DIREITO INTERNACIONAL EDUARDO FELIPE P. MATIAS ARQUIVO PESSOAL E A Organização Mundial do Comércio, conhecida por seu papel em zelar pelo bom fluxo e funcionamento do comércio global, também desempenha uma atribuição relevante na governança global da sustentabilidade, à medida que, dentro de seu mandato de defesa do livre comércio, pode vir a julgar legislações ambientais. 16 mbora raramente sejam associados um ao outro, comércio internacional e sustentabilidade – incluindo as mudanças climáticas, tema essencial a esta última – estão fortemente relacionados. Isso ocorre não apenas porque o aumento do comércio provoca o crescimento da produção que, quase sempre, leva a mais emissões de CO2 e outros gases de efeito estufa, mas também porque algumas medidas relacionadas ao controle dessas emissões podem entrar em conflito com as normas internacionais de proteção do livre comércio. A solução para o aquecimento global passa, necessariamente, pela internalização dos custos relacionados às emissões de gases de efeito estufa – ou seja, pela adoção de algum tipo de regulação ou tributo que encareçam essas emissões. Por outro lado, os países que tomarem essa iniciativa poderão ser prejudicados em um contexto em que outros não estejam obrigados a suportar esses mesmos custos. Para evitar que alguns países sejam free riders, pegando carona nos esforços de controle de emissões dos demais – já que, ainda que alguns não façam nada, todos se beneficiam das consequências positivas que esses esforços trazem para o clima do planeta –, aqueles que venham a adotar políticas climáticas mais rígidas podem formar coalizões, celebrando “acordos de baixo carbono”. Estes poderiam ter um caráter comercial, excluindo os países que não adotarem políticas equivalentes de alguns benefícios e impondo-lhes ajustes fiscais ou tarifários na fronteira (border tax adjustments ou border tariff adjustments). Com isso, procura-se compensar as diferenças de preços em relação aos produtos dos países que não cortarem suas emissões, evitando que estes obtenham uma vantagem competitiva sobre aqueles que fazem parte do acordo. O objetivo é nivelar o campo de jogo entre as indústrias domésticas que são tributadas e suas competidoras estrangeiras que não o são, assegurando que a competitividade nacional não será afetada.1 Por se tratar de uma política que restringe o comércio, ao limitar o acesso internacional aos mercados domésticos, a adoção de um ajuste tarifário na fronteira encontraria obstáculos nos acordos de livre comércio e, mais REVISTA JURÍDICA CONSULEX - ANO XVII - Nº 402 - 15 DE OUTUBRO/2013 precisamente, nas regras da Organização Mundial do Comércio.2 De forma geral, como ensina Guido Soares, há oposições de interesse entre, de um lado, as normas de proteção ao meio ambiente e, de outro, aquelas que buscam uma liberalização do comércio internacional. Legislações ambientais domésticas têm reflexos nas relações comerciais internacionais. Medidas visando à proteção ambiental podem, igualmente, representar medidas discriminatórias unilaterais, seja em benefício dos produtores nacionais, seja no de determinados parceiros – medidas essas que se encontram proibidas pelas regras da OMC.3 O peso dessa organização faz com que a proibição acabe, sem dúvida, por condicionar a ação dos Estados. É sempre importante lembrar que os acordos da OMC representam um aprofundamento significativo das regras do comércio internacional. Além disso, esta organização conseguiu realizar a sua vocação universal, abrangendo hoje 159 nações.4 Porém, o fator que contribui para que ela represente uma ameaça a acordos que discriminem países com base em suas políticas ambientais é seu sistema efetivo de resolução de disputas, que conta com um Órgão de Solução de Controvérsias. Este se baseia na atuação de grupos especiais (panels) e de um Órgão de Apelação permanente, e em mecanismos de sanção fundados em medidas compensatórias que podem ser adotadas contra o país que não cumprir suas obrigações.5 A OMC conta, em outras palavras, com “garras e dentes” no que se refere a instrumentos de verificação e de controle da aplicação de suas regras.6 Isso não significa que esta não respeite a autonomia de seus membros de determinar seus próprios objetivos na área ambiental. Ao contrário, há vários elementos que permitem deduzir que o desenvolvimento sustentável é um dos aspectos a serem levados em conta pela organização em suas decisões. Essa autonomia foi reafirmada por seu Órgão de Solução de Controvérsias em diversas ocasiões.7 Além disso, o Preâmbulo do Acordo que instituiu a OMC prevê que a expansão da produção e o comércio de bens e serviços deve ocorrer “possibilitando, enquanto isso, o uso ótimo dos recursos mundiais de acordo com o objetivo do desenvolvimento sustentável, DIVULGAÇÃO COMÉRCIO INTERNACIONAL E SUSTENTABILIDADE DIVULGAÇÃO procurando ao mesmo tempo proteger e preservar o meio ambiente e ampliar os meios para fazê-lo de uma maneira consistente com as necessidades e interesses respectivos das partes contratantes em diferentes níveis de desenvolvimento econômico”.8 A OMC conta ainda, em sua estrutura, com um Comitê sobre Comércio e Meio Ambiente – órgão aberto à participação de todos os membros dessa organização, que foi instalado em fevereiro de 1995.9 Por fim, deve se ressaltar que as regras da organização admitem que o livre comércio não é um valor absoluto, podendo ser posto de lado em alguns casos – nos quais as legislações de proteção ambiental podem se enquadrar. Essa preocupação da OMC com o meio ambiente se constata na prática? É o que procuraremos entender em um próximo artigo neste espaço. De qualquer maneira, a primeira conclusão é que essa organização, conhecida por seu papel em zelar pelo bom fluxo e funcionamento do comércio global, também desempenha atribuição relevante na governança global da sustentabilidade, à medida que, dentro de seu mandato de defesa do livre comércio, pode vir a julgar legislações ambientais. Por seu peso e suas características, a OMC pode obstar a utilização dos ajustes tarifários na fronteira, dificultando a celebração de acordos de baixo carbono e influenciando fortemente o combate às mudanças climáticas. NOTAS 1 World Trade Organization and United Nations Envirnomental Program. Trade and climate change: WTO UNEP Report. Geneva: WTO, 2009, p. XIX. Disponível em: <http://www.wto.org/english/res_e/booksp_e/trade_climate_change_e.pdf>. Acesso em: 02.10.13. 2 EICHENBERG, M. Benjamin. Greenhouse gas regulation and border tax adjustments: the carrot and the stick. Golden Gate University Environmental Law Journal, v. 3, nº 2, 2010, p. 288-311. 3 SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2003, p. 140-146. 4 Disponível em: <http://www.wto.org/english/thewto_e/whatis_e/tif_e/org6_e.htm>. 5Ver Understanding on rules and procedures governing the settlement of disputes. Disponível em: <http://www.wto.org/english/docs_e/ legal_e/28-dsu_e.htm>. 6 SOARES, Guido Fernando Silva. Op. cit., p. 140-146. 7 World Trade Organization and United Nations Envirnomental Program. Loc. cit. Acesso em: 07.01.13. 8Ver Marrakesh Agreement Establishing the World Trade Organization. Disponível em: <http://www.wto.org/english/res_e/booksp_e/analytic_ index_e/wto_agree_01_e.htm>. Acesso em: 28.12.12. 9 Disponível em: <http://www.wto.org/english/tratop_e/envir_e/wrk_committee_e.htm>. EDUARDO FELIPE P. MATIAS é Doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (USP), Pós-Doutor pela IESE Business School, em Madrid (Espanha). Sócio do escritório Nogueira, Elias, Laskowski e Matias Advogados. Autor do livro A Humanidade e suas Fronteiras: do Estado soberano à sociedade global. REVISTA JURÍDICA CONSULEX - WWW.CONSULEX.COM.BR 17