Pulsional Revista de Psicanálise 12 12 Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIII, no 140/141, 12-21 Uma construção de caso na aprendizagem Marta D’Agord ste artigo tem dois objetivos. Em primeiro lugar, apresentar a concepção de construção do caso em psicanálise segundo as pesquisas recentes desenvolvidas por Pierre Fédida e colaboradores. Para, em um segundo momento, aplicar essa concepção a uma situação de aprendizagem com o objetivo de ampliação da concepção de construção do caso. Palavras-chave: Construção de caso, aprendizagem, psicanálise e repetição E his art i c l e has two purposes. First, to present the concept of case construction in psychonalysis according to the new investigations developed by Pierre Fédida and collaborators. Second, to apply this concept to a learning situation with the purpose of extend this concept. Key words: Case construction, learning, psychoanalysis, repetition T ara compreender o que é pesquisa psicanalítica, uma referência fundamental é a concepção de construção do caso formulada por Fédida (1991), segundo a qual “na psicanálise, o caso é uma teoria em gérmen, uma capacidade de transformação metapsicológica. Portanto, ele é inerente a uma atividade de construção” (p. 230). P Fédida recupera, acima, as duas grandes contribuições freudianas para a pesquisa: a metapsicologia, enquanto teoria do inconsciente, e a construção em análise. A metapsicologia é a teoria do que está além (meta) da psicologia da consciência. Mas é também a teoria do que é hipotético, por isso Freud utiliza a expressão especulação metapsicológica para se referir a uma elaboração teórica que se aproxima da ficção. Uma construção de caso na aprendizagem Esse processo especulativo consiste na aplicação de “certas idéias abstratas” na descrição de fenômenos psíquicos, idéias que, mesmo guardando em si certo grau de indefinição momentâneo, gerarão, mais adiante, a significação dos conceitos e definições. A construção teórica de Freud originou-se, sem dúvida, das ficções que ele elaborou a partir da sua escuta dos pacientes em análise. E não haveria outra forma senão a construção, na medida em que o objeto da psicanálise, o inconsciente – como o sabemos – não aparece ao observador diretamente, mas pelo equívoco, pelo não-dito. Uma construção em análise é o procedimento de extrair inferências a partir de fragmentos de lembranças e de associações do sujeito em análise. Esses fragmentos de lembranças não têm sentido em si mesmos, mas é justamente desse semsentido que eles extraem a sua importância na construção de hipóteses. Nessa construção tudo se torna significativo, inclusive a participação do intérprete. Não é, então, sem relação com a metapsicologia, enquanto ficção de conceitos, que aparece, na obra freudiana, a idéia das construções em análise. Isto é, a clínica desafia constantemente a teoria já construída, as formações do inconsciente, as formas que o pensamento inconsciente encontra para se manifestar, também assumem novas configurações em cada caso. O pesquisador psicanalítico trabalha, então, em condições sempre mutáveis, inesperadas e surpreendentes. Por isso ele é desafia- 13 do a construir e não a repetir, pois cada caso exige um novo processo de teorização. E é isso que caracteriza a pesquisa psicanalítica, a construção teórica a partir de casos, isto é, novas interpretações para novos fenômenos psíquicos. É no sentido de um resgate da concepção freudiana de construções em análise para a definição de pesquisa psicanalítica que interpretamos o texto “Fonctions théoriques du cas clinique. De la construction singulière à l’exemple sériel”, de autoria de Catherine Cyssau (1999). Cyssau situa, primeiramente, a especificidade que adquire a observação em psicanálise: a observação dos processos psíquicos não é exterior aos processos psíquicos observados, isto é, o aparelho psíquico é o objeto observado, o instrumento de observação e, ao mesmo tempo, é ele que concebe o lugar fictício da construção metapsicológica. O caso psicanalítico não se confunde com a observação clínica. A observação clínica repousa sobre a atenção perceptiva consciente do observador, pois a meta é a descrição minuciosa dos doentes e de seus sintomas com a finalidade de recensear os sinais dos quais se deduzirá uma visão sintética da doença. A observação visa o estabelecimento de fatos descritivos que serão, a partir de então, a expressão de um tipo de doença orgânica ou mental. Diferentemente da observação clínica, o caso em psicanálise se inscreve em uma clínica da escuta que privilegia os elementos de apresentação indireta sobre 14 os quais a atenção – associativa do paciente, e neutra e flutuante do analista – não é dirigida. O material que é objeto dessa atenção não dirigida nunca corresponderá ao conjunto do material clínico. O caso não será o conjunto da clínica, mas o acontecimento da clínica. Encontram-se acima duas oposições: a primeira, entre a atenção perceptiva e consciente de sinais, e a atenção flutuante que privilegia a “apresentação indireta”, isto é, a ambigüidade e as hesitações do sujeito falante. A expressão “apresentação indireta” é utilizada por Freud (1906c) justamente em um texto cujo objetivo era delimitar a diferença entre a psicanálise e a determinação dos fatos nos processos jurídicos. Isto é, entre a concepção de busca de uma verdade da qual o sujeito fez segredo e a busca de uma verdade que está oculta à consciência do sujeito. A segunda oposição diferencia uma observação que pretende apreender a totalidade dos fenômenos de uma escuta que marca o acontecimento da clínica. Assim, enquanto a clínica da observação privilegia as características do objeto observado, a clínica da escuta privilegia um processo do qual faz parte o próprio psicanalista. A expressão acontecimento da clínica remete à construção do caso como o objetivo de clínica da escuta. Se, a uma construção do analista, o paciente responde com um “nunca teria pensado nisso” (Freud, 1937d), trata-se de um acontecimento que vem, por um lado, confirmar a verdade da construção, por Pulsional Revista de Psicanálise outro, é um acontecimento no sentido de abertura do inconsciente. Isto é, aquilo que era desconhecido ou ignorado do paciente, encontrou o caminho da consciência. O que surpreendia Freud é que essa forma de confirmação aparecia mais depois de interpretações isoladas do que depois das construções amplas comunicadas ao paciente pelo analista. Isso vem, mais uma vez, acentuar o aspecto de construção como acontecimento, e que Cyssau (1999) tão bem descreve entre os três aspectos da clínica da escuta: o evento do fortuito, isto é, o que rompe um processo; a construção singular do caso como acontecimento da verdade; e o exemplo serial, a repetição ou o traço que se repete em uma série de exemplos. O evento do fortuito é duplamente importante, pois marca tanto o acaso que leva à formação de um sintoma quanto o acaso da sua dissolução via tratamento. Pois é de um ato fortuito que se origina a eleição de um sintoma, e não será por acaso que será fortuita a figuração transferencial que apontará para o desejo inconsciente que constituiu o sintoma. Cyssau (1999) distingue duas etapas na construção singular do caso: a produção de uma percepção de um acontecimento psíquico na cura e a construção da verdade do caso. A percepção do caso é a modificação que acontece entre o que o paciente diz e o que o analista escuta; entre a tentativa de transmissão consciente e inconsciente do paciente e o que o analista recebe efetivamente ao nível manifesto e in- Uma construção de caso na aprendizagem consciente. O que o analista escuta decorre do fortuito e não é arbitrário do ponto de vista do trabalho psíquico que ele suscita no analista. Na escuta dos fragmentos ao acaso, fortuitamente animados sobre a sua própria cena psíquica, o analista produz uma atividade associativa mnêmica, e mesmo alucinatória e sensorial. Essa produção terá por função abrir um outro ponto de vista, uma outra percepção, sobre o relato ou história do paciente. Esse processo coincidirá com a construção do caso. É, pois, à contratransferência que o caso deve a sua construção. A autora francesa aponta, então, as três direções da construção do caso em psicanálise: Na primeira delas, a função do caso é fazer avançar a prática clínica esclarecendo a estrutura psicopatológica subjacente. Esta é a função do caso clínico habitualmente reconhecida no campo da psicanálise e aplica-se, através do estudo de um caso tipo único, à demonstração de hipóteses generalizáveis para a psicopatologia. Por exemplo, a partir da exposição do caso Dora, a psicopatologia da histeria é esclarecida por um funcionamento psíquico de suas leis que responde ao critério de universalidade e pode sustentar as regras de reprodução do método em relação a outros casos similares de histeria de conversão. Na segunda via, a construção singular de um caso está no fundamento das descobertas e da evolução conceitual da teoria. Nesse sentido, o caso é o evento fortuito, acidental, que acontece na 15 clínica e que vem desacomodar a teoria. É onde se produz a aventura da descoberta, condição prévia incontornável da qual a formulação de hipóteses de uma pesquisa extrairá suas fontes. O caso não é aqui o objeto de uma generalização, ele provoca a verdade da construção. Assim, o caso Dora permite a Freud descobrir a transferência em ato no tratamento e lançar as premissas de uma evolução de seu conceito a partir do modelo psicopatológico da histeria. A terceira via da construção do caso em Freud concerne ao uso do exemplo ou de uma série de exemplos. O exemplo torna-se o movimento demonstrativo de uma curiosidade teórica que faz parte do método do investigador. O caso serial torna-se centro e argumento da especulação conceitual que o evento do caso revelou. O evento do fortuito não é um evento exclusivo da descoberta em psicanálise, este tipo de acontecimento está na origem de muitas descobertas científicas, mas pode-se dizer que a psicanálise valoriza o fortuito, pois a técnica da atenção uniformemente suspensa (ou atenção eqüiflutuante) faz com que o psicanalista adote uma atitude de espera de algo fortuito, casual, acidental. Ora, se as formações do inconsciente se formaram casualmente, fortuitamente, por exemplo uma associação com novos elementos teria dado um novo sentido para um evento passado. Pode-se, então, afirmar que também fortuitamente serão encontrados os elementos para desconstruir essas formações do in- 16 consciente. Mas isso valeria apenas para situações psicanalíticas de tratamento, ou poderíamos nos referir às situações cotidianas, como Freud referiu em psicopatologia da vida cotidiana e em os chistes e sua relação com o inconsciente? A partir do dispositivo da escuta eqüiflutuante, isto é, da escuta em todas as direções de sentido, vamos, a seguir, testar a possibilidade de aplicar a concepção de construção do caso a uma situação em que o caso é uma construção da pesquisadora a partir da observação de uma situação de aprendizagem em um contexto escolar. Trata-se de um grupo formado por sujeitos de onze anos de idade (alunos de 5a série do ensino fundamental) que realizava uma atividade de projeto de aprendizagem. O que reunira os sujeitos em grupo era o tema de pesquisa “O espaço e o sistema solar”. Desta observação, destacaremos enunciações que se seguiram à pergunta: “O que fez vocês escolherem esse tema de pesquisa?”. Um sujeito diz: “Eu ouvi o nome galáxias, vi que tinha a ver com o sistema solar e quis aprender o que era”. É nesse momento que um outro sujeito, que chamaremos R, lembra que, na 2a série, queria ter um ioiô galax, “foi um dos melhores ioiôs que já vi”. Ele nunca ganhara o ioiô (porque era preciso “juntar não sei quantas tampinhas”) Pulsional Revista de Psicanálise mas estava, nesse momento, estudando as galáxias e “reencontrando” o ioiô: “Eles botaram galax prá galáxia, porque ele é assim ó, ele é marronzinho com um monte de coisas brilhando, o marrom deveria ser o componente, e o brilhando deveria ser a estrela”. O menino que devaneava com um brinquedo recriou esse objeto através de uma pesquisa, onde, aos poucos, foi descobrindo que “as galáxias estão se afastando mutuamente em uma velocidade proporcional às suas distâncias; que o universo é composto de galáxias; que essas são compostas por estrelas, cometas, planetas, meteoros e asteróides também. E que nós estamos no planeta Terra, que faz parte do sistema solar que se localiza em um dos braços (parte mais visível) da galáxia denominada de Via-láctea” (enunciados de R. durante o projeto). A lembrança de R. mostra que podemos, hoje, desejar um ioiô. Amanhã, desse ioiô, restarão apenas os significantes (galax) que nos convocarão a realizar uma pesquisa (sobre as galáxias). E prosseguimos na perseguição não mais do objeto, mas das suas metamorfoses significantes. É nesse sentido que Lacan afirma que o objeto de desejo é metonímico: o objeto de desejo sendo objeto do desejo do Outro, e o desejo sendo desejo de Outra coisa.1 1. Essa formulação é proposta por Lacan (1998b) no Seminário Les formations de l’inconscient. “Il n’y a pas d’objet, sinon métonymique, l’objet du désir étant l’objet du désir de l’Autre, et le désir toujours désir d’Autre chose, très précisément de ce qui manque, a, l’objet perdu primordialement, en tant que Freud nous le montre comme étant toujours à retrouver” (p. 13). Uma construção de caso na aprendizagem Nesse caso, o ioiô não seria o objeto originário de desejo, mas a sua entrada na cadeia significante do discurso deve-se a algum traço que o vinculou metonimicamente ao objeto causa do desejo, o qual Lacan convencionou chamar de “objeto a”. Essa análise permite, então, levantar a hipótese de que a repetição inconsciente, no sentido de experiência de suspensão e superação (Aufhebung), seria constituinte do próprio processo de aprendizagem. Uma insistência repetitiva faz o sujeito reencontrar um objeto perdido, do qual restaram os significantes. Esses últimos vão dar forma aos objetos substitutos, entre os quais podem estar os objetos de conhecimento, enquanto substituição e, ao mesmo tempo, repetição do que foi perdido. A imagem do ioiô, “um dos melhores que já vi” atualizou-se ou tornou-se pregnante pelo poder de atração do significante “galax” sobre as novas imagens ou pensamentos, “galáxia”. Assim, no processo de pesquisa, o sujeito reencontra e transforma, no sentido da metabolé grega, isto é, simboliza e elabora, suas lembranças de infância, de forma a operar uma reescritura sobre essas lembranças. O que se repete não é necessariamente uma situação vivida anteriormente, pois o decisivo é o retorno a uma cena de 17 desejo, isto é, uma cena vivida imaginariamente. Mas essa cena só poderá ser repetida de outra maneira, e novas maneiras de repetição ainda serão possíveis, pois o traço unário só pode ser reencontrado na sucessão de significantes, isto é, nas novas formas em que o objeto de desejo se constituirá para o sujeito a cada reencontro. Na teoria freudiana, há duas referências fundamentais para a análise desse caso. O conceito de rememoração como construção e o conceito de repetição ou retorno de cenas infantis. O primeiro conceito foi apresentado por Freud na versão de 1896 da estrutura do aparelho psíquico: “O material presente em forma de traços de memória estaria sujeito, de tempos em tempos, a um rearranjo segundo novas circunstâncias – a uma retranscrição”. 2 Portanto, seriam as vivências de um passado próximo que rearranjariam as vivências de um passado distante. O segundo conceito, o de repetição, tem sua formulação primeira na hipótese de que os traços de lembranças de cenas outrora vividas pelo sujeito repetem-se ou retornam, como foi formulado por Freud (1900a): “A cena infantil, por não conseguir uma renovação (Erneuerung), se satisfaz com o retorno (Wiederkehr) como sonho”.3 2. “Von Zeit zu Zeit das vorhandenen Material von Erinnerungsspuren eine Umordnung nach neuen Beziehung, eine Umschrift erfährt. Freud, Briefe an W. Fliess, Carta 112 a Fliess, 6.12.1896, p. 217. 3. “Die Infantilszene kann ihre Erneuerung nicht durchsetzen; sie muss sich mit der Wiederkehr als Traum begnügen” (Freud, 1900a/1972, Studienausgabe, II, p. 522). 18 Assim, teríamos um núcleo formado por traços de lembrança, isto é, significantes, pronto a exercer atração sobre novas vivências. Se tomarmos a conceituação freudiana do poder de atração (Anziehehung) que exercem as representações recalcadas sobre as novas representações, poderemos formular a hipótese de que a imagem do ioiô, “um dos melhores que já vi” atualizou-se ou tornou-se pregnante pelo poder de atração do significante “galax” sobre um novo significante, “galáxia”. O conceito de repetição está ligado ao conceito de no só-depois (Nachträglich), expressando a hipótese freudiana de que o acontecimento dois é que dará sentido ao acontecimento um. Esse conceito é fundamental na teoria freudiana do inconsciente. Lacan (1998a) interpreta o conceito freudiano de Nachträglich (em francês, aprèscoup) no sentido de retroação de um significante sobre o outro. Essa interpretação está vinculada à teoria do tempo lógico, com a qual Lacan (1998a) articula sincronia e diacronia, isto é, a sincronia do significante na retroação de um tempo dois, que faz existir o tempo um. Portanto, do ponto de vista psicanalítico, não é possível afirmar que os alunos estivessem livres para escolher o seu tema de interesse. Essa liberdade é meramente pedagógica, pois, inconscientemente, não há livre escolha, mas sobredeterminação. Ou seja, reencontros nunca realizados, mas sempre por Pulsional Revista de Psicanálise realizar, pois o objeto causa de desejo é um objeto perdido, mas sempre por se apresentar de novo (toujours à retrouver). Este é o sentido da definição lacaniana da repetição como a insistência de algo que nos constitui, apesar da impressão que sentimos de que se trata de algo que sempre retorna. Isso se explica pelo fato de que este objeto está inscrito na ordem simbólica que nos sustenta e acolhe sob a forma da linguagem, e que superpõe, tanto na diacronia quanto na sincronia, a determinação do significante à do significado. Para explicar essa supremacia do significante, isto é, a determinação de significado como efeito no só-depois (après-coup) em uma cadeia significante, Lacan (1998a) apresenta o modelo do jogo dos sinais (+) e (-) lançados aleatoriamente, mas cuja determinação se revelará como efeito de uma memória simbólica, na medida em que a série “se lembrará” que depois de uma tríade de tipo 1 (+ + + ou - - -) só poderá vir uma tríade de tipo 2 (+ + - ou - - +). No caso galax-galáxia, uma insistência repetitiva (tempo dois) faz o sujeito reencontrar um objeto perdido (tempo um), do qual restaram os significantes. A teorização lacaniana permite uma leitura do caso galax-galáxia como um retorno do objeto (ioiô galax) enquanto traço que se repete inconscientemente, ou melhor, tende a perdurar enquanto não for resolvido – lembramos aqui da afirmação freudiana sobre o método de Uma construção de caso na aprendizagem decomposição e solução de sintomas.4 O significante galax atuou na gênese do significado galáxia, e, no só-depois, foi significado, isto é, quando o sujeito compreendeu que “eles botaram galax prá galáxia, porque ele é assim ó, ele é marronzinho com um monte de coisas brilhando, o marrom deveria ser o componente, e o brilhando deveria ser a estrela”. A reconstrução aparece na presentificação do ioiô pela expressão “ele é assim”. Encontramos aqui as três funções do tempo lógico em Lacan: 9 instante de ver: “ele é assim ó, ele é marronzinho com um monte de coisas brilhando”; 9 tempo para compreender: “o marrom deveria ser o componente e o brilhando deveria ser a estrela; 9 momento de concluir: “eles botaram galax prá galáxia”. A experiência passada e a experiência presente de R. voltam-se uma sobre a outra em uma forma circular, na medida em que a pesquisa sobre as galáxias que o jovem R. desenvolve aos 11 anos foi condição para ele compreender o significado do ioiô galax de sua meninice. E o resto ou traço significante “galax”, significante do objeto de desejo, repetiu-se até que sua insistência significante fosse ressignificada. Assim, está em questão uma dimensão lógica do tem- 19 po, e não a dimensão cotidiana do tempo cronológico. A mesma situação poderia ser analisada do ponto de vista do efeito Zeigarnik, de forma que a hipótese da repetição encontraria um contraponto na Gestalt, contraponto que vem ampliar o horizonte de compreensão do problema. O efeito Zeigarnik consiste em um achado experimental de Bluma Zeigarnik. Essa pesquisadora, aluna de Kurt Lewin, realizou em 1927 uma pesquisa que testou a proposição do sistema de tensão de Lewin. O sistema de tensão é um fator motivacional em que um determinado ato ou conjunto de atos adquire uma influência diretiva sobre o comportamento até que se dissipe. Os resultados do experimento mostraram que uma tarefa não acabada deixa um estado de tensão, uma quase-necessidade. Completar a tarefa significa resolver a tensão ou descarregar a quase-necessidade. A vantagem da memória na tarefa inacabada seria devido à continuação de tensão. Lacan (1985) encontra, no efeito Zeigarnik, a prova da diferenciação da aprendizagem animal da aprendizagem humana. Enquanto a aprendizagem animal apresenta-se como um aperfeiçoamento organizado e finito, isto é, efeito de maturação. O efeito Zeigarnik demonstra que a aprendizagem humana se 4. Freud expõe no capítulo II de A interpretação dos sonhos: No tocante às estruturas psicopatológicas (fobias histéricas, idéias obsessivas, sintomas em geral), sua decomposição coincide com a sua solução (Auflösung und Lösung in eines zusammmenfällt). 20 dá aos saltos, em função do desejo, o desejo de voltar às tarefas inacabadas. Se, afirma Lacan (1985), “no homem, é a má forma que é prevalente. É na medida em que uma tarefa está inacabada que o sujeito volta a ela. É na medida em que um fracasso foi acerbo que o sujeito se lembra melhor dele” (p. 115). Lacan mostra que há uma lógica no efeito Zeigarnik: a lógica do resto significante a insistir: O que na experiência analítica se denomina de intrusão do passado no presente é da ordem da aprendizagem, isto é, do que vai ser melhor na próxima vez. E quando digo que vai fazer melhor da próxima vez é que vai ser preciso que ele faça algo totalmente diferente (p. 113). No caso galax-galáxia, algo se repete, e, em se repetindo, se transforma, isto é, o galax que, em se transformando em galáxia, foi ressignificado. Essa seria a aprendizagem que se dá aos saltos, como intrusão do passado no presente, ou como torção dessas duas dimensões do tempo em que uma é condição para a outra. O inconsciente manifesta-se aqui segundo o modo da repetição de um traço que perdura. Essa repetição age até a sua resolução: a resolução é a aprendizagem. Em termos freudianos, encontramos um derivado inconsciente atuando no mesmo sentido (gleichsinnig) que uma formação pré-consciente. A aprendizagem, nesse caso, seria efeito de uma formação do inconsciente, como aque- Pulsional Revista de Psicanálise la da formação do sonho (Bildung des Traum). As formações do inconsciente nas situações construtivistas de aprendizagem convocaram a pesquisadora a uma escuta do que insistia nos enunciados dos sujeitos participantes das situações construtivistas de aprendizagem: o inconsciente. A escuta, no caso galax-galáxia, foi uma escuta psicanalítica dirigida pelo olhar, como propõe Caon (1996). A escuta dos enunciados dos participantes das situações de aprendizagem conduziu a uma teorização (metapsicologia) para dar conta do que se anunciava e enunciava para além dos conteúdos ou da intenção comunicativa dos sujeitos, ou seja, as formações do inconsciente. Assim, no interior do próprio processo de pesquisa, isto é, da escuta dos enunciados que apareciam em cada uma das situações de aprendizagem em que a pesquisadora se inseriu como observadora participante, foi se delineando uma interpretação dos enunciados enquanto formações inconscientes. Essa interpretação consistiu em uma construção da hipótese metapsicológica da aprendizagem como uma formação do inconsciente. Esta hipótese surgiu como uma elaboração a partir da escuta e da análise dos enunciados dos participantes das situações de aprendizagem. A escuta psicanalítica dirigida pelo olhar é, então, um método que produz um processo de elaboração metapsicológica no pesquisador. Uma construção de caso na aprendizagem REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CAON, J. L. “Psicanálise < > Metapsicologia”. In SLAVUTSKY, A.; BRITO, C. e SOUSA, E. (orgs.). Cem anos de psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996, pp. 61-73. CYSSAU, C. “Fonctions théoriques du cas clinique”. In F ÉDIDA, P. e VILLA, F. (orgs.). Le cas en controverse. Paris: PUF., 1999, pp. 59-82. FÉDIDA, Pierre. Nome, figura e memória: a linguagem na situação psicanalítica. São Paulo: Escuta, 1991. FREUD, Sigmund. Sigmund Freud Briefe na Wilhelm Fliess 1887-1904. Organizado por Masson. Frankfurt: Fischer, 1987. ____ . 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