O REDIMENSIONAMENTO DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO NO
NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Arnaldo de A. Machado Júnior, advogado,
especialista em direito processual civil pela Fanese,
Mestre de Direito Processual pela Unicap, professor do
curso de graduação em direito na Fase e Fanese,
professor do curso de pós-graduação em direito civil e
processo civil na Unit, membro do Conselho Seccional
da OAB/SE e presidente da Comissão de
Acompanhamento Legislativo da OAB/SE.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O Sistema Normativo Brasileiro: modelo de regras e princípios 3.
Distinção entre Regras e Princípios e sua Importância para o Presente Estudo. 4. O Princípio
Constitucional do Contraditório no Processo Civil: Conceituação, Natureza Jurídica e Alcance 5.
O Realinhamento do Princípio Constitucional do Contraditório Disciplinado no Novo Código de
Processo Civil. 6. Conclusão. 7. Referências Bibliográficas
1. INTRODUÇÃO
Há algum tempo processualistas de escol defendem que o Código de Processo Civil deve
ser visto como uma ferramenta importante para a densificação dos direitos fundamentais
materiais e processuais civis. Essa é a perspectiva do Estado constitucional moderno, que exige a
leitura do direito de ação insculpido no inciso XXXV, do art. 5º, da Constituição Federal, como
direito a um processo justo, à tutela jurisdicional adequada, efetiva e tempestiva dos direitos.
Proclama-se que o fim do processo é a proteção efetiva dos direitos materiais. A ciência
processual passou a girar em torno de resultados práticos para o detentor do direito material;
daquele que encontra no judiciário a sua última alternativa de justiça. O processo passou a ter o
dever de se adaptar aos seus fins, adequando-se às exigências dos litígios e dos direitos a serem
tutelados.
Essa perspectiva do processo civil moderno encontra guarida e fonte na própria
Constituição, especialmente por meio da constitucionalização do processo, que proporcionou
uma influência importante no regime especial dos direitos fundamentais, dentre eles os
relacionados ao processo. Aos poucos os princípios processuais foram sendo inseridos nas Leis
Fundamentais, como foi o caso da Constituição Federal da República Federativa do Brasil de
1988, que expressamente estabeleceu, dentre eles, o acesso à justiça (art. 5º, XXXV), o devido
processo legal (art. 5º, LIV), a ampla defesa (art. 5º, LV), a duração razoável do processo (art. 5º,
LXXVIII) e o contraditório (art. 5º, LV).
Ao contrário do que se supunha, sob a influência do Estado Liberal, entende-se que não
se garante a democracia com o simples pronunciamento judicial ancorado no texto de lei. No
Estado constitucional contemporâneo, democrático, impõe-se o direito de participação em uma
maior escala. Defende-se que se deve “acrescentar à dimensão representativo-legislativa da
1
democracia a sua dimensão participativo-jurisdicional”, representada pelo direito fundamental ao
contraditório. 1
O Projeto de Lei nº 8.046/2010, que trata do novo Código de Processo Civil Brasileiro,
aprovado pelo Senado Federal no dia 15.12.2010, e que provavelmente nos próximos meses
obterá sua aprovação na Câmara dos Deputados, prestigiou sobremaneira o contraditório. Por
intermédio especialmente da inserção do princípio da cooperação, faceta do contraditório, que
disciplina a colaboração constante entre juiz e partes durante toda a marcha processual, pretendese adequar o princípio do contraditório aos novos desafios do processo civil contemporâneo:
proporcionar uma tutela jurisdicional justa.
A inovação legislativa concernente ao princípio do contraditório trazida pelo novo
Código de Processo Civil, muito se assemelha aos dizeres do art. 266, do Código de Processo
Civil Português, que sobreleva no plano normativo processual civil o princípio da cooperação
entre os litigantes e o juiz. Esse redimensionamento do princípio do contraditório implicará
mudanças significativas na condução do processo por parte do juiz, independente do conteúdo
dos atos judiciais, ou até mesmo da fase processual.
A doutrina se ressente de estudos voltados para esse tema, especialmente sob aspecto da
cooperação, tornando-se necessário estudar o aludido princípio sob a perspectiva contemporânea
da efetividade, enquanto instrumento imprescindível para a obtenção de um processo judicial
democrático e justo, obediente ao nosso modelo de Estado constitucional, que se compromete
com a entrega da tutela jurídica do direito material em plenas condições de fruição.
Nesta pesquisa pretende-se empregar maior atenção ao princípio do contraditório no
processo civil em sua feição substancial, correlacionada à sua faceta da cooperação
intersubjetiva. O processo civil será trabalhado sob a perspectiva de técnica estatal que conjuga o
exercício da atividade jurisdicional com o exercício do direito subjetivo de ação e defesa,
reservando-se ao direito de tratar superficialmente da ação e da jurisdição, no limite do
estritamente exigível para a compreensão dos temas relacionados.
2. O SISTEMA NORMATIVO BRASILEIRO: MODELO DE REGRAS E PRINCÍPIOS
A estrutura normativa do nosso sistema jurídico, com fulcro em nosso texto
constitucional, apresenta-se composto por regras e princípios jurídicos. Todavia, torna-se
importante, nesse momento, tecer alguns comentários sobre outros dois tipos de sistemas
jurídicos propostos pela doutrina, a fim de bem compreendê-los e diferenciá-los com relação ao
sistema jurídico brasileiro.
De acordo com a doutrina prevalente, um sistema jurídico composto exclusivamente de
regras, o denominado “modelo de regras”, apresenta-se como sendo um sistema jurídico
definitivamente fechado, pautado nos postulados do positivismo jurídico. Assenta-se, de forma
central, nos preceitos da racionalidade e da segurança jurídicas. 2
Denota-se que um sistema jurídico constituído exclusivamente por regras apresenta-se
limitado, em virtude de seu excesso de racionalidade prática. Em nome de um modelo
excessivamente seguro, tem-se a ausência de espaço livre para a complementação e
desenvolvimento do próprio sistema jurídico como um todo. Não há espaço para uma interface
1
MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O Projeto do CPC: crítica e propostas. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2010, p. 19.
2
QUEIROZ, Cristina M. M. Direitos Fundamentais: teoria geral. Coimbra - Portugal: Coimbra, 2002, p. 127.
2
contínua entre os valores/interesses sociais e o sistema jurídico. Este, composto exclusivamente
por regras, ignora o fato de vivermos em uma sociedade dinâmica, pluralista e aberta por
excelência. 3
Em contrapartida ao sistema jurídico baseado exclusivamente em regras, existe também o
sistema jurídico calcado exclusivamente em princípios jurídicos. Esse modelo caracteriza-se pela
inexistência de regras, coexistência de princípios conflituantes e dependência do contexto fático
e jurídico. Por sua indeterminação, este sistema jurídico apresenta-se como sendo bastante falho,
por lhe faltar o mínimo de segurança jurídica, o que proporciona uma incapacidade latente de
reduzir sua própria complexidade. Conforme bem afirma Canotilho 4, “qualquer sistema jurídico
carece de regras jurídicas (...)”.
Depreende-se que o sistema jurídico compõe-se, necessariamente, de regras e princípios,
como é o caso do sistema jurídico brasileiro. Isso porque, em suma, o sistema jurídico tanto
precisa de uma racionalização do processo de construção das decisões jurídicas, ancorada na
segurança jurídica, quanto necessita de uma comunicação diuturna com os valores sociais, estes
otimizáveis através da inserção dos princípios na estrutura normativa do ordenamento. 5
O estudo das regras e princípios jurídicos são de fundamental importância para o estudo
das normas constitucionais do processo, a exemplo do princípio do contraditório. Temas como
interpretação evolutiva da constituição, eficácia das normas constitucionais, que tanto se
relacionam com o estudo dos direitos fundamentais, sofrem influência dessa reflexão, apesar de
não serem objeto de anállise por meio desse trabalho.
Nesse contexto, torna-se relevante para o presente trabalho um maior aprofundamento
das particularidades das regras e princípios jurídicos, enquanto componentes da estrutura
normativa do ordenamento jurídico, sem, no entanto, pretender esgotar o tema.
3. DISTINÇÃO ENTRE REGRAS E PRINCÍPIOS E SUA IMPORTÂNCIA PARA O
PRESENTE ESTUDO
Contemporaneamente, estuda-se a estrutura normativa do ordenamento jurídico a partir
das regras e dos princípios jurídicos. 6 Ou seja, as regras e os princípios são considerados
espécies de normas jurídicas. Já o estudo das diferenças existentes guarda uma relação de
importância para o presente estudo, vez que contribui para disciplinar alguns pontos relevantes
da teoria geral dos direitos fundamentais, sobretudo no que se refere à eficácia dos direitos
fundamentais 7, como no caso do direito fundamental ao contraditório. Conforme bem enfatiza
3
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. 2. reimp. Coimbra –
Portugal: Coimbra, 2003, p. 1162.
4
Ibid., p. 1162.
5
Consoante Canotilho, “(...) os princípios têm uma função normogenética e uma função sistémica: são o
fundamento de regras jurídicas e têm uma idoneidade irradiante que lhes permite ‘ligar’ ou cimentar objectivamente
todo o sistema constitucional” (Ibid., p. 1163).
6
Ibid., p. 322; BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: o princípio da
dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 43.
7
A respeito das espécies de normas jurídicas, merece destaque abordagem de Alexy, segundo o qual: “Tanto las
reglas como los principios son normas porque ambos dicen lo que debe ser. Ambos pueden ser formulados con la
ayuda de las expresiones deónticas básicas del mandato, la permisión y la prohibición (…). La distinción entre
reglas y principios es pues una distinción entre dos tipos de normas” (ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos
Fundamentales. Madrid - España: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002, p. 81-82).
3
Willis Santiago Guerra Filho 8, os direitos fundamentais se situam no campo normativo dos
princípios jurídicos.
A partir da diferenciação entre regras e princípios pode-se compreender melhor porque
uma norma jurídica tem a natureza de regra ou de princípio, além da repercussão que essa
diferença proporciona no tocante à eficácia jurídica da norma em questão. Até mesmo a resposta
para o fato de determinada norma jurídica alcançar resultados/efeitos independente de qualquer
atuação legislativa suplementar, enquanto outras não, depende, de forma indubitável, dessa
importante distinção.9
Consoante Alexy 10, além da distinção entre regras e princípios jurídicos viabilizar uma
teoria normativo-material acerca dos direitos fundamentais, destaca-se também a sua
contribuição no sentido de responder à questão concernente à possibilidade e limites de
racionalidade dos direitos fundamentais. De acordo com o autor, essa distinção é um dos pilares
fundamentais do edifício da teoria dos direitos fundamentais.
O conhecimento dos caracteres que identificam e diferenciam regras e princípios
jurídicos contribuem para a solução de conflitos porventura existentes entre essas duas espécies
de normas jurídicas. 11 Não se pode deixar de levar em consideração sua contribuição para com o
desvendar do papel dos direitos fundamentais, enquanto instrumento de interface entre as
expectativas sociais e o sistema jurídico, que bem caracteriza a textura aberta do nosso
ordenamento jurídico.
É certo que o estudo da distinção entre regras e princípios jurídicos não é novo; porém,
por ser uma tarefa bastante complexa, ainda é alvo de sérios questionamentos doutrinários. Nesse
particular, vários são os pontos destacados. Todavia, tendo em vista a impossibilidade de se
trabalhar o tema em sua plenitude, serão levantadas apenas as principais diferenças encontradas
pela doutrina sobre a matéria.
O primeiro ponto de distinção destacado tem sido no que concerne ao diferente grau de
abstração entre as duas espécies de normas jurídicas. As regras são normas impositivas que
prescrevem uma exigência que é ou não cumprida (applicable in all-or-nothing fashion). Já os
princípios são normas impositivas de otimização não específicas, que são compatíveis com
vários degraus ou graus de concretização, a depender dos condicionamentos fáticos e jurídicos.
Isto é, enquanto os princípios possuem um alto grau de abstração, as regras possuem um baixo
grau de abstração. 12 Consoante Hart 13, “(...) aquilo que seria encarado como um número de
regras diferentes pode ser apontado como exemplificações ou ilustrações de um único princípio.
8
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 4. ed. São Paulo: RCS,
2005, p. 55; Todavia, malgrado geralmente as normas de direitos fundamentais serem concebidas como princípios
jurídicos, não se pode desprezar o fato de que, em alguns casos, as normas de direitos fundamentais são concebidas
como regras jurídicas (ALEXY,op.cit., p. 98-101).
9
BARCELLOS, op.cit., p. 45.
10
Consoante Alexy, “La distinción entre reglas y principios constituye, además, el marco de una teoría normativomaterial de los derechos fundamentales y, con ello, un punto de partida para responder a la pregunta acerca de la
posibilidad y los límites de la racionalidad en el ámbito de los derechos fundamentales. Por todo esto, la distinción
entre reglas y principios es uno de los pilares fundamentales del edificio de la teoría de los derechos fundamentales”
(ALEXY, op.cit.,, p. 81-82).
11
SILVA, Sandoval Alves da. Direitos Sociais: Leis Orçamentárias como Instrumento de Implementação. Curitiba:
Juruá, 2007, p. 56.
12
CANOTILHO, op.cit.,, p. 1161;
13
Hart inseriu em sua obra ‘O Conceito de Direito’, de forma ‘pós-escrita’, trechos sobre a distinção entre regras e
princípios jurídicos. Consoante se depreende, o referido autor se sentiu obrigado a lançar mão de comentários a
respeito dos princípios, vez que, por equívoco, teria deixado de dar tal destaque em sua obra, originariamente, ao
4
Consoante Dworkin 14, ambas as espécies de normas jurídicas apontam decisões
particulares acerca da obrigação jurídica em determinadas situações específicas. Todavia, as
regras jurídicas são aplicáveis de forma taxativa, no sentido do tudo ou nada, de maneira que esta
modalidade de norma jurídica não permite qualquer espécie de ponderação. Isso porque, em
sendo a regra válida, impõe-se sua observância na exata medida da conclusão do seu comando.
As regras, e seus comandos conclusivos, impõem, de uma só vez, a direção e o caminho
(conteúdo) da determinação, vez que exigem que se faça exatamente o que se determina. 15 Esse
comando conclusivo das regras fica mais evidente se tomarmos em consideração um exemplo
prático. Nesse sentido, merece menção o exemplo explorado por Ronald Dworkin 16, em sua obra
Taking Rights Seriously. De acordo com o autor, no beisebol, há uma regra que estabelece que se
o batedor errar três bolas estará fora do jogo. Nesse caso, o juiz do jogo não poderá deixar de
aplicar a regra, caso o batedor erre três bolas.
Trazendo para o campo jurídico essa discussão, sobretudo para o nosso ordenamento,
para fins de elucidação, merece registro um exemplo. Imaginemos que o réu, devidamente
citado, demandado em uma ação cível qualquer pelo procedimento ordinário, deixe de contestar
os termos da vestibular no prazo legal de 15 dias. Ora, de acordo com a inteligência dos arts. 297
e 319, ambos do Código de Processo Civil, os fatos articulados pelo autor deverão ser reputados
verdadeiros, para todos os fins de direito. Ou seja, caso um litigante incida nessa hipótese, não
caberá ao juiz decidir de forma diversa da prevista no comando conclusivo, nos exatos termos
dos arts. 297 e 319, do diploma sobredito.
Todavia, insta mencionar que podem existir exceções à aplicação de regras. Na hipótese
do jogo de beisebol, conforme ilustrou Dworkin, existe uma exceção à regra, que estabelece que
o batedor que errou três bolas não será eliminado se o pegador deixar a bola no terceiro lance. 17
Já com relação à falta de contestação no prazo de 15 dias, pode-se citar a exceção disciplinada no
art. 188, do Código de Processo Civil, que disciplina o prazo para contestação de 60 dias, quando
o réu for a fazenda pública ou o ministério público.
Quanto aos princípios, estes não contêm ordens definitivas, conclusivas, como as regras.
Muito pelo contrário, os princípios contêm ordens sujeitas a mudanças de acordo com as
circunstâncias do momento ou a realidade experimentada. Os comandos extraídos das espécies
de normas-princípios não são conclusivos, razão pela qual têm seus conteúdos influenciados pela
relação com outros princípios contrapostos, aplicáveis ao caso, bem como tendo em vista as
possibilidades jurídicas encontradas. Dessa maneira, tem-se que os princípios não ditam o
caminho (conteúdo), mas apenas a direção a ser tomada. 18
tratar da estrutura normativa do ordenamento jurídico (HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Tradução A.
Ribeiro Mendes. 5. ed. Lisboa - Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p. 322).
14
Sobre o assunto, merece registro passagem de Ronald Dworkin: “Rules are applicable in an all-or-nothing fashion.
If the facts a rule stipulates are given, then either the rule is valid, in which case the answer it supplies must be
accepted, or it is not, in which case it contributes nothing to the decision” (DWORKIN, Ronald. Taking Rights
Seriously. Massachusetts – United States of America: Harvard University, 2001, p. 24).
15
SILVA, op.cit., p. 59.
16
DWORKIN, op.cit., p. 24-25.
17
Ibid., p. 24-25; Como bem destacou Cristina Queiroz, “O facto de existir uma ‘regra de excepção’ ou ius singulare
em nada afecta ou prejudica o carácter de validade ou de vinculação geral das regras jurídicas por contraposição aos
princípios jurídicos” (QUEIROZ, op.cit., p. 132).
18
SILVA, op.cit.,, p. 58-59; A respeito do caráter não conclusivo dos princípios, sublinha-se passagem de Hart,
conforme: “Os princípios jurídicos diferem de tais regras de ‘tudo ou nada’ porque, quando são aplicáveis, não
‘obrigam’ a uma decisão, mas apontam para, ou contam a favor de uma decisão, ou afirmam uma razão que pode ser
5
Torna-se oportuno trazer um exemplo da aplicabilidade de um princípio jurídico, a fim de
que seja possível melhorar a sua compreensão, no sentido de melhor diferenciá-lo da regra
jurídica. A título de exemplo, menciona-se o caso Riggs versus Palmer, debatido em 1889 em
um tribunal de Nova Iorque, abordado por Dworkin, em sua obra Levando os Direitos a sério. O
referido caso decidiu se um herdeiro devidamente nomeado em testamento de seu avô poderia
herdar a fortuna, mesmo após ter assassinado seu avô com esse objetivo. Após analisar que as
leis que tratavam da matéria não estabeleciam qualquer exceção ao direito de herança do
assassino, o tribunal prosseguiu seu julgamento concluindo que “A ninguém será permitido
lucrar com sua própria fraude, beneficiar-se com seus próprios atos ilícitos, basear qualquer
reivindicação na sua própria iniqüidade ou adquirir bens em decorrência de seu próprio crime”.
Diante da aplicação do princípio do não benefício da própria torpeza, o tribunal entendeu que o
assassino não deveria receber a herança. 19
A partir da análise dos exemplos sobreditos, infere-se que, tendo em vista o maior grau de
abstração, os princípios não descrevem as condições necessárias para sua aplicação, motivo pelo
qual se aplicam a um número indeterminado de casos, e de maneiras diferentes. Ao contrário, as
regras impõem o exato cumprimento do seu conteúdo normativo, sobretudo diante de seu baixo
grau de abstração, motivo pelo qual se torna possível identificar as hipóteses de sua aplicação. 20
Como conseqüência lógica do caráter abstrato dos princípios, também se compreende
que, em tais espécies de normas jurídicas, exige-se um esforço interpretativo maior por parte do
intérprete, no sentido de tentar localizar seu sentido, bem como identificar a exata medida
(dimensão de peso) da solução/direção proposta para o caso. Já as regras jurídicas exigem apenas
perquirição a respeito de sua validade. Sendo válida, deve-se aplicar a regra jurídica na exata
medida em que fora editada, de outra forma, sendo inválida, não se deve aplicá-la, nos exatos
termos propostos pelo modelo do tudo ou nada. 21
Os princípios, diferentemente das regras, determinam que seus comandos sejam
realizados na melhor medida possível, adequando-se às possibilidades fáticas e jurídicas do caso,
sem desprezar as exigências de justiça e equidade ou outra dimensão da moralidade 22. Daí surge
a denominação dos princípios como comandos de otimização, ao passo que as regras são
denominadas comandos de definição. 23
Quanto ao conteúdo, os princípios jurídicos se baseiam na idéia de justiça, de eqüidade
ou moralidade, enquanto as regras possuem um conteúdo diversificado, não necessariamente
vinculado a tais postulados. Outro aspecto que bem diferencia as espécies de normas jurídicas
diz respeito às funções que exercem no ordenamento jurídico. Os princípios têm um papel
afastada, mas que os tribunais levam em conta, enquanto factor de inclinação num ou outro sentido. Chamarei,
abreviadamente, a este aspecto dos princípios o seu carácter ‘não conclusivo’“ (HART, op.cit., p. 323).
19
DWORKIN, op.cit., p. 23.
20
Ao se referir ao grau de abstração dos princípios e regras jurídicas, Ana Paula Barcellos opta por utilizar a
expressão “Estrutura Lingüística” (BARCELLOS, op.cit., p. 47-51).
21
DWORKIN, op.cit., p. 24; BARCELLOS, op.cit., p. 47-51.
22
A respeito dos princípios, cita-se conceituação idealizada por Dworkin, segundo o qual se trata de: “(...) a standard
that is to be observed, not because it will advance or secure an economic, political, or social situation deemed
desirable, but because it is a requirement of justice or fairness or some other dimension of morality” (DWORKIN,
op.cit., p. 22).
23
ALEXY, op.cit., p. 86-87; BARCELLOS, op.cit., p. 47-51; A respeito dos limites jurídicos dos princípios, merece
ênfase passagem de Canotilho, que lança mão de sua abordagem sob o tema utilizando a expressão “grau de
determinabilidade na aplicação do caso concreto”, conforme: “os princípios, por serem vagos e indeterminados,
carecem de mediações concretizadoras (do legislador, do juiz), enquanto as regras são susceptíveis de aplicação
directa” (CANOTILHO, op.cit.,, p. 1160).
6
explanatório e justificativo em relação às regras. Já com relação à validade, entende-se que a
validade dos princípios depende de seu próprio conteúdo, enquanto que as regras,
necessariamente, derivam de outras regras ou de princípios. 24
Malgrado a diferença existente entre regras e princípios jurídicos, não se pode olvidar que
ambas as modalidade de normas jurídicas exigem uma concretização ou obediência plena. Não
se discute se ambas são ou não comandos imperativos. Ambas detêm, igualmente, comandos de
dever-ser, que impõem obediência. Contudo, não se pode ignorar as especificidades de cada uma
delas. A diferenciação relevante, nesse contexto, gira em torno da necessidade de uma maior
participação do intérprete quando se tratar de aplicação de princípio, vez que, ao contrário das
regras, quando se trata de princípios, não é possível depreender uma conduta específica a ser
perseguida. 25
Apesar do esforço doutrinário, há bastante tempo já empreendido, deve-se levar em
consideração que as regras e os princípios jurídicos podem, em determinadas ocasiões,
desempenhar papéis bastante semelhantes, dificultando assim a sua diferenciação. 26
A importância de se identificar no caso em concreto a espécie de norma legal deve-se à
necessidade melhor compreensão dos efeitos jurídicos correlatos ao seu comando legal de
regência. Além disso, surge também a preocupação de se solucionar possíveis antinomias
principiológicas, a exemplo dos conflitos entre os princípios do contraditório e da duração
razoável do processo, que, via de regra, resolvem-se pela via da proporcionalidade, enquanto
instrumento de uniformização do ordenamento jurídico.
4. O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO CONTRADITÓRIO NO PROCESSO CIVIL:
CONCEITUAÇÃO, NATUREZA JURÍDICA E ALCANCE
O direito fundamental ao contraditório está previsto em nosso texto constitucional, por
intermédio do inciso LV, do art. 5º, que estabelece: “aos litigantes, em processo judicial ou
administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os
meios e recursos a ela inerentes”.
A Constituição Federal de 1988 trouxe uma importante contribuição, já que vinculou o
contraditório aos processos criminal, civil e administrativo, ao contrário da Constituição Federal
de 1969, que em seu art. 153, §16, garantia o contraditório apenas na hipótese de instrução
criminal. Entretanto, frise-se de passagem que, já na ocasião do texto constitucional revogado,
havia entendimento doutrinário de que o referido princípio deveria se aplicar também ao
processo civil e administrativo 27.
O princípio do contraditório assegura à parte a possibilidade de produzir uma assertiva
contrária àquela produzida pelo seu adversário, seja ele autor ou réu, de modo que nenhuma
24
HART, Herbert op.cit., p. 322; BARCELLOS, op.cit., p. 47-48.
ÁVILA, Humberto Bergmann. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade.
Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro: Renovar, v. 215, p. 151-179, jan./mar. 1999. As críticas estão nas
p. 161-164.
26
De acordo com Dworkin, em determinadas situações, a semelhança entre as regras e princípios jurídicos é
tamanha que se reduziria apenas a uma questão de forma, senão vejamos: “Sometimes a rule and a principle can
play much the same role, and the difference between them is almost a matter of form alone” (DWORKIN, op.cit., p.
27).
27
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 8. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004, p. 169.
25
7
decisão judicial pode ser prolatada antes 28. O contraditório garante a oportunidade à parte de
contribuição efetiva para o convencimento do magistrado sobre determinado aspecto que lhe
possa causar prejuízo processual.
Tem-se o contraditório como manifestação do próprio Estado Democrático de Direito,
que exige um processo judicial pautado na igualdade das partes e no equilíbrio entre o direito de
ação e de defesa. Dessa maneira, tanto o direito de defesa como o direito de ação são
manifestações indubitáveis do princípio do contraditório 29.
Contudo, malgrado o contraditório incida sobre o processo civil, penal e administrativo,
não se deve ignorar as particularidades decorrentes da natureza do direito material posto em
juízo. Enquanto princípio, como já estudado, infere-se seu alcance em cada caso em concreto,
levando-se em consideração a natureza da causa, assim como os bens contrapostos.
Nessa argúcia, apesar de o contraditório se fazer presente no processo civil, penal e
administrativo, tendo em mira a natureza do direito posto em juízo, exige-se nas causas criminais
que o aludido princípio tenha um alcance ainda maior que o exigido para o processo civil. A
título de exemplo, basta lembrar que no processo penal exige-se defesa técnica eficiente, sob
pena de nulidade, caso seja verificado prejuízo para o réu, enquanto que no processo civil, de
regra, exige-se apenas oportunidade de manifestação prévia e efetiva, independente da aptidão
técnica da peça manuseada pela parte30.
Inobstante o contraditório possuir uma dimensão ou amplitude maior no processo penal
em cotejo com o processo civil, não significa dizer que este albergue apenas o contraditório em
sua roupagem formal. Longe disso. Atualmente a feição substancial do contraditório também se
faz presente no processo civil, enquanto processo que pretende realizar a justiça no caso em
concreto, por meio do alcance da verdade real 31.
Sobre a feição formal e substancial do contraditório no processo civil, merece registro
ensinamento de Didier 32:
28
Sobre o tema, merece destaque: “O contraditório tem como requisito a participação das partes na formação das
lides processuais, assegurando sua eficiência apenas se for possibilitada aos componentes da relação, atuação na
inteireza dos procedimentos. Se o cidadão não tem a oportunidade de defesa está se esteliolando o princípio da
isonomia porque houve oportunidade para a acusação, impedindo que todos sejam iguais perante a lei e, igualmente,
obstaculariza-se que a verdade real possa ser concretizada” (AGRA, Walber de Moura. Curso de Direito
Constitucional. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 224).
29
NERY JUNIOR, op.cit., p. 170. Sobre esse ponto, ver também Didier: “O princípio do contraditório é reflexo do
princípio democrático na estruturação do processo. Democracia é participação, e a participação no processo opera-se
pela efetivação da garantia do contraditório. O princípio do contraditório pode ser decomposto em duas garantias:
participação (audiência; comunicação; ciência) e possibilidade de influência na decisão” (DIDIER JR., Fredie.
Curso de Direito Processual Civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. 12. ed. Salvador:
JusPODIVM, 2010, v. I, p. 52).
30
É o que disciplina a Súmula nº 523, do Supremo Tribunal Federal: “No processo penal, a falta de defesa constitui
nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova do prejuízo para o réu”. Outro exemplo
também emblemático é o da revelia no processo penal e no processo civil.
31
Sobre o tema da verdade real no processo civil, destaca-se: “No estágio atual da evolução do pensamento do
processo civil não se justifica admitir deva ele se contentar com uma outra ‘verdade’ que não aquela que
corresponda, na medida do possível, àquilo que realmente ocorreu ou está para ocorrer no mundo dos fatos e, por
isto mesmo, dá ensejo à provocação da atuação jurisdicional. Se o que se busca no processo penal é uma ‘verdade
real’, é esta mesma verdade que deve motivar o processo civil (...). Os valores constitucionais a serem realizados
pelo processo, civil ou penal, são os mesmos. O ‘modo de ser’ do processo é um só, totalmente vinculado à
Constituição Federal” (BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil: Teoria geral
do direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2007, v. I, p. 110-111).
32
DIDIER JR., op.cit., p. 52. Nesse mesmo sentido, cita-se passagem de Donizetti: “Em um sentido formal, é o
direito de participar do processo, de ser ouvido. Mas essa participação há de ser efetiva, capaz de influenciar o
8
A garantia da participação é a dimensão formal do princípio do contraditório. Tratase da garantia de ser ouvido, de participar do processo, de ser comunicado, poder
falar no processo (...). Há, porém, a dimensão substancial do princípio do
contraditório. Trata-se de poder de influência (...). É necessário que se permita que
ela seja ouvida, é claro, mas em condições de poder influenciar a decisão do
magistrado.
Embrenhando nessa mesma linha de raciocínio, segue Portanova 33:
Assim, não basta intimar a parte para manifestar-se, ouvi-la e permitir a produção de
alegações e provas. Mais do que isso, o contraditório tem que ser pleno e efetivo, e
não apenas nominal e formal. Mais do que acolher as razões das partes, o
contraditório preocupa-se com o fato de estas influírem efetivamente no
convencimento do juiz e até de criar dúvida em seu convencimento (...). O processo
civil cada vez mais se aproxima do processo penal na medida em que se preocupa
também com a qualidade da defesa da parte.
Compulsando o Código de Processo Civil vigente, pode-se abstrair em várias passagens
citações ao princípio do contraditório, ou até mesmo ao direito de manifestação prévia das
partes, denotando a preocupação do legislador em assegurar um processo legitimamente
democrático. A título de amostragem, cita-se o art. 125, inciso I, que impõe ao magistrado o
dever de “assegurar às partes igualdade de tratamento”, assim como o art. 398, que determina
que “sempre que uma das partes requerer a juntada de documento aos autos, o juiz ouvirá, a seu
respeito, a outra, no prazo de 5 (cinco) dias”.
Mas a evolução do princípio do contraditório no processo civil não ficou estagnada ao
estudo de sua feição substancial. Como bem destaca Bueno 34, a doutrina processual civil
brasileira mais recente, amparada na doutrina estrangeira (dentre elas, a portuguesa e a francesa),
tem defendido a existência do “princípio da cooperação”, que seria uma faceta, um
redimensionamento do princípio do contraditório. Este, por essa leitura mais recente, exigiria um
necessário e constante diálogo entre o juiz e as partes (cooperação intersubjetiva), com o fito de
alcançar uma decisão democrática e mais justa.
Contudo, mesmo hodiernamente doutrina e jurisprudência acordando a respeito da
roupagem substancial do contraditório no processo civil, ainda persiste uma controvérsia: o
magistrado é sujeito passivo do contraditório? A questão não é pacífica.
Enfrentando essa questão, filiando-se à corrente que entende que o alcance do
contraditório atinge sem dúvida o magistrado, se posiciona Portanova 35:
As partes não podem ser surpreendidas por decisão que se apóie numa visão jurídica
que não tinham percebido ou tinham considerado sem maior significado (...). Além
disso, a parte deve tomar conhecimento de eventual novo rumo que o juízo irá tomar.
convencimento do magistrado. Não adianta simplesmente ouvir a parte; a manifestação há de ser capaz de
influenciar na formação da decisão. Essa é a perspectiva substantiva do contraditório” (DONIZETTI, Elpídio. Curso
Didático de Direito Processual Civil. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 88).
33
PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 161.
34
BUENO, op.cit.,, p. 109.
35
PORTANOVA, op.cit., p. 162.
9
Trilhando nessa mesma linha de raciocínio, Fredie 36 aborda uma distinção pouco
trabalhada pela doutrina: poder conhecer de ofício não significa poder agir de ofício. Segundo
ele, o magistrado tem autorização legal para conhecer de determinadas matérias de ofício
(questões de ordem pública), mas não pode agir de ofício, causando prejuízo processual para as
partes, sem que estas tenham tido previamente oportunidade de manifestação e, portanto, de
contribuição para o convencimento. O contraditório imporia ao magistrado, mesmo nos casos de
conhecimento de matéria de ofício, o dever de ouvir previamente as partes antes da tomada de
decisão, forte no princípio da cooperação. Em forma de arremate, o autor define que “essa nova
dimensão do princípio do contraditório redefine o modelo do processo civil brasileiro. O
processo há de ser cooperativo”.
Em alguns sistemas jurídicos o princípio da cooperação mostra-se tão intenso que se o
magistrado entender dar ao caso uma solução estranha à que foi objeto de debate das partes, estas
terão o direito de serem cientificadas previamente da linha de raciocínio que poderá ser
desenvolvida pelo juiz, para que sobre ela possam se manifestar, de maneira que seja possível
efetivamente participar/contribuir para o processo de construção da decisão judicial. 37
Essa visão, ancorada na feição substantiva do contraditório no processo civil, prestigia
sobremaneira a lealdade processual entre todos os sujeitos da relação, em respeito ao
compromisso político, social e jurídico que a atuação jurisdicional tem com a realização da
justiça, mediante o desnudamento da verdade real no caso em concreto.
Mas há doutrinadores, como Donizetti, que entendem de forma adversa. Como se sabe,
por meio dos arts. 131 e 462, o juiz pode levar em consideração no julgamento da causa
circunstâncias fáticas não alegadas pelas partes, assim como, com respaldo no art. 267, §3º, pode
conhecer, de ofício, das chamadas questões de ordem pública. Sob esse argumento, o citado
autor justifica seu posicionamento com fulcro no interesse público, superior e indisponível, na
correta formação e desenvolvimento do processo. Isso porque, tanto o conhecimento como a
decisão sobre questões de ordem pública, sem a ouvida das partes, atenderia à coletividade, por
evitar a realização de atos desnecessários, em fiel sintonia com o princípio da economia
processual38.
Segundo esse entendimento, o contraditório não atingiria o magistrado que, dessa forma,
pode e deve, sem a ouvida das partes, conhecer e resolver as questões de ordem pública,
extinguindo o processo sem resolução de mérito, em razão da economia processual. Prestigia-se
a economia processual e postergar-se o contraditório para um momento posterior, por meio da
oportunidade para a interposição do recurso em face da decisão terminativa. 39
Contudo, salvo melhor juízo, acredita-se que esse segundo entendimento não esteja
afinado com a perspectiva de Estado Constitucional, nem tampouco com a visão moderna do
processo civil. Ademais, salta aos olhos que essa segunda corrente doutrinária manuseando
incorretamente os mecanismos de integração/harmonização do sistema (proporcionalidade). Isso
porque, em nome da duração razoável do processo, mitiga-se o direito de participação
democrática no processo de construção da decisão, representado pelo direito fundamental ao
contraditório.
36
DIDIER JR., op.cit., p. 54-55.
BUENO, op.cit., p. 110.
38
DONIZETTI, op.cit., p. 88-89.
39
Como bem destaca Elpídio Donizetti, essa tem sido a conduta adotada pela grande maioria dos juízes deste país
(Ibid., p. 89).
37
10
Apesar de se reconhecer que a questão não é de fácil solução, tem-se em mente que a
segunda corrente confunde justiça célere com justiça acelerada, nos dizeres de Canotilho 40, por
pretender justificar a mitigação do princípio do contraditório na diminuição, a qualquer custo, do
tempo de duração do processo.
Entretanto, destaca-se que o Projeto de Lei nº 8.046/2010, que trata do novo Código de
Processo Civil, prestigia sobremaneira o contraditório substantivo, a ponto de inserir
expressamente o princípio da cooperação no sistema processual civil brasileiro. Com a vigência
do novo Código de Processo Civil, o magistrado também estará submetido ao princípio do
contraditório.
Diante disso, torna-se necessário um estudo mais acurado das mudanças propostas no
projeto relacionadas ao princípio contraditório, que, de forma indubitável, exigirão uma
importante adaptação na forma de condução do processo judicial por parte dos magistrados,
sobretudo no tocante às questões de ordem pública, de inversão do ônus da prova, dentre outras.
5. O REALINHAMENTO DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO CONTRADITÓRIO
DISCIPLINADONO NOVO CÓDIGODE PROCESSO CIVIL
Da leitura dos primeiros artigos do Projeto de Lei nº 8.046/2010, que trata do novo
Código de Processo Civil, infere-se claramente a preocupação do legislador em sintonizar o
diploma processual aos princípios constitucionais do processo, de acordo com o nosso modelo de
Estado Constitucional.
Tratando especificamente do contraditório, percebe-se um realinhamento importante,
responsável por mudanças significativas na condução do processo judicial. O princípio do
contraditório, que já tinha conquistado sua feição substancial, por meio do projeto sobredito,
conquistará definitivamente no cenário processual civil brasileiro sua faceta de cooperativa entre
as partes e o juiz.
Não restarão mais dúvidas a respeito da ingerência do contraditório sob todos os atos
judiciais, sejam eles reconhecíveis de ofício ou não. Ou seja, o magistrado tornar-se-á,
indubitavelmente, sujeito passivo do contraditório. Senão vejamos alguns dos dispositivos que
têm aptidão de evidenciar a linha de raciocínio desenvolvida preliminarmente nesse tópico:
Art. 1º. O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os
valores e os princípios fundamentais estabelecidos na Constituição da República
Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código.
Art. 5º. As partes têm direito de participar ativamente do processo, cooperando entre
si e com o juiz e fornecendo-lhe subsídios para que profira decisões, realize atos
executivos ou determine a prática de medidas de urgência.
Art. 7º. É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de
direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à
aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz velar pelo efetivo contraditório
em casos de hipossuficiência técnica.
40
CANOTILHO, op.cit., p. 499.
11
Art. 9º. Não se proferirá sentença ou decisão contra uma das partes sem que esta seja
previamente ouvida, salvo se se tratar de medida de urgência ou concedida a fim de
evitar o perecimento de direito.
Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em
fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se
manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual tenha que decidir de ofício.
Essas disposições decorrem do fato do direito fundamental ao contraditório se assentar no
valor participação entre as partes e o juiz, no diálogo próprio de um processo civil respaldado no
direito/dever de colaboração 41. O direito ao contraditório redimensionado no projeto apresenta a
necessidade de bilateralidade de todos os atos processuais, revelando a necessidade de
informação e possibilidade de reação das partes. O contraditório traz consigo a conjugação do
direito ao diálogo (partes) com o dever de debate (juiz). A partir da vigência no Novo Código de
Processo Civil, o juiz não só terá o dever de velar pela observância do contraditório entre as
partes, como também ele mesmo terá que observar o contraditório durante todo o processo 42.
A inovação legislativa concernente ao princípio do contraditório trazida pelo Projeto do
novo Código de Processo Civil muito se assemelha aos dizeres do art. 266, do Código de
Processo Civil Português, que sobreleva no plano normativo processual civil o princípio da
cooperação entre litigantes e juiz.
Nessa mesma argúcia, o legislador do projeto tomou como referência também o Código
de Processo Civil Francês, em seu art. 16, para afirmar, mesmo que de forma indireta, que o juiz
se submeterá ao contraditório, sendo assim sujeito passivo do referido princípio (arts. 10, do
Projeto do Novo Código de Processo Civil).
A preocupação do legislador em deixar clara a vinculação do magistrado ao contraditório,
fez com que diversos artigos assim tratassem do tema, fazendo referência a vários atos
processuais, como o conhecimento de matéria de ordem pública, que propicia normalmente a
extinção do processo sem julgamento de mérito, assim como a inversão do ônus da prova,
conforme:
Art. 110. O juiz decidirá a lide nos limites propostos pelas partes, sendo-lhe vedado
conhecer de questões não suscitadas a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte.
Parágrafo único. As partes deverão ser previamente ouvidas a respeito das matérias
de que deve o juiz conhecer de ofício.
Art. 262. Considerando as circunstâncias da causa e as peculiaridades do fato a ser
provado, o juiz poderá, em decisão fundamentada, observado o contraditório,
distribuir de modo diverso o ônus da prova, impondo-o à parte que estiver em
melhores condições de produzi-la.
§ 1º. Sempre que o juiz distribuir o ônus da prova de modo diverso do disposto no
art. 261, deverá dar à parte oportunidade para o desempenho adequado do ônus que
lhe foi atribuído.
41
42
MARINONI, op.cit., p. 20.
Ibid., p. 36.
12
Nessa perspectiva densificadora do princípio do contraditório, o Projeto de Lei nº
8.046/2010 estabelece vários deveres para o magistrado, alguns ainda não reconhecidos pela
doutrina dominante e pela legislação processual civil vigente, dentre os quais se destacam o
dever de esclarecimento, de diálogo, de prevenção e de cooperação para com os litigantes.
Contudo, a maior inovação reside no fato do novo Código de Processo Civil tornar o juiz
necessariamente sujeito passivo do princípio do contraditório. Até então no ordenamento jurídico
brasileiro, salvo hipóteses isoladas, o contraditório sempre teve um alcance limitado às partes
litigantes, não alcançando nesse contexto o Estado-juiz.
6. CONCLUSÃO
O contraditório, previsto no art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal, como dito,
garante o direito de participação e de democratização do processo judicial, baseando-se no dever
de diálogo, de cooperação entre o juiz e as partes durante toda a marcha processual. O modelo
constitucional do processo civil exige que o processo seja justo, de modo que proporcione uma
tutela jurídica adequada e em tempo razoável.
Por meio da vigência do novo Código de Processo Civil Brasileiro, que prestigia
sobremaneira o contraditório, espera-se acabar de uma vez por todas com dissensos doutrinários
e jurisprudenciais a respeito do alcance da feição substantiva do princípio do contraditório,
inclusive no tocante à cooperação intersubjetiva entre as partes e o juiz.
Esse redimensionamento do princípio do contraditório, que coloca o magistrado como
sujeito passivo, impondo-o o dever de velar como também de obedecer ao aludido princípio,
implicará mudanças significativas na condução do processo por parte do juiz, até porque o
magistrado estará impedido de apreciar até mesmo questão de ordem pública, que pode ser
reconhecida de ofício, caso as partes não tenham tido oportunidade de manifestação prévia.
Deve-se frisar que a postura atual dos magistrados, em sua grande maioria, é no sentido de
conhecer e apreciar matérias de ordem pública sem ouvir previamente as partes.
Percebe-se claramente que o intuito do legislador foi proporcionar um processo
desenvolvido por meio de um procedimento em contraditório efetivo, dialético, cooperativo e
justo, legitimado por uma condução estatal leal e democrática, seja por meio da incorporação do
princípio da cooperação, exigindo a participação efetiva das partes no processo de construção
das decisões, seja pela alocação do magistrado à condição de sujeito passivo do contraditório.
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