TRADUÇÃO
A Ética da Crença
W. K. Clifford
Tradução de Rodrigo Jungmann de Castro
Um armador estava prestes a lançar ao mar um navio com emigrantes. Ele sabia que o navio era
velho, e que não fora muito bem construído em sua origem; que vira muitos mares e climas, e que
necessitara amiúde de reparos. Foram-lhe apresentadas dúvidas quanto à sua navegabilidade. Tais dúvidas
tomaram sua mente de assalto e o infelicitaram; ele pensou que talvez devesse vistoriá-lo e repará-lo por
completo, mesmo que isso implicasse grandes despesas para si mesmo. Antes que o navio partisse,
contudo, ele conseguiu superar estas reflexões melancólicas. Ele disse a si mesmo que o navio atravessara
em segurança tantas viagens e suportara tantas tempestades que era vã a suposição de que não retornaria a
salvo também desta jornada. Ele confiaria na Providência, que dificilmente deixaria de proteger aquelas
infelizes famílias, que deixavam sua pátria em busca de melhor sorte alhures. Ele buscou tirar da mente
todas as suspeitas mesquinhas acerca da honestidade dos construtores e empreiteiros. Desta forma, ele
obteve a sincera e cômoda convicção de que o seu navio era plenamente seguro e navegável; ele assistiu à
sua partida de coração leve, e desejos benevolentes pelo sucesso dos exilados em sua futura terra
estrangeira; e ele foi apanhar o dinheiro do seguro quando o navio afundou no meio do oceano e nada
mais disse a respeito.
O que devemos dizer deste homem? Seguramente que foi verdadeiramente culpado da morte
daquelas pessoas. Admite-se que ele acreditou sinceramente na solidez do seu navio; mas a sinceridade
dessa convicção em nada o ajuda, porque ele não tinha direito a formar sua crença com base na
evidência que tinha em mãos. Ele obteve tal crença não por ter direito genuíno a ela em razão de uma
investigação paciente, mas suprimindo suas dúvidas. E embora ele possa vir a ter se sentido tão seguro a
ponto de não poder pensar de modo diverso, ele deve ser considerado responsável pelo ocorrido por ter
consciente e deliberadamente buscado o estado mental em que veio a se encontrar.
Alteremos um pouco o caso e suponhamos que o navio não fosse inseguro; que tenha feito essa
viagem em segurança e muitas mais posteriormente. Isso diminuiria a culpa deste homem? Nem um
tantinho. Uma vez que uma ação é feita, ela é certa ou errada para sempre; nenhuma ausência acidental de
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bons ou maus frutos pode alterar isto. O homem não teria sido inocente; ele apenas não teria sido
apanhado em seu erro. A questão de certo ou errado diz respeito à origem de sua crença, não ao seu
conteúdo; não o que era, mas como ele a obteve; não diz respeito a ter se mostrado verdadeira ou falsa,
mas diz, sim, respeito ao homem ter ou não o direito a crer com base na evidência que tinha em mãos.
Houve certa vez uma ilha em que alguns habitantes professavam uma religião que não ensinava
nem a doutrina do pecado original nem a da punição eterna. Vazou para fora a suspeita de que aqueles que
professavam tal religião haviam se valido de meios inaceitáveis de ensinar suas doutrinas às crianças.
Foram acusados de violar as leis de seu país de uma tal maneira que subtraíram as crianças dos cuidados
de seus guardiões naturais e legais; e até mesmo de mantê-las escondidas de seus amigos e parentes. Um
certo número de homens formaram uma associação com o fim de agitar o público quanto a essa matéria.
Publicaram graves acusações contra cidadãos da mais alta posição e caráter, e fizeram tudo o que
puderam para atingir tais cidadãos no exercício de suas profissões. Criaram um alarido tão grande que foi
criada uma comissão para investigar os fatos, mas depois que a comissão avaliou toda a evidência que
obteve, revelou-se que os acusados eram inocentes. Não apenas haviam sido acusados com base em
evidência insuficiente, mas a evidência de sua inocência era tal que os agitadores poderiam tê-la obtido
facilmente, se tivessem feito uma investigação justa. Depois dessas revelações, os habitantes desse país
tiveram os membros da associação agitadora não apenas na conta de pessoas cujo julgamento não merecia
crédito, mas também de pessoas que não mais poderiam ser tidas como honradas. Pois, embora tivessem
acreditado sincera e conscienciosamente nas acusações feitas, eles não tinham o direito de formar tal
crença com base na evidência que tinham em mãos. Suas convicções sinceras, longe de terem sido
honestamente derivadas de uma investigação paciente, foram um furto devido à voz do preconceito e da
paixão.
Também alteremos as circunstâncias desse caso, e suponhamos, mantendo o restante do quadro
inalterado, que uma investigação ainda mais precisa tenha mostrado que os acusados eram de fato
culpados. Isso acarretaria alguma diferença no que concerne à culpa dos acusadores? Seguramente não;
pois a questão não é ter sido verdadeira ou falsa a sua crença, mas se foram geradas com os motivos
errados. Os acusadores diriam certamente, “Agora vocês vêem que estávamos certos no final das contas;
da próxima vez, vocês acreditarão em nós.” E talvez acreditassem neles, mas nem assim se tornariam
homens honrados. Não seriam inocentes; apenas não teriam sido apanhados. Cada um deles, se houvesse
buscado examinar-se in foro conscientiae, saberia que tinha obtido e nutrido uma crença à qual não
tinham direito com base na evidência que tinha em mãos; e, destarte, saberiam que haviam feito algo de
errado.
Poderia ser dito, contudo, que em ambos os casos imaginados não é a crença que se julga errada,
mas a ação dela decorrente. O armador poderia dizer, “Estou perfeitamente seguro de que meu navio é
sólido, mas ainda assim sinto ser meu dever examiná-lo antes de confiar à solidez do navio as vidas de
tantas pessoas.” E ao agitador poderia ser dito, “Por mais que você esteja convencido da justiça de sua
causa e da verdade de suas convicções, você jamais deveria fazer um ataque público ao caráter de um
homem antes de ter investigado a evidência favorável ou desfavorável com o máximo de paciência e
cuidado.”
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Em primeiro lugar, admitamos que, dentro de seus limites, esta visão do caso é correta e necessária;
correta, porque mesmo quando a crença de um homem está tão consolidada que ele não consegue pensar
de outra forma, ele ainda tem a possibilidade de escolha quanto à ação devida, e, portanto, não pode
evadir-se do dever de investigar só por causa da força de suas convicções; e necessária, porque aqueles
que ainda não são capazes de controlar os próprios sentimentos e pensamentos devem ter uma regra de
ação simples com atos em aberto.
Mas ainda que tomemos tal premissa como necessária, fica claro que não é suficiente, e que nosso
juízo anterior é necessário para suplementá-la. Pois não é possível separar a crença e a ação por ela
produzida de uma forma que se condene a segunda, sem se condenar a primeira. Nenhum homem com
uma crença forte a favor de uma posição quanto a uma questão, ou mesmo que queira crer em tal posição,
pode investigar a questão com o grau de justeza e completude que teria se realmente estivesse em dúvida,
sem ser movido por preconceito. Assim sendo, a existência de uma crença que não seja fundada numa
investigação justa torna o homem incapaz de cumprir o dever necessário.
Nem há na verdade sequer uma crença que não tenha alguma influência sobre as ações de quem
crê. Aquele que verdadeiramente acredita naquilo que gera uma ação já contemplou a ação com desejo, já
a cometeu em seu coração. Se uma crença não se manifesta imediatamente em ações visíveis, ela é
armazenada para guiar ações futuras. Torna-se parte daquele agregado de crenças que constitui o liame
entre a sensação e a ação em cada momento de nossas vidas, e que é de tal forma organizada e
compactada que nenhuma parte do agregado pode ser isolada do restante, mas cada novo acréscimo
modifica a estrutura do todo. Nenhuma crença, por mais banal e fragmentária que possa parecer, é
realmente insignificante; ela nos prepara para receber mais crenças assemelhadas, confirma aquelas a que
antes se assemelhava, e enfraquece outras; e, assim, estabelece uma tendência furtiva nos nossos
pensamentos, que algum dia podem, como numa explosão, manifestar-se em ações visíveis, e para sempre
deixar seu selo sobre nosso caráter.
E, de qualquer maneira, a crença de um homem não é jamais uma questão privada que afeta apenas
a ele. Nossas vidas são guiadas por aquela concepção geral do curso das coisas criadas pela sociedade
para propósitos sociais. Nossas palavras, nossas frases, nossas formas e processos e modos de
pensamento são propriedade comum, moldada e aperfeiçoada de uma época para a época seguinte; um
legado que cada geração herda como depósito precioso e fundo sagrado para ser transmitida à geração
seguinte, não sem mudanças, mas alargada e purificada, com algumas marcas claras da sua tessitura.
Nessa tessitura, para melhor ou para pior, é trançada toda crença de todo homem em comunicação com os
seus iguais. Um privilégio assombroso, e uma responsabilidade assombrosa, a de ajudarmos a criar o
mundo em que viverá a posteridade.
Nos dois casos imaginários que consideramos, julgamos errado crer com base em evidência
insuficiente, ou nutrir uma crença suprimindo dúvidas e evitando a investigação. A razão por trás desse
juízo não é difícil de localizar; em ambos os casos a crença de um homem foi de grande importância para
os outros homens. Mas como nenhuma crença aceita por um homem, por mais banal que seja a crença e
por mais obscuro que seja aquele que crê, é realmente insignificante ou sem efeito sobre o destino da
humanidade, não temos escolha que não seja a de estender o julgamento para todos os casos de crença,
em geral. A crença, essa faculdade sagrada que dá lugar às decisões de nossa vontade, e funde num
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trabalho harmonioso todas as energias compactadas do nosso ser, não nos pertence no nosso interesse,
mas no da humanidade. A crença é corretamente voltada para as verdades há muito estabelecidas por uma
longa experiência e labor vigilante, e que se manteve firme quando confrontada com um questionamento
ardente e destemido. Nesse caso, a crença ajuda a unir os homens e a fortalecer e dirigir sua ação em
comum. Ela é profanada quando oferecida a afirmações não comprovadas e não questionadas, apenas para
o consolo e prazer pessoal de quem crê, para prover de um falso esplendor a trajetória comum de nossas
vidas e para exibir uma miragem luminosa para além delas; ou mesmo para afogar as tristezas de nossa
espécie por meio de um auto-engano que lhes permite não apenas nos abater mas também nos degradar.
Quem quer que deseje merecer a estima dos seus iguais nessa matéria guardará a pureza de sua crença
com um verdadeiro fanatismo cuidadoso, para que se evite que a qualquer momento a crença se prenda a
um objeto indigno e receba uma nódoa que não pode ser apagada.
Não é apenas o líder de homens, estadista, filósofo, ou poeta, que tem esse dever para com a
humanidade. Todo indivíduo rústico que profere suas afirmativas lentas e esparsas na cervejaria de um
vilarejo, pode ajudar a matar ou a manter viva a superstição fatal que atravanca sua raça. Toda mulher
trabalhadeira de um artesão pode transmitir aos seus filhos crenças que manterão a sociedade unida, ou a
partirão em pedaços. Não há simplicidade de intelecto ou obscuridade de condição que possa servir como
pretexto para que alguém possa se evadir ao dever universal de questionar tudo aquilo em que cremos.
É bem verdade que este dever é árduo, e que a dúvida a que dá ensejo é amiúde algo de muito
amargo. Ele nos deixa necessitados e impotentes onde pensávamos estar seguros e fortes. Saber tudo
sobre alguma coisa é saber como lidar com ela em todas as circunstâncias. Sentimo-nos muito mais
felizes e mais seguros quando pensamos saber precisamente o que fazer, não importa o que aconteça, do
que quando perdemos o nosso caminho e não sabemos para onde nos virar. E se supomos que
conhecemos tudo sobre alguma coisa, e que somos capazes de fazer o que é adequado no que lhe
concerne, é natural que não gostemos de descobrir que na verdade somos ignorantes e impotentes, que
temos que começar de novo do começo, e tentar aprender o que é a coisa e como devemos lidar com ela.
É a sensação de poder ligada à sensação de conhecer que deixa os homens desejosos de crer e com medo
de duvidar.
Essa sensação de poder é o mais elevado e o melhor dos prazeres quando a crença em que está
fundada é uma crença verdadeira, adquirida com justeza pela investigação. Pois nesse caso podemos com
razão sentir que é propriedade comum, e tão válida para os outros quanto para nós. Então, podemos nos
alegrar, não porque eu aprendi segredos que me deixam mais seguro e mais forte, mas porque nós homens
ganhamos um maior domínio do mundo; e seremos fortes, não para nós mesmos, mas em nome da
Humanidade e de sua força. Mas se a crença foi obtida com evidência insuficiente, o prazer é roubado.
Não apenas nos engana dando-nos uma sensação de poder que na verdade não possuímos, mas é
pecaminosa, porque é roubada afrontando o nosso dever para com a humanidade. Esse dever é o de nos
precavermos de tais crenças como de uma pestilência, que em breve pode tomar conta de todo o nosso
corpo e em seguida se espalhar pelo resto da cidade. O que pensar daquele que, em busca de um doce
fruto, deliberadamente corra o risco de trazer uma praga para a sua família e seus semelhantes?
E, assim como em outros casos tais, não é apenas o risco que tem de ser considerado; pois uma má
ação é sempre má quando realizada, em nada importando o que aconteça depois. Todas as vezes em que
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nos permitimos crer por razões indignas enfraquecemos nossa capacidade de auto-controle, de duvidar, de
pesar a evidência de forma equilibrada e judiciosa. Todos nós sofremos bastante gravemente com a
permanência e o apoio a crenças falsas e com os atos fatalmente errados que elas produzem, e o mal em
que se incorre quando uma crença dessa natureza é albergada é grande e amplo. Mas um mal ainda maior
e mais amplo se manifesta quando uma atitude crédula é mantida e apoiada, quando o hábito de crer por
razões indignas é fomentado e tornado permanente. Se eu roubo dinheiro de alguma pessoa, pode não
haver dano na mera transferência de propriedade; a perda pode não ser sentida, ou pode impedir que o
dinheiro seja mal usado. Mas eu não poderia evitar este grande mal-feito à Humanidade, a saber o de que
me tornaria desonesto. O que fere a sociedade não é o fato de que possa perder sua propriedade, mas que
se torne um covil de ladrões; pois então deixaria de ser uma sociedade. É por este motivo que não
devemos fazer o mal para que sobrevenha o bem; pois em todo caso esse grande mal sobreveio: o de
termos feito o mal e destarte nos termos tornado perversos. De maneira análoga, se me permito crer em
alguma coisa com base em evidência insuficiente, é possível que nenhum grande dano seja causado pela
simples crença; ela pode ser verdadeira no final das contas, ou pode ser que eu jamais a exiba em ações
externadas. Mas eu não poderia evitar este grande mal-feito à Humanidade, a saber o de que me tornaria
crédulo. O perigo para a sociedade não é apenas o de crer em coisas erradas, embora esse perigo seja
grande o bastante; mas o de que ela se torne crédula e perca o hábito de testar as coisas e de examiná-las;
pois assim ela haveria de retornar à barbárie.
O dano causado pela credulidade de um homem não se limita à promoção de uma atitude crédula
nos outros, e o apoio resultante a crenças falsas. A habitual falta de cuidado quanto àquilo em que creio
leva a uma habitual falta de cuidado entre os outros a respeito daquilo que é dito a mim. Os homens
dizem a verdade uns aos outros quando cada um deles reverencia a verdade em sua própria mente e a
verdade na mente do outro; mas como meu amigo teria reverência pela verdade na minha mente quando
eu mesmo for descuidado a respeito dela, quando creio em coisas porque quero crer nelas, e porque são
confortadoras e agradáveis? Ele não aprenderá a gritar “Paz” para mim, quando não há paz? Desta
maneira, eu me cercaria de uma atmosfera espessa de falsidade e fraude, e nela haveria de viver. Pode
significar pouco para mim, em meu castelo de nuvens de doces ilusões e mentiras prediletas; mas
significa muito para a Humanidade o fato de eu ter tornado meus semelhantes propensos a enganar. O
homem crédulo é o pai do mentiroso e do tapeador; ele vive no seio dessa sua família, e não é de admirar
que ele se torne o mesmo que os outros são. Nossos deveres são de tal modo entrelaçados, que quem quer
que queira observar toda a lei, mas cause ofensa em um ponto, é culpado de tudo.
Em suma: é sempre errado, em toda parte e para todos, crer em qualquer coisa com base em
evidência insuficiente.
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