A Dupla Face da Cultura: Economia e Simbolismo
Autoria: Luiz Alex Silva Saraiva
Resumo
A cultura tem se mostrado como um terreno fértil para a análise dos fenômenos
organizacionais, uma vez que, como os demais elementos da sociedade, se presta à mesma
lógica de outros setores do capitalismo, sendo mais um reflexo da vigente instrumentalização
econômica das relações sociais. O que se defende nesse artigo teórico, é que a riqueza de
prismas analíticos coloca a cultura além da lógica estritamente simbólica, sendo a visão
econômica também necessária para que se encare o objeto de uma forma mais ampla. Neste
artigo se objetiva: a) discutir como se caracteriza a cultura como setor de atividade
econômica; b) analisar a cultura como campo da economia simbólica; c) discutir a delimitação
e a instrumentalização de políticas culturais; e d) analisar o consumo cultural, contrapondo as
perspectivas de bens culturais e de produtos culturais. As conclusões apontam para que
objetos de estudo não ortodoxos, como a cultura, requerem que a Administração em geral, e a
área de Estudos Organizacionais, em particular, ampliem seu campo de concepção e de
aplicação, para além da empresa industrial capitalista de grande porte, de forma a abarcar
modelos de gestão associados a segmentos específicos.
Educação, Cultura e Espaço Social
A educação não emancipa o homem, apenas auxilia o seu ajuste às condições sociais
preexistentes; traduz, assim, do ponto de vista social, um meio de manter as coisas como
sempre foram (BOURDIEU, 2000a). De acordo com esta visão, oriunda da teoria do campo
social de Bourdieu (2005), como os demais elementos da sociedade, a educação se presta à
mesma lógica de outros setores do capitalismo, sendo mais um reflexo da vigente
instrumentalização econômica das relações sociais. Neste artigo se assume o pressuposto de
que as idéias do pensador francês, não obstante terem sido elaboradas para a realidade
francesa, e com foco inicial sobre educação – embora a cultura seja um aspecto
particularmente relevante da análise – são analiticamente relevantes para o caso brasileiro, e,
com base nas idéias deste autor, este artigo se propõe a: a) discutir como se caracteriza a
cultura como setor de atividade econômica; b) analisar a cultura como campo da economia
simbólica; c) discutir a delimitação e a instrumentalização de políticas culturais; e d) analisar
o consumo cultural, contrapondo as perspectivas de bens culturais e de produtos culturais.
Para Bourdieu (2005), o posicionamento de um indivíduo ou família no campo social é
resultado da combinação de dois princípios de diferenciação: a posse de capital econômico e
de capital cultural. O espaço social é basicamente um espaço de diferenças, à medida que os
indivíduos existem não como dados, mas como algo que se trata de fazer, em estado de
potência permanente. O que define o quanto são capazes de converter potência em ação, ou
seja, o quanto transformam os desejos (RIBEIRO, 2000) em ações concretas vai depender, em
última instância, do habitus. Este é “o princípio gerador e unificador que retraduz as
características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco, isto é,
em um conjunto unívoco de escolhas de pessoas, de bens, de práticas” (BOURDIEU, 2005,
p.21-22). Martins (2002, p.173) complementa que habitus constitui “uma matriz de
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percepção, de apreciação e de ação que se realiza sob determinadas condições sociais”, o que
termina por reproduzir uma lógica objetiva de condicionamentos.
A noção de espaço social contém, em si, o princípio de uma apreensão relacional do mundo
social: afirma, de fato, que toda a “realidade” que designa reside na exterioridade mútua dos
elementos que a compõem. Falar de espaço social é resolver, ao fazê-lo desaparecer, o
problema da existência e da não-existência das classes. Todas as sociedades se apresentam
como espaços sociais, isto é, como estruturas de diferenças que não se podem compreender
verdadeiramente a não ser construindo o princípio gerador que funda essas diferenças na
objetividade (BOURDIEU, 2005). Uma vez que a sociedade é relacional, as características
que ela adquire para determinado grupo, ao manifestarem as categorias sociais de percepção
sobre as quais se assentam as diferenças, refletem uma constante processualidade, uma
mobilidade simbólica ampla que os indivíduos, em seus diversos agrupamentos, adquirem no
campo social. Esta dinâmica se refere, em essência, à posse, em diversos níveis, de capital
econômico e de capital cultural. Nesse sentido, o campo social se apresenta menos como um
espaço de semelhanças, do que como um espaço de distinções entre os indivíduos. As
diferenças entre os grupos se tornam diferenças simbólicas e constituem uma verdadeira
linguagem compartilhada entre os indivíduos com um posicionamento específicoi
(BOURDIEU, 2005).
E como ocorrem os ajustes dos indivíduos ao campo social? Para Bourdieu (2005), há
mecanismos complexos pelos quais isso acontece, mas enfatiza particularmente o papel da
instituição escolar na reprodução da distribuição do capital cultural e, assim, na estrutura do
espaço social. Tal reprodução se dá na relação entre as estratégias das famílias e a lógica
específica da instituição escolar. As famílias são corpos animados por uma espécie de
conatus, isto é, uma tendência a perpetuar seu ser social, com todos os seus poderes e
privilégios – a base das estratégias de reprodução, estratégias de fecundidade, estratégias
matrimoniais, estratégias econômicas, e, por fim, estratégias educativas. Investem tanto mais
na educação escolar quanto mais importante for seu capital cultural em relação ao seu capital
econômico e, também, quanto menos eficazes forem outras estratégias de reprodução ou
relativamente menos rentáveis. Em outras palavras, isso quer dizer que, para a manutenção ou
melhoria da posição atualmente ocupada no espaço social, quanto menos viável investir em
casamentos com pessoas de classes mais abastadas, ou enriquecer às custas de um
empreendimento econômico, por exemplo, mais as famílias voltarão suas energias no sentido
de proporcionar aos seus filhos as melhores condições possíveis para que estes possam
estudar. A educação é encarada como grande saída, uma via de emancipação social. Só que
para Bourdieu (2000b), o que não é claro aos grupos em um campo social, é o quanto a
educação já foi incorporada como instrumento de manutenção das condições vigentes.
O tipo de conhecimento (cultura) que se adquire na escola é moldado conforme as
necessidades de “ajuste” social, mais do que de acordo com as aspirações de desenvolvimento
social dos indivíduos. Assim, as escolas para os filhos dos segmentos sociais menos
favorecidos ensinar-lhes-ão basicamente o aprendizado da obediência, já que precisarão se
submeter às regras empresariais quando enfrentarem o mercado de trabalho. As condições
efetivas de emancipação não fazem parte do modelo educacional vigente, já que o professor e
o seu poder em sala de aula representam o que virão a ser, no futuro, os supervisores, gerentes
e correlatos, aos quais o empregado deverá se submeter para sobreviver como mão-de-obra
produtiva. O foco da educação em instituições escolares que abrigam os filhos das famílias
menos abastadas se volta para a difusão de métodos e técnicas de reprodução e de ampliação
do capital econômico. Ao concluírem seus estudos, os menos favorecidos terão de ingressar
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no mercado de trabalho vendendo a única coisa que possuem – seu capital cultural técnico, é
bom que se saliente – para os seus colegas mais abastados, que dirigirão as organizações e o
sistema que perpetua as desigualdades culturais e econômicas.
Às custas do gasto de energia necessária para realizar a operação de triagem, o sistema escolar
mantém a ordem preexistente, isto é, a separação entre alunos dotados de quantidades
desiguais de capital cultural. Para resolver este problema, mais uma vez a escola representa o
sistema que os estudantes enfrentarão, antecipando a competição profissional, por meio do
sistema de classificação escolar. Este é sempre um ato de ordenação, no duplo sentido da
palavra, pois: a) institui uma diferença social de estatuto, uma relação de ordem definitiva
entre os capazes de reproduzir e ordem e a ela se ajustarem; e b) ordena também no sentido de
uma consagração, de entronização em uma categoria sagrada, em uma nobreza (dos
‘inteligentes’ versus os outros, ‘menos dotados’). Para Bourdieu (2005), em todas as
sociedades avançadas, o sucesso social depende profundamente de um ato de nominação
inicial que consagra, através da escola, uma diferença social preexistente. Há, assim, uma
nobreza escolar hereditária, que reconverteu seus títulos nobiliárquicos em títulos escolares.
A instituição escolar, que falhou ao tentar implementar a meritocracia, tende a instaurar,
através da relação encoberta entre aptidão escolar e herança cultural, uma verdadeira nobreza
de Estado, cuja autoridade e legitimidade são garantidas pelo título escolar. A nova classe,
cujo poder e autoridade repousam sobre o capital cultural, deve alçar seus interesses
particulares a um grau de universalização superior, e inventar uma versão que se poderia
chamar de “progressista” da ideologia do serviço público e da meritocraciaii.
A ação do sistema escolar é resultante de ações mais ou menos orquestradas por escolhas
ordenadas de acordo com a ordem objetiva, tendem a reproduzir essa ordem sem saber, ou
querer. Se o que se descreve como um mecanismo por imposição da comunicação, é vivido,
às vezes, como uma espécie de máquina infernal (BOURDIEU, 1998b), uma engrenagem
trágica, exterior e superior aos agentes, é porque cada um deles, para existir, é de certa forma
constrangido a participar de um jogo que lhe impõe esforços e sacrifícios imensos. A lógica
da competição obrigatória que domina a instituição escolar, especialmente o efeito do destino
que o sistema escolar exerce sobre os jovens, sendo a matemática particularmente ilustrativa
deste aspecto. Os excluídos são condenados em nome de um critério coletivamente
reconhecido e aprovado, portanto psicologicamente indiscutível e indiscutido, o da
inteligência, o que pode levar, em muitos casos, a rupturas com a ordem escolar e a ordem
social como meio de auto-afirmação individual e social. O trabalho simbólico de constituição
ou de consagração necessário para criar um grupo unido tem tanto mais oportunidades de ser
bem sucedido quanto mais os agentes sociais sobre os quais ele se exerce estejam inclinados a
se reconhecerem mutuamente e a se reconhecerem como tendo um mesmo projeto socialiii.
Os distintos grupos de uma sociedade se encontram, assim, em um campo social politizado.
Seu status e posição relativa dependem de que disponham de capital econômico e capital
cultural. Instala-se, com essa perspectiva, uma visão de que a realidade, enquanto campo de
poder, é um espaço das relações de força entre os diferentes tipos de capital ou, mais
precisamente, entre os agentes suficientemente providos de um dos diferentes tipos de capital
para poderem dominar o campo correspondente e cujas lutas se intensificam sempre que o
valor relativo dos diferentes tipos de capital é posto em questão. Como o capitalismo é um
sistema concentrador por definição, há uma tendência de concentração entre os detentores de
capital. Quem possui muito capital econômico possivelmente tenderá a acumulá-lo mais;
quem dispõe de capital cultural, também tende a agregá-lo em maior quantidade ao longo do
tempo.
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Ao discutir a questão cultural como algo não restrito à esfera simbólica, Bourdieu (2005)
avança substancialmente revelando a dicotomia própria dos objetos em ciências sociais. “O
mundo social, e não apenas os sistemas simbólicos, é constituído por estruturas objetivas,
independentes da consciência e da vontade dos atores, que em larga medida tendem a orientar
suas práticas e representações” (MARTINS, 2002, p. 169). Um fenômeno complexo e
multifacetado como a cultura, portanto, não pode ser condenado a ser encarado apenas sob o
prisma do simbolismo, como tradicionalmente tem sido feito – assim como não se pode supor
que a economia deva se restringir ao ‘econômico’. Apresentar a relevância econômica da
cultura, em termos ortodoxos, é essencial a fim de que adquira na sociedade da ‘economia
econômica’ a relevância para se constituir como legítimo objeto da Administração, e
particularmente dos estudos organizacionais.
A Cultura como Setor da Economia Ortodoxa
Economicamente falando, a contribuição da cultura como setor de atividade econômica é
ainda muito superficialmente conhecida. E não se trata de um problema apenas brasileiro.
Como discute Lins (2006), a geração de emprego e renda, o fluxo de oferta e de demanda no
setor cultural, eventos que promovem a arrecadação de impostos e a movimentação da
economia, não obstante já existir um considerável interesse pelo assunto, ainda são temáticas
pouco exploradas sob a ótica da economia tradicional. Já existe um movimento bem definido
no sentido de produzir conhecimentoiv sobre o potencial e as características das atividades
ligadas à cultura, mas isso ainda não se traduziu em dados estatísticos amplos e confiáveis
como já ocorre em outros setores. E, ao que tudo indica, esse é um processo de lenta
consolidação em todo o mundo. No Brasil, apenas em 17 de dezembro de 2004 foi assinado
um acordo de parceria entre o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE e o
Ministério da Cultura – MinC para a elaboração de indicadores econômicos sobre a cultura,
iniciativa esta que vai deixar mais clara a sua face econômica.
Mesmo o interesse pela temática da cultura como um campo de atividade econômica sendo
relativamente recente no Brasil, há um documento bastante completo produzido sobre o
assunto, embora não seja muito recente. Trata-se de um estudo publicado pela Fundação João
Pinheiro, por encomenda do Ministério da Cultura, em 1998. Esta pesquisa, “Diagnóstico dos
Investimentos em Cultura no Brasil” (FJP, 1998a; 1998b; 1998c), apresenta informações que
destacam a força econômica do setor cultural.
Considera-se parte do macrossetor (ou complexo) da cultura, nos termos da Fundação João
Pinheiro (1998c), não só suas atividades econômicas centrais, como as atividades de serviços
de entretenimento – radiodifusão, televisão, salas de cinema e teatros, e ainda todas as outras
atividades cujo produto é, predominantemente, a elas destinado. Incluem-se, portanto,
atividades pertinentes à indústria da transformação – como a editoração de livros e
publicações do setor cultural, a produção de equipamentos para uso nas indústrias fonográfica
e cinematográfica, além da produção de fitas, películas e discos fonográficos. Da mesma
maneira, consideram-se, também, as atividades de comércio relacionadas aos produtos
industriais enumerados, além dos serviços auxiliares às atividades que compõem o núcleo do
setor. As atividades da administração pública relacionadas com a cultura, nos mais diversos
níveis, também foram consideradas.
A produção cultural movimentou, em 1997, cerca de 6,5 bilhões de reais. Isto corresponde a
aproximadamente 1% do PIB brasileiro (cálculos feitos para 1994, último ano para o qual
existem dados abrangentes e confiáveis). Para cada milhão de reais gasto em cultura, o país
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gera 160 postos de trabalho diretos e indiretos (FJP, 1998c), o que revela uma dimensão que,
habitualmente, não aparece nas avaliações sobre a cultura – o seu impacto social e econômico
– mostrando a potencialidade da área para a geração de renda e de emprego.
Entre 1985 e 1995, a despesa total com cultura do Estado brasileiro, isto é, do Governo
Federal, dos Estados, do Distrito Federal e das capitais, alcançou a média de 725 milhões de
reais/ano (expressos em preços de dezembro de 1996). Deste total, o Governo Federal é
responsável por 32%, aproximadamente, enquanto aos estados e municípios (capitais de
unidades de federação) correspondem, respectivamente, 50% e 17% do total despendido. Isto
equivale a um gasto médio de R$ 5,00 per capita com cultura. Ao longo dos onze anos
estudados pela pesquisa do Ministério da Cultura, os gastos públicos brasileiros cresceram a
uma média anual de 2,8% (FJP, 1998a), o que dá uma idéia da importância que a cultura
passou a ter principalmente depois da democratização do país, já que constitui uma das
formas mais genuínas de manifestação popular.
Em 1994, por exemplo, havia 510 mil pessoas empregadas na produção cultural brasileira,
considerando-se todos os seus setores e áreas, o que representava aproximadamente 0,8% da
população economicamente ativa (FJP, 1998c). Elas distribuíam-se da seguinte forma: 391
mil empregadas no setor privado do mercado cultural (76,7% do total), 69 mil como
trabalhadores autônomos (13,6%) e 49 mil ocupados nas administrações públicas, isto é,
União, Estados e Municípios (9,7%). Esse contingente era, na época, 90% maior do que o
empregado pelas atividades de fabricação de equipamentos e material elétrico e eletrônico;
53% superior ao da indústria automobilística, de autopeças e de fabricação de outros veículos,
e 78% superior ao contingente empregado em serviços industriais de utilidade pública
(energia elétrica, distribuição de água e esgotos e equipamentos sanitários).
Com base nesses dados, e considerando que o Ministério da Cultura investiu cerca de 400
milhões de reais no patrimônio histórico, artístico e cultural do país entre 1995 e 1999, cerca
de R$ 80 milhões/ano, pode-se estimar que foram gerados 12.800 novos postos de trabalho a
cada ano somente nessa atividade cultural (FJP, 1998c). A pesquisa revelou que, já em 1980
(um dos anos analisados para fins de comparação), enquanto o valor da produção cultural
brasileira global alcançava 1%, os serviços de saúde chegavam a 2,2%, e os de educação
alcançavam 3,1%. Isso mostra a importância das atividades culturais para a economia e a
sociedade brasileiras, quando comparadas com os dados relativos aos serviços daquelas outras
duas áreas, tradicionalmente importantes (FJP, 1998c).
Segundo as informações da Secretaria de Apoio à Cultura do Ministério da Cultura, em 1997,
mais mil empresas investiram em projetos culturais em todo o país, tendo sido estimuladas
pela legislação em vigor, particularmente pela lei Rouanet (BRASIL, 1991), que viabilizou
84% dos projetos culturais no período em análise. 65% das empresas percebem que investir
em projetos culturais representa ganho de imagem institucional, enquanto 28% acham que o
investimento agrega valor à marca da empresa (FJP, 1998b).
Tais números deixam claro que há uma dimensão econômica nas atividades culturais. Essa
faceta econômica implica a existência de pressões não desprezíveis no sentido de que a
‘oferta’ de bens culturais seja guiada pela demanda, uma lógica tipicamente capitalista.
Entendida como um fenômeno também econômico, a cultura, dessa forma, se sujeita, tal
como uma commodity qualquer, também às exigências do mercado e dos financiadores das
atividades culturais, o que pode resultar em políticas culturais específicas de acordo com a
pressão dos atores que disponham de mais recursos para definir o que é ‘adequado’ em termos
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culturais. A substantividade dos bens culturais, uma de suas características intrínsecas, seria
deixada em um segundo plano, submissa à instrumentalidade mercadológica do capitalismo.
Por isso é necessário, ao tratar da questão cultural, discorrer sobre a ‘outra’ economia de que
também faz parte a cultura: a Economia Simbólica.
A Cultura como Campo da Economia Simbólica
Muito do interesse na cultura decorre do fato de que ela apresenta um duplo aspecto,
particularmente complexo e estimulante para a análise acadêmica: por um lado, constitui-se,
em essência, de bens culturais, por definição abstratos e inalienáveis ao homem, relacionados
à arte e à expressão de mensagens essencialmente simbólicas. Por outro, esta substantividade
dos bens culturais se insere em um contexto capitalista, que coloca a sua lógica em tudo, o
que termina por traduzir em preços, oferta e demanda também a cultura. Os bens culturais se
vêem, em muitos casos, convertidos em produtos culturais. A complexidade deste tema
levou, por exemplo, à criação da Association for Cultural Economics International (ACEI),
que realiza, desde 1994, encontros que colocam em pauta a cultura nos planos simbólico e, ao
mesmo tempo, econômico.
Bourdieu (2005) e Aktouf (2004) são enfáticos ao afirmar que existe uma outra forma de
encarar a economia, não definida pela lógica estrita do lucro e do resultado financeiro. A esta
outra forma de economia, que Bourdieu (2005) denominou (e com que se ficará neste
trabalho) economia simbólica, cabem relações baseadas nos hiatos da fala, no silêncio, no não
dito, e no valor simbólico de tais gestos (ou não-gestos). Precisamente por algo não precisar
ser dito é que se torna real, objetivo, e por isso não pode ser ignorado pelos atores sociais. Isso
faz com que as atividades econômicas tradicionais, à medida que possuem um relacionamento
claro entre preços e utilidade dos bens, não sejam objetivas, já que parte-se de um acordo,
antes de qualquer coisa tácito, de aceitação do ‘câmbio’, ou seja, da utilidade relativa dos
produtos envolvidos na troca. Na economia simbólica, por sua vez, ainda que exista um
acordo, sua base não está no que é claramente combinado, muito pelo contrário; é
precisamente porque nada combinam às claras os atores que se fazem mais efetivas as
transações entre os membros de uma dada comunidade. Não é preciso cobrar para que o outro
saiba que é um devedor. Não é preciso que seja manifesto abertamente nenhum compromisso
entre as partes, porque justamente o silêncio é a base sobre a qual se assenta esta economia
dos símbolos.
Esta perspectiva faz com que, por exemplo, de acordo com o foco deste trabalho, a cultura e
seu valor sejam objeto de um ajuste de expectativas entre o artista e o consumidor. Isso não
ocorre, todavia, nos moldes capitalistas, onde o preço é definido em função da satisfação que
o produto proporcionaria a quem o consome. A lógica é um pouco mais complexa.
Precisamente pelo fato de a cultura não ser ‘necessária’ – no sentido mercadológico, onde se
tenta transformar a necessidade em algo que de materialize em demanda por produtos e
serviços – a cultura é fundamental aos homens. Por isso, o artista, ao investir na obra de arte,
procura diferencia-la torná-la única, irreproduzível, sendo este movimento avesso à lógica de
massa do capitalismo.
Sob a ótica da economia tradicional, a arte, como produto, se torna cara em função de um
processo produtivo que não satisfaz às expectativas de consumo imediato. Se encarado o
mesmo fenômeno sob a ótica da economia simbólica, não é o consumo que dirige o artista,
mas o valor da arte que ele produz em si. A rigor, no que se refere à obra em si, o artista não
está preocupado se ela vai ser adquirida ou não. Sua preocupação está na mensagem que a arte
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porta, à linguagem cifrada que o objeto artístico apresenta. Ainda que se possa discutir como
os artistas sobreviveriam sem o consumo de suas obras do ponto de vista econômico, o fato é
que a arte não tem compromisso com o seu consumo. Ela se basta como produção e consumo
em termos de economia simbólica, o que precede a visão da economia tradicional. Este ponto
será retomado posteriormente.
Como diz Lazzarato (2004, p.202), o capitalismo não é apenas um modo de produção, mas
“uma produção de modos”. Como as ações humanas não operam em um vácuo, são
(re)interpretadas continuamente à luz das referências dos indivíduos, que lhes associam
significados, transformando, assim, signos em símbolos à medida que os interpretam à luz de
referenciais de determinado grupo. A construção simbólica produz camadas de sedimentação
onde se acrescentam novas significações às originais, “mantendo-se um sentido
permanentemente atual, sem que com isso resulte na eliminação ou na superação dos
elementos anteriores, mas compondo com eles uma significação plural, no sentido atual e
igualmente permanente” (Castro, 1991, p.117). Como colocam Boudon e Bourricaud (1993,
p.491), “toda sociedade só se estabelece e só subsiste se chegar a se constituir como
comunidade simbólica”. Nesse sentido, “o símbolo pertence a estruturas ideais que lhe são
próprias e que se inserem em relações ‘quase-racionais’, não sendo possível submeter a lógica
própria do simbolismo à ordem de uma lógica formalizável” (CASTRO, 1991, p.118).
É precisamente por isso que a economia simbólica é viabilizada: por haver possibilidades de
leitura a partir de um referencial pré-existente baseado na sociedade em que o bem cultural se
encontra. Se não houvesse a possibilidade de os indivíduos encararem o bem cultural como
uma forma de manifestação da cultura, seria destituída de valor qualquer iniciativa no sentido
de tratar o bem em questão como cultural. Isso significa que não se pode separar o
simbolismo social do processo de comunicação de uma comunidade, já que este se baseia em
um núcleo de significações relativamente estáveis e univocamente compreensíveis por
qualquer um dos seus membros, ao mesmo tempo em que varia segundo a forma e o conteúdo
próprios da comunicação. Tal variabilidade em processos comunicacionais, precisamente por
não ser nem estritamente conceptual e nem sequer estritamente verbal, dá margem a inúmeros
mal-entendidos. Como a dimensão simbólica prescinde da interpretação, o conceito a que toda
palavra está ligada pode ser tomado pelo que ele denota ou pelo que conota (BOUDON;
BOURRICAUD, 1993; CASTRO, 1991).
O simbolismo, assim, também é um fenômeno social, “uma ordem de fenômenos (práticas e
crenças) que se podem qualificar de objetivos, no sentido de que instituem entre os membros
da sociedade uma autêntica comunidade” (BOUDON; BOURRICAUD, 1993, p.490). O
único sentido que seria pertinente neste caso, é que toda sociedade define uma ordem de
fenômenos compreensíveis, isto é, com significado – pelo menos para seus próprios membros.
Por mais estranho que possa parecer à primeira vista, a qualidade de objetividade dos
fenômenos da esfera simbólica a que se referem Boudon e Bourricaud (1993) diz respeito as
aspectos reais ou racionais que se formam a partir da experiência compartilhada de
significados entre os membros de uma comunidade. Em outras palavras, a funcionalidade da
vida social se deve à rede de significados – que, como bem coloca Castro (1991, p.120), “não
se prende a uma dada versão do real”.
O simbólico e o real (dicotomia que poderia ser tomada como a visão econômica tradicional),
desta feita, não são opostos, como o senso comum sugere, mas as duas faces da mesma
moeda. Maffesoli (1978, p.70) argumenta que esta distinção é “fruto de uma atitude estreita
que não pode compreender a dinâmica do vir-a-ser”, pois é “é nesse sentido que o sonho é o
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indicador dinâmico do real, uma vez que também ele permite a unificação social em torno de
um projeto coletivo” (MAFFESOLI, 1978, p.73). Já que não são aspectos antagônicos o
simbólico e o real, nada mais natural do que observar suas interfaces tendo como pano de
fundo a questão cultural no contexto capitalista.
Atualmente se presencia uma transformação radical na natureza das organizações, que
estariam se tornando essencialmente simbólicas (LAZZARATO, 2004). Por conta do aumento
do papel da mídia e da disseminação da cultura popular, como coloca Wood Jr. (2000, p.27),
“a simbolização constitui processo irreversível”, para o qual caminham, com maior ou menor
velocidade, praticamente todas as organizações. Compreender a essência a simbólica das
organizações (ALVESSON, 1990; ALVESSON; BERG, 1992), portanto, é um objetivo
necessário porque está de acordo com a compreensão da natureza que as organizações
parecem gradativamente assumir.
Quando o simbolismo presente nas organizações se encontra em um contexto capitalista, a
situação se torna complexa, principalmente porque este é um momento histórico em que se
verifica uma tendência reducionista de atribuir ao econômico importância sobre todas as
coisas (AKTOUF, 2004; BOURDIEU, 2001). Além do uso mais ou menos implícito que as
organizações fazem das estruturas psíquicas dos indivíduos (FREITAS, 2000), “tudo no
capitalismo conspira para preservar a ordem simbólica do sistema” (SAHLIN, 1976, p.293).
Como coloca Chauí (2000, p.12), “no capitalismo, não há coisa alguma e pessoas alguma que
escape da condição de mercadoria, não tendo como ser retirado do circuito da circulação
mercantil”.
Quando ampliada a discussão sobre o quanto a arte e a cultura podem ter valor instrumental
antes de substantivo, as contradições entre as perspectivas econômicas tradicional e simbólica
se acentuam ao serem transpostas para o campo organizacional. As organizações tradicionais,
com uma lógica centrada na produção e não no consumo (LAWRENCE; PHILLIPS, 2002;
LAMPEL et al., 2000), divergem das organizações culturais já a partir da concepção. Por
existirem, antes de qualquer outra coisa, ser o consumo dos seus símbolos na forma de
significados interpretados pelos consumidores de seus produtos (LAWRENCE; PHILLIPS,
2002), as organizações culturais merecem um olhar mais atento às suas peculiaridades. Para
entendê-las, portanto, é preciso partir da natureza não utilitáriav de seus produtos” (LAMPEL
et al., 2000). Como salienta Hirsch (2000, p.359), a extensão do conceito sugere “um
continuum de uso cultural a utilitarista para muitos consumidores de produtos possibilitando
sua extensão mesmo a características adicionais, como comida de gourmet, esportes
profissionais, e orquestras sinfônicas” (HIRSCH, 2000, p.359).
Nas organizações culturais, não obstante haver um valor de troca para os bens, é seu
significado que define o seu consumo e desempenho, mais do que qualquer outro fator a elas
associado (LAWRENCE; PHILLIPS, 2002). Embora as práticas dessas organizações tenham
parecido anômalas até recentemente – aos olhos do mainstream da Administração e da
Economia tradicional – tornam-se difíceis de ignorar, considerando principalmente a
influência da cultura sobre os valores, as atitudes, e os estilos de vida na sociedade (LAMPEL
et al., 2000). As organizações culturais se apresentam como um dos mais promissores campos
para os estudos organizacionais à medida que, como as organizações religiosas (CEDOLA,
2004; WATTANASUWAN; ELLIOT, 1999) ou de mídia (LAMPEL et al., 2000),
caracterizam-se como organizações de simbolismo intensivo (WOOD JR., 2001; 2000),
gerenciando, produzindo e distribuindo cultura.
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As organizações culturais se inscrevem em um quadro mais amplo, que se baseia na produção
de algo que seja não apenas passível de interpretação pelos consumidores, mas,
principalmente, adequado às suas necessidades de consumo simbólico (HIRSCH, 2000).
Como sustentam Lambel et al. (2000, p.268), “seus produtos evocam intensamente
experiências particulares, e eles fazem uso de valores e aspirações que não são utilitaristas e
nem comerciais”; nesse sentido, sua manifestação original vem da esfera pública, na forma de
políticas culturais.
Políticas Culturais: Delimitação e Instrumentalização
Como o acesso à cultura é um direito de todo ser humano, cabe ao Estado, uma vez que sua
função básica é zelar pelo espaço público, nos termos de Arendt (2005), propiciar condições
para que os cidadãos acessem e usufruam diversos bens culturais. As políticas públicas
culturais são, nesse sentido, instrumentos pelos quais os governos procuram promover a
cultura de (e para) um povo, possibilitando contato com múltiplas formas de encarar a
realidade sob o prisma cultural. De acordo com Durand (1996), espera-se pelo menos quatro
atributos de uma política cultural democrática e eficiente: qualidade, diversidade, preservação
de identidades e disseminação de valores. Há nesse âmbito uma questão que não pode deixar
de ser discutida: a privatização da função pública (também) no campo cultural.
A lei federal de nº. 8.313, de 23 de dezembro de 1991, conhecida como lei Rouanet, marcou
uma nova era no campo cultural no Brasil. A partir desta data, foi possibilitado às entidades
privadas com fins lucrativos abater no imposto de renda todos os gastos dependidos com a
promoção e difusão da cultura. O problema é que ao definir os critérios de beneficiamento de
um dado agrupamento organizacional, o Estado brasileiro terminou indiretamente por contar
com a atuação do setor privado na definição das políticas culturais brasileiras (DURAND,
2001). Quanto a isto não há problemas. A polêmica em tela diz respeito ao quanto os
interesses empresariais visariam o bem comum, tal como as políticas culturais devem, por
definição, ser. Nesse sentido, o que pode ser considerado adequado para uma determinada
organização que esteja investindo e sendo beneficiada pela legislação, de acordo com critérios
privados, pode ser rigorosamente restrito em termos culturais para a população brasileira.
Não se está aqui defendendo que cabe exclusivamente ao Estado a promoção da cultura. Só
que ele é que possui, por definição, o aval de toda a sociedade para prover as suas
necessidades, por mais díspares que se apresentem. Tal liberdade não é verificada no âmbito
da empresa, que possui restrições de diversas ordens, de acordo com focos especificados em
estratégias organizacionais (DURAND et al., 1997). Estes limites terminam impondo focos,
orientações específicas, que elegem determinados segmentos da população como alvo da
organização, a exemplo de concursos de artes para idosos, apoio à valorização de herança
cultural em comunidades afro-descendentes, organização de movimentos de comunidades
carentes, e assim por diante, conforme discutem Baptista e Saraiva (2005).
Cada uma das iniciativas apresentadas é válida, sem sombra de dúvidas. Mas à medida que
são eleitos focos sobre os quais se deve concentrar as energias, são deixadas de lado outras
necessidades culturais, havendo, nesse sentido, um culto à diferença. E esta diferença não
atende um imperativo da cidadania de promover a igualdade respeitando as distinções; tratase de instituir a diferença, sob o enfoque cultural, de acordo com o que a inicativa privada
considera adequado.
9
Como as empresas se pautam por resultados, pode estar em voga um ou outro segmento, e por
isso ele recebe todas as atenções por um determinado período, quando é substituído por outro
segmento e assim sucessivamente. Não se pode afirmar que necessidades culturais estariam
sendo satisfeitas, mas apenas uma otimização do investimento social associado ao uso da
oportunidade, inclusive da mídia (BAPTISTA; SARAIVA, 2005). É essa a política cultural do
país, construída sobre a falta de recursos públicos e sobre os interesses privados de benefícios
fiscais (MICELI, 1984)? A julgar pela maciça adesão das empresas à lei Rouanet, sim. Mas
não deve haver ilusões de que a adesão se deve, antes de mais nada, à possibilidade de
abatimento do valor a ser pago ao governo na forma de imposto de renda (REIS; SANTOS,
1996). É preciso que seja feita a seguinte questão: se não houvesse tal incentivo, inclusive em
termos de consumo, qual seria a efetiva participação das empresas na promoção da cultura.
Haveria tanta “responsabilidade sócio-cultural”?
Consumo Cultural: Bens ou Produtos Culturais?
Ainda que não existam garantias de que os símbolos sejam interpretados com o significado
desejado pela organização, as tentativas são sistemáticas nesse sentido. As experiências que
os indivíduos têm ao consumir tais produtos tornam-se um complicador para os gestores ao
entrar em cena a questão da qualidade (EVANS, 2000). Se não há definição precisa, como
identificar e estabelecer padrões claros de qualidade? Este é um problema ainda não
resolvido, e uma das visões é a de que estando ausente a noção de que a utilidade leva a
mensurabilidade, em indústrias culturais “padrões representam mais ideais abstratos do que
atributos específicos de produto” (LAMPEL et al., 2000, p.264), o que leva a discrepâncias.
A criação de produtos culturais que não atendam às expectativas ou as superem pode gerar
distorções particularmente difíceis de serem gerenciadas (HIRSCH, 1972). Tal questão,
contudo, não impede que haja tentativas sistemáticas de instrumentalização das ações das
instâncias simbólicas a fim de configurar quadros “mais adequados” para o desenvolvimento
das atividades organizacionais. E, nesse sentido, verifica-se toda uma iniciativa articulada de
inserir a cultura no mercado, de nela colocar um preço e um valor legítimo aos olhos da
economia tradicional. Como mencionado anteriormente, ainda que não existam garantias de
que os símbolos sejam interpretados com o significado desejado pela organização, ou seja, de
que na economia simbólica, os produtos sejam considerados “cultura”, as tentativas são
sistemáticas nesse sentido.
Bens culturais são definidos “como bens não materiais direcionados a um público de
consumidores, para quem tem uma função estética ou expressiva, mais do que uma função
claramente utilitarista” (HIRSCH, 1972, p.641). Esta visão deixa implícita a questão da
utilidade direta dos bens, algo central no capitalismo. Quando se trata de produtos culturais,
os problemas nesse aspecto decorrem de que eles “derivam seu valor de experiências
subjetivas que se baseiam fortemente no uso de símbolos para manipular a percepção e a
emoção” (LAMPEL et al., 2000, p.264). “Produtos” culturais, se possuem uma qualidade –
ainda que seus padrões não sejam a priori definidos – a têm para alguém, os consumidores.
Estes definem se o que recebem está de acordo com suas expectativas e se posicionam,
aceitando ou rejeitando o que receberam.
No que se refere à lógica substantiva das organizações culturais, esta se vê transformada pela
ênfase econômica, em primeiro lugar, antes do consumo simbólico. Mas esta é apenas uma
distinção analítica. Na prática, ao consumir o significado de um produto cultural, isso se dá
quase instantaneamente a partir do momento em que este produto é adquirido, não havendo
10
uma relação de sucessão, ou pelo menos não do ponto de vista cronológico – mas de
importância relativa. Assim, é possível até comprar o produto depois de tê-lo consumido,
como em uma aquisição de ingressos de teatro a prazo, mas o mais importante é que é o valor
econômico que define a importância e o sucesso de uma indústria cultural (SAHLINS, 1976).
Nesta linha de raciocínio, de nada vale haver um simbolismo expressivo, consumidores que
consigam interpretar os signos, transformando-os em símbolos, e isto não possuir um valor de
troca. Para a economia tradicional, portanto, cultura e arte são, antes de tudo, produtos, e são
encaradas sob a ótica do negócio, só sendo interessantes do ponto de vista cultural se forem
lucrativas. Como diz Bourdieu (1998, p.65), “em matéria de produção simbólica, o
condicionamento exercido pelo mercado por intermédio da antecipação das possibilidades de
lucro assume naturalmente a forma de uma censura antecipada”. Nada mais claro do que isso
do que temporadas efêmeras no teatro de grandes cidades brasileiras. Idéias promissoras do
ponto de vista teatral, se não se converterem também em lucrativas, são rapidamente
substituídas, em um frenesi por resultados econômicos (BAUMAN, 1998), o que termina
submetendo a arte ao que é popular (no sentido econômico do consumo em massa), em
detrimento do que apresenta qualidade em si, sem necessariamente ser “acessível”. A este
respeito Correia (2001, p.241) sustenta que “o perigo de uma sociedade de consumo é
justamente o de que seu deslumbramento ante a abundância e o seu envolvimento no processo
interminável do ciclo vital a impeça de reconhecer a sua própria futilidade”.
Este argumento traz um problema implícito: a definição da qualidade termina sendo feita por
alguém (ADORNO, 1983; HORKHEIMER, 1983), e, no que se refere às produções culturais,
de acordo com Ianni (1994, p.148), elas “tendem a expressar a visão do mundo de
determinados grupos ou classes, às vezes por intermédio de movimentos sociais, partidos
políticos, correntes de opinião, instituições, igrejas, seitas” (IANNI, 1994, p.148). Como
coloca Chauí (1989) toda a chamada “cultura popular” só é assim denominada porque
esconde uma oposição direta a uma outra cultura, a das elites, que atribui o adjetivo “popular”
para designar aquilo que, definitivamente, ela própria não consome. Assim, “todo bloco de
poder, composição de forças sociais ou classe dominante exerce alguma ou muita influência
sobre as produções culturais. Há sempre uma reinterpretação da história em marcha, segundo
os governantes, os que detêm os meios de poder” (IANNI, 1994, p.155).
Como “um trabalho de arte é, de fato, uma metade resultado da atividade do artista e a outra
metade resultado da atividade do público (que olha para ele, o lê ou o escuta)”
(LAZZARATO, 2004, p.199), isso implica transmissão do controle dos administradores para
os consumidores em algum momento do consumo simbólico de bens culturais – este é um
momento que coloca, frente a frente, as duas perspectivas econômicas, pois a atividade do
público não pode ser representada apenas na forma de dinheiro. É por isso que políticas
culturais podem ser pouco efetivas, pois dependem da interpretação e consumo por parte da
população a que se destinam. De acordo com Lawrence e Philips (2002, p.437), compreender
e gerenciar o processo de produção simbólica se torna uma competência distintiva da
organização cultural, e em decorrência disso, a elaboração de produtos é precedida pela
construção de contextos.
Considerações Finais
Neste artigo, foi proposto tratar da complexa temática da cultura na perspectiva econômica,
assumindo para isso tanto a visão tradicional, que a associa a uma série de relações mais ou
menos objetivas ligadas à oferta e à demanda, quando à visão simbólica, que incorpora o
11
homem e sua subjetividade ao processo. Foram também objetivos deste artigo discutir as
questões das políticas culturais e do consumo da cultura.
O grande debate a respeito da cultura gira, sem dúvida, sobre o quanto se pode falar de
instrumentalidade econômica do consumo de bens culturais. A discussão gira especialmente
em torno da questão do valor de uso versus o valor de troca da cultura. O debate versa sobre
até que ponto é possível atribuir um preço a um bem cultural, e em que medida este preço é a
recompensa pelo que é adquirido. Questões relativas ao que se adquire de fato ao se comprar
um bem cultural estão na base da questão, principalmente se for considerado o fato de que,
em organizações da área cultural, é mais o significado do que o valor de troca que define o
consumo do que por elas é produzido.
A definição de políticas culturais, uma função pública por excelência, pois trata, antes de mais
nada de cidadania, esbarra na questão do mercado. À medida que se amplia o leque de setores
em que se pode comprar e vender na perspectiva econômica tradicional, o que inclui a cultura,
o Estado se vê pressionado a, ao mesmo tempo, atingir o maior número possível de cidadãos
com suas políticas relacionadas à cultura, mas, ao mesmo tempo, tentar beneficiar-se dos
recursos oriundos do setor privado. esta ambigüidade leva a que em muitos dos casos esteja
havendo uma transferência de responsabilidade de definição e implementação de políticas
públicas a quem tem recursos para tal. Como os fins das organizações privadas não estão
voltados, por definição, para o bem comum, é de se questionar, ao investirem em cultura, a
quem beneficiam e por que. Facilmente pode ser identificada a instrumentalidade da
responsabilidade “sócio-cultural” das empresas, mesmo quando são isentadas de arcar com
impostos com tais iniciativas. E isso coloca em xeque os benefícios sociais das políticas de
incentivo cultural sob o ponto de vista público. Não cabe ao Estado prover a população dos
meios necessários para que acessem a cultura? E por que premiar organizações privadas que
se beneficiam triplamente, ao receber isenções fiscais por investirem na área cultural, ao
deixarem claro aos segmentos específicos beneficiados da sua relevância para a cultura, e, por
fim, ao elaborar campanhas de marketing, em que pregam o “comprometimento social” o
mais amplamente possível?
A questão da conversão de bens culturais, de valor universal e, em essência, simbólico, em
produtos culturais, basicamente com valor econômico de troca, traz à tona um outro desafio
no tocante ao estudo de organizações culturais. Não é possível ignorar que tais organizações
funcionam em um contexto capitalista. E que para sobreviver neste quadro, precisam de
resultado, qualquer que seja sua natureza, a fim de viabilizar sua sobrevivência. Contudo,
verifica-se um processo não desprezível de conversão de bens substantivos, como a cultura, e
a educação, por exemplo, em mercadorias, como se não houvesse neles valor em si. É como
uma espécie de esvaziamento de sentido estivesse sempre acompanhada do processo de
“racionalização” e “reprodução” próprios do capitalismo.
É nesse sentido que emerge a economia simbólica como uma alternativa consistente para a
abordagem de fenômenos organizacionais não ortodoxos, de maneira a não embrutecer ainda
mais a análise das organizações, atualmente por demais comprometida com o papel de ser
“braço armado da economia”, nas palavras de Aktouf (2004). Objetos de estudo não
ortodoxos, como a cultura, consolidam a necessidade de que a Administração em geral, e a
área de Estudos Organizacionais, em particular, amplie seu campo de concepção e de
aplicação, para além da empresa industrial capitalista de grande porte, de forma a abarcar
modelos de gestão associados a segmentos específicos.
12
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Notas
i
Nesse sentido, é interessante considerar fenômenos relacionados às diferenças de vocabulário mesmo de um
mesmo espaço social, como uma cidade, por exemplo. O uso de gírias e de linguagem própria atua como meio
de identificação e reconhecimento para indivíduos que pertencem a um mesmo grupo social, como discute
Fradique (2006) ao analisar jovens de Lisboa envolvidos com o rap. Da mesma maneira, opiniões sobre música,
estilo de vida, manifestações culturais, ou a respeito do que é a ‘normalidade’ variam de grupo para grupo em
um mesmo campo social (Bourdieu, 1998a). Assim, “o espaço social é a realidade primeira e última, já que
comanda até as representações que os agentes sociais podem ter dele” (BOURDIEU, 2005, p. 27).
ii
Não é por acaso, tomando o caso brasileiro como exemplo, que se verifica nos anos recentes uma ascensão de
tecnoburocratas (PRESTES MOTTA; BRESSER PEREIRA, 1986) titulados aos mais altos cargos da república.
iii
Não é por acaso, assim, que trabalhadores se irmanam quando há necessidade de oposição aos capitalistas e
seus representantes, como o exemplo recente dos metalúrgicos da Volkswagem, em São Bernardo do Campo
(SP). Tampouco é casual que jovens utilizem piercings, gírias e outros aspectos que procurem deixar claro aos
demais a que ‘tribo’ eles pertencem e conseguir, com isso, diferenciar-se de outros agrupamentos sociais. O
mesmo ocorre no caso das empresas, em que o domínio de um vocabulário próprio, que toma inúmeras
expressões da língua inglesa, como feedback, downsizing, payback, entre outras, declara aos outros membros da
sociedade de que se trata de alguém inserido no mundo empresarial globalizado.
iv
No Brasil, de acordo com o Sistema Nacional de Informações Culturais do Ministério da Cultura – MinC,
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16
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1 A Dupla Face da Cultura: Economia e Simbolismo