir de
pressupostos etnocêntricos, que supõem familiaridade com conceitos e
informações próprios do universo cultural das classes dominantes. Esse
aluno sofre, dessa forma, um processo de marginalização cultural e
fracassa, não por deficiências intelectuais ou culturais, como sugerem a
ideologia do dom e a ideologia da deficiência cultural, mas porque é
diferente. Neste caso, a responsabilidade pelo fracasso escolar dos
alunos provenientes das camadas populares cabe à escola, que trata de
forma discriminativa a diversidade cultural, transformando diferenças
em deficiências (SOARES, 2002,p.15 -16)(grifos do autor).
Justifica-se que mesmo com igualdade de oportunidade, o indivíduo tem a
liberdade de escolha, que seu desenvolvimento depende da sua individualidade, se tem
talento, se tem dom, se é esforçado. Pensar todos estes princípios isoladamente fortalece
o mito e a existência do fracasso escolar. O suposto fracasso proveniente das camadas
populares representa uma dominação que estes estratos sociais sofrem na sociedade como
um todo, e de certa forma atende aos interesses da classe dominante, preservando sua
hegemonia. A escola passa a ser uma instituição a serviço das classes dominantes, e o
fracasso que deveria ser “resolvido” parece ser um fato sem solução educacional, pois
este só poderá ser “solucionado” a partir do momento em que forem eliminadas as
discriminações, as desigualdades, possibilitando a verdadeira igualdade de condições de
aprendizagem. Todavia, seria necessário transformações na estrutura social como um
todo, pois as transformações no âmbito escolar não passam de mistificações, não surtindo
efeitos, servindo apenas para simular soluções, onde na verdade apenas se reforça ainda
mais o suposto fracasso o mistificando, dissimulando, tornando apenas o indivíduo o
agente do seu fracasso ou sucesso (SOARES, 2002, p.64).
O fracasso deve ser desmistificado, pois se não rompermos com o pensamento
circular, que a criança pobre não aprende, porque é pobre, porque fala errado, porque tem
fome, estaremos esquecendo de fazer a análise do contexto e das relações sociais próprias
do modelo de sociedade capitalista e com isso estaremos mantendo os mitos e
aumentando ainda mais os preconceitos com relação aos indivíduos das classes menos
favorecidas, desconsiderando que, as crianças das classes mais favorecidas, as crianças
ricas também apresentam problemas de aprendizagem e que também “fracassam”.
É preciso compreender o fracasso como resultado das relações do modo de
produção capitalista, que deve considerar a divisão de classes, a distribuição desigual de
riquezas, a cultura dominante x a cultura de cada classe ou grupo, a ideologia liberal e
como a mesma justifica a sociedade capitalista. Compreendendo o contexto, se perceberá
que a escola proposta como um lugar de igualdade, um lugar de acesso ao saber, onde
“todos são iguais” parece ser uma escola mais contra o povo, do que para o povo. Contra
porque apesar de ser proposta como universal, gratuita, acessível, cria estratégias que
impedem o povo de aprender, e o fracasso é uma destas.
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REFLEXÕES SOBRE A RELAÇÃO EDUCAÇÃO E