CORREIO BRAZILIENSE CIêNCIA » E assim nasceu o mau-olhado Economista americano afirma que a crença no poder maléfico da inveja teve origem em comunidades muito desiguais. Fortalecimento de instituições e proteção da propriedade privada tornaram a superstição mais frágil Notícia Gráfico » ISABELA DE OLIVEIRA Publicação: 14/06/2015 04:00 Dizem que as janelas da alma revelam sentimentos inconfessáveis. Entre eles, um dos mais temidos é a inveja, emoção considerada pecado e facilmente percebida nos olhos de quem a carrega. De tão assustador, o olhar do invejoso parece até carregar poderes mágicos, capazes de causar mal àqueles que estão em sua mira. A crença no mau-olhado remonta a tempos imemoriais: por meio de inscrições cuneiformes em placas de argila, os sumérios já contavam que a deusa do submundo podia aniquilar a divindade do amor com um relance mortal. Habilidade semelhante tinham demônios babilônicos, capazes de ferir homens desprevenidos que se aventuravam em desertos e cemitérios. Mas, embora essas lendas e as superstições que originaram tenham um componente sobrenatural, o economista Boris Gershman garante que a origem do também chamado olho gordo não é de outro mundo. Tem explicações bem terrenas e, ao longo da história, ajudou na formação da economia como existe hoje. Pesquisador da American University, em Washington (EUA), Gershman é um dos especialistas que se dedicam à crescente área de estudos sobre as origens de instituições e tradições culturais, mais especificamente a uma vertente conhecida como direito e economia da superstição. Nessa linha de estudo, busca-se explicar racionalmente como certas crendices surgiram e persistiram na história. Sua teoria sobre o mau-olhado foi publicada recentemente na revista especializada Journal of Economic Behavior & Organization. Segundo ele, o surgimento da crença está fortemente ligado a condições de desigualdade. Sociedades em que alguns tinham muito mais que outros eram as mais suscetíveis a essa cultura. Prescrições para “evitar o mau-olhado” apareceram como uma defesa contra rebeliões, especialmente em populações agropastoris nas quais a distribuição de riqueza era desigual e a manutenção de bens — como gado ou estoques de cereais — era frágil. “O mau-olhado foi um mecanismo de defesa cultural, e evidências de sociedades pré-industriais de pequena escala mostram que há, de fato, uma associação positiva entre a incidência da crença e a desigualdade de riquezas”, explica o pesquisador norte-americano. Gershman analisou o perfil de 186 sociedades pré-industriais de todo o mundo, e essa relação foi observada em todos os continentes, com a intensidade variando de acordo com a região e a cultura (veja mapa abaixo). Atual Esse medo, no entanto, está longe de ser algo do passado. Em 2009, uma pesquisa do Fórum Pew sobre Religião e Vida Pública mostrou que 16% dos americanos acreditam no “mau-olhado ou que certas pessoas podem lançar maldições ou feitiços que causam dano”. Outro levantamento feito pelo Gallup Paquistão, em 2010, indicou que 57% dos entrevistados acreditavam no olho gordo, e 43% disseram que a inveja era o principal motivo para isso. Boris Gershman coleciona exemplos de como o temor da inveja alheia ainda é levado a sério em vários locais. Em Tzintzuntzan, no México, os moradores se recusam a instalar janelas de vidro em casa com medo de atrair olhares inimigos. Em Vila de Caixa de Água, no nordeste do Brasil, ele conta, a inveja é apontada como a razão por trás da perda de colheitas e de gado, entre outras tragédias, incluindo a morte de crianças. Nessa região brasileira, o medo de olho gordo leva camponeses relativamente ricos a ocultarem a prosperidade. Medos e comportamentos semelhantes foram documentados entre beduínos do deserto de Negev. “Todo esse corpo de evidência etnográfica destaca como o mau-olhado impõe diferentes comportamentos para evitar inveja nas mais diversas populações”, completa o autor. Por isso, é plausível a teoria de que a crença, antes de se espalhar pelo mundo, tenha surgido milênios atrás para prevenir conflitos e agressões em comunidades pouco institucionalizadas. “Apesar dos benefícios, crer no mau-olhado cria um custo social considerável, uma vez que desencoraja o acúmulo de riqueza e mobilidade social”, pontua Gershman. Por isso, o desenvolvimento de instituições de proteção à propriedade privada e da sociedade industrial foi crucial para que a superstição perdesse força. Para Agnaldo Cuoco Portugal, professor de filosofia da religião da Universidade de Brasília (UnB), o medo da inveja pode não ser interessante, visto que desacelera a economia. No mundo capitalista, a atual crença no consumo é um dos motores para geração de emprego. “As pessoas acreditam que o consumo as faz felizes. É quase uma superstição tentar preencher o vazio com objetos que se compra. É uma crendice do nosso tempo. O Dia dos Namorados, que reforça o amor romântico, é um exemplo disso”, analisa. Palavra de especialista Herança portuguesa “No Brasil, a questão do mau-olhado nem sempre está relacionada com a inveja, mas com a crença de que certas pessoas têm poderes que elas não dominam. Muitas mães não deixam certas pessoas segurarem suas crianças temendo essa energia sem controle. A crença chegou aqui com os colonizadores portugueses, que passaram pelo domínio celta, islâmico e cristão. Por isso, é uma herança sincrética mais presente em cidades do interior, onde as mudanças e as dinâmicas sociais são diferentes das da cidade grande. Mas o mau-olhado também está nas metrópoles, pois pessoas de áreas rurais migram e levam consigo as crendices. A diferença é que, na cidade, isso não é exposto claramente, ficando na família. Acredito que não perderemos essa característica. O homem confia na ciência, mas se cerca de todos os lados: se está doente, vai ao médico e à benzedeira. E o brasileiro é sincrético, como o português, influenciado por povos que acreditavam em mágica, como ciganos.” Lidice Meyer Pinto Ribeiro, antropóloga e professora de ciências da religião na Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo