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Lei 8.072/90: Legisla? Irracional
1.Introdução
Embora já se tenham passado 14 anos da edição da Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos), a discussão em torno de seus dispositivos permanece
atual, simplesmente porque muitos deles ferem imposições constitucionais, o que o legislador estava terminantemente proibido de fazer e porque
mesmo assim, alguns Magistrados permanecem sendo mera “boca repetidora” do que esta lei deformada/deformadora prevê.
Não obstante tal aspecto (diga-se de passagem, o mais relevante), a referida lei traz em seu âmago outros problemas que não vêm sendo
enfrentados pelos operadores do Direito Penal e Processual Penal, que, regra geral, limitam-se a debater a constitucionalidade da Lei 8.072/90.
O objetivo do presente artigo, embora inevitavelmente sejamos levados a falar em princípios constitucionais, é fazer uma abordagem baseada na
pequena experiência obtida através do contato do acadêmico com a Justiça Criminal. Um contato ainda singelo, mas de onde algumas conclusões
podem ser retiradas.
2.Uma lei hedionda
Um dos primeiros pontos de discussão é a forma de definição de quais deveriam ser os crimes considerados hediondos. Deveria haver taxatividade
da lei sobre os tipos penais hediondos, tal definição ficaria a critério do Magistrado ou haveria um sistema misto, com previsão de alguns crimes e
com possibilidade de inclusão de outros, de acordo com certas circunstâncias???
A adoção do critério legal (previsão taxativa da lei) para definição de quais seriam os crimes hediondos foi, em nosso entendimento, a melhor opção,
inclusive pelo caráter repressivo da lei. Melhor que exista disposição expressa de quais são os crimes que ensejam tratamento tão severo do que
fique a sorte do processado ao bel prazer do Juiz, que dependendo do caso concreto poderia aderir o rótulo “hediondo” ao crime praticado. E embora
o critério legal não permita que se desqualifique um crime de “hediondo”, também impossibilita a arbitrariedade, o que já é um grande avanço,
principalmente por se tratar de Processo Penal.
Por outro lado, seguido deste acerto veio, já no art.1° inciso I, o primeiro equívoco: a inclusão de todas as formas de homicídio qualificado no rol dos
hediondos.
E nesse ponto, deve-se fazer a ressalva de que o próprio Código Penal prevê diversas circunstâncias que qualificam o homicídio, de forma que
dificilmente um homicídio será considerado simples, principalmente pelos incisos II, III e IV do art.121.
E uma breve incursão no Código Penal se faz necessária.
No inciso II, qualifica-se o homicídio pelo motivo fútil. É difícil encontrar um motivo que não seja fútil se comparado com a importância da vida de um
ser humano. A noção de futilidade se dá de forma subjetiva. E muitas vezes é tênue a linha que separa o motivo fútil do motivo relevante.
No inciso III, entre outras formas, está o emprego de “outro meio insidioso ou cruel”. Cumpre aqui lembrar que o homicídio doloso é crime de
competência do Tribunal do Júri, onde normalmente, o Conselho de Sentença é composto por cidadãos sem formação jurídica[1].
A crueldade exigida pelo tipo penal não é a idéia de crueldade que a maioria das pessoas possuem e sim uma noção jurídica.
De um senso comum aos seres humanos, o que é compreensível, disparar várias vezes contra uma pessoa, desferir várias facadas, ou matar com
socos e chutes é uma crueldade. Entretanto, muitas vezes, esse é “apenas” o meio necessário para que se alcance o resultado fatal. E parece-nos
que a intenção do dispositivo é punir com maior severidade aqueles que infligem um sofrimento desnecessário à vítima, extrapolando o necessário
para que a morte seja alcançada.
E no inciso IV, ainda qualifica o homicídio o uso de “outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido”. Pergunta-se então: Que
possibilidade de defesa possui um homem desarmado contra outro que investe contra ele disparando uma arma de fogo? Uma pessoa idosa contra
um jovem portando uma faca? Provavelmente nenhuma. Mas aqui, parece-nos também que a intenção não é esta, e sim de punir com maior
severidade aquele que usa um meio semelhante aos outros elencados no mesmo inciso (traição, emboscada e dissimulação). Bem observa Cezar
Roberto Bitencourt[2] que exemplo disto é a “surpresa”, que efetivamente dificulta a defesa, ou em muitos casos a torna impossível.
Pelo acima exposto (muitas vezes pela errônea interpretação dos incisos do art.121 do CP pelos operadores do direito), poucos são os casos em que
é reconhecido um homicídio simples.
Mas voltemos ao objeto do presente estudo então para aplicação prática do acima exposto.
O homicídio simples possui apenamento de 6 a 20 anos de reclusão e a ele não se aplicam as disposições da Lei 8.072/90 (exceto quando cometido
em atividade típica de grupo de extermínio[3]). O condenado possui, portanto, direito à progressão de regime com 1/6 da pena cumprida e ao
livramento condicional com 1/3 e pode inclusive começar o cumprimento da pena no regime semi-aberto.
O homicídio qualificado possui apenamento de 12 a 30 anos de reclusão e a ele se aplicam as disposições da Lei dos Crimes Hediondos. Não há
progressão de regime carcerário (regime integralmente fechado[4]) e o livramento condicional só pode se dar (para os não reincidentes em crimes
hediondos) com 2/3 da pena cumprida.
Consideremos então que dois indivíduos recebam o apenamento mínimo, sendo que um dos homicídios foi simples e o outro qualificado. O primeiro,
poderá iniciar o cumprimento em regime semi-aberto, ou na pior das hipóteses, se condenado ao regime fechado, com 1 ano de pena cumprida
passará ao semi-aberto. O segundo ficará trancafiado em uma penitenciária por no mínimo 8 anos (2/3), até ter direito ao livramento condicional[5].
Óbvio que estes prazos serão diferentes em ambos os casos se o apenado trabalhar, pois terá direito à remição.
A desproporção criada pela Lei dos Crimes Hediondos é evidente e desnecessária, uma vez que já bastaria o aumento das penas mínima e máxima
do homicídio qualificado (se a intenção era uma maior repressão). O sistema penal e processual penal, que já era cheio de lacunas e desproporções,
piorou ainda mais, uma vez que, para Promotores de Justiça fica a impressão de que há impunidade no homicídio simples e para Advogados de
Defesa, excesso de punição no homicídio qualificado[6]. Veja-se, pois, o reflexo de ser o crime enquadrado como hediondo ou não.
No art 2°, inciso II, da Lei 8.072/90 está a vedação da liberdade provisória para acusados de crime hediondo.
Além de ser dispositivo flagrantemente inconstitucional, uma vez que atinge o estado de inocência[7] do réu sem o devido processo legal, obriga o
preso em flagrante a responder o processo preso, sem que haja necessidade (por parte do Magistrado) de fundamentar a necessidade cautelar da
prisão[8], mencionando apenas que a lei não admite liberdade provisória. Sabe-se que toda a prisão antes do trânsito em julgado da sentença é
medida excepcional, e nenhuma lei pode presumir a culpa de um autor em virtude da espécie de delito de que é acusado[9].
Nunca é demais lembrar que esta vedação da lei permite alguns abusos. Um cidadão é preso em flagrante, e a capitulação inicial dada ao fato pela
autoridade policial onde for levado é que será a informação que disporá o juiz para recolher o mesmo à prisão. Na denúncia, o Promotor de Justiça é
quem irá capitular primeiramente o fato. Se a capitulação unilateral do fato apontar um crime hediondo (embora esta análise se dê em caráter
superficial, apenas com as informações do inquérito policial[10]), a prisão será mantida até a sentença.
Pode parecer despicienda de interesse tal discussão, mas na prática, o que parece aos olhos de quem “enquadra” o fato (no primeiro momento) uma
tentativa de homicídio qualificado, pode se revelar uma legítima defesa[11]. Ou ainda o que acontece freqüentemente: o que parece droga para
tráfico (e aí há incidência da Lei 8.072/90) revela-se droga para consumo (onde não há vedação de liberdade provisória)[12].
Não se está aqui a defender liberdade provisória para todos os processados por (em tese) crimes hediondos. O que se critica é a vedação expressa
da lei à liberdade provisória. Se no caso concreto houver motivo para a segregação cautelar (tutela da prova ou do resultado do processo), que seja
preso o réu. Mas indiscriminadamente recolher à prisão os processados por crimes hediondos é um absurdo.
O § 1° do art.2° prevê:
“A pena por crime previsto neste artigo será cumprida integralmente em regime fechado”
Cumpre lembrar, de antemão, que os crimes previstos “neste artigo” são os hediondos, a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas
afins e o terrorismo.
Este dispositivo legal inegavelmente fere o princípio da individualização da pena, pois não leva em conta o mérito do condenado durante a execução
da reprimenda. Mas esta é uma critica já corriqueira (e totalmente procedente). Existe um outro aspecto não pode ser esquecido: as consequências
de tal previsão para a própria sociedade.
Leis como a sob comento são, regra geral, influenciadas por uma pretensa defesa social. Assim, apena-se de forma mais rigorosa o criminoso para
se “proteger” a sociedade do tal “bandido”. Só que neste caso parece que “o tiro saiu pela culatra”. E explicamos o motivo.
A lei não permite a progressão de regime, verdadeira pedra fundamental da execução penal. Através da progressão, o apenado vai, lentamente,
desenvolvendo seu senso de responsabilidade, seja pelas saídas temporárias (passando alguns dias com seus familiares, sem vigilância do Estado),
seja pelo serviço externo. É a melhor forma de readaptação, um incentivo e um objetivo a ser buscado durante o cumprimento da pena. Não há
dúvidas de que o gradativo alcance da liberdade, de acordo com o mérito do apenado, seja o melhor caminho, tanto para o preso quanto para a
comunidade. Mas a lei veda a progressão. E permite o livramento condicional!!!
Ou seja: o apenado passa direto da primeira fase da execução penal (regime fechado) para a última (livramento condicional), sem que tenha
oportunidade de exercitar sua capacidade de ser livre de forma gradual. Atropela-se o regime semi-aberto, onde é possível ao Estado perceber a
evolução (ou não) do apenado sem lhe restituir totalmente a liberdade. E entrega-se de volta ao convívio social um indivíduo que esteve durante anos
a fio em uma penitenciária, que durante muito tempo sequer colocou seus pés fora daqueles muros.
Pergunta-se: é esta a lei que pretende proteger a sociedade??? Quando os operadores do direito penal compreenderão que a proteção da sociedade
passa necessariamente pela oportunidade de recuperação/ressocialização[13] (leia-se educação) do apenado??? Quanto mais tempo recluso, mais
nocivos os efeitos sobre a personalidade e o status social/econômico do preso.
Consideremos um indivíduo condenado por latrocínio à pena mínima (20 anos de reclusão) e que não trabalhe na penitenciária. Passará quase 14
anos trancado no presídio e ao final deste tempo, voltará direto para a sociedade (a excluída, óbvio), talvez agora já sem família, amigos e
oportunidades. De que adianta o exagero repressivo???
Aí está o desserviço prestado à sociedade (pretensamente defendida) por esta disposição irracional.
Diz o § 2° do art.2°:
“Em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade”.
Com este parágrafo, inverte-se totalmente a lógica do processo penal, fazendo parecer que se o Juiz decidir pela segregação cautelar do réu
condenado em primeira instância, não precisará fundamentar. Mas não nos esqueçamos: para que se decrete alguma prisão de natureza processual
é necessário que haja um dos motivos que ensejariam a decretação da prisão preventiva. Caso contrário, obrigaria o réu a se recolher à prisão, para
recorrer de uma decisão que considerou injusta. Outra aberração.
3.Conclusão
Outras críticas poderiam ser feitas à Lei 8.072/90, como o dilatado prazo de prisão temporária, o contexto histórico de sua edição...
Entretanto a intenção não era de esgotar o assunto, e sim demonstrar alguns reflexos práticos que esta infeliz lei ordinária trouxe para o direito penal,
para o processo penal e por conseguinte para todos nós, cidadãos.
Temos certeza de que o tema ainda ensejará muitos debates (salutares, por sinal), entre os que defendem as disposições desta lei e os que a
combatem.
Acreditamos que o Direito Penal se faz necessário como último recurso para os desvios do ser humano, mas deve ser usado de forma cautelosa, não
podendo ser um instrumento de terror e de abuso.
Certo é que a Lei dos Crimes Hediondos reflete um movimento de política criminal repressivo e punitivo, que agride os direitos do sujeito passivo de
forma desmesurada, mas que de forma alguma protege a comunidade.
Chega de irracionalidade.
A lei que não protege o cidadão inocente, não protege a sociedade, pois esta nada mais é do que a soma de todos os cidadãos.
Notas:
[1] O que é efetivamente o correto. Aos que entendem que uma qualificação técnica do jurado seria necessária, lembramos que, desta forma, razão
nenhuma haveria para a existência do Tribunal do Júri. Bastaria que o Juiz de Direito julgasse os crimes dolosos contra a vida. É certo que o instituto
necessita de aperfeiçoamento, seja no recrutamento dos jurados (que de forma alguma representam a sociedade em geral), seja na quesitação (onde
muitos termos jurídicos são empregados), seja na forma de verificar as razões do voto do jurado (o que poderia atingir a garantia constitucional do
sigilo das votações). Estes são temas que ultrapassam os limites deste trabalho. [2] CÓDIGO PENAL COMENTADO, Editora Saraiva, São Paulo,
2002. [3] Outra irracionalidade porque invariavelmente a atividade do grupo de extermínio usará meio que impossibilite ou dificulte a defesa da(s)
vítima(s), ou realizará suas empreitadas criminosas por motivo fútil, e neste caso o homicídio não será mais simples. [4] Se o legislador ordinário
pretendia ser mais severo com condenados por esta espécie de crime, que previsse uma progressão diferenciada, talvez possibilitando a progressão,
por exemplo, com 1/3, 1/2, 3/5 da pena cumprida. Mas vedar totalmente a progressão foi um equívoco grave, que atinge a própria sociedade, como
adiante se demonstrará. [5] No momento oportuno apontaremos o inconveniente desta situação para a própria sociedade, pretensamente
“defendida” pela Lei 8.072/90. [6] Deve-se deixar claro que acreditamos que quanto maior o tempo de reclusão, piores as conseqüências para o
apenado e para a própria comunidade onde será ele inserido após o cumprimento da pena-prisão. Poderiam então aqueles que defendem o aumento
da pena (maior castigo) lutar por uma forma de execução que trouxesse algum aprendizado positivo para o que futuramente regressará à sociedade.
A pena puramente retributiva tem que, necessariamente passar a ser também educativa. Enquanto se acreditar que o mais importante é o quantum
da pena, a retórica da ressocialização será um discurso hipócrita. [7] O Desembargador Aramis Nassif, da 5a. Câmara Criminal do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, em palestra proferida no dia 25 de maio de 2004, na cidade do Rio Grande, afirmou que não existe presunção de
inocência e sim estado de inocência. Não é uma mera presunção, e sim um estado que dura até o trânsito em julgado de eventual sentença
condenatória. [8] Não aceitamos a prisão preventiva para garantia da ordem pública/econômica. Primeiro porque não se destina à tutela do
processo. Segundo porque o conceito de ordem pública é impreciso e inverificável. Terceiro porque quando o fundamento é de que “através da
segregação se evita que o réu em liberdade cometa outros delitos” faz-se uma dupla presunção. A de que cometeu o delito pelo qual é processado e
de que em liberdade voltará a delinqüir, o que é inaceitável. Quarto porque não compete ao Juiz fazer segurança pública. Assim, prisão preventiva só
se admite por conveniência da instrução criminal (em face de prejuízo na colheita de provas por atitudes do réu) e para assegurar a aplicação da lei
penal (através de fortes indícios de que o réu pretende se esconder ou se evadir). [9] Os Promotores de Justiça já descobriram a forma de fazer um
réu acusado de crime hediondo (não preso em flagrante) responder à acusação preso: pedem a prisão preventiva porque “o crime é grave, hediondo
e abala a ordem pública”. E infelizmente, alguns Magistrados acolhem estas razões. [10] Peça inquisitiva, informativa ao Ministério Público, onde não
há produção de prova. Prova é a produzida no processo penal, perante Juiz de Direito, com contraditório e ampla defesa. [11] Na comarca de Rio
Grande-RS, tivemos a oportunidade de acompanhar processo (n°2300756262) onde aconteceu exatamente isto. Ao final, no Tribunal do Júri, foi
acolhida a legítima defesa de um cidadão acusado de homicídio qualificado pelo motivo fútil e pelo recurso que dificultou ou impossibilitou a defesa
da vítima. Foi posto em liberdade após 8 meses encarcerado. [12] Neste caso, geralmente, quando sai sentença condenatória por infração ao art.16
da Lei 6.368/76, constatando-se que a droga era para consumo, o condenado é posto em liberdade porque já cumpriu a pena, infelizmente na forma
de prisão cautelar. [13] Como já disse algum jurista, cujo nome não lembramos: “pretende-se ressocializar alguém que sequer foi socializado, no
ambiente mais dessocializante possível?”. Sem reparos.
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