Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLT 59 – Literatura infantil e juvenil: diálogos em Língua Portuguesa. NARRATIVAS DE LÍNGUA PORTUGUESA: TEMAS DE FRONTEIRA PARA CRIANÇAS E JOVENS Alice Áurea Penteado MARTHA1 Resumo - Neste texto observamos como jovens leitores podem reconhecer suas angústias, faces diversas do medo – morte, separações, violência, crises de identidade, escolhas, relacionamentos, perdas, afetividades - a partir da leitura de narrativas contemporâneas, destinadas ao público infantil e juvenil, cuja temática envolva acontecimentos problemáticos para os seres humanos em qualquer tempo e espaço. E como reside, justamente, na possibilidade de perceber nos textos que lemos aquilo que nos incomoda, esperança de encontrar soluções para nossos problemas, podemos pressupor a existência de umas das principais funções da literatura em tais narrativas: expressar, traduzir e dar forma às emoções e aos sentimentos que nos enlevam e atormentam, muitas vezes, ao mesmo tempo. A compreensão da natureza e função da literatura leva-nos à abordagem de “temas de fronteira” na literatura brasileira contemporânea para jovens leitores, enfim, situações-limite, que configurem, no plano ficcional, etapas da evolução vividas pelo ser humano e que possam traduzir modos de preservação da identidade individual e sociocultural sem abster-se da participação do processo de universalização. Em razão da necessidade de um recorte na produção, elegemos, como corpus literário para análise, narrativas de língua portuguesa como Os olhos de Ana Marta (Caminho, 1990), de Alice Vieira, Cruzando caminhos (Ática, 1994), de Fanny Abramovich, O jogo de amarelinha (Manati, 2007), de Graziela B. Hetzel, O tempo das surpresas (SM, 2007), de Caio Riter, O guarda-chuva do vovô (DCL, 2008), de Carolina Moreyra, O gato e o escuro (Cia das Letrinhas, 2008), de Mia Couto, e Todos contra Dante (Cia das Letras, 2008), de Luís Dill. A partir dos modos de construção nas obras selecionadas, considerando especialmente elementos fundamentais da estrutura narrativa, narrador/focalizador e personagens, procuramos estabelecer o grau de proximidade pretendido com os leitores e acompanhamos a instauração do processo de identificação entre crianças e jovens e os seres do mundo ficcional, responsável por propiciar aos receptores a possibilidade de refletir sobre sua condição e elaborar sua imagem enquanto seres-no-mundo. Palavras-chave: Literatura infantil e juvenil; narrativa; temas de fronteira; leitores. 1 Universidade Estadual de Maringá. Departamento de Letras/Programa de Pós-Graduação em Letras. Rua Carlos Chagas, 1055. CEP: 87015-240. Paraná. Brasil. [email protected] 1 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLT 59 – Literatura infantil e juvenil: diálogos em Língua Portuguesa. Temas de fronteira Em suas origens, a literatura para crianças e jovens não privou seus leitores de temas violentos, mesmo porque as raízes do gênero estão profundamente arraigadas em contos populares, narrativas pródigas em violência de toda sorte, como muitos contos de fadas, que veiculam relatos macabros, cenas sangrentas, com sacrifícios humanos, inclusive. Um dos motivos recorrentes em tais contos é o assassinato: irmão que mata irmão; marido assassina esposa; madrasta envenena filhos do marido; súditos matam o rei, entre outros. Em tais contos, os temas violentos foram, na passagem do receptor adulto para o infantil, muitas vezes, abrandados com o poder da magia e da vara de condão. Belas adormecidas voltavam à vida com o beijo de um príncipe; princesas eram desenterradas vivas ao lado de figueiras e avós saiam ilesas de ventres de lobos vorazes, em versões mais brandas de Chapeuzinho Vermelho. No Brasil, na década de 70 do século passado, o propósito de mostrar aos leitores a vida a partir de uma visão “realista” de mundo, originou, na literatura para crianças e jovens, a corrente denominada “verista”, cujos pressupostos se materializaram na Coleção do pinto, da editora Comunicação, de Belo Horizonte. Os resultados dessa empreitada podem ser observados em textos como O menino e o pinto do menino e Os rios morrem de sede, de Wander Piroli; Pivete, de Henry Corrêa de Araújo, para citar apenas alguns desses títulos. Entretanto, como observa Zilberman (2003, p.199), o fato dos temas de denúncia serem tratados em livros para crianças acabou gerando uma série de questões não resolvidas, especialmente porque as causas dos problemas denunciados não foram esclarecidas, as situações problemáticas 2 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLT 59 – Literatura infantil e juvenil: diálogos em Língua Portuguesa. continuavam, de modo geral, insolúveis, além de que o ponto de vista da narrativa era o do adulto, inviabilizando a participação das crianças. Apesar dos percalços, como observamos no caso brasileiro, a produção contemporânea de literatura para crianças e jovens consolidou uma vertente bastante fértil que se caracteriza pelo abandono da concepção idealizada da infância e juventude como paraíso perdido, época de despreocupação e felicidade da vida, crença bastante útil a instituições como a escola e a família. A literatura higienizada, cujo processo de criação ou adaptação primava por apagar todo sofrimento e crueldade, parece estar em decadência. Personagens idealizados e perfeitos, criados em ambientes igualmente impolutos, são substituídos por crianças e adolescentes que se debatem em conflitos psicológicos, vivem ambientes inóspitos e experimentam sentimentos e emoções violentas. Os temas de fronteira em obras para crianças e jovens – compreendidos como situações-limite que configurem, no plano ficcional, etapas da evolução vividas pelo ser humano – ganharam força e podem ser aliados importantes para que esses leitores reconheçam suas angústias, faces diversas do medo que enfrentam cotidianamente – morte, separações, violência, crises de identidade, escolhas, relacionamentos, perdas, afetividades - a partir da leitura de narrativas contemporâneas. Os livros lidos por crianças e jovens, como toda literatura, são espelhos nos quais os leitores recebem, pela percepção estética, situações e sentimentos direta ou indiretamente ligados a questões prementes para o ser humano. Desse modo, parece ser quase impossível selecionar temas e assuntos que não possam constar do cardápio literário para crianças e jovens, pois, na literatura infantil e juvenil, ajustados às peculiaridades do gênero, todos os sentimentos, desejos, aspirações e medos do homem 3 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLT 59 – Literatura infantil e juvenil: diálogos em Língua Portuguesa. devem estar presentes, especialmente, porque sabemos que a violência, estampada em sua plenitude na mídia impressa e televisa, além de jogos e do cinema, atinge seu apogeu no cotidiano de crianças e jovens abandonados, drogados, prostituídos e atingidos por balas perdidas no caos da vida contemporânea. Entretanto, como a literatura para essas faixas etárias não deve tratar as questões existenciais com a mesma intensidade que a literatura para adultos, acreditamos que se trata de descobrir, nos livros infanto-juvenis, modos como os conflitos enfrentados por todo ser humano em momentos semelhantes aos que vivem seus leitores, em qualquer época ou espaço, são apresentados a esse público diferenciado. Narrativas de Língua Portuguesa Em razão da necessidade de um recorte no corpus literário para a composição deste texto, elegemos narrativas de língua portuguesa como Os olhos de Ana Marta (Lisboa: Caminho, 1990), de Alice Vieira, Cruzando caminhos (Ática, 1994), de Fanny Abramovich, O jogo de amarelinha (Manati, 2007), de Graziela B. Hetzel, O tempo das surpresas (SM, 2007), de Caio Riter, O gato e o escuro (Cia das Letrinhas, 2008), de Mia Couto, Todos contra Dante (Cia das Letras, 2008), de Luís Dill, e O guarda-chuva do vovô (DCL, 2008), de Carolina Moreyra. Os modos de construção das obras selecionadas são observados por meio de elementos fundamentais da estrutura narrativa, narrador/focalizador e personagens. A partir deles, procuramos estabelecer o grau de proximidade pretendido com os leitores e acompanhamos a instauração do processo de identificação entre jovens leitores e os 4 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLT 59 – Literatura infantil e juvenil: diálogos em Língua Portuguesa. seres do mundo ficcional, que oferece aos receptores a possibilidade de refletir sobre sua condição e elaborar sua imagem enquanto seres-no-mundo. As narrativas em questão apresentam maneiras diferenciadas de contar fatos e emoções vividas pelas personagens. O narrador ora se apresenta como protagonista, narra situações e conflitos por que passa, ora a voz narrativa está fora da história, não participa dos eventos que relata. Considerar o modo de manifestação da voz narrativa é fundamental para avaliarmos o grau de proximidade entre personagens e leitores, propiciado pela atuação desse elemento na estrutura textual. Acreditamos que o narrador de uma obra pode alcançar efeitos artísticos bastante complexos, pois sua atuação pode ser mais arbitrária, introduzindo comentários e manipulando emoções, ou mais emancipadora, permitindo que o leitor reflita criticamente tanto sobre o mundo do texto como sobre o seu próprio (ZILBERMAN, 1982). Como observamos anteriormente, nas produções da chamada corrente “verista” da literatura infanto-juvenil brasileira, nos anos 70, um dos problemas levantados por Zilberman foi exatamente a predominância do ponto de vista do narrador adulto. Nas obras em pauta, como narrador protagonista, temos Os olhos de Ana Marta, de Alice Vieira, O tempo das surpresas, de Caio Riter e Todos contra D@nte, de Luís Dill e O guarda-chuva do vovô, de Carolina Moreyra. Nas demais, Cruzando caminhos, de Fanny Abramovich, O jogo de amarelinha, de Graziela Hetzel, e O gato e o escuro, de Mia Couto, a voz narrativa, ainda que fora do relato, mostra-se muito próxima das suas personagens, como pretendemos observar. Em Os olhos de Ana Marta, de Alice Vieira, no que se refere especificamente à estrutura, a narrativa é organizada em vinte e sete capítulos, narrados pela voz de Marta, 5 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLT 59 – Literatura infantil e juvenil: diálogos em Língua Portuguesa. a protagonista de onze anos que, condenada a viver a vida de Ana Marta, a irmã morta, descobre lentamente os fios que a ligam à tragédia familiar e à conseqüente insanidade materna. As ações e atitudes das personagens deflagram, mantêm e, por fim, solucionam o conflito instaurado pelo desejo de reconhecimento e afirmação da identidade de Marta. As principais perspectivas no texto de Vieira são perspectivizadas, caso do narrador que se divide em múltiplas visões e das personagens que também se fragmentam em protagonistas e secundárias. Esse processo de múltiplos olhares promove relações diferentes com o objeto em pauta e, em conseqüência, nenhum deles pode representar integralmente o objeto estético, que somente se constitui graças às relações estabelecidas entre as diferentes perspectivas. O que parece fundamental na construção narrativa da escritora portuguesa é o modo como o narrador instaura, na estrutura e organização do mundo narrado, a interdição, pois, a partir dessa estratégia, atitudes e sentimentos do protagonista/narrador e das demais personagens enredam-se e, constituindo a constelação de perspectivas da narrativa, possibilitam a emersão do objeto estético. Procurando esclarecer o que chama de estrutura de lugares vazios no texto ficcional, o teórico afirma que é necessário ter em mente os diferentes modos como os segmentos são apresentados ao leitor, especialmente, no plano do mundo narrado, a forma mais elementar de manifestação desse fenômeno, ou seja, a perspectividade. (ISER, 1999, p.147) O modo de narrar, o relato dos acontecimentos pela protagonista a um interlocutor determinado - a irmã morta – como projeção de sua consciência, configura a catarse, uma vez que o ato de contar a libera da repressão a que foi submetida em toda a 6 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLT 59 – Literatura infantil e juvenil: diálogos em Língua Portuguesa. infância. Entretanto, mesmo sendo o relato posterior aos fatos, o que significa pleno domínio no momento em que os narra, a voz narradora, com o intuito de infligir a seus leitores clima de interdição semelhante ao que sofreu, priva-os também do acesso ao conhecimento, liberando-o, pouco a pouco, processo com o qual rompeu as barreiras da interdição. Desse modo, vai abrindo trilhas, que ela mesma, Marta, buscou para o deciframento de sua história. Os leitores, a partir dessa dinâmica, procuram entender os meandros do narrado, acompanhando perspectivas inconclusas de outras personagens: mãe, pai, Leonor, D. Pepa e Lumena, principalmente. Nas linhas iniciais do primeiro capítulo, Marta, dirige-se ao interlocutor, cujo reconhecimento ainda é interditado aos leitores, revela as incertezas acerca de sua origem, procurando justificar o fato da mãe não pronunciar seu nome: Trocaram-me de mãe no hospital. Como nos filmes, sabes. [...] Juro-te: durante muitos anos foi o que pensei. [...] Só assim entendia que ela nunca dissesse o meu nome, que repetisse tantas vezes que estava velha demais para ser mãe fosse de quem fosse [...]. (VIEIRA, 2005, p 9. Grifamos) A voz narrativa responsabiliza o bloqueio da história de Marta como gerador de suas crises íntimas e conseqüentes dificuldades de relacionamento com o pai e com as demais criaturas ficcionais. O caráter irremediavelmente comprometido das ligações com o mundo que a cerca pode ser observado na recusa materna em pronunciar seu nome e no silêncio do pai, que teme pela sanidade da esposa caso o segredo seja revelado. Entretanto, os leitores podem superar, da mesma forma que ela, as barreiras 7 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLT 59 – Literatura infantil e juvenil: diálogos em Língua Portuguesa. encontradas no percurso da reconstituição de sua identidade, manifestas, inclusive, na atitude cerceadora das personagens que a cercam, a partir da rede de perspectividade do texto. As dificuldades da tarefa são imediatamente explicitadas pela voz narrativa que, metalingüisticamente, enfatiza os percalços da busca. Os “quartos fechados” - metáfora da impossibilidade de reconhecimento - não se abrem tão facilmente, pois as perspectivas textuais não ultrapassam os obstáculos impostos pela tragédia: Lembro-me de ter passado muitos dias a espreitar pelo buraco da fechadura dos quartos fechados para ver se descobria, nalguns deles, o tal berço de ouro. Mas o ângulo de visão era fraco, e sempre o mesmo. Acabei por desistir. (VIEIRA, 2005, p.10. Grifamos) Os fios da existência de Marta tramam-se também a partir da perspectiva da mãe, Flávia, e da de Leonor, a velha ama que acompanha a família desde a infância do pai, e que lhe conta histórias como as do Príncipe Graciano e da Alminha–da-Senhora, garantindo a integridade psíquica, afetiva e social da menina. Pedro, narrador protagonista de O tempo das surpresas, tem catorze anos e leucemia; rememora, em longa noite de vigília que antecede o transplante da medula que recebe do irmão de cinco, seus afetos, a ausência paterna, a amizade e confiança em Peter, o marido da mãe, bem como a surpresa com a descoberta da doença e seus desdobramentos, os temores que enfrenta desde então. A partir de um relato bastante sensível, sem ser piegas, os leitores podem compartilhar as alegrias e as tristezas daquele tempo de convivência com a doença, responsável, inclusive, pelo amadurecimento do garoto: 8 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLT 59 – Literatura infantil e juvenil: diálogos em Língua Portuguesa. O tempo corre. O tempo pára. Já não me importo muito com ele. Por vezes, um desejo de que passe logo e que me traga boas novas. Outras vezes, fico a querer que pare mesmo, e para sempre, sobretudo quando minhas forças retornam, ou quando fico sabendo, caçando as palavras distraídas de uma ou outra enfermeira a dizer que algum dos adolescentes hospitalizados ali se foi. [...] Ela [a mãe] tem seus medos. Assim como eu. Sempre me fala tudo, porém sei que há coisas em que ela evita tocar. (RITER, 2007, p 11) Nos momentos em que consegue dormir, sonha recorrentemente que se encontra em uma floresta, com muitas serpentes, e alguém o segue, mas, no momento em que verá seu perseguidor, acorda. Somente pouco antes de ir para o centro cirúrgico consegue terminar o sonho e é o pai quem toca em seus ombros: Minha mãe se mexe na cama ao lado. Fecho bem meus olhos, não quero despertar deste sonho inventado, deste sonho acordado. Quero a resposta. Os dedos pousam em meu ombro e me viro bem devagar. Olhos nos olhos, ele me sorri. Diz: Fique tranqüilo, meu filho. Sou eu. (RITER, 2007, p. 98) Ao contrário do que possa parecer, o garoto não relata apenas esse momento difícil em que se encontra, com grave problema de saúde. Narra também suas experiências com as meninas, os primeiros amores; revela a força do sentimento que o une ao grupo de amigos; trata com naturalidade o segundo casamento da mãe e o bom relacionamento com o padrasto e não esconde a carência provocada pelo distanciamento “afetivo” do pai: 9 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLT 59 – Literatura infantil e juvenil: diálogos em Língua Portuguesa. Meu pai teve que retornar aos seus afazeres. Ele sempre tem que retornar aos seus afazeres. Dia sim, dia não, ele me liga. Pergunta se tô bem, se preciso de alguma coisa. O “alguma coisa” dele deve ser dinheiro. Deposita na conta da minha mãe, sem qualquer dia de atraso, a pensão. (RITER, 2007, p 11) Já em Todos contra D@nte, de Luís Dill, a narrativa, além daquela que fala de uma posição exterior aos acontecimentos, apresenta a voz de Dante, garoto que relata em seu blog, ao poeta florentino de A divina comédia, seus sonhos e as violências perpetradas contra ele pelos colegas de escola. Da mesma maneira, na caixa de diálogos, há espaço para outras vozes, as das comunidades de amigos da escola. No que concerne ao narrador do texto, a exploração do foco narrativo mostrou-se fundamental para construir a narrativa de maneira inovadora e aproximá-la de seus possíveis leitores; há estreita coincidência entre os dois mundos, uma vez que tanto o tema - a violência entre jovens - como o ambiente escolar constituem o cotidiano do jovem leitor. A diversidade de vozes narrativas - com onisciência neutra, narradorpersonagem e fluxo de consciência, por exemplo - enriquece o texto, pois, ao evitar a voz autoritária, que poderia conduzir a leitura por um único caminho, a estrutura textual permite ao leitor maior liberdade de interpretação: Manuela olhou para a mesa posta. A claridade vinda da rua penetrava fácil pelas amplas janelas em L da sala, parecia ressaltar a cor e a textura dos pratos: suflê de legumes, salada de alface roxa com cubos de ricota e aipo, carne de frango ao molho de nata e alecrim. Esforçava-se para conter a tontura... (DILL, 2008, p. 08). 10 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLT 59 – Literatura infantil e juvenil: diálogos em Língua Portuguesa. Olá, meu xará florentino. Estou aqui de novo. Por quantos tormentos tiveste que passar até chegar ao Paraíso? O Inferno, depois o Purgatório, não é mesmo? Seiscentos e oitenta e cinco anos após tua morte, meu velho amigo, estou aqui em pleno Inferno. Tenho treze anos, o que me faz ter esperança de que, em breve, pule pra minha próxima etapa e conquiste o que todos buscam... (DILL, 2008, p. 15). O que parece fundamental na construção narrativa de Todos contra D@nte é o modo como o narrador insere, na estrutura e organização do mundo narrado, a violência, pois, a partir dessa estratégia, atitudes e sentimentos do narrador, do protagonista e das demais personagens enredam-se e, constituindo a constelação de perspectivas da narrativa, possibilitam a emersão do objeto estético. As perspectivas da narrativa são todas perspectivizadas, especialmente, o narrador que se divide em múltiplas visões. A organização da narrativa vale-se de diferentes estruturas textuais, bastante apreciadas e próximas do leitor jovem (links, chats, blogs). Em vários links (1, 2, 3, 5, 6, 7, por exemplo), situados nas páginas à esquerda, o narrador, onisciente neutro, fala em terceira pessoa e conhece sentimentos e pensamentos das personagens: Graças à insistência do colega e vizinho, Davi aceitou manter o horário que tinham reservado na quadra de saibro. Já no aquecimento, percebeu o erro: não conseguiria jogar como de costume. Quatro meses de invencibilidade, já. Perdera apenas um set nesse período. Rejeitava a idéia de contratar um treinador e seguir carreira. Dizia que era apenas lazer, não competição. Seus planos eram outros ... (DILL, 2008, p. 12). 11 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLT 59 – Literatura infantil e juvenil: diálogos em Língua Portuguesa. Outros links (4, 8, 12, por exemplo), por sua vez, constituem transcrições de A divina comédia, de Dante Alighieri, e dialogam com as páginas inseridas à direita, intituladas Blog, nas quais o narrador é protagonista. Nessas páginas (que são dez), o menino Dante relata ao escritor Dante Alighieri a falta que sente de Geovana, que é, segundo ele, "o equivalente aqui no futuro, em pleno século XXI, à morte da tua amada Beatriz do século XIII" (DILL, 2008: 15) e descreve-lhe os tormentos sofridos na escola, promovendo a intertextualidade explícita com A divina comédia, como podemos ler no primeiro texto do blog: Por quantos tomentos tiveste que passar até chegar ao Paraíso? O Inferno, depois o Purgatório, não é mesmo? Seiscentos e oitenta e cinco anos após tua morte, meu velho amigo, estou aqui em pleno Inferno (DILL, 2008, p. 15). As questões referentes à representação da fala do narrador e das personagens constituem outro aspecto diferenciado no texto de Dill. Nas páginas intituladas diálogo (que são vinte e uma e estão à direita no volume), observamos o emprego do discurso direto, diálogos entre as personagens no telefone celular e, também, pessoalmente, com a consequente restrição da voz do narrador. Ainda nas páginas à direita, há a transcrição da comunidade criada em um site de relacionamento da "internet", intitulada Eu sacaneio o Dante, na qual seus colegas têm a oportunidade de discutir questões como: "defina o nariz do Dante", "doença ou feiúra mesmo?", "vc já sacaneou o koisafeia esta semana?", entre outras. Nessas páginas, a voz do narrador também desaparece, já que os comentários são transcritos diretamente pelos participantes da comunidade. Carolina Moreyra (Escritora Revelação/2009-FNLIJ), em O guarda-chuva do vovô (DCL, 2008), com uma narrativa minimalista, não resvala na pieguice ou no 12 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLT 59 – Literatura infantil e juvenil: diálogos em Língua Portuguesa. chavão ao tratar do tema da morte sob a perspectiva infantil. A linguagem coloquial, com frases curtas, simples e objetivas, valoriza a voz da criança que relata a visão singela do afastamento gradual, sem traumas, até culminar no falecimento do avô: “Um dia achei o vovô diferente e perguntei pro meu pai se ele estava encolhendo”. (MOREYRA, 2008, s/n) A construção do texto, em íntima conexão com o desfecho narrativo - após um período de enfermidade, o avô falece -, revela como as crianças podem compreender com naturalidade as etapas da vida, aceitam perdas e percebem nelas pequenas conquistas, como ganhar o guarda-chuva do avô após sua morte: Começou a chover e ela me deu um guarda-chuva. - O guarda-chuva do vovô! – eu falei. Mas ninguém disse nada. Eu olhei pra casa da vovó, que não era mais a casa do vovô. E ganhei um guarda-chuva de presente. (MOREYRA, 2008, s/n) As personagens, mesmo a que narra a história, não têm nomes; são todas nomeadas de acordo com o grau de parentesco com a garota – vovô, vovó, papai – o que pode contribuir para a inserção dos leitores no mundo narrado: “A vovó fazia bolo de chocolate para o lanche e então chamávamos o vovô. Mas ele nunca vinha”. (MOREYRA, 2008, s/n) No que se refere às imagens que constituem a narrativa não-verbal, o trabalho de Odilon Moraes é impecável: delicado, sem deixar de valorizar a alegria das cores, está em sintonia com a qualidade da linguagem verbal. As ilustrações, luminosas, entre a capa e a contracapa negras, relatam como a vida pode ser enfrentada com a clareza da percepção infantil, ainda que surjam momentos difíceis A belíssima capa preta, com 13 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLT 59 – Literatura infantil e juvenil: diálogos em Língua Portuguesa. uma janela recortada, por onde pode entrar a luz da vida, mesmo nesse espaço e tempo de luto. Quanto aos narradores que se apresentam fora do mundo narrado, temos em Cruzando caminhos (Ática, 1994), uma narrativa organizada em forma de diário, com quatro blocos, nomeados de acordo com os dias de um feriado prolongado, que relatam as atividades de cada personagem, dia a dia, na pequena cidadezinha praiana, mas o narrador está fora do relato, não participa dos fatos narrados. Entretanto, além da voz do narrador, há outra, veiculada no paratexto, espécie de mensagem que antecede e ajuda a explicar a narrativa aos leitores. De quem é essa voz? Da editora? Da autora? Ou de todas essas instâncias juntas? O que parece significativo é que ela encaminha a leitura, marcando a perspectividade como elemento fundamental do texto. Não temos dúvidas que o objetivo desse paratexto é, sejamos favoráveis ou não, a condução do leitor pelos caminhos que podem ser trilhados na leitura da narrativa: Siga com seus olhos os olhos de cada personagem. Questão de ponto de vista. Siga com seus olhos os olhos de cada personagem. Muda o que aconteceu conforme o lugar onde cada um estava ou a vontade do momento. Questão de aproximação ou distanciamento. Siga com seus olhos os olhos de cada personagem. Cada um vive a mesma história de outro jeito. Questão de cada um ser diferente do outro e enxergar conforme o seu envolvimento. Siga com seus olhos os olhos de cada personagem. Cada um altera os fatos conforme o que viu e como viu. Questão de localização na 14 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLT 59 – Literatura infantil e juvenil: diálogos em Língua Portuguesa. mesma hora. Siga com seus olhos os olhos de cada personagem. Cada um mostra como sentiu, como se viu. Questão de olho. (ABRAMOVICH, 1994, p.06) No primeiro capítulo, Quinta-feira à noite, o olhar perspectivizado do narrador nos revela as expectativas de cada uma das personagens para o final de semana em uma pequena cidade praiana. São quatro jovens – Leila, David, Cléa e Nélson acompanhados de amigos, primos ou irmãos, que pretendem usufruir toda diversão que o local puder oferecer. Não se conhecem, mas o encontro é inevitável dada a exigüidade de espaços para a diversão na cidadezinha. Os jovens terão um rápido e casual encontro com o garoto alcoolizado e passam ao leitor uma visão quase unívoca sobre a questão discutida no texto: o excesso do consumo de bebida por adolescentes. Percebemos também o distanciamento das personagens em relação ao problema; é como se a questão não lhes dissesse absolutamente respeito. Leila, sempre muito preocupada consigo mesma, egoísta, como ela se definirá mais tarde, tem uma visão limitada sobre o garoto e a bebida; vê o fato como uma “baixaria”; David também não tem muita paciência para o que ocorre com o garoto: “uma praga”. Quanto à Cléa, que vê o menino embriagado na companhia da amiga Melissa, há dois sentimentos antagônicos: “um nojo e um dó”; entretanto, em razão da atuação das meninas em momentos posteriores, percebemos que o “nojo” é de Melissa e o “dó”, de Cléa; já, a partir da perspectiva de Nélson, recebemos maiores informações sobre o garoto: era da vizinhança e devia ter uns quinze anos, idade média das personagens da narrativa. O fato de alguns dos jovens presenciarem a morte do garoto foi, naturalmente, traumático, mas a situação tende a se agravar com a divulgação da notícia de que houve suicídio. Se já lhes parecia incompreensível a morte por acidente ou imprudência, que 15 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLT 59 – Literatura infantil e juvenil: diálogos em Língua Portuguesa. um adolescente quisesse morrer e que conseguisse realizar seu intento é algo inconcebível para aquela turma do feriado prolongado na praia. No velório, David e Benjamin leem o bilhete suicida, texto que explica, sob a perspectiva de um jovem, a vida e a morte. Para o adolescente, a solução de seus conflitos pode se traduzir na atitude de recorrer às drogas, ao álcool, à rebeldia e desobediência, à promiscuidade sexual, aos comportamentos agressivos e, inclusive, ao suicídio. Em discurso indireto, uma espécie de autópsia psicológica, o conteúdo da carta de despedida é dissecado, expondo a angústia do garoto em relação à dependência alcoólica e com ela a impossibilidade de relacionar-se afetivamente com a família, com amigos e amores. Ao tomar conhecimento como ocorreu a morte do garoto e a revelação do conteúdo do bilhete, os jovens reunidos no barzinho passam por sofrido processo de reflexão, questionando atitudes e valores do ser humano e, naturalmente, não têm, nesse momento, respostas, que somente poderão vir com o tempo, com a vida vivida. Nesse momento, as perguntas não têm um emissor definido, não revelam dúvidas desta ou daquela personagem, indicam uma perspectiva única, a visão da juventude posta à prova, frente a um momento ímpar da vida, a morte. O teor do bilhete deprime e assusta os adolescentes, pois têm consciência de que todos seus sonhos e expectativas são semelhantes aos do garoto morto e que a impossibilidade de realização deles levou-o ao trágico desfecho. O bilhete é o relato do desamparo de um menino como eles. Uma carta de quem tinha resolvido que aquele era o caminho. Um sofrimento só. Pasmo geral. Como alguém acaba com a própria vida aos quinze anos?? Por que tais coisas aconteciam? O que girava na cabeça e que cabeça era esta?? Morrer era terrível, era o fim de 16 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLT 59 – Literatura infantil e juvenil: diálogos em Língua Portuguesa. tudo. Se preparar pra morrer, um sofrimento. Agora, querer morrer não dava pra entender. E se matar em público, no meio da praia, com gente olhando e alguns, como Nélson, quase se afogando pra tentar salva-lo. Absurdo, sem cabimento, incompreensível. Não teria escrito a carta pra tirar sarro, fazer alguma ameaça, sem querer mesmo fazer o que tinha escrito?? Será que não tinha mudado de idéia na última hora, escorregado do penhasco, e tinha sido um azar, um acidente?? Ninguém sabia a verdadeira resposta. Ninguém nunca tiraria esta dúvida. O silêncio se fez. Aumentou. Nenhuma voz se ouvia, nenhuma mexida da cadeira ou assobio acompanhava a canção que a banda tocava. Baixo-astral geral. (ABRAMOVICH, 1994, p.61) Desse modo, desaparecem as perspectivas particulares, individuais, de cada jovem, porque a angústia diante do imponderável é uma só: é a voz da juventude, questionando não só a morte, mas o fato de um jovem querer morrer. Ocorre, então, a interação, configurada como o processo de comunicação, marcado, sobretudo, pelo confronto, uma vez que o leitor é instigado à compreensão dos embates entre as diferentes perspectivas: do narrador, das personagens, do próprio enredo e também do leitor fictício. O prazer da leitura só pode ser alcançado quando os textos permitem que os leitores exerçam a sua capacidade produtiva. (ISER, 1999, p. 10) Já em O jogo de amarelinha (Manati, 2007), narrativa de Graziela Hetzel para crianças, embora relate tema difícil – a superação da perda da mãe e a aceitação da madrasta – o narrador, em terceira pessoa, focaliza Letícia e conta a história da menina que, no jogo infantil “amarelinha” não quer chegar ao “céu”, pois ali estão todas as criaturas que amava e perdeu: “No céu está seu cachorrinho Xerife, a preá Joaninha... no 17 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLT 59 – Literatura infantil e juvenil: diálogos em Língua Portuguesa. céu está Clara, a mãe de Letícia. Será que ninguém entende por que ela nunca vai lá?” (HETZEL, 2007, p. 08) Ainda que a voz narrativa esteja em terceira pessoa, o que poderia indicar distanciamento entre o narrador e os fatos, o recurso empregado pode encurtar essa distância. Como observamos no excerto anteriormente transcrito, na primeira parte do enunciado, reconhecemos com certa facilidade a voz de um narrador que se refere à menina e às perdas sofridas por ela, mas, quando ocorre o questionamento – “Será que ninguém entende por que ela nunca vai lá?” – os leitores não podem discernir a autoria da indagação, pois, com o emprego do discurso indireto-livre, as vozes mostram-se embaralhadas, reduzindo o distanciamento entre a voz que relata e da criança. O emprego de semelhante recurso lingüístico promove também a aproximação entre leitores e os fatos relatados. A voz narrativa de O gato e o escuro, texto de Mia Couto para crianças, parece assimilar a fala do velho contador de histórias tribais, presente nos contos moçambicanos; mas é a partir da focalização da mãe que a história de como Pintalgato, ao encontrar o escuro, um dos seus grandes medos, compreende e supera seus temores: “Vejam, meus filhos, o gatinho preto, sentado no cimo desta história. Pois ele nem sempre foi dessa cor. Conta a mãe dele que, antes, tinha sido amarelo, às malhas e às pintas. Tanto que lhe chamavam Pintalgato.” (COUTO, 2008, p 06) O conto, ao valorizar a curiosidade natural das crianças que, no processo de crescimento, arriscam-se a percorrer pela primeira vez os caminhos que as afastam da proteção familiar, revela como obstáculos criados pela superproteção de adultos podem atrapalhar a maturidade infantil, fato comentado pelo autor em seu prefácio à obra: 18 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLT 59 – Literatura infantil e juvenil: diálogos em Língua Portuguesa. Espero que o gatinho que habita estas páginas possa afastar idéias escuras que temos sobre o escuro. A maior parte dos medos que sofremos, crianças e adultos, foi fabricada para nos roubar curiosidade e matar a vontade de querermos saber o que existe para além do horizonte. COUTO, 2008, p.05) Representação da infância, o gatinho só será capaz de vencer o pavor do desconhecido quando o enfrentar; por isso, apesar da proibição da mãe, ele namoriscava o perigo: “O filho dizia que sim, acenava consentindo. Mas fingia obediência. Porque o Pintalgato chegava ao poente e espreitava o lado de lá”. (COUTO, 2008, p.10) Literatura e autoconhecimento A compreensão sobre o modo como se constituem os conflitos na estrutura das narrativas parece-nos fundamental para que percebamos também como a reação provocada pelas perspectivas das personagens pode ser observada a partir do que Jauss denomina “categorias de recepção” (JAUSS, 1974), elementos fundamentais no reconhecimento da interação entre leitores e texto, desejada por todos que se debruçam sobre questões relativas à leitura do literário. Acreditamos que as reações adversas provocadas pela perspectividade das narrativas convergem para a interação entre texto e leitor, uma vez que a atuação das personagens provoca duas modalidades de identificação, principalmente: a “catártica”, própria da tragédia, e a “irônica”, que se manifesta com reações antagônicas do leitor, de aproximação e de rejeição. Quanto às personagens das narrativas em questão, destacamos as protagonistas, crianças e adolescentes, moradores de grandes centros urbanos. A descrição da vivência individual das personagens, associada à fase de maturação, especialmente em momentos 19 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLT 59 – Literatura infantil e juvenil: diálogos em Língua Portuguesa. incomuns, marcados pela dor e por indagações sobre dificuldades da existência, corresponde à tendência mais comum. São criaturas construídas, essencialmente, pela reflexão, de modo que os leitores possam contribuir em sua caracterização. A elaboração de cada uma delas acontece aos poucos, à medida que atuam e refletem sobre o mundo narrado ou se expõem aos olhos dos leitores, por meio de recursos conhecidos como fluxo de consciência, discurso indireto-livre e monólogo interior. Vivem em espaços essencialmente urbanos, em grandes cidades; pertencem a núcleos familiares que indicam rupturas e novas formulações – pais separados e com novos parceiros - frequentam escolas, praticam esportes, namoram, mantêm relações de amizade e adoram a convivência com jovens da mesma idade. São, enfim, representações de crianças e adolescentes que conhecemos e, ao lado dos quais, como coadjuvantes, atuam mães, pais, novos parceiros dos pais, professores e tios, adultos cumprindo funções nem sempre agradáveis na estrutura das intrigas. Ainda no que se refere ao processo de construção das personagens, o fato de que a infância e a adolescência não sejam vistas como preparação para a maturidade, mas enfocadas como etapas decisivas no processo de vida, plenas de significado e valor, portanto, desperta a atenção dos leitores. Em outras palavras, as personagens não são construídas como ainda-não-adultos ou como já-não-mais-crianças, mas como portadoras de uma identidade própria e completa. É verdade também que se envolvem em situações que as obrigam a refletir e a reformular conceitos que possuem a respeito de si mesmas e do mundo. Quanto à linguagem, as narrativas apresentam o predomínio do registro oral, tanto na voz do narrador quanto nas falas das personagens, aspecto bastante previsível 20 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLT 59 – Literatura infantil e juvenil: diálogos em Língua Portuguesa. em textos narrados em primeira pessoa e muito importante por não promover o desnível de vozes no mundo narrado quando há um narrador em terceira pessoa. A linguagem atua como meio de interação entre leitores e universo ficcional, com períodos de estruturas simples, ordem direta, uso de expressões correntes entre a faixa etária de leitores, sem clichês, a não ser aqueles empregados intencionalmente, com o objetivo de revigorá-los por novos usos. É a partir desse processo, que a literatura, ao mostrar-se como verdadeira experiência de autoconhecimento, pode contribuir na formação do sentimento de identidade de leitores, notadamente, crianças e adolescentes, humanizando-os, no sentido mais amplo da palavra, ainda que, por vezes, as experiências das personagens pareçam estar distantes daquelas vividas pelos jovens em seu ambiente real. Referências bibliográficas ABRAMOVICH, Fany (1994). O estranho mundo que se mostra às crianças. São Paulo:Summus. COUTO, Mia (2008). O gato e o escuro. São Paulo: Companhia das Letrinhas. DILL, Luís (2008). Todos contra D@nte. São Paulo: Cia das Letras. HETZEL, Graziela B. (2007). O jogo de amarelinha. Rio de Janeiro: Manati. ISER, Wolfang. (1999) O ato da leitura (Vol 2). Trad.Johannes Kretschmer. São Paulo: Editora 34. JAUSS, Hans Robert (1974). “Levels of identification of hero and audience”. New literary history. Charlotte Ville, Virgínia (v.5, n.2). MOREYRA, Carolina (2008). O guarda-chuva do vovô. São Paulo: DCL. RITER, Caio (2007). O tempo das surpresas. São Paulo: Edições SM. 21 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLT 59 – Literatura infantil e juvenil: diálogos em Língua Portuguesa. VIEIRA, Alice (2005). Os olhos de Ana Marta. São Paulo: Edições SM. ZILBERMAN, Regina; CADERMATORI, Lígia infantil:autoritarismo e emancipação. São Paulo: Ática. (1982). Literatura ZILBERMAN, Regina (2003). A literatura infantil na escola. 11a ed. São Paulo: Global. 22