AUTOMUTILAÇÃO NA ADOLESCÊNCIA: O ACESSO A TRATAMENTO
MÉDICO COMO DIREITO FUNDAMENTAL
Priscilla Menezes da Silva1
Sumário: Resumo. Introdução. 1. Direito à saúde como direito fundamental e garantidor da dignidade da
pessoa humana. 1.1 O que é saúde? 1.2 Mínimo existencial x reserva do possível: até que medida o
Estado está obrigado a prover a saúde dos cidadãos? 2. Automutilação na adolescência: uma questão
psicossocial. 2.1 Conceito, histórico e simbologia. 2.2 Diagnóstico da causa da automutilação: A
medicina baseada em evidências. 2.3 Formas de manifestação e consequências da automutilação. 3. A
tutela jurídica do adolescente. 3.1 Das Encíclicas Papais ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 3.2 Da
Dignidade do ser humano em qualquer idade ou condição. Conclusão.
Resumo
O presente trabalho tem como objetivo demonstrar a insuficiência de acesso a
tratamento médico de adolescentes que sofrem com práticas de autolesão e o dever do
Estado de investir em políticas públicas que garantam tal direito fundamental.
Abstract
The purpose of this paper is to demonstrate the inefficiency of the access to
teenagers’ health treatment who suffer from cutting (self injury) and the duty of the
State to promote public policies to ensure such human right.
Palavras-chave: automutilação; tratamento médico; direito fundamental.
Introdução
Nas palavras do ilustre professor José de Oliveira Ascensão, “proclamar direitos
sai de graça. Mas tem-se observado que a proclamação generalizada dos direitos do
homem coincidiu no tempo com o processo do esvaziamento do seu conteúdo”.2
1
Professora da Universidade Federal Fluminense / UFF. Mestranda em Direito pela UERJ. Advogada da
Mútua dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro.
2
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil. Teoria Geral. Introdução. As Pessoas. Os Bens. Volume I.
2ª edição. Editora Coimbra. P. 76.
Ao analisar o ordenamento jurídico brasileiro, nota-se nítido processo de
constitucionalização de todos os ramos. O homem passou a ser o epicentro do sistema
normativo, sendo a prioridade do direito.
A Carta Magna de 1988 constitucionalizou diversos direitos, dentre eles a saúde
como direito social, sendo dever do Estado promovê-la. Especificamente sobre o tema
deste trabalho, na prática, verifica-se total falta de vontade política3 em desenvolver
programas para atender a um público muito especial: os adolescentes.
Apesar da falta de estatísticas oficiais no Brasil, de acordo com relatos de
profissionais de saúde, tem aumentado a quantidade de adolescentes que apresentam
comportamento autodestrutivo (autolesão), sem que haja correspondente infraestrutura
para atendê-los.
Tal agressão ao próprio corpo tem origens variadas como se verá ao longo do
trabalho e demandam estudos descritivos de casos e terapias diversas, de acordo com
cada paciente, o que exige infraestrutura principalmente de pessoal habilitado a tratar
este público.
Sendo assim, o presente trabalho se propõe a analisar a verdadeira extensão do
direito fundamental à saúde e sua efetivação no que se refere aos adolescentes.
1. Direito à saúde como direito fundamental e garantidor da dignidade da pessoa
humana
1.1 O que é saúde?
Saúde é um estado de completo bem estar físico, mental e social e não apenas
ausência de doenças.4 É no mínimo estranho que um bem tão importante como a saúde
tenha pouco destaque quando o que mais se discute nos dias atuais é a dignidade da
pessoa humana.
A vida digna necessariamente passa pela saúde do indivíduo (física e mental),
pois é um dos indicadores de qualidade de vida. No direito à saúde inclui-se o acesso a
3
REALE, Miguel. A boa fé no Código Civil. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. RDB
21/11. Jul-Set/2003.
4
Organização Mundial de Saúde.
tratamento médico não somente curativo, como se propaga na maior parte dos
discursos, mas também preventivo, de acordo com o estado atual da medicina.
A saúde está no rol dos direitos sociais da Constituição Brasileira5 e
topograficamente está situado dentro dos direitos e garantias fundamentais6, aliás, como
não poderia deixar de ser. Um indivíduo doente e sem acesso a tratamento médico de
qualidade, por não ter saúde, não pode exercer seus demais direitos, tais como liberdade
plena, trabalho e lazer.
Sendo assim, ao longo deste trabalho se destacará que a saúde, para além da
ausência de enfermidades, deve basear-se no bem estar geral do indivíduo em todas as
suas acepções, principalmente no aspecto mental e emocional, que podem desencadear
males físicos, conforme se verá adiante.
Em que pese a iniciativa privada poder atuar na área de saúde, é indubitável que
a obrigação primária de promovê-la é do Estado, mas em que medida e quais custos?
1.2 Mínimo existencial x reserva do possível: até que medida o Estado está
obrigado a prover a saúde dos cidadãos?
A análise dos princípios do mínimo existencial e da reserva do possível é de
inexorável importância para compreender a medida da prestação estatal, principalmente
num momento em que vislumbramos a crescente judicialização da saúde.
A teoria do mínimo existencial está diretamente relacionada com a eficácia dos
direitos fundamentais.7 Os direitos sociais (categoria na qual a saúde se insere) são
direitos de segunda geração, surgem no pós guerra e, ao contrário dos direitos de
primeira geração, que impõe um não fazer ao Estado (conduta negativa), passam a
demandar prestações positivas.
5
Art. 6°, caput, CRFB.
Segundo José Afonso da Silva os direitos sociais tem natureza jurídica de direitos fundamentais. Vide
em Comentário Contextual à Constituição, p. 184, Editora Malheiros, 5ª edição. 2008.
7
MARTINS, Flávia Bahia. Direito Constitucional, 2ª edição. Niterói, Rio de Janeiro. Impetus, 2011. P.
203.
6
A partir do Estado do Bem-Estar Social (Welfare State)8, a igualdade que antes
era meramente formal, passa a ser (ou dever-ser) também material, a fim viabilizar a
igualdade entre pessoas desiguais. Segundo lição de José Afonso da Silva,
(...) podemos dizer que os “direitos sociais”, como dimensão dos direitos fundamentais
do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente,
enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos
mais fracos; direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. 9
Os direitos sociais consagrados na Constituição são direitos subjetivos públicos,
ou seja, tem o poder de obrigar o Estado a prestá-los, mas em que medida? Em tese,
somente o núcleo essencial de cada direito encerraria tal obrigação, mas o princípio da
dignidade da pessoa humana deve buscar a vida digna, plena, não a mera sobrevivência
das pessoas.
Diante desta afirmação, se defende uma interpretação máxima de um conceito
mínimo. Dito de outro modo. O mínimo existencial não deve ser um mínimo vital,
aquela esmola dada para garantir a mera sobrevivência. O núcleo essencial dos direitos
fundamentais deve ser interpretado de forma extensiva, a fim de garantir o cumprimento
do preceito constitucional mais importante: a dignidade do homem, epicentro do
ordenamento jurídico.
No caso do direito à saúde, não adianta construir hospitais e não haver material
humano para desempenhar o serviço (médicos, enfermeiros, técnicos) equipamentos e
condições dignas de trabalho e atendimento.
Mas se por um lado é dever do Estado promover a saúde,
10
de outro existe a
possibilidade prática, material de atingir tal objetivo.
Costuma-se dizer que os direitos sociais são custosos para os cofres públicos,
que sua efetivação gera despesa, razão pela qual tem pouca efetividade. Diante de tal
carência, hoje vislumbra-se uma inesgotável quantidade de ações judiciais buscando o
provimento jurisdicional da obrigação estatal.
8
JÚNIOR, Dirley da Cunha. Curso de Direito Constitucional. 4ª edição. 2009. Editora JusPodivm. P.727.
SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 5ª edição. 2008. Editora Malheiros. P.
183.
10
Art. 196, CRFB.
9
A alegação (falaciosa) do Estado é de que não há verbas, ou seja, este só teria o
dever de fornecer tais serviços (no presente caso, acesso à saúde) se houvesse verbas
disponíveis para tanto. Em caso negativo o poder público estaria exonerado de tal tarefa.
Ora, esta visão é uma deturpação imperdoável do princípio da reserva do
possível. Este instituto não pode servir de escudo para a ineficiência estatal. Mas como
fica o ônus da prova neste tipo de alegação? Cabe a quem alega provar a incapacidade
financeira de arcar com tais despesas, o que nunca fica comprovado nos autos, que só
trazem alegações genéricas acerca de tal impossibilidade.
Na prática, a jurisprudência tem sinalizado que o Judiciário pode efetivar o
direito à saúde, conforme se vislumbra claramente na ADPF 45 de lavra do ilustre
Ministro Celso de Mello, conforme segue:
O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante
inércia governamental. (...) Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à
realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos,
operantes e exequíveis, abstendo-se, em consequência, de cumprir o dever de prestação
que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional.
Desse non facere ou non praestare, resultará a inconstitucionalidade por omissão, que
pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é
insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público. É certo que não se inclui,
ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário - e nas desta
Suprema Corte, em especial - a atribuição de formular e de implementar políticas
públicas (JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, "Os Direitos Fundamentais na
Constituição Portuguesa de 1976", p. 207, item n. 05, 1987, Almedina, Coimbra), pois,
nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo.
Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao
Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os
encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal
comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos
impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de
conteúdo programático.
Cabe assinalar, presente esse contexto - consoante já proclamou esta Suprema Corte que o caráter programático das regras inscritas no texto da Carta Política "não pode
converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público,
fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira
ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de
infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado"
(RTJ 175/1212-1213, Rel. Min. CELSO DE MELLO). Não deixo de conferir, no
entanto, assentadas tais premissas, significativo relevo ao tema pertinente à "reserva do
possível" (STEPHEN HOLMES/CASS R. SUNSTEIN, "The Cost of Rights", 1999,
Norton, New York), notadamente em sede de efetivação e implementação (sempre
onerosas) dos direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais),
cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige, deste, prestações estatais
positivas
concretizadoras
de
tais
prerrogativas
individuais
e/ou
coletivas.
É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais - além de caracterizar-se
pela gradualidade de seu processo de concretização - depende, em grande medida, de
um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do
Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômicofinanceira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a
limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta
Política. Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese - mediante
indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa - criar
obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar,
de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos
cidadãos,
de
condições
materiais
mínimas
de
existência.
Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da "reserva do possível" - ressalvada a
ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado,
com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais,
notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação
ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de
essencial fundamentalidade.11
No mesmo sentido foi a decisão na Suspensão de Tutela Antecipada 238,
conforme segue, verdadeira aula do Ministro Gilmar Mendes sobre o tema em questão:
Trata-se de suspensão de tutela antecipada, com pedido de medida liminar,
ajuizada pelo Município de Palmas/TO, contra decisão proferida pelo Juízo da 2a Vara
dos Feitos das Fazendas e Registros Públicos da Comarca de Palmas/TO, na Ação de
Reparação de Danos Morais e/ou Materiais no, mantida pelo Tribunal de Justiça do
Estado de Tocantins, que deferiu a antecipação de tutela recursal para determinar ao
Estado do Tocantins e ao Município de Palmas a prestação de tratamento odontológico,
com aplicação
de
anestesia
geral,
em favor
de
FRANCISCO
CEZÁRIO
NASCIMENTO, paciente portador de distúrbios mentais. (...) A decisão liminar que o
Município de Palmas/TO busca suspender, ao determinar ao Estado de Tocantins e ao
Município de Palmas que fornecessem ao autor o tratamento odontológico como
requerido na inicial, fundamentou-se na aplicação imediata do direito fundamental
11
No mesmo sentido, vide também STA 278.
social à saúde. A doutrina constitucional brasileira há muito se dedica à interpretação do
artigo 196 da Constituição. Teses, muitas vezes antagônicas, proliferaram-se em todas
as instâncias do Poder Judiciário e na seara acadêmica. Tais teses buscam definir se,
como e em que medida o direito constitucional à saúde se traduz em um direito
subjetivo público a prestações positivas do Estado, passível de garantia pela via judicial.
As divergências doutrinárias quanto ao efetivo âmbito de proteção da norma
constitucional do direito à saúde decorrem, especialmente, da natureza prestacional
desse direito e da necessidade de compatibilização do que se convencionou denominar
de "mínimo existencial" e da "reserva do possível" (...) Embora os direitos sociais,
assim como os direitos e liberdades individuais, impliquem tanto direitos a prestações
em sentido estrito (positivos), quanto direitos de defesa (negativos), e ambas as
dimensões demandem o emprego de recursos públicos para a sua garantia, é a dimensão
prestacional (positiva) dos direitos sociais o principal argumento contrário à sua
judicialização. A dependência de recursos econômicos para a efetivação dos direitos de
caráter social leva parte da doutrina a defender que as normas que consagram tais
direitos assumem a feição de normas programáticas, dependentes, portanto, da
formulação de políticas públicas para se tornarem exigíveis. (...) Assim, ao menos o
"mínimo existencial" de cada um dos direitos, exigência lógica do princípio da
dignidade da pessoa humana, não poderia deixar de ser objeto de apreciação judicial.
(...) Vê-se, pois, que os direitos fundamentais sociais foram acolhidos pela Constituição
Federal de 1988 como autênticos direitos fundamentais. Não há dúvida -deixe-se claro que as demandas que buscam a efetivação de prestações de saúde devem ser resolvidas
a partir da análise de nosso contexto constitucional e de suas peculiaridades. Portanto,
ante a impreterível necessidade de ponderações, são as circunstâncias específicas de
cada caso que serão decisivas para a solução da controvérsia. (...) Entendo, pois, que a
determinação para que o Município de Tocantins arque com metade das despesas do
tratamento não configura lesão à ordem pública.
Conforme os argumentos expostos, a reserva do possível não pode servir de
subsídio para violação do mínimo existencial, sendo obrigação inescusável do Estado
promover a saúde pública de qualidade para as pessoas que dela necessitam. Vida digna
é vida saudável e acesso a tratamento em caso de doença, com vistas a restabelecer a
saúde ou minimizar os efeitos da enfermidade.
2. Automutilação na adolescência: uma questão psicossocial
2.1 Conceito, histórico e simbologia
A automutilação pode ser definida como qualquer comportamento intencional
envolvendo agressão física direta ao próprio corpo com o propósito de aliviar dores
emocionais. Não há intenção suicida consciente.
Do ponto de vista histórico, a mitologia grega já retratava casos de
automutilação, em especial a masculina. Aparentemente o primeiro reporta-se ao belo
deus Eshmun, que se castrou para se livrar do assédio da deusa Astronae, daí porque a
castração masculina ficou conhecida como Complexo de Eshmun.
Nos tempos antigos, algumas religiões pregavam que o sofrimento e a dor física
eram capazes de purificar a alma (expiação dos pecados), o que incentivava tal prática
entre os devotos.12 Na Roma Cristã a autocastração de padres era absolutamente normal,
prática que posteriormente foi substituída pelo celibato.13
O primeiro relato científico sobre automutilação data de 1901, de autoria de
Strock, na Inglaterra. Até hoje esta prática é sub-relatada, razão pela qual as estatísticas
são poucas e poucos estudos se destinam ao tema.14
Mas qual é a simbologia por trás da automutilação? Suicídio ou pedido de ajuda?
Em determinados casos é difícil identificar se houve apenas intenção de ferir-se ou se
foi um suicídio frustrado. De qualquer forma, parece haver consenso entre os
profissionais de saúde de que, a princípio, não há por parte do paciente intenção
consciente de por fim à própria vida.
Alguns dizem que este comportamento, quando praticado de forma reiterada
opera-se com o objetivo de chamar a atenção dos outros para si, mas não é verdade.
Pelos relatos médicos e estudos de casos, nota-se que o paciente tende a usar roupas que
escondam as evidências da autoviolência, ou então criam desculpas acidentais para
justificar estas marcas. O isolamento também ocorre com frequência, pois diminuindo o
12
Automutilações relacionadas a eventos religiosos são conhecidas como Síndrome de Klingsor. Sob este
foco, interessante observar as passagens bíblicas que fundamentam tais ocorrências: Mateus 19:12 “Porque há eunucos de nascença; há outros a quem os homens fizeram tais; e há outros que a si mesmos
se fizeram eunucos, por causa do reino dos céus. Quem é apto para o admitir admita.” E Mateus 18:8 –
“Portanto, se a tua mão ou o teu pé te faz tropeçar, corta-o e lança-o fora de ti; melhor é entrares na vida
manco ou aleijado do que, tendo duas mãos ou dois pés, seres lançado no fogo eterno.”
13
CAVALCANTI, Carla Maria de Oliveira, ALBUQUERQUE, Suzana Azoubel de, BASTOS, Silva e
Othon. Automutilação Genital em Paciente Esquizofrênico.
14
No final de 2011 a revista médica inglesa Lancet divulgou estudo no qual constava que 1 em cada 12
jovens se mutilava.
convívio com outras pessoas, as chances de seus hábitos serem descobertos são
menores. A maioria tem vergonha de falar sobre o assunto.
É importante analisar os casos de automutilação estimulados por doenças não
identificadas e tratadas a tempo e que, devido a uma cultura tolerante, se tornaram
fenômenos da moda, cultuados principalmente entre os adolescentes.15
Diante da inegável constatação da automutilação, qual será a razão que leva a tal
comportamento autodestrutivo?
2.2 Diagnóstico da causa da automutilação: A medicina baseada em evidências
O ordenamento jurídico brasileiro veda autolesões que acarretem diminuição
permanente da integridade física ou contrariem os bons costumes,16 mas não há atenção
para aquelas lesões menores e frequentes. Embora tais episódios sejam muito
verificados em pacientes esquizofrênicos e portadores de outros transtornos de
personalidade, hoje nota-se o crescimento17 desta prática oriunda de episódios
traumatizantes, tais como: abuso emocional, físico, sexual, depressão, ansiedade, abuso
de álcool e drogas.
Segundo a Classificação Estatística Internacional de Doenças e problemas
Relacionados à Saúde (CID-10), a autolesão insere-se na categoria de transtornos dos
hábitos e dos impulsos.18 É uma síndrome psiquiátrica reconhecida, segundo a qual “a
pessoa repetidamente não consegue resistir a impulsos que a levam a adotar este
comportamento. Há um período podrômico de tensão seguido de uma sensação de alívio
quando da realização do ato”.19
A autolesão, dependendo do caso, pode ser tratada como doença psiquiátrica ou
de cunho emocional, já que na prática observa-se que os praticantes buscam alívios e
válvulas de escape para problemas emocionais, como dificuldades de relacionamento e
de expressão.
15
Nos EUA, 17% dos jovens entre 18 e 24 anos tem o hábito de se mutilar. As formas mais comuns são
cortes, queimaduras e autoflagelação.
16
Art. 13, Código Civil.
17
Tal crescimento embora não possa ser ainda comprovado por estatísticas (inexistentes no Brasil), é
facilmente verificado pela imensa quantidade de blogs destinados a tratar do assunto, como forma de
ajuda, uma espécie de terapia, um canal de desabafo e busca por ajuda.
18
Está muito associada ao Transtorno de Personalidade Limítrofe (TPL), também conhecido como
Transtorno de Personalidade Borderline (TPB), grave transtorno da personalidade caracterizado pela
desregulação emocional e impulsividade autodestrutiva.
19
CID-10, pag. 357.
Em alguns pacientes também se verificou que a autolesão serve para substituição
de dores físicas (devidos a doenças, por exemplo) por uma dor menor (dos cortes,
queimaduras), em busca de alívio momentâneo.
Diante de tamanha diversidade, a medicina baseada em evidências ganha maior
relevância, na medida em que os comportamentos individuais de cada paciente devem
ser levados em consideração para realização de diagnóstico (estudo de acurácia), terapia
(estudos de intervenção) e evolução (estudos de prognóstico). Porém, o que se
vislumbra é um sub-relato desses eventos, demonstrando desinteresse na investigação e
tratamento desses pacientes, de forma geral.
Parte do desinteresse pelo tema é alimentado por pesquisas que apontam para a
solução “natural” do problema, já que 90% das pessoas que se agrediam na adolescência
abandonaram a prática na vida adulta.20 De qualquer forma, é indiscutível que a conduta
autodestrutiva causa sofrimento durante longos períodos e pode deixar sequelas, muitas
vezes emocionais, além das cicatrizes físicas (que se forem aparentes dificultam os
relacionamentos do paciente com outras pessoas devido á vergonha e dificuldade de
conversar sobre a questão).
É necessário identificar e tratar a causa da ansiedade que leva a este distúrbio de
comportamento (se emocional ou psiquiátrica), para oferecer ao paciente o melhor
tratamento disponível, além de acompanhamento continuado.
Sendo assim, não restam dúvidas que esses estudos descritivos servem de
subsídio para as políticas púbicas de saúde. A saúde baseada em evidência representa o
elo entre a melhor ciência disponível e a melhor prática clínica possível, mas é
necessário estar atento à identificação do problema.
2.3 Formas de manifestação e consequências da automutilação
As formas de manifestação deste evento são inúmeras, pois a criatividade
humana é infinita. As formas mais comuns são cortes superficiais no corpo (geralmente
em áreas fáceis de esconder das outras pessoas, tais como pernas e abdômen. Outras
formas são: esmurra-se, enforcar-se por alguns instantes, morder as próprias mãos,
língua, braços e lábios, apertar ou reabrir feridas, queimar-se com cigarro ou produtos
20
http://www.oqueeutenho.com.br/20093/automutilacao-90-dos-jovens-param-com-o-omportamento-nafase-adulta.html#axzz1zlEbnnz8
químicos (geralmente sal e gelo), furar-se com agulhas, pregos, canetas, pregos,
envenenar-se (exagerar na dose de remédios, por exemplo, sem intenção de suicídio.
De acordo com estudos psiquiátricos, o comportamento automutilante pode ser
classificado em quatro categorias:
1.) CA21 Estereotipado: é bastante repetitivo, monótono, fixo, com freqüência ritmado e
aparentemente comandado. As lesões tendem a manter um mesmo padrão, que pode
variar desde ferimentos leves até graves que, algumas vezes, colocam em risco a vida do
paciente. Em geral é associado à retardo mental, autismo, síndrome de LeschNyhan,cornelia de Lange’s e Prader-Willi.
2.) CA Maior: inclui formas de autoferimentos graves, que colocam, de maneira
recorrente, a vida do paciente em risco, causando danos irreversíveis como castração,
enucleação e amputação de extremidades. Presente em quadros psicóticos como
esquizofrenia, transtorno bipolar, transtorno da personalidade severo e transtorno da
identidade de gênero. Delírios como temas religiosos são comuns, incluindo idéias de
salvação, punição e tentação.
3.) CA Compulsivo: inclui comportamentos repetitivos, às vezes rítmicos, podendo
ocorrer várias vezes durante o mesmo dia e diariamente, tais como a tricotilomania, a
ornicofagia e o skin picking.
4.) CA Impulsivo: é o mais comum deles, e inclui cortar a própria pele, queimar-se e
bater-se. Estes comportamentos podem ser conceituados, como atos agressivos
impulsivos, para os quais o alvo da agressão é o próprio indivíduo. Eles costumam
ocorrer após a vivência de uma forte emoção, como a raiva, sendo vistos como forma de
lidar com esta. Logo, podem ser desencadeados por uma vivência traumática ou apenas
sua lembrança.22
Independentemente das razões, a automutilação tem consequências graves para a
vida pessoal e social do paciente. Ele passa a evitar convívio social, pois precisa
esconder as marcas da autoagressão. Situações de exposição do corpo, como eventos
esportivos e lazer, por exemplo, são evitados ao máximo. O automutilador tem imensa
dificuldade de falar do seu problema, e tal introspecção (associada ao isolamento social)
leva muitas vezes à depressão.
Além disso, geralmente são pessoas sem quaisquer expectativas sobre o futuro e
por isso não se dedicam ao desenvolvimento pessoal com afinco. Daí a sensação de que
21
CA: Comportamento automutilante.
PANDOLFO, Aline Trevisan. Algumas Considerações Sobre Transtornos do Controle de Impulsos.
Porto Alegre. 2009.
22
são fracassados, “lixo humano” como relatado por alguns e o aprisionamento em um
círculo vicioso devido a falta de diagnóstico e tratamento.
3. A tutela jurídica do adolescente
3.1 Das Encíclicas Papais ao Estatuto da Criança e do Adolescente
A ordem social passou a constar dos textos constitucionais brasileiros a partir de
1946, mas somente em 1988 foi desvinculada da ordem econômica e passou a ter
tratamento autônomo no Título VIII. A seção II trata especificamente do direito à saúde,
cujo artigo 196 afirma que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”.
Não é de hoje a preocupação com os direitos sociais. As Encíclicas Papais
Rerum Novarum de 1891 (Papa Leão XIII) e Centesimus Anus de 1991 (escrita pelo
Papa João Papa II em comemoração ao centenário da Rerum Novarum) já manifestavam
grande preocupações com os problemas sociais, alertando para o dever do Estado de
intervir na economia em favor dos mais pobres e desprotegidos.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela ONU em 1948
serviu de base para um importante tratado, conhecido como Pacto Internacional sobre os
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Devido à barbárie ocorrida no pós guerra
houve inadiável necessidade dos Estados repensarem suas políticas sociais.
Particularmente no que se refere à crianças e adolescentes, a UNICEF, agência
da ONU, criada originariamente para socorrer de forma emergencial crianças vítimas de
guerra, continua atuando para ajudar crianças vítimas da fome, miséria e doenças.23
Presente no Brasil desde 1950 e mais 190 países, a UNICEF trabalha com
governos municipais, estaduais e federal, sociedade civil e grupos religiosos para
desenvolvimento de metas de longo prazo em diversos setores, dentre eles, saúde.
Uma das metas é colocar as crianças e adolescentes como prioridade das
políticas públicas, pois cuidando do presente, garante-se o futuro.
Seguindo esta linha, a Magna Carta de 1988 alçou a proteção da criança e do
adolescente ao status constitucional (Título VII), impondo à família e ao Estado o dever
23
Em 1953 a UNICEF tornou-se uma instituição permanente.
de assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida e à
saúde.24
Continuando na busca da normatização integral da tutela das crianças e
adolescentes, em 1990 foi promulgada a lei n. 8.069, Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA). Baseado nas diretrizes constitucionais, o estatuto incorpora uma
série de normativas internacionais, tais como a Declaração dos Direitos da Criança,
Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da
Juventude e Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil.
O ECA garante ao seu público alvo todos os direitos fundamentais inerentes ao
ser humano, inclusive prevendo prioridade de atendimento médico e socorro em
qualquer circunstância e preferência na formulação e execução de políticas públicas.25
Diante do exposto, nota-se um esforço do legislador brasileiro em proteger as
crianças e adolescentes, garantindo-lhes, dentre outros, o único bem capaz de
instrumentalizar o direito à vida: a saúde. A ligação entre tais bens jurídicos é tão óbvia
que o próprio estatuto trata de forma interligada os dois sob o Título II (Dos Direitos
Fundamentais) Capítulo I (Do Direito à Vida e à Saúde), não deixando dúvidas sobre a
necessária vinculação de ambos. Uma interpretação sistemática espanca qualquer
dúvida que se levante a este respeito.
3.2 Da Dignidade do ser humano em qualquer idade ou condição
Conforme já comentado anteriormente neste trabalho, parte do desinteresse pelas
pesquisas e tratamento da autolesão se baseia em pesquisam que apontam para uma
“solução natural do problema”, já que 90% dos adolescentes automutiladores abandona
a prática quando se tornam adultos.
De acordo com o ECA, adolescente é a pessoa com idade entre 12 e 18 anos.
26
Seria correto simplesmente ignorar o sofrimento de um ser humano por seis anos? Não
parece ser uma medida razoável, se falar na total falta de solidariedade com o
sofrimento alheio. A solidariedade, vale lembrar, é princípio constitucionalmente
consagrado na Constituição da República, dentre outros no art. 3°, I.
24
Art. 227, caput, CRFB.
Arts. 3° e 4°, parágrafo único, alíneas a e c, ECA.
26
Art. 2°, parte final, ECA.
25
Demonstrou-se no Item 2 do presente trabalho os aspectos médicos da autolesão,
inclusive classificada como doença psiquiátrica em alguns casos. Ora, se o adolescente,
como pessoa que é, goza de todos os direitos fundamentais garantidos pela Constituição
e pela legislação especial (ECA e demais convenções internacionais das quais o Brasil é
signatário), é claro que deve ter acesso a tratamento médico para diagnosticar e tratar
sua doença.
Recupere-se aqui o conceito de saúde cunhado pela OMS: Estado de completo
bem estar físico, mental e social e não apenas ausência de doenças. Se a autolesão for
oriunda de problemas psiquiátricos, tais doenças devem ser identificadas e tratadas; se
for enraizada em distúrbios emocionais, estes também devem ser cuidados por pessoal
qualificado.
É mister ressaltar que quanto mais cedo o adolescente for diagnosticado e
tratado, maiores chances terá de ser um adulto com qualidade de vida. Esse é o
verdadeiro mínimo que se almeja: vida digna é vida com qualidade, e não
sobrevivência.
Conclusão
A saúde é um direito fundamental que carece de maior efetivação. Isso é
inegável, aliás, perceptível sem grandes esforços por qualquer pessoa. Em que pese a
efetivação dos direitos sociais ser dispendiosa para o Estado, esta não é uma obrigação
da qual possa se escusar sem argumentos objetivamente aferíveis.
Para que o direito à saúde seja efetivamente gozado pelos seus destinatários de
forma eficiente, deve haver hospitais e postos públicos, disponibilidade de leitos e
vagas, distribuição gratuita de remédios e existência de profissionais em quantidade
suficiente para atender a todos. Enquanto o Estado não cumprir sua promessa política,
caberá ao Judiciário efetivar o direito à saúde.
Especialmente em relação aos adolescentes, é um público que tem tutela
diferenciada e especial para garantir seu pleno desenvolvimento e formação. É
absolutamente inadmissível que se ignore deliberadamente qualquer que seja o
problema que os assola. A dignidade não é para alguns, não depende de faixa etária ou
condição social, é direito de todos.
Ademais, não é possível perder de vista que o direito à integridade é a tutela que
o ordenamento jurídico garante ao corpo humano, à psiquê e à inclusão social do
indivíduo, e esta proteção independe do grau da lesão ou de eventuais sequelas,
definitivas ou não. Não tratar um adolescente que se automutila (seja qual for o motivo)
é correr o risco de desenvolver um adulto improdutivo, frustrado, antissocial,
depressivo, enfim, um ser humano doente.
O Estado deve providenciar através de seus agentes estudos descritivos para
aferir a frequência das doenças e assim traçar políticas públicas para diagnosticá-las e
tratá-las, em prol da saúde e bem-estar da população. Uma vida digna passa pelo acesso
pleno a tratamento médico adequado e pela tutela jurídica da saúde.
Download

AUTOMUTILAÇÃO NA ADOLESCÊNCIA