1 A ASSISTENCIALIZAÇÃO MINIMALISTA DAS POLÍTICAS SOCIAS NO TRATO DA QUESTÃO SOCIAL Márcia Pereira da Silva Cassin1 Sandra Maria Pereira Cassin Ramos2 Heloísa Helena de Souza Morais3 RESUMO O presente artigo propõe uma reflexão acerca das respostas engendradas pelo Estado e pela sociedade civil ao processo de radicalização das expressões da questão social na cena contemporânea. Para tal, desenvolve, no primeiro momento, uma análise sobre a emergência da questão social a partir da lei geral da acumulação capitalista, seu significado e desdobramentos nesta ordem societária. Posteriormente, são apontadas as principais mudanças societárias que incidiram em um reordenamento do capitalismo, alterando as configurações do Estado na oferta de políticas sociais e radicalizando as expressões da questão social. Ademais, é feito um resgate do processo de contrarreforma do Estado e do desmonte da Seguridade Social. Por fim, é desenvolvida uma discussão sobre o trato contemporâneo que tem sido dispensado à questão social. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica com abordagem qualitativa, que permite uma melhor apreensão do movimento do real, por meio de um diálogo crítico com autores que se tornaram referências no campo das ciências sociais e, especialmente, na literatura específica do Serviço Social. Palavras-chave: Questão social. Políticas sociais. Assistencialismo. 1 Graduada em Serviço Social pela Faculdade de Minas, FAMINAS - Muriaé/MG, no ano de 2012; Mestranda em Serviço Social pela UFRJ. 2 Graduada em Serviço Social pela Faculdade de Minas, FAMINAS - Muriaé/MG, no ano de 2008; Assistente Social do CRAS do município de Eugenópolis/MG. 3 Graduada em Serviço Social pela Faculdade de Minas, FAMINAS - Muriaé/MG, no ano de 2008; Assistente Social da Secretaria Municipal de Assistência Social do município de Eugenópolis/MG, no ano de 2009; Assistente Social da Secretaria Municipal de Saúde, desde 2010 e da APAE do município de Eugenópolis/MG, desde 2011. 2 INTRODUÇÃO Partindo-se do pressuposto de que o objeto do trabalho profissional dos assistentes sociais se constitui no conjunto das sequelas da “questão social” e que esta, por sua vez, consiste na razão de ser desta profissão, torna-se imprescindível identificar quais respostas têm sido engendradas pelo Estado e pela sociedade civil no enfrentamento de suas expressões na atualidade. Desvendar estas questões é tocar em um ponto medular da profissão, na medida em que estão relacionadas ao objeto e aos instrumentos de trabalho dos assistentes sociais e torna-se uma exigência que se coloca a todo profissional interessado na compreensão de sua atividade para além dos aspectos imediatamente técnicos de sua profissão, além de ser uma tarefa preliminar na busca por uma intervenção afinada aos princípios do projeto éticopolítico dos assistentes sociais. As políticas sociais no Brasil, orientadas pelo ideário neoliberal, vêm sofrendo significativos retrocessos, se considerarmos os avanços sociais conquistados pela Constituição Federal de 1988. O Estado tem reduzido cada vez mais seu papel como provedor dos direitos sociais, transferindo esta tarefa para o mercado e para a solidariedade do “terceiro setor”. Dessa forma, o mercado fica reservado para aqueles que possuem meios para adquirir os serviços privados, enquanto os precários serviços públicos são destinados aos “comprovadamente pobres”. APARATO CRÍTICO A questão social, enquanto expressão máxima da contradição capital/trabalho e da histórica desigualdade entre as classes, tem sido ampliada e potencializada pelo atual quadro de reestruturação do capitalismo contemporâneo, ao passo que as formas de seu enfrentamento se inserem em um contexto de regressão de direitos e assistencialização das políticas sociais. 3 A gênese da questão social está atrelada ao movimento que o capital realiza na concretização de sua “lei geral da acumulação”. Esta se expressa pelo aumento da riqueza contraposto ao aumento da pobreza. No modo de produção capitalista a população trabalhadora sempre cresce mais rapidamente que a necessidade de seu emprego. O desenvolvimento das forças produtivas possibilita aos trabalhadores produzirem mais em menos tempo, fazendo com que os capitalistas extraiam uma maior quantidade de trabalho de uma parcela menor de trabalhadores, seja por meio da ampliação da jornada de trabalho ou pela intensificação do ritmo da produção. Tal fato ocasiona um predomínio do trabalho morto sobre o trabalho vivo. Nessa perspectiva, quanto maior a exploração do trabalho, maior a riqueza do capital e quanto mais o trabalhador produz riquezas para o capitalista, mais está produzindo a própria miséria, uma vez que “a acumulação da riqueza num pólo é, portanto, ao mesmo tempo, a acumulação de miséria, tormento de trabalho, escravidão, ignorância, brutalização e degradação moral no pólo oposto, isto é, do lado da classe que produz seu próprio produto como capital” (MARX, 1996: 275). Quanto maior o desenvolvimento, maior acumulação privada de capital. O desenvolvimento no capitalismo não promove maior distribuição de riqueza, mas maior concentração de capital, portanto, maior empobrecimento e maior desigualdade, resultando na pauperização crescente dos vendedores de sua força de trabalho. As mudanças societárias ocorridas a partir de 1970 redesenharam o quadro do capitalismo, conferindo-lhe novos traços no cenário mundial. A dinâmica de reordenamento capitalista impôs modificações sócio-históricas que incidiram sobre a relação Estado/sociedade civil e radicalizaram as manifestações da questão social na cena contemporânea. A crise de superprodução desencadeada pelo esgotamento do padrão de acumulação fordista-keynesiano no início da década de 1970, impulsionou o capital a desenvolver um processo de reestruturação, a começar pelas mudanças no processo produtivo. Ocorre a substituição do padrão fordista-keynesiano de produção pelo padrão toyotista, também conhecido como padrão de acumulação flexível (HARVEY, 1993). Essa substituição ocorreu devido à necessidade de promover uma revolução tecnológica e organizacional da produção, 4 dando início à chamada reestruturação produtiva. Esta, por sua vez, teve impactos tanto na esfera da produção como na das relações sociais. Os processos de reestruturação produtiva têm por objetivo a construção de novas formas de controle do capital sobre os trabalhadores, trazendo sérios rebatimentos sobre o mundo do trabalho, como a heterogeneização, fragmentação e complexificação da classe trabalhadora (ANTUNES, 1995). A reestruturação produtiva foi uma necessidade posta ao capital para recuperação de suas taxas de lucro. O modelo toyotista de produção caracterizou-se pelo fim da produção em massa e pela adoção da produção flexível, onde a aceleração do tempo de giro na produção e a redução do tempo de giro no consumo permitiram uma produção diversificada, ao contrário do fordismo, cuja produção era homogênea. (HARVEY, 1993). As mudanças no padrão de acumulação também permitiram um maior controle sobre a força de trabalho, com a adoção de regimes e contratos de trabalho mais flexíveis. Além disso, houve a tendência de reduzir o número de trabalhadores centrais e aumentar a força de trabalho mais flexível (HARVEY, 1993). Dessa forma, ao mesmo tempo em que era exigido um perfil de trabalhador polivalente e qualificado, houve a desqualificação de um enorme contingente de trabalhadores, elevando o desemprego estrutural a níveis alarmantes. Paralelo às mudanças no mundo do trabalho, um novo regime de regulação social passou a ganhar terreno: o neoliberalismo. Este projeto político-econômico foi inspirado nas idéias liberais de Frederick Hayek (1899-1992), expostas em sua obra intitulada “O caminho da Servidão”, produzida em 1944. Trata-se de um retorno aos princípios do capitalismo liberal do século XIX, na defesa por uma política econômica que vigorasse sem qualquer limitação dos mecanismos do mercado. De acordo com Anderson (1995), o neoliberalismo foi uma reação teórica e política ao Estado de bem-estar social. Segundo os defensores do ideário neoliberal, a crise seria resultado do poder excessivo dos sindicatos, com sua pressão sobre os salários, bem como dos gastos sociais do Estado. 5 Conforme apontam Netto e Braz (2006: 226), “a pretensão do capital é clara: destruir qualquer trava extra-econômica aos seus movimentos”. Por isso, tornou-se necessário a implantação de um verdadeiro ajuste global que alterasse significativamente o contexto sociopolítico vigente até então, destruindo os limites impostos à expansão do capital pelas conquistas da classe trabalhadora. Para Anderson (1995), a hegemonia do neoliberalismo só ocorreu no final dos anos 1970, quando seus princípios foram assumidos nos programas governamentais em diversos países da Europa e dos Estados Unidos. Os primeiros países a adotarem este projeto societário foram a Inglaterra no governo de Thatcher, os Estados Unidos com Reagan, a Alemanha de Khol e a Dinamarca com o governo de Schluter. Posteriormente, a quase totalidade dos governos da Europa Ocidental implementou programas seguindo as diretivas neoliberais. Os países que adotaram o receituário neoliberal dedicaram-se a elevar as taxas de juros, reduzir os impostos dos mais ricos, criar níveis massivos de desemprego, combater fortemente o poder dos sindicatos, cortar drasticamente os gastos sociais e implantar um amplo programa de privatizações, principalmente das indústrias de petróleo, aço, eletricidade e água (ANDERSON, 1995). Para os neoliberais, só em uma sociedade de livre mercado os indivíduos podem se desenvolver plenamente, optar sobre o que fazer e o que não fazer, sem que exista uma autoridade, neste caso o Estado, que lhes imponha o que deve ser feito. Neste sentido, torna-se evidente que a proposta neoliberal está assentada no desmonte do Welfare State e do Estado de bem-estar social1, incentivando severos cortes nos gastos sociais. As mudanças societárias da década de 1980 tiveram por parâmetro as políticas macroeconômicas elaboradas pela burguesia internacional, em parceria com o Banco Mundial e com o Fundo Monetário Internacional, contidas no chamado Consenso de Washington. A orientação dos organismos internacionais a partir do “novo consenso” passa a ser a de reformas sociais que têm como foco a pobreza, provocando sérias reconfigurações nas políticas sociais e tecendo as bases das propostas de privatização e contra-reforma do Estado no Brasil (BEHRING, 2003). 6 Outro fenômeno que caracterizou o quadro do capitalismo neste período e que continua a imperar até os dias atuais é a mundialização do capital financeiro. A financeirização pode ser considerada um legado do acordo realizado em Bretton Woods (EUA), em julho de 1944, que reforçou a hegemonia dos Estados Unidos no processo de globalização financeira, num processo de rearticulação do mercado mundial. De acordo com Netto e Braz (2006: 233), “as finanças passaram a constituir, nos últimos trinta anos, o sistema nervoso do capitalismo”. O capital, nessa esfera, se sustenta na gigantesca concentração do sistema bancário e financeiro e aparece como “se fosse capaz de criar ‘ovos de ouro’, isto é, como se o capital dinheiro tivesse o poder de gerar mais dinheiro no circuito fechado das finanças” (IAMAMOTO, 2011: 109). Nesse novo estágio do desenvolvimento do capital, as fronteiras entre os países se tornam cada vez mais estreitas devido ao avanço dos recursos informacionais e a globalização dos mercados e capitais torna-se uma estratégia para o fortalecimento da acumulação capitalista. Este processo revolucionou as condições sociais, econômicas, políticas e culturais de povos e civilizações e trouxe consequências devastadoras principalmente para os países periféricos que se tornaram exportadores de capital para os países centrais, dada a submissão de tais países aos ditames da grande potência norte americana2. Tal processo de reorganização do capital, marcado pela reestruturação da produção e do trabalho, pela adoção do ajuste neoliberal e pela mundialização financeira, trouxe conseqüências dramáticas para a sociedade, como a destruição das forças produtivas, gerando um enorme contingente de trabalhadores em situação precária, aumentando a jornada de trabalho e os níveis do desemprego estrutural, precarizando as condições de vida da “classe-que-vive-do-trabalho” (ANTUNES, 2005). ARGUMENTAÇÃO E ANÁLISE Iamamoto (2011: 124) ressalta que “na raiz do atual perfil assumido pela questão social encontram-se as políticas governamentais favorecedoras da esfera financeira e do 7 grande capital produtivo”. De fato, as profundas mudanças societárias que configuraram a sociedade “tardo-burguesa”, nos termos de Netto (2012), resultaram em um quadro de radicalização da questão social, ampliando antigas e recriando novas manifestações. Para Santos (2012) as particularidades da questão social no Brasil podem ser descritas a partir de uma perversa associação: “de um lado a superexploração do trabalho, cujo valor sempre precisou ser mantido bem abaixo dos padrões vigentes em outros países, notadamente os de capitalismo desenvolvido, para que o país continuasse atrativo aos seus investimentos produtivos; de outro, uma passivização das lutas sociais que historicamente foram mantidas sob controle do Estado e das classes dominantes” (SANTOS, 2012: 437). Dessa forma, no Brasil, a questão social se manifesta de maneira peculiar devido às particularidades da formação histórica do país, marcado por uma “herança histórica colonial e patrimonialista” (IAMAMOTO, 2011: 128), que resultou em uma enorme concentração de renda e aprofundamento da desigualdade social. Conforme Yasbek (2012: 294) “a pobreza tem sido parte constitutiva da história do Brasil, assim como os sempre insuficientes recursos e serviços voltados para seu enfrentamento”. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que as expressões da questão social têm sido radicalmente acentuadas no cenário brasileiro, presencia-se uma retirada paulatina do Estado na responsabilidade por seu enfrentamento. Os direitos constitucionais estão sendo gradativamente substituídos pelos preceitos contidos na cartilha do Consenso de Washington. O advento da Constituição Federal de 1988 introduziu o conceito de Seguridade Social no Brasil, até então inexistente no país, articulando as políticas de Saúde, Previdência e Assistência Social. Se historicamente o acesso ao trabalho sempre foi condição para garantia do acesso à Seguridade Social, agora elas são oficialmente instituídas no campo dos direitos sociais. A Carta Magna rompeu com o tradicional modelo de saúde-previdência para os trabalhadores e seus dependentes e assistência para os “necessitados”, através da filantropia e benemerência. Dessa forma, a Constituição Federal, buscando romper com a lógica discriminatória e excludente que sempre esteve presente na história do país, incorpora elementos de 8 garantias de direitos que seriam, junto com a política de desenvolvimento econômico e pleno emprego, constitutivos de um projeto de Seguridade Social que estabeleceria um sistema de proteção social afinado à constituição de um Estado de Bem-Estar Social. A previdência social permanece restrita aos trabalhadores contribuintes, a saúde é universalizada e a assistência social passa a ser destinada a quem dela necessitar. O estabelecimento destas políticas sociais desenhava a forma pela qual o Estado deveria responder à questão social. A Constituição trouxe avanços legais, resultado da luta de atores sociais ativos engajados no processo de redemocratização. No entanto, tais avanços surgiram na contramão da tendência mundial de predomínio do ideário neoliberal e desmonte do Welfare State. O início da década de 1990 foi marcado pela entrada retardatária do ajuste neoliberal no Brasil. Soares (2002) destaca que o surgimento da proposta neoliberal no país foi consequência do agravamento da crise econômica de 1989-90 e do esgotamento do Estado Desenvolvimentista Brasileiro. Nesse sentido, em pleno processo de efervescência da Constituição de 1988, o Brasil se tornou signatário do acordo firmado com os organismos financeiros internacionais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, por meio do Consenso de Washington. Dentre as orientações presentes no Consenso, destaca-se a desestruturação dos sistemas de proteção social vinculados às estruturas estatais e a privatização dos mesmos. Dessa forma, as políticas sociais na década de 1990 já são direcionas para o “combate à pobreza” e para a partilha da responsabilidade entre Estado e sociedade no enfrentamento da questão social. Em seu primeiro mandato, o presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-1999) atribuiu prioridade ao controle da inflação e manutenção da estabilidade da moeda, além de defender a necessidade de reformar o Estado, adequando-o às diretivas neoliberais. A reforma do Estado foi conduzida pelo então ministro Bresser Pereira, que esteve à frente do Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE). O ministro considerava a crise fiscal como principal motivo para a crise do Estado e, para enfrentá-la, seria necessário a construção de um “novo Estado”. Nesse sentido, foi elaborado o Plano Diretor da Reforma do Estado, aprovado em setembro de 1995, com o objetivo de implantar a “reforma”, que 9 deveria seguir pelos seguintes caminhos: “[...] ajuste fiscal duradouro; reformas econômicas orientadas para o mercado – abertura comercial e privatizações - acompanhadas de uma política industrial e tecnológica que fortaleça a competitividade da indústria nacional; reforma da Previdência Social; inovação dos instrumentos de política social; e reforma do aparelho do Estado, aumentando sua eficiência” (BEHRING, 2003: 178). Nos termos de Behring (2003), o que esteve em curso nos anos 1990 foi uma verdadeira “contra-reforma” do Estado brasileiro, na medida em que houve uma forte evocação do passado no pensamento neoliberal. Este processo subordinou os direitos sociais à lógica orçamentária e a política social à política econômica, prevalecendo o trinômio articulado do ideário neoliberal: privatização, focalização e descentralização. A privatização das políticas sociais ocorre por duas vias: a mercantilização e a refilantropização das respostas à questão social. O Estado repassa para o mercado a responsabilidade pela oferta dos serviços sociais, com destaque para a Saúde, Previdência Social e Educação, que perdem o caráter de direito, reforçando a lógica do cidadãoconsumidor (MOTA, 2005). Ao mesmo tempo, são transferidos para a sociedade civil os serviços que não podem ser ofertados pelo mercado, como a assistência social, sendo ofertados de forma pontual e sem garantia de permanência. As políticas sociais ofertadas pelo Estado, por sua vez, são focalizadas, ou seja, são direcionadas aos segmentos mais precarizados da população, conforme a orientação dos organismos internacionais. Dessa forma, o princípio de universalidade afirmado na Constituição torna-se letra morta, sendo necessário ter declarada a condição de pauperização para se ter um acesso mínimo aos serviços sociais. A descentralização imposta pelo ajuste neoliberal não consiste, ao contrário do que possa parecer, numa repartição positiva de poder entre os entes federativos, mas refere-se a uma mera transferência de responsabilidades para os estados e municípios, no nível do gerenciamento e não da gestão das políticas sociais. As respostas à questão social na década de 1990 passaram pelo que Behring (2003) designou como “dualidade discriminatória” entre os que podem e os que não podem pagar pelos serviços e o resultado tem sido a precarização ou eliminação da responsabilidade do 10 Estado pela oferta das políticas sociais. Nesse contexto, emerge um processo que Mota (2005: 147) denomina de “assistencialização/privatização da Seguridade Social”, em que esta experimenta uma transição rápida da sua formulação para o seu desmantelamento, durante o período de sua implementação. Os direitos sociais são subordinados à lógica orçamentária e a política social à política econômica. A cidadania e as necessidades humanas são rebaixadas ao nível da sobrevivência física, prevalecendo o conceito de mínimos sociais na oferta de direitos. Neste sentido, “observa-se uma inversão e uma subversão: ao invés do direito constitucional impor e orientar a distribuição das verbas orçamentárias, o dever legal passa a ser submetido à disponibilidade de recursos. São as definições orçamentárias – vistas como um dado não passível de questionamento – que se tornam parâmetros para a implementação dos direitos sociais implicados na seguridade, justificando as prioridades governamentais” (IAMAMOTO, 2011: 149). O peso do fundo público recai, em sua maioria, sobre os trabalhadores, seja com a tributação da renda na fonte, seja quando são remetidos ao consumo (BEHRING, 2009). Todavia, para eles não retorna. Em um contexto de crise comandado pela era das finanças, o fundo público é canalizado para alimentar o circuito financeiro. A dívida pública se converteu no maior canal de transferência de receitas em benefício dos rentistas. Com base no discurso da “crise fiscal” do Estado, o governo neoliberal impõe severos cortes nos gastos sociais, que acabam por minar o princípio constitucional de universalidade. Este é substituído pela focalização e seletividade, onde predominam as ações minimalistas de “combate à pobreza”, destinadas aos mais pobres dentre os pobres. Atualmente, essa realidade é expressa nos programas de transferência de renda, com destaque para o programa Bolsa Família, que é o maior programa de transferência de renda em implementação no Brasil, assumindo a centralidade do Sistema de Proteção Social. De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome o programa atende, atualmente, mais de 13 milhões de famílias em todo o território nacional nos 5.564 municípios brasileiros.3 11 O acesso aos direitos conquistados pela luta e mobilização da classe operária e do conjunto dos trabalhadores é sujeitado a um “atestado de pobreza”, que pressiona para o cumprimento de certas contrapartidas e condicionalidades. De acordo com Pereira (2003), este fato constitui uma inversão perversa e arrogante de valores no campo da política social, que contradiz até mesmo a lógica contratual, tendo em vista que os pobres, que são credores de uma enorme dívida social acumulada, têm de oferecer contrapartida aos seus devedores, quando estes se dispõem a saldar parcelas ínfimas dessa dívida. Nesse sentido, “os serviços estatais para pobres são, na verdade, pobres serviços estatais” (MONTAÑO, 2010: 195). Diante da insuficiência e precarização dos serviços estatais, o mercado se apresenta como uma alternativa para aqueles que almejam serviços de melhor qualidade, ou seja, voltados para o cidadão-consumidor (MOTA, 2005). No bojo do processo de privatização neoliberal, as políticas sociais são mercantilizadas e o que era direito transforma-se agora em um serviço privado regulado pelo mercado e vendido ao consumidor como uma mercadoria, fortalecendo a acumulação capitalista. Com o discurso da insuficiência de recursos, o Estado transfere para a esfera da sociedade civil a responsabilidade de assistir os setores da população descobertos pelos precários serviços públicos, mediante práticas voluntárias, filantrópicas e caritativas. Cresce o chamado “terceiro setor” composto por um conjunto de ONGs, fundações empresariais, associações comunitárias, movimentos sociais etc. que visam substituir o papel do Estado na oferta de políticas sociais. Trata-se de “um novo padrão [...] para a função social de respostas às seqüelas da ‘questão social’, seguindo os valores da solidariedade voluntária e local, da auto-ajuda e da ajuda-mútua” (MONTAÑO, 2010: 22). No projeto neoliberal, as respostas às refrações da questão social deixam de constituir uma responsabilidade do Estado e um direito do cidadão e passam a ser agora de responsabilidade dos próprios sujeitos portadores de necessidades ou uma opção do voluntário que “ajuda” o próximo. O trato contemporâneo à questão social tem abarcado três dimensões: a intervenção estatal precária; a intervenção mercantil, de boa qualidade voltada apenas para quem tem meios de adquiri-la e a intervenção filantrópica, sem garantia de permanência. 12 A questão social se tornou objeto de ações precárias, focalizadas e filantrópicas, que em nada favorecem o protagonismo e a emancipação da classe trabalhadora. Ou seja, as propostas neoliberais apontam para um “espantoso minimalismo frente a uma ‘questão social’ maximizada” (NETTO, 2012: 428). As políticas sociais estatais que se propõem a enfrentar a questão social na atualidade se tornam cada vez mais sucateadas e com acesso cada vez mais restrito, o que acaba por anular a sua dimensão de direito, caracterizando uma espécie de “clientelismo (pós) moderno” (BEHRING, 2003: 65) e reforçando o assistencialismo. A função das políticas sociais, no ideário neoliberal, é meramente complementar, apenas para compensar o que não pode ser acessado via mercado. Aliado ao minimalismo das políticas sociais emerge o fenômeno da criminalização da questão social (IANNI, 1994) que, conforme o referido autor, tende a transformar as manifestações da questão social em problemas de assistência social ou em objeto de segurança e repressão. Netto (2012) reafirma essa hipótese, sustentando que vivemos atualmente no Brasil um estado de guerra permanente contra os pobres. Ainda segundo o referido autor, o último terço do século XX assinala o exaurimento das possibilidades civilizatórias da ordem do capital. Ou seja, a atual ordem societária não possui mais condições de propiciar quaisquer alternativas progressistas para a massa dos trabalhadores e para a humanidade, em todos os níveis da vida social. Esta ordem só tem a oferecer soluções barbarizantes para a vida social. O autor ressalta, ainda, que “a articulação orgânica de repressão às ‘classes perigosas’ e assistencialização minimalista das políticas sociais dirigidas ao enfrentamento da ‘questão social’ constitui uma das faces contemporâneas mais evidentes da barbárie atual” (NETTO, 2012: 429). CONCLUSÕES O enfrentamento da questão social na contemporaneidade, perpassado por um projeto político-econômico neoliberal de reestruturação do capitalismo contemporâneo, se expressa pela predominância do minimalismo na oferta das políticas sociais. Estas, por sua 13 vez, não possuem nem mesmo a pretensão de erradicar a pobreza, mas apenas enfrentar a penúria aparente. Este cenário ratifica a total submissão das necessidades humanas às necessidades de auto-reprodução do grande capital. Sabe-se que as relações de produção na ordem do capital não são destinadas ao atendimento das necessidades humanas, mas única e exclusivamente à obtenção do lucro. Portanto, o Estado que deveria ser o representante legítimo dos interesses do povo, torna-se um fiel representante dos interesses do capital, atuando como o “comitê executivo da burguesia”. Neste sentido, cada indivíduo isoladamente é responsável por suas mazelas. O direito constitucional do cidadão é substituído pelo discurso da solidariedade e autoajuda, num contexto onde a globalização é “só para o grande capital. Do trabalho e da pobreza, cada um que cuide do seu como puder. De preferência com Estados fortes para sustentar o sistema financeiro e falidos para cuidar do social” (SOARES apud MONTAÑO, 2010: 13). Os rebatimentos deste processo para o Serviço Social são perversos, uma vez que estas políticas são os principais espaços ocupacionais para a profissão. As conseqüências recaíram tanto sobre os usuários da profissão quanto sobre as condições de trabalho dos assistentes sociais. O assistente social vê-se destituído dos instrumentos e recursos necessários à operacionalização de sua atividade. À medida que os critérios de acesso às políticas sociais se tornam cada vez mais restritos e burocráticos, os profissionais podem cair na armadilha de ter sua atuação reduzida a uma mera “administração da pobreza”. O assistente social vem sendo requisitado a responder as mais diversas refrações da questão social por meio de programas e políticas sociais focalizadas, precárias e pontuais, que são totalmente contrárias aos princípios defendidos no projeto ético-político do Serviço Social, especialmente no que se refere ao posicionamento em favor da universalidade de acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais. É preciso fortalecer as lutas sociais na defesa pela cidadania e pela consolidação dos direitos civis, políticos e sociais, buscando o protagonismo da classe trabalhadora na luta pela emancipação humana. Torna-se necessário, ainda, romper com o minimalismo das 14 políticas sociais no enfrentamento da questão social e considerá-lo não como o limite, mas como um ponto de partida. 15 REFERÊNCIAS ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir; GENTILI, Pablo. (Org.) Pósneoliberalismo: As políticas sociais e o Estado Democrático. 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Acesso em: 20 fev. 2013.