O INCONSCIENTE PÚBLICO E COLETIVO E A ESTRUTURA DA EXPERIÊNCIA PSICANALÍTICA1 Aplicações da Psicanálise ao Campo da Saúde Coletiva e Mental Luciano Elia2 Que a psicanálise não seja a experiência do indivíduo, e que, portanto, não haja lugar para que se possa falar com propriedade e rigor de uma dimensão do individual em psicanálise, e muito menos ainda que se possa estabelecer uma linhagem de filiação da psicanálise ao que se chama, na história dos saberes, de individualismo (saxão, francês ou germânico3), tudo isso já pode ser considerado suficientemente demonstrado e rec0nhecido pela comunidade científica internacional, pelo movimento psicanalítico sério e conseqüente, enfim, por todo pensamento crítico e rigoroso. A psicanálise é a experiência do sujeito – e o sujeito não é o indivíduo, ele é dividido, enquanto que indivíduo é o que não se divide, e o primeiro ato da psicanálise foi efetuar a divisão do sujeito, tomando-o como sujeito do inconsciente. E o inconsciente não é uma dimensão ou propriedade “profunda” do indivíduo. O que talvez não seja tão evidente e aceito é a tese complementar a esta, mas que desta não decorre de forma imediata, isto, requer mediação e construção conceitual, clínica, ética e metodológica para ser formulada: a psicanálise tem, na estrutura do sujeito do inconsciente, como sua tessitura mesma, a lógica do coletivo. Quanto mais nos aproximamos do que seja o sujeito em sua radicalidade, e, nesse sentido, quanto mais nos afastamos da instância do eu, que é um instantâneo fotográfico do sujeito em sua imagem totalizante suportada pelo corpo, mais adentramos na ordem do coletivo que vige no inconsciente, mas que também impera no Isso. No capítulo III de O eu e o isso, intitulado “O eu e o ideal do eu supereu)”, Freud formula uma dessas perguntas fundamentais, que estonteiam o pensamento acostumado com as idéias banais. Diz ele; A questão é a seguinte: qual foi – o eu do homem primitivo ou o seu isso – que adquiriu a religião e a moralidade, naqueles dias 1 Trabalho apresentado em Mesa-Redonda no IV Congresso de Psicopatologia Fundamental, organizado pela Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental e realizado na cidade de Curitiba de 4 a 7 de setembro de 2010. 2 Psicanalista, Professor Titular de Psicanálise do Instituto de Psicologia da UERJ, Supervisor clínico territorial de três Centros de Atenção Psicossocial Infanto-juvenil nos municípios do Rio de Janeiro e Vitória, Consultor da Área Técnica do Ministério da Saúde para a Saúde Mental de Crianças e Adolescentes. 3 Referimo-nos aqui aos três representantes mais ilustres do Individualismo, nesses três países igualmente ilustres do mundo e da cultura ocidentais: David Lukes (Inglaterra), Louis Dumont (França) e Georg Simmel (Alemanha). O pensamento de Freud não cabe em absolutamente nenhuma desses três vertentes do “Individualismo”, e tampouco nas painas do romantismo. 1 primevos, a partir do complexo paterno? 4 responder a esta pergunta, diz: Tentando, algumas adiante, começar a ...nenhuma vicissitude externa pode ser experimentada ou sofrida pelo isso, exceto pela via do eu, que é o representante do mundo externo para o isso. Entretanto, não é possível falar de herança direta no eu. [...] É aqui que o abismo entre um indivíduo concreto e o conceito de uma espécie torna-se evidente. As experiências do eu parecem, a princípio, estar perdidas para a herança; mas quando se repetem com bastante freqüência e com intensidade suficiente em muitos indivíduos, em gerações sucessivas, transformam-se, por assim dizer, em experiências do isso, cujas impressões são preservadas por herança. Dessa maneira, no isso, que é capaz de ser herdado, acham-se abrigados resíduos de experiências de incontáveis eus; e quando o eu forma o seu supereu a partir do isso, pode talvez estar apenas revivendo formas de antigos eus e ressuscitando-as. [todos os grifos – de itálico, negrito e ambos, são nossos]5 Lendo com atenção o texto freudiano, entendemos que: a) o eu não é capaz de receber herança alguma, restringindo-se à experiência biográfica “individual”; b) o isso, que é capaz da herança geracional – e à qual damos aqui o atributo de simbólica, porquanto não possa ser de outro modo, e o isso é um depósito significante que funciona sob o comando do processo primário, como bem explicitou Lacan – não pode, no entanto, herdar nada senão através do eu (que, repetimos, não é capaz de herdar); c) Freud então soluciona o impasse (nem um nem outro poderia herdar nada de geracional ou coletivo) com a idéia de uma repetição da experiência de incontáveis eus e em gerações sucessivas (aí reside o coletivo na tessitura do sujeito), que assim se transformam em experiências do isso. Enquanto experiências do eu, elas seriam individuais. Mas quando se repetem em muitos eus e em diferentes gerações, essas experiências passam a ser do isso, coletivas, simbólicas e trans-geracionais (históricas). Freud não está falando de incontáveis eus que seriam contáveis na situação atual, como em um grupo, por exemplo, no qual, mesmo que haja inúmeros membros, estes permanecem eus, não viram isso nem supereu. Só se tornam experiências coletivas (e não grupais) por herança (repetição e trans-geração). O grupo (reunião de indivíduos ou eus) nada tem a ver com o sujeito e o isso (estrutura cujo tecido é coletivo, trans-geracional e simbólico). Esta importante distinção deveria deter a atenção de incontáveis profissionais de saúde mental que insistem na idéia de grupo, oficina, mas são incapazes de escutar um sujeito a partir de sua lógica de “muitos eus”, coletiva, ainda que referida a um só sujeito. Lacan, por sua vez, e em passagens muito mais numerosas do que Freud, assinala a estrutura coletiva do sujeito. Seja na forma mais explícita pela qual afirma que a realidade do inconsciente é transindividual (Seminário XI 6), seja ao considerar que a produção de uma cadeia significante, sendo indiferente ao registro sensório (voz não sensorial, não captada pelo ouvido), impõe-se no entanto ao sujeito em sua dimensão de voz , mas cuja estrutura é de muitas vozes, produzindo equivocação no sujeito 4 Freud, S. – O eu e o isso [1923], in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1969, Volume XIX. 5 Ibidem, p. 53. 6 Lacan, J. – Le Seminaire, Livre XI – Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse [1963-64], Paris, Aux éditions du Seuil, 1973. 2 percipiens, pretenso unificado (escrito “De uma questão preliminar”7), seja fazendo equivaler o isso à bocca di leone, receptáculo em forma de boca de leão no qual milhares de pessoas colocavam cartas (orações, denúncias, queixas) em Veneza, sem que remetente ou destinatário pudessem ser reduzidos às suas formas individuais – essas cartas iam da multidão à multidão, ou da multidão de eus ao Outro que, como tal, é coletivo-e-simbólico a um só tempo; seja ainda e finalmente quando afirma que as pulsões não existem, mas ex-sistem, ou seja, que ela não está em seu lugar, e que elas se propõem ao sujeito nessa Entstellung, nessa de-posição ou nessa multidão de pessoas deslocadas (escrito Observação sobre o Relatório de Daniel Lagache8), Lacan não cessa de dizer que a estrutura do inconsciente, do isso e do sujeito tem uma lógica coletiva, do muitos fragmentos, muitos traços, significantes ou objetos. Multiplicidade sem grupamento, é assim que ele se refere ao “Todo-uns”9 que convém ao sujeito. O sujeito moderno se funda no “para todos” do universal inaugurado pela Ciência Moderna. O sujeito é para todos, não para alguns privilegiados (ou desfavorecidos por terem que suportar as agruras do “ser um sujeito”, pouco importa). Sujeito e privilégio são, mais que contraditórios (pois que a contradição é a riqueza do pensamento dialético) mutuamente excludentes, pois o privi-légio é a lei (legis) do privado (privi). O sujeito jamais é um sujeito privado, ele não é uma categoria da ordem do privado, mas da ordem do íntimo, que, como bem propõe Diana Rabinovich, nada tem a ver com o privado. Aliás, o privado não apenas admite como se sustenta mesmo em um pacto grupal (mercado, ideais de classe social, valores, etc.), enquanto que o registro do íntimo, sendo de um só, é ao mesmo tempo compatível com a ordem do público, do para todos. O para todos da polis, da política, não deve reduzir-se a um para todos os cidadãos concebidos como indivíduos componentes do “grupo social”. O para todos é de ordem lógica. O que é para todos é, por isso mesmo e não apesar disso, para cada uma das intimidades em cena, em jogo, em ação, em tratamento, em operação, em trabalho. Pelo contrário, algo que fosse para alguns, ainda que muitos, mas não para todos, não se aplicaria ao que é da ordem do íntimo, pois, antes mesmo que se pudesse dar lugar à intimidade subjetiva, à intimidade de cada um em uma escuta singular, teríamos que saber se aquele sujeito participa do critério do “alguns” aos quais se daria o privilégio do atributo, da qualidade, do traço de pertinência. E isso faria resistência, obstáculo, a que cada um que é não-importa-quem, cada um que é qualquer um, pudesse, na contingência simbólica do “cessa de não se escrever”, abrir-se à experiência singular de dizer sua intimidade a um outro, proposta da experiência psicanalítica. Por isso, creio que é importante ultrapassar a dualidade que separa, ainda que propondo articulá-los estreitamente o “para todos” da política do “para cada um” da clínica. Todo ato clínico é político e todo ato político é clínico, se recorrermos a uma outra topologia, mais moebiana, em que o para todos se inscreve no seio mesmo da intimidade do um a um. Se alguns analistas traçam “perfis” de admissibilidade de certos analisantes para sua escuta, ele não é mais analista, porque terá desrespeitado o “para qualquer um” da contingência e do “sem qualidade alguma” do sujeito que venha a se dirigir a ele. Do mesmo modo, se um serviço de saúde mental público se define como exclusivamente 7 Idem – D’une question preliminaire à tout traitement possible de la psychose [1957/58], in Écrits, Paris, Aux éditions du Seuil, 1966, 533. 8 Idem – Remarque sur le rapport de Daniel Lagache [1960], in Écrits, op. Cit, p. 662. 9 Ibidem, p. 666 3 apropriado para determinado perfil, diagnóstico, de gravidade, de tipo de “doença”, (como poderia definir um perfil de sexo, idade, raça, filiação política, grau de inteligência ou qualquer outro), deixou de respeitar a universalidade do acolhimento, princípio do SUS que é absolutamente consoante com a contingência não previamente qualificada do sujeito do inconsciente, e que, por sua vez, é inteiramente afinada com a lógica científica do universo infinito e contingente. Hoje, a concepção dita das neurociências – não quando exercem sua atividade de pesquisa ou de clínica no campo neural, mas quando comprometem-se com um preceitos de uma medicina do comportamento, marcada por um descritivismo pretensamente neutro, objetivo e fidedigno (DSM IV) mas completamente comprometido com pré-concepções e significados previamente formulados sobre os indivíduos, fez um importante recuo quanto ao patamar de rigor exigido pela lógica da ciência. Quando, na política que é uma política da clínica, como procuramos demonstrar, e na clínica que faz valer uma diretriz política, teremos a Ciência de volta? Concluo a minha apresentação com esta pergunta. Obrigado pela atenção. 4