ESTADO DE MATO GROSSO DEFENSORIA PÚBLICA Missão: Promover assistência jurídica aos necessitados com excelência e efetivar a inclusão social, respaldada na ética e na moralidade. GRATUIDADE DA JUSTIÇA • DIREITO CONSTITUCIONAL FUNDAMENTAL Lindalva de Fátima Ramos, Defensora Pública do Estado de Mato Grosso. PósGraduada em Direito Civil e Processual Civil pela Faculdade Estácio de Sá. Dispõe o art. 5º, inciso LXXIV, da Carta Magna que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. De outra banda, lê-se no art. 1º da Lei Complementar nº 80/94: “A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, assim considerados na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal” (redação dada pela LC nº 132/09). O art. 12 da Lei nº 1.060/50, por seu turno, dispõe que “A parte beneficiada pela isenção do pagamento das custas ficará obrigada a pagá-las, desde que possa fazê-lo, sem prejuízo do sustento próprio ou da família. Se dentro de cinco anos, a contar de sentença final, o assistido não puder satisfazer tal pagamento, a obrigação ficará prescrita”. Cotejando os dispositivos, é forçoso afirmar que, quando da prolação da sentença, o juiz não pode condenar o beneficiário da ESTADO DE MATO GROSSO DEFENSORIA PÚBLICA Missão: Promover assistência jurídica aos necessitados com excelência e efetivar a inclusão social, respaldada na ética e na moralidade. justiça gratuita, assistido pela Defensoria Pública Federal ou Estadual, ao pagamento de custas e despesas processuais, nem honorários advocatícios.1 A obediência a princípios constitucionais é mandamento cogente de um sistema jurídico. Pode-se, inclusive, dizer que os princípios são normas autoexecutáveis de eficácia plena, na terminologia de José Afonso da Silva.2 Constitui-se a gratuidade da justiça em direito individual e garantia fundamental de todo brasileiro que declarar insuficiência de recursos. A Carta Política da República não condiciona o benefício a evento futuro e incerto. Ademais, os direitos individuais consagrados no art. 5º da Constituição Federal são cláusulas pétreas e, portanto, insuscetíveis de modificação por qualquer outra norma, sob pena de subverter-se a ordem jurídica. Daí afirmar-se que o princípio de acesso à justiça, trasladado no art. 5º, inciso LXXIV, da Constituição, possui aplicação imediata e eficácia plena, não podendo ser limitado por norma infraconstitucional sancionada 38 (trinta e oito) anos antes da promulgação da Carta de 1988, que privilegia a defesa do cidadão hipossuficiente, em respeito aos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Desta feita, conclui-se pela inaplicabilidade do art. 12 da Lei nº 1.060/50 após a vigência da Constituição Republicana de 1988. Pensamento contrário viola a ideia de máxima efetividade dos direitos e garantias fundamentais, além de ir de encontro aos princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana, em um Estado Democrático de Direito. Basta ao operador do direito o conhecimento da lei? É óbvio que não. Para bem interpretar a norma legal, à luz da Constituição, há 1 A Lei nº 1.060/50, art. 3º, enumera as despesas 1 que estão englobadas pela assistência do Estado. 2 SILVA, José Afonso da. 2 Aplicabilidade das Normas Constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 81 e segs. ESTADO DE MATO GROSSO DEFENSORIA PÚBLICA Missão: Promover assistência jurídica aos necessitados com excelência e efetivar a inclusão social, respaldada na ética e na moralidade. que se valer do método histórico-evolutivo, que indica as atuais exigências sociais e do bem comum, do método sistemático, que confronta as normas de mesmo sistema legal, e do método teleológico, que revela a finalidade da lei num dado momento. Interpretando-se o art. 12 da Lei nº 1.060/50 com base nos referidos métodos de interpretação, há que se concluir que a aplicabilidade do dispositivo fere os ditames da Constituição Federal, já que refoge à sistemática lógico-jurídica de respeito aos direitos humanos. A Defensoria Pública tem papel importantíssimo na pacificação de conflitos, por isso, pretender o Estado-juiz a condenação em custas, despesas processuais e honorários advocatícios de seus assistidos, é negar vigência ao art. 1º da Lei Complementar nº 80, de 1994. Nos termos da Lei, a única possibilidade de condenação ao pagamento de ônus sucumbenciais na espécie é a prova cabal, em incidente de impugnação, enquanto tramitar os autos do processo e até o julgamento de mérito ou terminativo, de que o beneficiário da gratuidade da justiça não se enquadra nos padrões de hipossuficiência. Importante se afigura a leitura das ementas a seguir: PROCESSUAL CIVIL. ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA. DESNECESSIDADE DE MAIORES EXIGÊNCIAS. RECURSO ESPECIAL. REEXAME DE PROVAS. SÚMULA Nº 7 STJ. 1. Para a obtenção do benefício da justiça gratuita, basta a afirmação da parte interessada, não se exigindo maiores formalidades, nem atestado de pobreza. 2. Se, nos moldes em que delineada a controvérsia, a questão federal deduzida no recurso demanda incursão na seara fáticoprobatória, não merece acolhida a irresignação, ante a incidência do Verbete Sumular nº 7-STJ. 3. Recurso especial conhecido em parte e, nesta extensão, provido. ESTADO DE MATO GROSSO DEFENSORIA PÚBLICA Missão: Promover assistência jurídica aos necessitados com excelência e efetivar a inclusão social, respaldada na ética e na moralidade. (REsp nº 175.050-MG, Sexta Turma, Rel. Min. FERNANDO GONÇALVES, DJ 10.04.00.) PROCESSUAL CIVIL. JUSTIÇA GRATUITA. 1. A assistência judiciária gratuita pode ser pleiteada a qualquer tempo, desde que comprovada a condição de hipossuficiente (Lei nº 1.060/50, art. 4º, § 1º). 2. “É suficiente a simples afirmação do estado de pobreza para a obtenção do benefício, ressalvado ao juiz indeferir a pretensão, se tiver fundadas razões”. Precedentes. (Destaque proposital.) 3. Recurso provido. (REsp nº 234.306-MG, Quinta Turma, Rel. Min. FELIX FISCHER, DJ 14.02.00). AGRAVO. SEPARAÇÃO CONSENSUAL. CÔNJUGES ASSISTIDOS PELA DEFENSORIA PÚBLICA. ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA. ARTS. 5º, INCISO LXXIV, E 134 DA CARTA MAGNA. DECISÃO QUE DETERMINA O RECOLHIMENTO DAS CUSTAS, SOB PENA DE INDEFERIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL. É dever do Estado prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. Patrocínio da causa pela Defensoria Pública, que é rigorosa na seleção de seus assistidos. A propriedade de dois automóveis populares e de um imóvel não afasta a concessão do benefício. Imóvel doado ao filho do casal, cuja pensão alimentícia fora acordada no equivalente a 150% do valor do salário-mínimo, o que demonstra a real condição financeira dos recorrentes. Reforma da decisão recorrida. Concessão do benefício da assistência judiciária gratuita aos agravantes. Provimento do agravo. (Grifo intencional.) (TJRJ – Agravo de Instrumento nº 1999.002.8700- Petrópolis, Décima Sétima Câmara Cível, Rel. Des. Raul Celso Lins e Silva, julgado em 20.10.99.) Segundo entendimento pacífico do Superior Tribunal de Justiça, “O art. 12 da Lei nº 1.060/50, que dava o prazo de cinco anos para que se cobrasse do assistido judicial as „custas‟ (lato sensu), no caso da ESTADO DE MATO GROSSO DEFENSORIA PÚBLICA Missão: Promover assistência jurídica aos necessitados com excelência e efetivar a inclusão social, respaldada na ética e na moralidade. mudança de sua situação financeiro-econômica, não foi recepcionado pelo novo ordenamento constitucional” (STJ-RF 330/302, v.u.). Tomando-se por base esse entendimento, há que se concluir que se o magistrado deferiu a assistência judiciária e não há motivo para modificar-se a decisão, inaceitável juridicamente deixar a parte amarrada a uma situação de fato (financeira) que não se sabe ao certo como vai ser, pelo prazo de cinco anos. Seria como aplicar uma penalidade àquele que necessita da gratuidade da justiça, fator inibitório do amplo acesso à justiça. Em suma, deferida a gratuidade da justiça e julgada a lide, se a situação financeira da parte hipossuficiente modificar-se para melhor, sorte dela e não proveito do Estado. Inaceitável uma condenação condicional. A Justiça existe para resolver conflitos de interesses e não causar insegurança aos jurisdicionados, o que impõe a certeza da sentença, consoante o Código de Processo Civil. No século IV a.C., Aristóteles já dizia que “a pior forma de desigualdade é tentar tornar iguais as coisas desiguais”.