1 A REFORMA DO ESTADO E A POLÍTICA DE SAÚDE: REPENSANDO O ESTADO Emerson Gonçalves1 RESUMO As transformações ocorridas na saúde e que culminaram com o Sistema Único de Saúde (SUS) podem se caracterizadas como uma Reforma do próprio Estado. Portanto, a proposta aqui é analisar o Sistema de Saúde brasileiro e o seu processo de descentralização. Dentro deste contexto, os municípios se apresentam como base de sustentação do sistema, demonstrando que a descentralização pode ter um potencial significativo nas políticas de saúde. O objetivo aqui é contribuir para o debate acerca da descentralização e de alguma forma estimular a discussão com relação a saúde enquanto política de Estado. Palavras-chave: Reforma do Estado - Sistema Único de Saúde – Descentralização. 1. Reforma do Estado: Em Busca de Uma Cidadania O debate com relação ao Estado e as políticas públicas remete à questão da limitação fiscal diante de inúmeras obrigações assumidas a partir da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Nos países centrais (ricos/desenvolvidos), a discussão gira em torno da globalização e a crise do Estado do Bem-estar Social, estabelecendo como contrapartida discussões em torno das questões distributivas e sociais dentro de um atento olhar neoliberal. Nos países periféricos (como o Brasil), a discussão vem marcada pela crise fiscal do Estado e pelo fenômeno da globalização2 que impulsiona 1 Cientista Político pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. Este trabalho foi produzido a partir da minha Monografia apresentada ao Curso de Ciência Política da UNIVALI. 2 Um processo de diminuição dos limites entre o nacional e o global e o surgimento de corporações transnacionais. A distância entre os países torna-se mais próxima, sendo assim, uma nova natureza nas relações internacionais (VIOLA, 1997, p. 65). 2 para a necessidade de ajustes a fim de se adequar à nova ordem capitalista, e também pelas profundas desigualdades no campo social (COHN, 1997, p. 101). Nas décadas de 1950 e 1960 surgiu a teoria do Estado Desenvolvimentista, na qual transferia ao Estado a competência para provocar mudanças estruturais em suas sociedades, sua responsabilidade foi dirigida para a promoção da industrialização, no desenvolvimento urbano e nos setores básicos da economia para acelerar o desenvolvimento econômico-social. Durante a década de 1970, começa-se a questionar o Estado Desenvolvimentista, colocando-o como um problema devido ao fracasso em algumas áreas definidas como prioritárias. Por isso prevalece na década de 1980 a teoria do Estado Mínimo, o mercado assim, assumindo o papel regulador. Com relação ao Brasil, o país tem uma longa tradição autoritária na política, o predomínio de um modelo oligárquico, burocrático, fez com que o Estado fosse marcado pela marginalização política e social, pelas privatizações e um período marcado pelo pensamento neoliberal. A sociedade e a política brasileira são marcadas pela predominância do Estado sobre a sociedade e por colocar obstáculos na construção de uma cidadania e uma participação efetiva. O Brasil também enfrenta uma enorme desigualdade social que aumenta devido a uma economia de altos e baixos e um desmonte do Estado (SANTOS, 2002, p. 458). No decorrer do século XX, as classes dominantes do país tinham como projeto político principal a modernização/industrialização do Brasil. Esse projeto transformou o país (de predomínio rural na época) na décima economia do mundo. Só que este processo teve conseqüências, a vulnerabilidade social ao longo do século XX fez com que o Brasil se tornasse um dos países com maior taxa de desigualdade no mundo. O processo de modernização criou desigualdades regionais e locais, o aumento da população na área urbana não foi acompanhado pelo setor público, na maior parte das cidades brasileiras as deficiências em termos de infra-estrutura eram enormes, como por exemplo, o pouco acesso a rede de abastecimento público de água, etc. (AVRITZER, 2002, p. 570). 3 Dois pontos importantes influenciaram na pouca estrutura dos serviços públicos desta época: a falta de organização da população para reinvidicar direitos e as práticas clientelistas que assim ditavam a distribuição de bens públicos. Com relação à saúde, a mobilização político-social das décadas de 1960 e 1970 criou questionamentos em relação ao sistema de saúde existente. Devido à crise fiscal do Estado, em meados da década de 1970, esses questionamentos se alimentaram configurando uma agenda após o período do Estado do Bem-estar Social e que serviu de orientação para as reformas que viriam a seguir. Na década de 1980, a crise da saúde reduziu-se a uma crise nos serviços de assistência, paralelo a esta crise, já se identificava uma preocupação com as despesas no sistema e tentativas para a redução de gastos relacionados à área (ALMEIDA, C. 1997, p. 178). Para os países periféricos a inserção do tema (déficit público/gasto sanitário) abre espaço na agenda política devido aos grandes índices de pobreza e agravamento das condições influenciadas por uma crise econômica e diminuição de investimentos públicos nesta área. A fundamentação das justificativas do movimento de reforma dos sistemas de saúde, que se tornou evidente na década de 1980, apoiou-se em vários argumentos, principalmente naquele que decretava o fim do Estado do Bem-estar Social. Como ressalta Célia Almeida (idem, p. 181, grifo do autor): O Estado do Bem-estar Social havia se sobrecarregado e as democracias ocidentais haviam se tornado ingovernáveis [...] desfazendo-se de algumas funções, o Estado poderia aliviar-se de certas demandas e dos conflitos gerados por elas; além disso, diziam os neoconservadores, o governo era intrinsecamente incompetente para algumas tarefas, [...]. Em nosso país, a governabilidade é sinônimo de dificuldade devido à fragilidade do próprio Estado diante de interesses de classes, ocasionado em parte pela falta de tradição democrática, e também pela existência de uma grande parcela da população beirando à pobreza, situações estas, que exigem do Estado respostas rápidas e eficientes na área social através de políticas sociais. Esta questão/problema insere no debate sobre a governabilidade o confronto do Estado na administração da coisa pública diante do capital privado (GERSCHMAN, 1997, p. 56). 4 Com a crise profunda do Estado do Bem-estar Social, surgem as questões neoliberais como uma forma de saída para a paralisia econômica. Desta forma, isso trouxe ao cenário político europeu (iniciando na Inglaterra) os governos conservadores, que tinham como objetivo desmontar as concepções do Estado do Bem-estar Social, ao mesmo tempo em que o domínio do capital foi tomando força e corpo e se estendeu para além das fronteiras européias (idem, p. 59). A Carta Política de 1988 buscou na Seguridade Social um padrão de proteção que se queria, ou seja, abrangente e bem distribuído. Durante o primeiro governo após a ditadura, as políticas sociais transformaram-se, surgiu um conceito de Seguridade Social, a universalidade de cobertura e atendimento, a irredutibilidade de valores pagos, o envolvimento da comunidade nas decisões e o caráter descentralizado na gestão, etc. Estes foram alguns princípios inseridos no texto Constitucional e que corresponderam aos anseios de vários segmentos da sociedade (VIANNA, 1997, p. 170). Todavia, o sistema de proteção social no Brasil está além das necessidades sociais, mesmo tendo como princípio a universalidade como promoção da cidadania. Os benefícios públicos na prática se resumem a míseros benefícios às classes mais baixas, enquanto que ao mercado fica a tarefa de cobrir aqueles cuja situação econômico-social permite adquirir planos e seguros privados de saúde (um sistema tipo americanizado). A modernização econômica defendida pelo governo militar desde 1964, alavancou o capitalismo, e trouxe para este universo setores como a assistência médica. Com a criação de novos atores, novos interesses surgiram, a ditadura mudou a relação entre Estado/Sociedade, e assim, a facilidade da penetração da onda privatista aumentou dentro do poder estatal. No Brasil a necessidade de criação de um eficiente sistema estatal de Seguridade Social é indiscutível, mas também construir um novo Estado do Bem-estar Social diante do efeito da globalização não é nada fácil, se constituindo assim num projeto muito complexo (idem, p.172). A discussão entre os keynesianos3 e os neoliberais não era um confronto técnico inerente à economia e nem uma busca de 3 Nas palavras de Pereira, P. (2002, p. 32) a doutrina keynesiana (do economista John Maynard Keynes) forneceu bases para a implantação de uma forma de regulação da atividade econômica contrária da teoria econômica clássica, defensora da auto-regulação do mercado. Para Keynes o governo deveria promover as obras públicas e conseqüentemente isso levaria a geração de empregos devido, de modo geral, ao aquecimento da procura dos produtos postos à venda. Desta forma esse pensamento deu margem a uma plena intervenção estatal tanto na economia como na área social. Essa doutrina estimulou a adoção de medidas que incluíam a regulação do mercado, o controle dos preços, a distribuição de renda, o investimento público, etc. 5 soluções para os problemas econômicos, era sim, uma “guerra” de ideologias, com argumentação de ambos os lados. Os keynesianos afirmavam que os altos salários, o Estado do Bem-estar Social, etc., haviam criado uma demanda de consumo que alimentava e protegia a economia, por outro lado, os neoliberais afirmavam que o contexto político-econômico da era de Ouro4 (pós - 1945), criavam obstáculos para o controle da inflação e o controle de gastos tanto no setor público como privado (HOBSBAWM, 1995, p. 399). Diante de várias incertezas quanto ao desenvolvimento, o papel do Estado é fundamental na busca pela necessidade de mudanças. Nesse contexto, é essencial por parte do Estado buscar uma redefinição/reforma, a fim de adquirir um importante papel de agente fomentador. A nova sociedade (pertencente à terceira revolução industrial) busca impor desafios ao Estado. Dentro de uma perspectiva política, o Estado é confrontado por vários interesses de grupos ligados ou não à política. Portanto, quando se discute a Reforma do Estado, o que se coloca é a definição de um novo modelo que supere os vários tipos de Estado que não conseguem ser ágeis e dar respostas à sociedade (BODSTEIN, 2000, p. 84-85). O Estado brasileiro passou por várias reformas desde o período do Estado Novo (o segundo Governo Vargas) ao Governo Fernando Henrique Cardoso. Podemos destacar quatro fases destas reformas segundo Magalhães (2004, p. 47): ● A primeira fase: foi a Reforma Administrativa do Governo Getúlio Vargas durante o Estado Novo, onde foi adotada a centralização administrativa por parte do Estado, neste período foi criado o Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP); ● A segunda fase: foi uma modernização administrativa implantada pelo Governo de Juscelino Kubitschek, onde procurou direcionar o aparelho do Estado para os projetos de desenvolvimento através da industrialização e a construção da capital do país, Brasília, também investiu na descentralização e na diminuição da burocracia; ● A terceira fase: foi marcada pelos Governos Militares iniciado em 1964, com a proposta de desenvolvimento econômico. No Governo do presidente Médici foram criados os Planos Nacionais de Desenvolvimento (PNDs), planos estes que 4 A uma Era de catástrofes de 1914 até depois da Segunda Guerra Mundial, segue-se cerca de 25 ou 30 anos de extraordinário crescimento econômico e transformação social, pode-se ver este período como uma espécie de Era do Ouro, tendo seu término no início da década de 70 (HOBSBAWM, 1995, p. 15). 6 determinavam as prioridades do país no âmbito sócio-econômico, desta forma, neste período ocorreu um inchaço no setor público; ● A quarta fase de Reforma do Estado: já no então Governo de Fernando Henrique Cardoso, se dedicou à uma Reforma Administrativa, sendo direcionada através do Plano Diretor de Reforma do Estado, neste período adotou-se uma terceirização de serviços, um enxugamento do setor público e conseqüentemente uma redução do Estado através das privatizações. O Estado deve ser entendido como uma instituição complexa, necessária para o bom andamento da democracia e da sociedade. Portanto, a confirmação dos direitos sociais diz respeito a uma democratização das sociedades que origina um Estado voltado para o interesse social, se opondo ao Estado Mínimo e ao conceito liberal, precisando criar um novo tipo de intervenção estatal, mais efetiva e eficiente (BODSTEIN, 2000, p. 86). Com a propagação da minimização da intervenção estatal na economia através de privatizações e outras medidas, conseqüentemente a redução das atividades do Estado do Bem-estar Social torna concreta a privatização das políticas sociais, sendo assim uma nova forma é proposta de organização da sociedade. Vale lembrar que segundo o receituário neoliberal, no âmbito estritamente econômico, o padrão de intervenção do Estado do Bem-estar Social deve ser esquecido, retirando assim o Estado da economia através de uma grande onda de privatizações do setor estatal. Portanto, no plano social, a igualdade e solidariedade cedem lugar à diferenciação e ao individualismo influenciado pelo capital (UGÁ, 1997, p. 85). 2. O Sistema de Saúde Brasileiro e os seus Desafios: Crise Ou Transição? O Brasil ao longo das décadas multiplicou sua produção tanto agrícola como industrial, houve um crescimento elevado da população, se espalhando pelo território brasileiro. Mas com todas essas transformações econômico-sociais, o país ainda passou por turbulências. Na história econômica brasileira após a crise de 1929 (quebra da Bolsa de Nova York), registrou-se que o país apresentou uma taxa de crescimento muito elevada, chegando próxima aos 6% ao ano, isso fez com que o Brasil se colocasse entre as dez maiores economias do mundo (MUNHOZ, 2002, p. 267). 7 Dentro de uma visão histórica da economia brasileira, o que se revela é que muitos problemas e dificuldades o país enfrentou nas décadas posteriores à 1930. Todavia, apesar de uma crise econômica e altos índices de inflação até meados de 1994, o PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro apresentou crescimento nos anos posteriores, mas esse crescimento foi acompanhado pela crise no setor da saúde devido aos baixos investimentos (COHN, 1997, p. 227). Com relação à assistência médico-hospitalar, a crise no setor é notícia freqüente, hospitais públicos com superlotação, faltam leitos, faltam equipamentos, medicamentos, funcionários e os hospitais privados selecionando pacientes através da fila dupla. No Brasil a assistência à saúde desde suas origens esteve vinculada à Previdência Social, esta assistência social teve seu financiamento relacionado com a contribuição do empregado e do empregador. Com a implantação deste seguro social na década de 1920, é que se define o direito à assistência médica, mas limitado devido à disponibilidade de recursos, os gastos com a saúde foram definidos num limite que não ultrapassasse 12% da receita da Previdência Social. Na década de 1930 os gastos com a assistência médica se concentram na compra de serviços privados para garantir assim um maior acesso aos serviços de saúde. Nesse período inicia-se também o processo de industrialização do país e de 1945 a 1960, esta industrialização assume um papel que passou a ser denominado de substituição de importações, tendo como lógica a necessidade de articulação das políticas sociais e a necessidade de investimentos do Estado em setores básicos da economia (idem, p. 228-229). Já no período de 1964 a 1975 tem como marca o desenvolvimento sem democracia, em se tratando de políticas sociais, esta assume um caráter centralizador por parte do Estado brasileiro, é nesse período que ocorre e se consolida no país a privatização da assistência médica. Durante a década de 1980, o país passou por oito planos de estabilização econômica, no entanto, isso não resultou num ajuste estrutural da economia e nem na estabilização (idem, p. 236). Como conseqüência, o Brasil entra na década de 1990 convivendo com altos índices de inflação e com iniciativas de privatização para enfrentar o fantasma do déficit público. No Brasil, a saúde precisa ser pensada também no que diz respeito ao seu 8 financiamento, para assim avançar na conquista da universalidade e equidade dos serviços. Reverter este processo significa reformular a questão do financiamento dentro do sistema de Seguridade Social, já que esses recursos em grande parte continuam vindo da contribuição de empregados e empregadores (idem, p. 240). É necessário também formular a questão do financiamento aos serviços privados de saúde que prestam serviços à população, haja visto que o setor não estatal de saúde no país, historicamente, é financiado com recursos da Seguridade Social. Esse financiamento é realizado mediante a contratação de serviços por parte do Estado ao setor privado e por meio de subsídios, através de incentivos fiscais. Entretanto, é necessário principalmente analisar a questão do financiamento do setor público com o próprio setor público, ou seja, diz respeito às condições de repasse de recursos nas três esferas de governo, embora o nível municipal seja o responsável pela saúde de sua população (descentralização). O que se caracterizou na relação entre os três níveis de governo foi o pagamento pelos serviços prestados, como conseqüência, apesar da democratização do setor através da descentralização, o que se tem visto é uma desconcentração. Conforme Junqueira (1997, p. 186): “Desconcentração implica transferência de algum poder por delegação. [...] o órgão que transfere competências não perde seu poder de decisão [...]”. Portanto, neste modelo existe a transferência de encargos, mas sem autonomia para a gestão em matéria de financiamento (recebe-se recursos se forem prestados os serviços determinados pela esfera federal), com isso o município não tem autonomia em determinados casos. Com relação aos gastos públicos, dois fatos agravam a situação, como ressalta Cohn (idem, p. 242): [...] o primeiro à distribuição dos gastos públicos entre as instituições públicas e privadas, e o segundo à distribuição desses gastos por complexidade de atos médicos diante do perfil de morbi-mortalidade da população. Mesmo com a ampliação do acesso, as políticas públicas não conseguiram transformar isso em fator de inclusão. A qualidade de vida é um fator importante para a boa saúde, a desigualdade expressa os dados citados anteriormente, não tem como 9 exigir de um sistema de saúde a superação dos problemas sanitários sem que se definam ações sobre a desigualdade social, que acaba também produzindo a doença. Segundo o Censo de 2000 existe mais de 32.000.000 domicílios com abastecimento de água canalizada em pelo menos um cômodo, a Região Sudeste possui o maior percentual, são mais de 17.000.000. No que diz respeito aos domicílios com instalações sanitárias a Região Nordeste é a que possui o maior número de domicílios sem instalação sanitária, são mais de 2.000.000, no Brasil este número passa dos 3.000.000.000 (DATASUS, 2004). Este quadro joga para o Estado um importante papel na resolução das questões sociais, coisa que o mercado não será capaz de resolver, políticas públicas bem definidas e comprometidas com a busca pela qualidade de vida da população são pontos fundamentais para superar o quadro social perverso em que vive nossa população (BARROS, 1997, p. 118). Todavia, a crise no sistema de saúde foi diminuída devido à inserção dos municípios na responsabilidade dos serviços e através do direcionamento e aumento dos seus recursos no setor. Se na questão de recursos houve algumas melhorias, não se pode dizer o mesmo com relação ao gasto federal, já que grande parte dos recursos vão para pagamentos de pessoal e amortização de dívidas, entre outras despesas. Com essas despesas, é importante que se expresse o debate sobre a necessidade de (re) organização do modelo de atenção à saúde, para implantar realmente o que foi previsto com a instituição do Sistema Único de Saúde. Essa (re) organização da atenção à saúde transforma-se num ponto fundamental para a verdadeira implantação do SUS, e o caminho para se alcançar esse objetivo é o aprofundamento na descentralização, na gestão, no controle e na oferta de serviços que garantem a atenção e promoção da saúde (idem, p. 130-131). Para a garantia de recursos à Seguridade Social, o governo arrecada impostos e contribuições pagas pela população, esses impostos podem ser aplicados em várias despesas do governo, inclusive como complemento ao financiamento da Seguridade Social, todavia, recursos da Seguridade Social não podem pagar outras despesas que não sejam inerentes a área (SANTA CATARINA, SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE, 2001, p. 10). 10 Com isso, a União tem a obrigação de repassar recursos para os Estados e principalmente para os municípios (a maioria dos serviços é de responsabilidade dos municípios) com o objetivo de custear os serviços públicos de saúde, essas transferências de recursos entre os três níveis de governo se dá através dos Fundos de Saúde5, ou seja, os recursos arrecadados pelo governo federal são enviados ao Fundo Nacional de Saúde e depois transferidos aos Fundos Estaduais e Municipais de Saúde. Em se tratando de contribuição, a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) criada em 1996 com a finalidade de financiar a saúde, seria uma fonte adicional de recursos, ela é descontada em todas as movimentações financeiras, e fundamentalmente seria destinada inteiramente à saúde, mas através de Emendas Constitucionais houve uma divisão desses recursos entre o Ministério da Saúde e da Previdência Social (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 80). Para atender às necessidades do setor a questão dos recursos financeiros é essencial, desde o ano de 2000, o financiamento do Sistema Único de Saúde tem como ponto legal e fundamental a Emenda Constitucional Nº 29, na qual estabelece que os três níveis de governo (federal, estadual e municipal) aumentem seus investimentos no setor, garantindo assim recursos mínimos para as ações e serviços de saúde. Conforme apresenta Machado (2003, p. 14): A Emenda alterou os artigos 34, 35, 156, 160, 167 e 198 da Constituição Federal e acrescentou o artigo 77 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para assegurar os recursos para o financiamento das ações e serviços públicos de saúde. O artigo 34 inclui a Saúde para a ampliação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais e ampliou o poder de intervenção da União nos Estados, caso não cumpram com a obrigação de vincular a percentagem estabelecida de sua receita. Vale lembrar que esta Emenda Constitucional proíbe a inclusão de pagamentos dos inativos com recursos exclusivos da saúde, sendo assim, estas despesas estão vinculadas ao setor previdenciário. Segundo Machado (idem, p. 14): 5 Fundos de Saúde: “é uma conta especial criada por lei, na qual são depositados os recursos destinados a área de saúde” (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 127). 11 De acordo com levantamento realizado pelo Ministério da Saúde (MS), 59% dos 5.559 municípios brasileiros cumpriram, no ano passado, o que determina a EC-29. Isso significa que os municípios aplicaram R$ 10,7 bilhões no setor no ano passado e que os poucos municípios que descumpriram a Emenda devem R$ 219,6 milhões. [...] os municípios terão de aplicar 15% das receitas próprias em saúde. Ou seja, aqueles que, em 2000 aplicavam até 7% das receitas próprias, deveriam aplicar 8,6% em 2001, 10,2% em 2002 e 11,8% em 2003. [...] Enquanto a maioria dos municípios está seguindo a EC-29, grande parte dos estados descumprem o que a Constituição determina. Ao todo, segundo o MS, 17 estados não gastaram o que deveriam em ações e serviços públicos de saúde em 2002. [...] Entre os estados que deixaram de cumprir com o que determina a Emenda, o MS aponta o Paraná, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Rio de Janeiro com os piores índices. ANO PERCENTUAL A SER APLICADO 2000 7% 2001 8,6 % 2002 10,2% 2003 11,8% 2004 15% Figura 1: Percentual das receitas próprias que cada Município deverá aplicar na saúde conforme apresenta a Emenda Constitucional Nº 29. Sendo assim, ficam definidos os recursos de Estados e Municípios e a partir daí, elaborar os respectivos orçamentos para a saúde. Segundo dados oficiais, no ano de 2002, o Ministério da Saúde investiu aproximadamente 24,7 bilhões de Reais no âmbito de atuação do Ministério. Neste mesmo período as Secretarias de Estado da Saúde e do Distrito Federal aplicaram 10,3 bilhões, enquanto que as Secretarias Municipais contribuíram com 11,6 bilhões, sendo assim, o SUS totalizou um investimento de 46,6 bilhões de Reais. Neste mesmo ano os gastos privados com saúde chegaram a aproximadamente 57 bilhões de Reais (gastos com consultas, internações, exames de laboratório, planos de saúde, etc.), mostrando a tímida contribuição do Estado às demandas de saúde da população. Outra justificativa a respeito do pouco investimento em saúde é lembrar quanto o Brasil gasta ao ano por habitante, 200 dólares, valor este inferior ao gasto dos países desenvolvidos por habitante/ano, um montante que varia de 1.300 dólares a 2.500 dólares (CORDOVIL, 2003, p. 13). O orçamento do SUS conta com menos de 20 Reais mensais por pessoa, dez vezes menos do que é destinado pelos 12 sistemas de saúde dos países desenvolvidos (IDEC, 2003, p. 7). Em 2004, o orçamento autorizado para a saúde foi de 29 bilhões de Reais. ANO PERCENTUAL A SER APLICADO 2000 7% 2001 8% 2002 9% 2003 10% 2004 12,% Fonte: Conselho Nacional de Saúde (CNS), 2000 apud BRASIL, Ministério da Saúde. Guia do Conselheiro: Brasília – DF: Ministério da Saúde, 2002. Figura 2: Percentual das receitas próprias que cada Estado e o Distrito Federal deverá aplicar na saúde conforme apresenta a Emenda Constitucional Nº 29. Dentro das mudanças no Estado Brasileiro, a busca de novas formas de organização dentro dos setores públicos, não apenas na área hospitalar, mas em outras áreas que vão de encontro às necessidades sociais (BARBOSA, 1997, p. 143). Apesar de avanços no campo do planejamento e da gestão em saúde, ainda há necessidade de inovações no setor, para que tais práticas de organização se transformem em melhores indicadores sanitários e de satisfação de funcionários e usuários. Mesmo existindo uma necessidade de mudanças na assistência e na gestão, há poucas propostas que possam ser instituídas no setor de maneira abrangente, em particular, ao sistema hospitalar público no país, que em muitos casos não tem clareza sobre o que mudar e como mudar. A mudança do modelo assistencial do SUS e o pagamento dos serviços prestados na proposta de Arouca (2002, p. 20): [...] seria substituído por um contrato global com metas de desempenho, qualidade e prioridades definidas pela população. Podemos contratar o setor privado onde não existe o setor público, mas definindo prioridades e metas. O repasse de recursos para a execução dessas ações é realizado através de transferências mensais Fundo a Fundo, mas algumas ações e serviços são ainda remunerados diretamente pelo Governo Federal, ainda que Estados e Municípios venham aplicando recursos próprios no setor (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 12). 13 A saúde não é apenas atendimento médico-ambulatorial, disponibilidade de recursos humanos, para se chegar a serviços e atendimentos de boa qualidade é preciso ter áreas físicas e equipamentos de boa qualidade para o atendimento à população. Apesar de haver projetos com a finalidade de investir no setor, ainda continuamos com sérios problemas nos hospitais brasileiros (falta de leitos, equipamentos, novas tecnologias na área hospitalar, etc.) para um atendimento de maior cobertura e eficiência para o usuário do sistema público de saúde em nosso país. Temos como um dos maiores desafios para a saúde no Brasil, a busca de uma vida mais saudável incorporada no dia a dia de todos, portanto, promover a saúde é melhorar as condições de vida de nossa população (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 19). Portanto, não podemos dizer que a universalidade foi conquistada só porque o usuário deixou de apresentar a carteirinha do INAMPS para ter acesso ao atendimento, a integralidade é um dos princípios do SUS, extinguiu-se o INAMPS, mas os problemas continuam, como estamos demonstrando. Os desafios são muitos para se alcançar as condições necessárias para a recuperação, promoção e proteção da saúde, ao mesmo tempo em que estamos em uma crise, estamos em uma transição. Crise no sentido que a oferta não absorve a demanda da população e suas principais necessidades, como por exemplo, exames ou cirurgias de alto custo/complexidade para os usuários do SUS, transição no sentido que as mudanças dentro do SUS precisam ocorrer e serem discutidas, a fim de criar mecanismos eficientes que poderão ser alcançados a médio e longo prazo, já que o SUS está em vigor desde a Constituição da República de 1988 e regulamentado a partir de 1990. Depois de vinte e cinco anos da Declaração de Alma-Ata, o objetivo principal não foi alcançado, assinado em 1978 por 137 países e 67 organismos internacionais, o documento final da Conferência sobre Atenção Básica à Saúde 6, na cidade de Alma-Ata, no Cazaquistão, estabeleceu o compromisso de “saúde para todos no ano 2000”. Vejamos os pontos principais da Declaração de Alma-Ata (REVISTA RADIS, 2004, p. 15): 6 Segundo a Declaração de Alma-Ata, representa o primeiro nível de contato dos indivíduos, da família e da comunidade com o sistema nacional de saúde, sendo assim os cuidados relacionados com a saúde são levados o mais próximo possível dos lugares onde as pessoas vivem e trabalham, constituindo o primeiro passo para a assistência à saúde. No Brasil, a expressão Atenção Primária à Saúde é substituída por Atenção Básica à Saúde, dentro do SUS é entendida também como o primeiro nível de atenção à saúde (MACHADO, 2004, p. 18). 14 A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e é um direito humano fundamental. [...] A desigualdade na saúde é inaceitável. O desenvolvimento econômico e social é essencial para alcançar-se a saúde para todos, [...]. As pessoas têm o direito e o dever de participar no planejamento e na implementação de sua atenção sanitária. Um objetivo principal de todos os governos e da comunidade internacional deve ser a promoção, para todos os habitantes do mundo, no ano 2000, de um nível de saúde que lhes permita levar uma vida produtiva social e economicamente. [...] A APS baseia-se na prática, em provas científicas e na metodologia e tecnologia socialmente aceitáveis, acessíveis universalmente com a participação social, [...]. É o foco principal do sistema sanitário e seu primeiro nível de contato, aproximando ao máximo a atenção sanitária do lugar onde as pessoas vivem e trabalham. A APS reflete as condições do país e de suas comunidades, e dirige-se aos principais problemas sanitários da comunidade [...]. Os governos devem formular políticas e planos de ação para estabelecer a APS como parte de um sistema nacional de saúde integrado e em coordenação com outros setores. [...] O êxito da saúde, para a população de um país, afeta e beneficia diretamente qualquer outro país. [...] Pode-se conseguir um nível aceitável de saúde para o mundo em 2000, mediante uso melhor dos recursos mundiais, grande parte dos quais se gastam hoje em conflitos militares. Depois de mais de uma década de existência, ainda se encontram presentes no SUS características do modelo antigo (INAMPS), entre elas o predomínio da remuneração por serviços prestados, conforme a tabela do SUS, o baixo nível de financiamento das ações de saúde, a baixa resolutividade da atenção básica, projetos e programas federais que não respeitam as particularidades regionais, migração da classe média para planos privados (que estão longe de resolver os problemas de saúde de seus usuários) de saúde, entre outras características (SANTOS, N. apud NORONHA, 2003, p. 8). A efetiva implantação dos princípios que direcionam o SUS (universalidade, equidade, integralidade e descentralização) dando assim importância à municipalização, regionalização e participação popular através do exercício do controle social, vem sendo tema de muitos debates e consiste num dos grandes desafios para os gestores públicos e profissionais do setor, portanto ficam as perguntas, afinal: o que de fato foi implantado – quais os resultados/conquistas da descentralização e qual é o SUS que temos hoje? 15 3. A Descentralização do Sistema de Saúde e o Papel dos Municípios como Base do SUS Quando se discutem questões que envolvem a Reforma do Estado, não podemos deixar certamente de falar da descentralização. Correntes de direita e esquerda deram a esse tipo de reforma um lugar de destaque nos processos de implementação de Reforma do Estado (ARRETCHE, 1997, p. 127). Com isso, produziu-se um grande consenso em relação à descentralização, se passou a imaginar que formas descentralizadas de prestação de serviços públicos seriam assim, mais democráticas e eficientes. Ao contrário da centralização, que se coloca como um sistema concentrador de recursos, competências e poder decisório nas mãos de um governo central e/ou órgão central. Desta forma a descentralização e a centralização são dois extremos, mas ligados através de uma relação dialética (JUNQUEIRA, 1997, p. 183). A centralização ocorrida no Estado desenvolvimentista se tornou uma acumulação de funções sem nenhuma delegação para as esferas subnacionais. Já a desconcentração se constitui numa transferência de poder parcial, ou seja, há apenas um deslocamento das decisões, uma transferência de competências por delegação, portanto, se transfere competências, mas não o poder, enquanto que na descentralização o poder decisório, político-administrativo é transferido às esferas locais de poder (idem, p. 186). Desta forma, a descentralização do poder decisório e administrativo é considerada entre os atores aqui citados como um fator de democratização. Desde o período colonial, o Brasil foi marcado por uma administração centralizada, durante grande parte da história política brasileira a criação e/ou administração de recursos esteve nas mãos do poder central, como vimos anteriormente. No transcorrer do Regime Militar, a concentração e/ou administração de recursos fiscais, assim como a criação de órgãos responsáveis pela formulação das políticas nacionais alcançou níveis sem precedentes. Todavia a política adotada de expansão do Estado durante o regime resultaria na criação de fontes institucionais nos estados e municípios, iniciando assim a explicação em parte sobre a questão acerca do processo de descentralização em curso hoje no Brasil. 16 Portanto, essa forma de expansão centralizada adotada pelo Estado gerou como resultado o fortalecimento das instituições em nível estadual e municipal, devido à crise e incapacidade estatal da União e também do fortalecimento político das elites regionais que redundaria nas práticas clientelistas (ARRETCHE, 1997, p. 140). Há ainda, uma outra polêmica no debate sobre a centralização e descentralização que remete às possíveis relações desta última com o clientelismo, pode-se dizer que nem a centralização explica as práticas clientelistas, assim como as formas descentralizadas de prestação de serviços por parte do Poder Público implicam em evitar este problema. A proximidade do poder local não é uma condição suficiente para evitar que certas necessidades da população sejam atendidas de forma clientelista. Para evitar esses abusos de poder – essa prática clientelista - é necessário ao cidadão controlar e fiscalizar as ações do governo (busca da participação/cidadania ativa). Diante da possibilidade de que a descentralização seja uma forma de controle sobre os governos, dada a proximidade do cidadão com o Poder Público local, implicando assim na redução de recursos públicos para práticas clientelistas é um tanto vago. Sendo assim, não há uma relação concreta entre a descentralização e a redução das práticas clientelistas, esta pode ocorrer em governos centralizados e também descentralizados. Na verdade, há consenso entre os autores de que a redução dessas práticas será garantida mediante a capacidade do cidadão em controlar as ações governamentais (ARRETCHE , 1997, p. 149) No Brasil, onde os interesses privados prevalecem sobre os coletivos, a participação não se concretiza necessariamente em governos descentralizados, próximos à população, mas mesmo assim, a descentralização parece constituir um importante meio de participação mediante a abertura de canais entre a sociedade e as instituições, permitindo pelo menos que as reivindicações cheguem até o Poder Público, a quem cabe decidir as políticas públicas a serem empregadas (JUNQUEIRA, 1997, p. 181). Deste modo Junqueira (idem, p. 182) mostra que a descentralização apresenta dois momentos distintos: um que visa garantir a igualdade social e outro que visa o desenvolvimento. Portanto, a descentralização veio como um novo modelo de organização e gestão da coisa pública, constituindo um meio de democratização, 17 possibilitando a criação de mecanismos de controle contribuindo assim para a mudança da forma de administração estatal. O Brasil não conseguiu através da Constituição da República de 1988 alterar o pacto federativo em relação à área fiscal, o grande número de municípios existentes fez com que se travasse no Congresso Nacional uma disputa entre os que desejavam a descentralização com a intenção de tributar e os que desejavam a descentralização dos gastos (idem, p. 192). Mesmo a Constituição ter municipalizado alguns serviços, como saúde e educação, a falta no país de um projeto social aliado à crise financeira de estados e municípios fez com que o processo de descentralização tenha se tornado uma interrogação diante das demandas sociais existentes (OLIVEIRA & BIASOTO JR., 1999, p. 20). A federação brasileira apresenta um alto grau de descentralização, tanto na repartição de receitas quanto na realização de gastos. A descentralização aplicada no Brasil indica fragilidades devido à falta de um acordo de gestão entre as três esferas de governo, e se mostra mais frágil ainda quando o assunto é recursos de ordem financeira, já que as transferências de recursos garantidas constitucionalmente não foram e não são suficientes para garantir o cumprimento das obrigações de estados e municípios dentro do processo de descentralização (idem, p. 23). Portanto, na descentralização hoje existente apresentam-se graus diferenciados de dependência ao governo federal, esta variação ocorre de estados para estados, municípios para municípios em relação aos recursos federais transferidos para estes. Exceto nos períodos do Estado Novo (1937 a 1945) e Regime Militar (1964 a 1985) a legislação federal privilegiou os municípios, mesmo sendo sob sua tutela. (FERREIRA FILHO apud CAMARGO, 2003, p. 140). Mas a grande mudança veio com a Constituição da República em 1988 que concedeu aos municípios a condição de ente federativo conforme o artigo 18. Sendo assim, está previsto aos municípios sua autonomia, capacidade de organização e independência administrativa. Mas com esta conquista veio também a dificuldade devido às diferenças regionais. São mais de cinco mil municípios pequenos e pobres, que não dispõem de boas receitas e administrações eficientes, diante deste problema o que se propõe é que 18 existam fortes mecanismos de cooperação e assistência para a redução dessas diferenças, como por exemplo, transferências de recursos de regiões mais ricas para regiões mais pobres (RAMOS apud CAMARGO, 2003, p. 141). O artigo 307 da Constituição da República garantiu várias competências aos municípios, mas ao assumir novas competências os governos municipais se mostraram incapazes para atender as demandas das políticas sociais, fato este agravado com a crise fiscal e a diminuição dos orçamentos federais (CAMARGO, 2003, p. 143). No que diz respeito à saúde, a descentralização assim como a universalização do acesso foram as bandeiras do Movimento Sanitário consagrados na Constituição da República. Com isso o processo de municipalização passou para os municípios um poder decisório sobre a política de saúde local, mas vale lembrar que nem tudo foi descentralizado, ainda permanecem no âmbito federal através do Ministério da Saúde as ações de controle de doenças específicas, assim como certos programas nacionais, como por exemplo, o Programa Saúde da Família (PSF)8 e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), criado pelo Ministério da Saúde para compor as equipes de Saúde da Família junto com médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e outros profissionais. Parte do seu financiamento vem do Ministério da Saúde, a contratação fica a cargo dos municípios para montarem as equipes. Apesar de haver um consenso com referência à descentralização dos serviços, muitas críticas têm surgido, como por exemplo, no que diz respeito ao sistema de pagamentos por produção inserido/aplicado no SUS. Essa forma vigente no modelo INAMPS funcionava da seguinte forma: os serviços privados conveniados eram pagos de acordo com os serviços prestados. Já em 1991 a NOB (Norma Operacional Básica) nº 01/91 definiu que todos os serviços prestados, tanto públicos como privados conveniados e contratados seriam tratados como vendedores de serviços e pagos de acordo com a apresentação das faturas detalhando os serviços executados. Portanto, o pagamento por produção estimula o gasto público e compromete a eficiência. Se considerarmos que o repasse de recursos está concentrado no governo federal pode-se dizer que existe uma descentralização tutelada na qual se apresenta um 7 Entre várias competências municipais previstas na Constituição da República podemos citar o inciso VIII do artigo 30: “prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população” (BRASIL, CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988). 8 O Programa Saúde da Família foi criado em 1993, e em 1998 já estava implantado em mais de 1.200 municípios (NORONHA, 2003, p. 8). 19 rígido controle de repasse de recursos de responsabilidade da União e em contrapartida uma falta de instrumentos de avaliação dos serviços prestados (ARRETCHE & RODRIGUES, 1999, p. 129-130). Como salienta Arretche (1997, 145): Este quadro tem implicado que o processo de descentralização das políticas sociais seja caracterizado por desigualdades de toda ordem: no ritmo de formulação e decisão entre as distintas políticas setoriais; no interior de uma dada política, desigualdades entre o ritmo e os resultados da implementação e, sobretudo, na qualidade dos serviços prestados. A superação destas dificuldades não pode ocorrer apenas por iniciativa dos governos locais, dada exatamente sua heterogeneidade na capacidade de mobilizar recursos próprios e dada a escala local de sua atuação. Apenas o governo central pode desempenhar esta tarefa, sob pena que se aprofundem as desigualdades regionais. [...] parece-me que as tendências de Reforma do Estado brasileiro apontam para um novo papel a ser desempenhado pelo governo federal: de forte regulação das políticas nacionais, de correção das desigualdades regionais e de compensação das insuficiências locais. Conforme ressalta Couttolenc & Zucchi (1998, p. 11-12) a descentralização por si só não resolve os problemas, ela cria possibilidades, cabendo assim aos três níveis de governo uma reestruturação e um redirecionamento de suas ações, para que não venha a fazer da Reforma Sanitária Brasileira apenas um mecanismo que mudou a estrutura burocrática, já que ela vai além disso. Sendo assim, a oferta de serviços de saúde dos municípios depende da capacidade destes em instalar e gerenciar com eficiência os recursos técnicos e financeiros disponíveis. Este gerenciamento acaba se tornando problemático devido à maior parte dos municípios brasileiros serem dotados de pouca capacidade técnica (profissionais da saúde qualificados, equipamentos, etc.), e também por serem dependentes das transferências fiscais do governo federal (SOUZA, MONNERAT & SENNA, 2002, p. 72-73). Os anos de 1990 são marcados por um acentuado processo de municipalização da saúde, quase que a totalidade dos municípios brasileiros se encontram enquadrados em algum tipo de gestão, são elas, a Gestão Plena de Atenção Básica e a Gestão Plena do Sistema Municipal, em síntese quer dizer que na primeira gestão, o município tem responsabilidade apenas sobre a rede de atenção básica, 20 enquanto que na segunda, o município gerencia todo o atendimento de saúde no âmbito do seu território (idem, p. 73). A “autonomia” dos municípios no setor traz grandes desafios aos gestores públicos locais, exigindo assim uma eficiência administrativa na questão de pessoal e recursos financeiros e também na oferta de serviços de alto custo, garantindo assim, o acesso aos serviços de saúde de maior complexidade (idem, p. 83). O SUS é um sistema formado por várias instituições públicas nos três níveis de governo (União, Estados e Municípios) e instituições privadas através de convênios e contratos, o setor privado tem que atender o usuário do SUS como se fosse um órgão público, ou seja, usar as mesmas normas do setor público. Conforme definido em sua criação, tem como características atender a todos, de acordo com as suas necessidades, independente se a pessoa contribua ou não para a Previdência Social. De acordo com a Lei deve atuar de forma integral, as ações de saúde devem estar direcionadas para o indivíduo e a comunidade, para a prevenção e para o tratamento. Suas ações têm que ser descentralizadas, o poder de decisão tem que ser daqueles que são responsáveis pela execução das ações, ou seja, as ações e serviços que atendem a população de um município devem ser municipais, e se alcançam vários municípios devem ser estaduais, e aquelas dirigidas em todo o país, federais. O SUS é regionalizado e hierarquizado, ou seja, os serviços de saúde devem apresentar de maneira regionalizada para atender a demanda de outros municípios, tendo um município pólo como referência. Dentro desta regionalização os serviços de saúde precisam obedecer a uma hierarquia, ou melhor, as questões mais simples devem ser atendidas através de unidades básicas de saúde, passando pelos centros especializados, pelo hospital até chegar ao hospital especializado no problema (IDEC, 2003, p. 14). A Lei Orgânica da Saúde (LOS) é o conjunto de duas leis, Lei 8080/90 e 8142/90, editadas para dar cumprimento a Constituição e disciplinar os assuntos no âmbito da saúde. Essas leis possuem diretrizes que devem ser seguidas nos três níveis de governo e destinam-se a esclarecer o papel das esferas de governo (União, Estados e Municípios) na proteção, promoção e defesa da saúde. No inciso III do artigo 5º da Lei 8080, de 19 de dezembro de 1990 diz que são objetivos do Sistema Único de Saúde: 21 “a assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, com a realização integrada das ações assistenciais e das atividades preventivas”. A Constituição Federal no seu artigo 197 usa a expressão relevância pública para qualificar as ações e os serviços de saúde, ao citar ser de relevância pública as ações e os serviços de saúde, pretendeu-se colocar a saúde numa mesma condição do direito à vida e a dignidade da pessoa, mas isso não quer dizer que outros serviços públicos não são de relevância, claro que são, porque todos os serviços prestados por órgãos públicos são relevantes, pois tem interferência direta na sociedade. O agente público na área da saúde, os serviços de saúde públicos ou privados estão inseridos num campo classificado como sendo de relevância pública, resultando em responsabilidades da sociedade e do Poder Público para com a saúde pública (SANTOS , 1997, p. 259). Como forma de regulação do Sistema Único de Saúde foi publicada a NOBSUS 01/93 que teve sua atualização realizada pela NOB-SUS 01/96 intitulada Gestão Plena com Responsabilidade pela Saúde do Cidadão (DIAS, 2002, p. 75). Conforme aponta Almeida, Castro & Vieira (1998, p. 41): As normas operacionais são instrumentos jurídico-institucionais formulados pelos gestores do SUS (Ministério da Saúde, secretarias estaduais e municipais da saúde) e publicados pelo Ministério da Saúde, após aprovação pela Comissão Intergestora Tripartite e pelo Conselho Nacional de Saúde, para aprofundar a implementação do SUS, definindo seus objetivos estratégicos, prioridades, diretrizes e movimentos tático-operacionais, normatizando, estabelecendo e definindo as relações entre seus gestores. A NOB 01/91 estabeleceu um sistema de compra de serviços públicos e também privados, mas esta norma não definiu as responsabilidades na gestão do sistema de saúde. Já a NOB-SUS 01/93 estabeleceu formas de gestão municipal e estadual que deram impulso à descentralização, criando transferências automáticas dos recursos do Fundo Nacional de Saúde para os Fundos Municipais de Saúde9, e cria também a 9 O Fundo Municipal de Saúde é o principal instrumento de canalização e gestão dos recursos financeiros no município. Permite maior autonomia na gestão dos recursos pela Secretaria Municipal de Saúde e sua fiscalização é exercida pelo Conselho Municipal de Saúde, Tribunal de Contas, Câmara de Vereadores, entre outros (COUTTOLENC & ZUCCHI, 1998, p. 107-108). 22 Comissão Intergestora Tripartite10 e as Comissões Intergestoras Bipartite11 em nível estadual, ambas com poder de decisão dentro do sistema de saúde (idem, p. 41). A NOB-SUS 01/96 permitiu estabelecer o princípio constitucional de comando único em cada esfera de governo (federal, estadual e municipal) e caracterizou as responsabilidades de cada nível de governo, definindo os municípios como principais gerenciadores do sistema de saúde. Sendo o município a base do sistema de saúde, os gestores das esferas federal e estadual precisam desempenhar um papel importante para auxiliar e promover as condições necessárias para que os municípios possam gerenciar seus sistemas municipais de saúde. Conforme determina a NOB-SUS 01/96 (apud DIAS, 2002, p. 8182) os Gestores Federal e Estadual necessitam desempenhar quatro papéis básicos. São eles: [...] o primeiro desses papéis é exercer a gestão do SUS, no âmbito estadual. O segundo papel é promover as condições e incentivar o poder municipal para que assuma a gestão da atenção a saúde de seus munícipes, [...]. O terceiro é assumir, em caráter transitório (o que não significa caráter complementar ou concorrente), a gestão da atenção à saúde daquelas populações pertencentes a municípios que ainda não tomaram para si esta responsabilidade. [...] Finalmente, o quarto, o mais importante e permanente papel do estado é ser o promotor da harmonização, da integração e da modernização dos sistemas municipais, compondo assim, o SUS-Estadual. [...] No que respeita ao gestor federal [...] exercer a gestão do SUS, no âmbito nacional; promover as condições e incentivar o gestor estadual com vistas ao desenvolvimento dos sistemas municipais, demo do a conformar o SUS-Estadual; fomentar a harmonização, a integração e a modernização dos sistemas estaduais compondo, assim, o SUSNacional; e exercer as funções de normalização e de coordenação no que se refere à gestão nacional do SUS [...]. Desta forma, o financiamento do SUS é de responsabilidade dos três níveis de governo e que cada um deve assegurar ao seu respectivo Fundo de Saúde os recursos necessários ao setor. Vale lembrar que o gestor municipal do SUS é o governo local e sua Secretaria de Saúde, os prestadores podem ser estatais, filantrópicos ou privados com 10 Tem a finalidade de formular e aprovar as diretrizes em âmbito nacional, buscando a operacionalização do sistema de saúde, foi criada em 1991 e tem sua formação paritária com a participação de membros do Conselho Nacional de Saúde, Secretários Municipais de Saúde, do Conselho Nacional de Secretários de Saúde e também de representantes do Ministério da saúde (MACHADO, 2003, p. 17). 11 A CIB é o órgão de articulação entre os níveis estadual e municipal de governo. É composta de forma paritária, integrada por representantes da Secretaria Estadual de Saúde, do Conselho Estadual de Secretários Municipais de Saúde (COSEMS) ou um órgão equivalente. Um dos representantes dos municípios é o Secretário de Saúde da capital (BRASIL, NORMA OPERACIONAL BÁSICA 01/96 apud DIAS, 2002). 23 fins lucrativos. A Programação Pactuada e Integrada (PPI) é o principal instrumento de pactuação entre os três níveis de gestão, nesta programação são incorporados os objetivos, metas, os recursos financeiros correspondentes, etc. A tabela do Sistema de Informação Ambulatorial do Sistema Único de Saúde (SIA-SUS) estabelece três tipos de procedimentos: o básico, o de média e alta complexidade e duas formas de repasse dos recursos financeiros, como apresentam Almeida, Castro & Vieira (1998, p. 42-43): Por transferência regular e automática fundo a fundo de recursos federais para os Estados e Municípios, com o estabelecimento do piso básico para as atividades de atenção à saúde, o Piso Ambulatorial Básico (PAB) [...] cria incentivos financeiros específicos para o PAB, para as atividades de vigilância sanitária, atividades de vigilância epidemiológica e ambiental, a Assistência Farmacêutica Básica, para o Programa de Saúde da Família (PSF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e para as atividades voltadas ao controle das carências nutricionais. [...] Remuneração por serviços produzidos, constituída dos valores correspondentes às Autorizações de Internação Hospitalar (AIHs), por meio do Sistema de Informações Hospitalares do SUS, e às Autorizações de Procedimentos de Alto custo/complexidade (APACs) por intermédio do Sistema de Informação Ambulatorial do SUS (SIA-SUS). Com relação ao PAB, esses recursos são destinados exclusivamente ao financiamento da atenção básica à saúde, esses valores são transferidos aos municípios de forma regular e automática direto do Fundo Nacional de Saúde ao Fundo Municipal de Saúde. Vale lembrar que a parte fixa do PAB é obtida a partir da multiplicação de um determinado valor per capita nacional pela população de cada município. Conforme aponta DIAS (2002, p. 109) as ações custeadas pelo PAB são: consultas médicas em especialidades básicas; atendimento odontológico básico [...]; atendimentos básicos por outros profissionais de nível superior; visita/atendimento ambulatorial e domiciliar por membros da equipe de saúde da família; vacinação; [...] atividades de planejamento familiar; [...] atividades dos agentes comunitários de saúde; [...] pronto atendimento em unidade básica de saúde. A NOB-SUS 01/96 prioriza a atenção básica ao dar ênfase ao PSF e ao PACS, percebe-se também neste sentido a divisão do SUS em dois, um hospitalar e o outro básico através de programas focalizados (BRAVO & MATOS, 2002, p. 209). Portanto, o cidadão é transformado em cliente e consumidor, o primeiro é objeto das políticas públicas, do mínimo para a saúde, já o segundo é o que busca o 24 acesso através dos serviços privados. Segundo BRAVO & MATOS (idem, p. 212-213) várias propostas têm sido levantadas em defesa da saúde conforme a seguir: Democratização do Estado e defesa do cidadão [...]; luta em defesa do Projeto da Reforma Sanitária; defesa da saúde, na perspectiva da seguridade social, como direito social do cidadão; [...] participação nas Conferências de Saúde; [...] realização de pesquisas e socialização das informações; [...] inserção dos Conselhos de Saúde, de forma crítica e participativa; estabelecimento de vínculos com os setores dominados e com a massa da população excluída; [...] luta pela garantia de recursos públicos para a seguridade social. O modelo inserido no SUS no que diz respeito à descentralização visa concentrar a autoridade no governo federal assim como o financiamento das políticas de saúde. A concentração do financiamento no governo federal indica claramente que as políticas de saúde dos governos locais são muito dependentes do Ministério da Saúde. Segundo MARQUES & ARRETCHE (2002, p. 7) a participação dos municípios nos serviços de atenção básica já era quase total, enquanto que no oferecimento de serviços hospitalares era bem reduzido. No período de 1995 a 2000 aumentou muito a participação dos municípios na oferta de serviços ambulatoriais, em 1995 eram em média 65% do total de atendimentos ambulatoriais no país, já em 2000 esta participação foi de 89%. Em 2000 os municípios já eram os maiores provedores dos serviços ambulatoriais, tendo em média 84% do total da capacidade instalada para o atendimento aos serviços de atenção básica. Uma grande parcela da população brasileira depende do SUS, que devido à insuficiência de recursos não consegue cumprir os princípios estabelecidos desde a sua criação, sendo assim, na prática ainda não garante a universalidade e a equidade (PEREIRA, 1998, p. 12). As diversas crises econômicas que o país atravessou têm afetado os programas sociais e como conseqüência uma diminuição dos recursos financeiros para a saúde. Segundo Pereira (1998) o governo federal ao dar importância à descentralização foi de encontro à uma moderna forma de gestão do Estado, valorizando assim a busca por resultados e tendo como foco principal o cidadão, e trazendo também uma valorização aos governos locais. 25 A reforma da saúde pretendida no governo Fernando Henrique Cardoso se baseou numa efetiva municipalização da saúde, dando ênfase ao fortalecimento do sistema de atenção básica, sendo assim a porta de entrada obrigatória na rede hospitalar. A estratégia desta reforma consistia em distribuir aos municípios os recursos do governo federal na proporção do seu número de habitantes, ao invés de ser na proporção dos hospitais e ambulatórios existentes nos municípios. Com isso seria possível ao gestor de saúde local e ao Conselho Municipal de Saúde assumir a responsabilidade pela saúde de seus cidadãos. Conforme relatado por Pereira (idem, p. 25) os pressupostos da reforma administrativa do SUS foram: A oferta de leitos hospitalares é hoje maior do que a demanda; esta oferta é constituída principalmente de hospitais particulares e filantrópicos e minoritariamente de hospitais estatais; o controle municipal desses fornecedores de serviços de saúde é muito mais efetivo do que o controle federal. Existem hoje no país cerca de 25 mil leitos hospitalares, mas os internamentos estão em torno de 13 mil. A antiga estratégia de montar de forma planejada um sistema de serviços hospitalares e ambulatoriais hierarquizados e regionalizados nunca funcionou, várias foram as tentativas, mas acabou esbarrando na falta de recursos por parte do Estado e na ineficiência estatal na administração dos serviços sociais. Pereira (idem, p. 26) aponta as idéias para o novo sistema: tetos físicos e financeiros de gastos em saúde (AIHs) distribuídos de acordo com a população do município e não com os hospitais existentes, após ampla negociação entre União, os estados e os municípios; maior responsabilização dos prefeitos e governadores pela saúde, prioridade para a medicina sanitária e preventiva; municipalização do controle dos hospitais, desde o seu credenciamento, até a aprovação das contas; prioridade na capacitação das prefeituras para desenvolver seus sistemas básicos de atendimento [...]; entrega do Cartão Municipal de Saúde para cada cidadão. Este novo sistema de controle do sistema de saúde, ao permitir a responsabilização dos prefeitos e dos secretários estaduais, tem como finalidade estabelecer uma parceria entre as três esferas de governo visando o financiamento da saúde. Desta forma, deixava clara a proposta de dar impulso à descentralização e transferir aos municípios à responsabilidade pela saúde de seus munícipes, mas não 26 deixando claro que tipo de descentralização seria implantada pelo governo federal, já que o Brasil é um país de grandes desigualdades regionais e consequentemente isso seria um obstáculo para a real implantação da municipalização da saúde. O fato de nascermos já nos dá uma série de prerrogativas sociais, direitos instranferíveis à habitação, à educação, à saúde, etc., a cidadania se constitui uma lei da sociedade e que evoluiu através dos tempos (alcance dos direitos trabalhistas, etc.). Desta maneira o Estado precisa se colocar como o maior provedor e defensor desses direitos. No caso específico do direito à saúde, as lutas históricas travadas ao longo das décadas exigiram do Estado o verdadeiro direito a saúde como princípio de cidadania, processo este que resultou na transformação do Sistema de Saúde Brasileiro. A palavra cidadão vem se afirmando desde as transformações históricas vindas da Europa com o fim do feudalismo, portanto, um processo em constante construção (SANTOS, M. 2000, p. 9). Essas conquistas foram além até se chegar as idéias atuais de sociedade civil, que clamam e que buscam seus direitos, as novas idéias políticas, as transformações sociais, os ideais socialistas buscando reconhecer o direito das massas, fazendo um papel dialético nessa transformação, contribuíram para se chegar a essa consciência mesmo não sendo uma consciência abrangente e de alcance. Nas palavras de Milton Santos (ibidem, p. 12): Mas há cidadania e cidadania. Nos países subdesenvolvidos de um modo geral há cidadãos de classes diversas, há os que são mais cidadãos, os que são menos cidadãos e os que nem mesmo ainda o são. Deste modo a saúde ainda não conseguiu atender o cidadão como realmente um cidadão, apesar dos avanços desde a criação do SUS, os princípios deste modelo ainda não foram conquistados como deveriam. As melhorias que dizem respeito ao SUS ficaram restritas em alguns aspectos no campo dos discursos, como por exemplo, o atendimento ao cidadão de acordo com as suas necessidades (princípio da equidade). Isto aconteceu no Governo Fernando Henrique Cardoso, a palavra de ordem foi descentralizar serviços, mas sem dar estrutura e apoio a essa iniciativa e sua conseqüente e real implantação em todo o país, a descentralização como forma de 27 melhoria no atendimento e na gestão do SUS vai se tornar apenas um mito, um desejo distante. Na gestão de José Serra no Ministério da Saúde, foram publicados muitos atos normativos que em certos momentos causavam dificuldades na sua interpretação e tratava muitas questões por igual, sendo base de contestações, por exemplo, tratar o Programa Saúde da Família no Amazonas como se fosse no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, etc., como se os problemas de saúde em todas as partes do país fossem iguais, sem obedecer a uma particularidade, inclusive no repasse de recursos. Discutir hoje o sistema de saúde brasileiro e os seus programas específicos nos direciona a refletir sobre a questão econômica e a preocupação do Estado em atender os interesses do capital, que seguem com suas políticas de ajustes e que tem conduzido para tantos problemas, entre eles o desemprego e a privatização das políticas públicas (TEIXEIRA, M., 2002, p. 238-239). Deste modo acaba permitindo que os blocos hegemônicos acumulem capital, concentrando a riqueza, enquanto que grande parte da massa trabalhadora é cada vez mais excluída e consequentemente doente. Vivemos no Brasil a ameaça de perda de direitos sociais, com a política de Reforma do Estado até então empregada, tentou até se tirar da Constituição da República a saúde como dever do Estado, deixando apenas no texto constitucional, a saúde como direito de todos, isso acabou demonstrando a opção político-ideológica do governo com o neoliberalismo (idem, p. 240). Essa proposta foi apresentada no governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso, mas não se concretizou, buscava a alteração do artigo 196 da Constituição da República que acabaria acrescentando no final da frase: A saúde é direito de todos e dever do Estado, a seguinte parte, “nos termos da lei”, (KUJAWA, VALDEVIR & BRUTSCHER, 2003, p. 55). Um dos grandes problemas do SUS que ainda permanece é com relação ao princípio da equidade que visa garantir os atendimentos e ações de saúde conforme a necessidade de uma dada parcela da população, desta maneira é um dever do Estado brasileiro implantar políticas públicas que respeitem e atendam as particularidades de cada região. Nos caminhos de construção do SUS, a questão político-institucional tem dado exclusividade ao financiamento e gestão, com isso, o que se tem visto é um 28 descaso com as questões referentes à assistência, ou seja, formas organizadas e eficientes no processo de prestação de serviços. Portanto, existem propostas para a construção de novos modelos assistenciais em conformidade e relação com os problemas de cada município, e que não tenham dificuldades do ponto de vista de recursos e capacidade técnica (TEIXEIRA, PAIM & VILASBÔAS, 2000, p. 49). A construção do SUS exige dos gestores (municipal, estadual e federal) uma busca na eficiência de aplicação de recursos financeiros, tecnológicos, humanos, etc. Portanto, cabe ao gestor aplicar os recursos para obter resultados significativos e melhores condições para a população que se utiliza dos serviços e ações de saúde, sem comprometer os recursos disponíveis e a qualidade dos serviços. Os setores privados na área da saúde exercem muita pressão sobre o setor público para que se aumente a contratação de serviços privados por parte do SUS, como conseqüência, os recursos que poderiam estar sendo usados para a melhoria (reformas de hospitais, contratação de recursos humanos, etc.) e eficiência do sistema público de saúde acabam enviados e favorecendo os setores privados de saúde no país (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 40). O SUS necessita se organizar de maneira que atenda às necessidades da população, para isso precisa se organizar em pequenas regiões e ter seu planejamento direcionado para esta população, com isso, é essencial que essas decisões sejam tomadas em nível local (princípio da descentralização). Ainda dentro de sua característica, conforme determinado em Lei, deve ser democrático e assegurar a participação de todos os segmentos envolvidos com a saúde (prestadores de serviços, trabalhadores da saúde, dirigentes institucionais e principalmente a participação da sociedade). O SUS tem que buscar a equidade (diferente de igualdade), ou seja, todas as pessoas têm direito ao atendimento conforme as suas necessidades, mas elas são diferentes, suas necessidades são diversas. Se o SUS oferecesse o mesmo atendimento para todos, em um município ou estado, estaria assim oferecendo serviços desnecessários para alguns (sendo os recursos mal aplicados), deixando de atender as necessidades de outros. O princípio da equidade significa que a rede de serviços de saúde deve estar atenta para as desigualdades existentes, com o objetivo de ajustar as 29 suas ações às necessidades de cada parcela da população (SANTA CATARINA, SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE, 2001, p. 07). Portanto, com o processo de implantação do SUS aparece um contraponto ao modelo que até então existia em termos de políticas de saúde, com isso, se pensou num modelo alternativo, contra a centralização, burocracia e o pensamento privatista no setor. Sendo assim, surge dentro deste novo contexto a questão da descentralização/municipalização, inserida como um instrumento viável para o uso e a redistribuição mais eficiente dos poucos recursos existentes e uma melhor oferta de serviços, com qualidade e eficiência para a população (BODSTEIN, 2000, p. 94). Se por um lado a descentralização passou a responsabilidade para estados e municípios, por outro, centralizou o seu poder de decisão e de repasses de recursos no setor ao governo federal. Esta centralização da política de saúde no que diz respeito aos recursos destinados à área da saúde trouxe conseqüências como a falta de racionalidade com relação aos recursos (falta de definição de prioridades); uma descentralização tutelada para estados e municípios (estados e municípios dependem do repasse de recursos do governo federal). Dentro deste contexto, também podemos citar o desrespeito para com os Conselhos de Saúde que apresentam suas propostas nas Conferências de Saúde e acabam esperando a implementação dessas propostas que acabam não saindo devido à falta de recursos. Diante disso, vários desafios precisam ser enfrentados, como por exemplo, fazer com que as três esferas de governo cumpram efetivamente a Emenda Constitucional Nº 29, uma redefinição do conceito de descentralização para as três esferas de governo e por último, dar importância e qualificar os sujeitos responsáveis pelo Controle Social no SUS. 4. Controle Social: As Conferências de Saúde como Instrumento de Participação na Elaboração das Políticas de Saúde Embora não sendo o tema principal deste trabalho, é importante buscar um pouco desse contexto de participação na construção do Sistema Único de Saúde. A busca pela participação popular se constitui numa luta de várias décadas. O Estado 30 ainda é capaz, com a sua estrutura, de garantir vários direitos sociais, mas ainda não é o bastante, já que a estrutura estatal como um todo não favorece o exercício da participação, ponto este fundamental (CALVEZ, 1997, p. 78). Este tema, participação, é objeto de vários estudos na Ciência Política. Conforme Gohn (2003, p. 13): Ele pode ser observado nas práticas cotidianas da sociedade civil, quer seja nos sindicatos, nos movimentos, quer em outras organizações sociais, assim como nos discursos e práticas das políticas estatais, [...]. Um ponto importante a ser lembrado após o Regime Militar foi o processo de elaboração da nova Constituição que buscou acabar com as injustiças sociais históricas no país. Com a descentralização do poder federal, o município foi reconhecido como um ente federativo possuidor de autonomia, transferindo assim algumas competências para o poder local, capazes de fortalecer a participação da sociedade através do exercício do controle social sobre as ações estatais (BRAVO, 2002, p. 44). Conforme ressalta Bravo (idem, p. 45), o termo “controle social” possui várias acepções: Historicamente, a categoria controle social foi entendida apenas como controle do Estado ou do empresariado sobre as massas. É nessa acepção que quase sempre o controle social é usado na Sociologia, ou seja, no seu sentido coercitivo sobre a população. Entretanto, o sentido do controle social inscrito na Constituição é o da participação da população na elaboração, implementação e fiscalização das políticas sociais. O controle social na saúde12 hoje é um direito adquirido, foi regulamentado através da Lei 8142/90 e garante este controle de duas formas: através dos Conselhos de Saúde e das Conferências de Saúde. É composto por usuários, gestores públicos da saúde, prestadores de serviços privados e trabalhadores da saúde, são espaços de muita tensão, já que diferentes interesses estão em disputa (idem, p. 47). Vale lembrar que as Conferências de Saúde realizadas em âmbito nacional, estadual e municipal devem ser entendidas como uma forma de direcionar as políticas públicas de saúde, mostrando assim a importância destas conferências para o aprimoramento do sistema. 12 Conforme apresenta Trindade (2003, p. 8) o “controle social é o efeito da ação da sociedade sobre o Estado em relação aos serviços públicos. Na área da saúde, fortalece o exercício da cidadania na busca pelo direito à atenção plena à saúde e tem como base os objetivos do SUS”. 31 No âmbito nacional as Conferências de Saúde já vem de muitas décadas, a primeira realizada em 1941 teve cerca de setenta participantes, já a famosa 8ª Conferência em 1986, teve a presença de mais de quatro mil pessoas. Ao longo das décadas elas se transformaram de acordo com o contexto político até se firmarem realmente como um importante fórum de discussões sobre as questões relacionadas à saúde (NORONHA, 2002, p. 11). Segundo Noronha (idem, p. 11) a Lei que criou as Conferências Nacionais de Saúde foi editada em 1937, no primeiro Governo Vargas, alguns meses antes ao golpe que implantou o Estado Novo, período este marcado pela forte intervenção do Estado, centralização do poder e falta de liberdade política. A Lei que criou as Conferências Nacionais determinava que estas se realizassem em dois em dois anos, mas a 2ª Conferência só ocorreu em 1950 e foi importante devido esta ter contribuído para a criação da legislação referente à higiene e segurança no trabalho e também à prestação de assistência médico-sanitária e preventiva para trabalhadores e gestantes (idem, p. 12). A 3ª Conferência realizada em 1963 (Governo João Goulart) segundo Hochman (apud NORONHA, p. 12, grifo meu) pode também ser considerada um marco na história das Conferências devido a dois motivos, primeiro porque esta Conferência foi realizada após a criação do Ministério da Saúde em 1953 e segundo, por representar a primeira proposta realmente efetiva de descentralização do setor. Já a 4ª Conferência que foi realizada no período do Regime Militar (1967) teve como tema central os recursos humanos e a necessidade de se identificar o perfil dos profissionais diante das demandas de saúde no país. Em 1975, ocorreu a 5ª Conferência, a primeira realizada na então capital do país, Brasília, foram discutidos vários temas, entre eles, o Sistema Nacional de Saúde. A 6ª Conferência que se realizou em 1977 teve como temas principais o controle das grandes endemias e a interiorização dos serviços de saúde. Em março de 1980 foi realizada a 7ª Conferência que tratou de vários assuntos, um deles, a regionalização e organização dos serviços de saúde nas Universidades Federais. No ano de 1986 é realizada a 8ª Conferência numa condição diferente das anteriores, pois foram estimuladas à realização das pré-conferências municipais e estaduais. Participaram mais de 4 mil pessoas que discutiram diretrizes gerais da 32 Política Nacional de Saúde e temas específicos, entre eles à descentralização. A 8ª Conferência ficou conhecida como a pré-Constituinte da Saúde (grifo meu). A 9ª Conferência Nacional de Saúde, que já deveria ter sido realizada anteriormente teve resistências do Governo Federal para a sua realização, mas apesar desta resistência ela foi realizada com o apoio do Ministério da Saúde e do Conselho Nacional de Saúde entre os dias 9 e 14 de agosto de 1992, e teve como tema “Saúde: A Municipalização é o Caminho” (grifo meu). A 10ª Conferência foi realizada em 1996 com o tema “SUS – Construindo um modelo de atenção à saúde para a qualidade de vida”, durante o período de sua realização o SUS passava por sérios problemas orçamentários. A 11ª Conferência realizada em 2000 tinha o seguinte tema, “Efetivando o SUS: acesso, qualidade e humanização na atenção à saúde com controle social”. Em 2003, entre os dias 7 e 11 de dezembro foi realizada a 12ª Conferência Nacional de Saúde com o tema “a saúde que temos e o SUS que queremos”. Conforme o seu Regimento foram nove os eixos temáticos: Direito à Saúde; Financiamento da Saúde; Seguridade Social e a Saúde; O Trabalho na Saúde; Intersetorialidade das Ações de Saúde; Ciência e Tecnologia e a Saúde; Gestão Participativa; As Três Esferas de Governo e a Construção do SUS. A Carta da 10ª Conferência Nacional de Saúde (BRASIL, RELATÓRIO FINAL, 1998, p.13) já trazia em seu conteúdo a preocupação com a crise da saúde no país, conforme o relato a seguir: A despeito dos avanços institucionais e democráticos, as condições sanitárias e as instituições de saúde continuam em grave crise no Brasil. No centro deste processo do setor saúde, encontramos a política econômica de cunho neoliberal implementada pelo governo federal e parte dos governos estaduais. Imposta por países e organismos internacionais e pela elite financeira nacional, [...] Sob o discurso da “modernização” estabelece-se, de fato, o “Estado Mínimo” para as políticas sociais e o “Estado Máximo“ para o grande capital financeiro nacional e internacional. [...] A nossa “modernização” e a nossa Reforma Administrativa e do Estado são outras: não abrem mão do controle da inflação, mas não abrem mão também, do avanço das políticas sociais de proteção pública da cidadania e da retomada do desenvolvimento sócio-econômico, de melhor distribuição da renda e do acesso universal a todos os serviços que garantem a qualidade de vida e bons níveis de saúde. 33 A saúde enquanto qualidade de vida está marcada pela capacidade do Estado de dar resposta às questões sociais através da implantação de suas políticas públicas, portanto, as questões relativas ao Estado Mínimo13 foram tema de discussão na 10ª Conferência Nacional de Saúde. Os participantes da 10ª Conferência reafirmaram/defenderam a Seguridade Social e suas áreas, Saúde, Previdência e Assistência Social como um direito universal e responsabilidade do Estado, conforme determinam os princípios constitucionais e também as diretrizes estabelecidas em quatro Conferências Nacionais de Saúde (3ª, 8ª, 9ª e 10ª Conferências Nacionais de Saúde). Uma das conquistas mais notáveis do Movimento pela Reforma Sanitária Brasileira foi a institucionalização dos órgãos colegiados dotados de poderes legais e onde os usuários do sistema têm o direito de ser representados (CARVALHO, 1997, p. 93). A efetiva descentralização dos serviços e da gestão e uma ampla instituição de Conselhos de Saúde em todo o país são lembrados com satisfação (idem, p. 94). O Controle Social está previsto na Constituição da República de 1988 conforme a redação do artigo 198 e do inciso III: Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: [...] III – participação da comunidade. Está regulamentado na Lei 8142, de 28 de dezembro de 1990 que: Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. A participação popular no SUS foi um item privilegiado na pauta da Reforma Sanitária e trilhou um longo caminho até alcançar a formação institucional dos Conselhos, e dentro desse processo procurou normatizar as relações entre Estado e sociedade (CARVALHO, 1997, p. 95). Deste modo, os Conselhos de Saúde podem ser analisados não como instrumentos de controle do Estado, mas como integrantes do 13 Nos países de economia dependente a opção ao Estado Mínimo, conseqüentemente a redução de gastos públicos, devido a crise fiscal, comprometeram em muito a saúde (PAIM & ALMEIDA FILHO, 2000, p. 13). 34 próprio Estado (idem, p. 99). Portanto, consistem num veto ao patrimonialismo típico do Estado brasileiro, conforme ressalta Carvalho (idem, p. 99): No lugar dos arranjos hierárquicos próprios do patrimonialismo, onde a política, destituída de alteridade, fundava-se na circulação não regulada de favores e lealdades, sob o império da razão e dos interesses privados, os Conselhos introduzem um padrão de racionalidade tecno-burocrática que, tipicamente, vem marcando a implantação do SUS. [...] representam a substituição das “influências políticas” por critérios técnicos, como mediação do processo decisório (tecnificação da política). Os Conselhos representam, assim, um processo potencialmente alternativo às práticas clientelistas, na medida em que “publicizam” e tecnificam o processamento das demandas no interior do Estado, [...] O debate sobre a Reforma do Estado foi além, não ficou apenas no âmbito do econômico, alcançou também o político, transformando o debate do papel do Estado na economia em um novo debate, o debate do papel do Estado na sociedade como um todo (idem, p. 100-101). Portanto, ganha importância uma melhor definição do que é interesse público, ou seja, aquilo que é de interesse de todos. Os Conselhos desta maneira podem ser vistos como estruturas voltadas para o interesse do coletivo, seu papel ou lugar no sistema seria o de definir aquilo que é de interesse da sociedade, tendo como principal característica estabelecer os direitos legais da sociedade perante o Estado. Nas palavras de Carvalho (idem, p. 104-105, grifo meu): [...] O interesse público, assim, não é dado previamente, e sim socialmente construído, num processo político de conflito e pactuação. [...] Fica, então claro que os Conselhos não governam, mas estabelecem os parâmetros do interesse público para o governo. Definem o que deve ser feito e verificam/avaliam o que foi feito [...] Segundo Carvalho (idem, p. 107), os Conselhos de Saúde não estariam necessitando mais normas ou aumentos de poder de decisão, mas estariam sim, precisando de mais política, envolvimento com a sociedade, já que o acesso à informação neste país não são privilégios de todos. Os Conselhos de Saúde como parte do Estado, mas independente do governo, tem importante papel no controle democrático do Estado. Esta multiplicação de Conselhos pode tornar mais flexível às decisões relacionadas com o interesse 35 público, assim como uma verdadeira efetivação das políticas públicas em vários setores. Todavia, os Conselhos de Saúde para alcançarem sua efetividade precisam adquirir uma consciência política e buscar aprofundar a discussão sobre os assuntos de interesse do cidadão e da saúde em seus respectivos municípios, e realmente assumir o seu papel de órgão fiscalizador das ações governamentais. Os Conselhos de Saúde têm um espaço privilegiado para desenvolverem sua atuação e tem como objetivos contribuir para a gestão do SUS em vários aspectos, por exemplo: contribuir para melhorar a situação de saúde da população e garantir os direitos do cidadão; definir prioridades para a promoção, proteção e recuperação da saúde; formular diretrizes para contribuir com o planejamento em saúde; receber dos órgãos gestores todas as informações necessárias no âmbito da saúde, etc. (BRASIL, CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE, 2002, p. 9-10). Quando o gestor deixa de assumir qualquer compromisso, cabe ao Conselho mobilizar a sociedade, as Instituições, o Poder Legislativo, O Ministério Público, visando assim o cumprimento de todas as obrigações por parte do gestor. A pouca clareza dentro dos Conselhos de Saúde é conseqüência de equívocos e conflitos, de um lado o gestor público com uma reação inicial contrária aos Conselhos, enxergando-os como corporativistas, partidaristas e por dificultarem a gestão, por outro lado os Conselhos com sua reação inicial de crítica direta aos gestores colocando-os como incompetentes, autoritários, etc. Mas isso parece estar mudando com a superação deste tipo de conflito, já que o compromisso com o bem público não poder ser monopólio de um ou de outro (BRASIL, CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE, 2002, p. 13). Por ser constituído por vários segmentos (usuários, prestadores de serviços, profissionais da saúde e governo) várias reivindicações aparecem vindas de cada segmento, sendo assim os Conselhos de Saúde se revelam pela soma de reivindicações de cada representação. Esta posição vem caracterizando os Conselhos como órgãos heterogêneos e de conflitos, mas ao mesmo tempo torna-o competente para negociar e resolver esses conflitos através de conquistas parciais para o aperfeiçoamento do SUS. Portanto, os Conselhos de Saúde se constituem num palco de disputas de projetos da sociedade, também é uma característica dos Conselhos serem ao mesmo tempo Sociedade e Estado. Mas essas disputas não podem trazer para dentro dos 36 Conselhos certos confrontos como por exemplo, de um partido político com outro partido político, do Estado com a sociedade, etc. (idem, p. 14). Sem uma clareza de suas funções, os Conselhos de Saúde ficam expostos às pressões de vários segmentos, da iniciativa privada, de uma entidade, do governo, etc. Neste sentido, a centralização é vista como um sistema antidemocrático, que possibilita a dominação política, mas também não há uma garantia de que a descentralização não implique em dominação, esta dominação de recursos e/ou política pode ser deslocada assim para níveis locais de administração. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Eurivaldo Sampaio de, CASTRO, Cláudio Gastão Junqueira de e VIEIRA, Carlos Alberto Lisboa. Distritos Sanitários: Concepção e Organização. São Paulo: Editora Fundação Peirópolis, 1998. ARRETCHE, Marta e RODRIGUEZ, Vicente. Descentralizar e Universalizar a Atenção à Saúde. In: ARRETCHE, Marta e RODRIGUEZ, Vicente (orgs.). Descentralização das Políticas Sociais no Brasil. São Paulo: FUNDAP/FAPESP/IPEA, 1999. ARRETCHE, Marta. 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