Universidade do Estado do Rio de Janeiro Instituto de Psicologia Programa de Pós-graduação em Psicanálise Daniela Costa Bursztyn A política do sintoma e a construção do caso clínico: modos de transmissão da psicanálise na prática coletiva em saúde mental Rio de Janeiro 2012 Daniela Costa Bursztyn A política do sintoma e a construção do caso clínico: modos de transmissão da psicanálise na prática coletiva em saúde mental Tese de doutorado apresentada, como requisito parcial para obtenção do Título de Doutor, ao Programa de PósGraduação em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Pesquisa em Psicanálise. Orientadora: Profa. Dra. Ana Cristina da Costa Figueiredo Rio de Janeiro 2012 Daniela Costa Bursztyn A política do sintoma e a construção do caso clínico: modos de transmissão da psicanálise na prática coletiva em saúde mental Tese de doutorado apresentada, como requisito parcial para obtenção do Título de Doutor, ao Programa de PósGraduação em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Pesquisa em Psicanálise. Aprovado em: ____________________________________________________ Banca Examinadora: ____________________________________ Profa. Dra. Ana Cristina da Costa Figueiredo (Orientadora) ____________________________________ Prof. Dr. Antônio Márcio Ribeiro Teixeira ____________________________________ Prof. Dr. Luciano da Fonseca Elia ____________________________________ Prof. Dr. Marcus André Vieira ____________________________________ Profa. Dra. Nuria Malajovich Muñoz Rio de Janeiro 2012 DEDICATÓRIA Amar o perdido deixa confundido este coração. Nada pode o olvido contra o sem sentido apelo do Não. As coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão. Mas as coisas findas muito mais que lindas, essas ficarão. Memória, de Carlos Drummond de Andrade. Ao mestre, parceiro e amigo Carlo Viganò, minhas melhores e mais recentes memórias. AGRADECIMENTOS À Ana Cristina Figueiredo, por acompanhar os desafios e estimular as conquistas que atravessaram o percurso desta pesquisa. Ao Luciano Elia, pelas contribuições que marcaram minha trajetória desde o mestrado e que enriquecem o debate clínico e político no campo da saúde mental. Ao Marcus André Vieira, pela aposta no trabalho e pela parceria acolhedora que muito fez avançar esta pesquisa. Ao Antônio Teixeira, pela oportunidade de interlocução e pela gentil colaboração para a continuidade de meus estudos. À Nuria Malajovich, por ter acolhido carinhosamente o convite para a banca, pela riqueza de suas observações e incentivos. Ao amigo e parceiro na pesquisa Wagner Erlange, pela amizade e disponibilidade generosa, sem a qual não poderia prosseguir nesta experiência. À Patrícia Matos e à equipe do CAPS João Ferreira Filho, pela oportunidade de desenvolvimento metodológico desta pesquisa. À Waleska Floresta, gerente da Clínica da Família Rodrigo Yamawaki Aguilar Roig e aos profissionais da equipe Itararé, pelas contribuições valiosas. Ao querido Ivan, companheiro em todos os momentos, entre tantos desafios e conquistas... viramos essa página juntos! À Pilar Belmonte, pelo suporte fundamental neste percurso, pela seriedade e pelo entusiasmo que contagiam o cotidiano do trabalho com sua equipe. Muito obrigada pela confiança, sempre tão afetuosa! À cara Estrella Bohadana pela beleza de suas contribuições no diálogo entre a filosofia e a psicanálise, pelo carinho e pela generosidade de sua leitura atenciosa. Às queridas amigas Cristina Frederico e Andréa Vilanova, por caminharem ao meu lado em todas as etapas desta trajetória. Ao Domenico Cosenza, por enriquecer o meu soggiorno in Italia e mantê-lo ainda aberto para novas trocas de experiências. Aos amigos de doutorado Ana Paola Frare, Joseane Garcia, Luciana Del Nero, Richard Couto e Mariana Abreu, pelo apoio fundamental e pelos alegres momentos de aprendizado e de diversão. Ao amigo mineiro Alexandre Costa Val, pelas aventuras milanesas e pela interlocução preciosa sobre o tema da pesquisa. Aos meus colegas e parceiros da coordenação de saúde mental Alex Ramalho, Daniela Albrecht, Luis Granato e Sandra Arôca, pelas delicadas e dedicadas contribuições, pelos momentos de alegria e de esperança. Às amigas Marisa Mello e Paula Gaudenzi, pelo apoio carinhoso nos momentos difíceis desse processo, pelas risadas e pelo companheirismo na leitura da tese. Aos amigos Bruna Americano, Edimilson Duarte, Renata Estrella, Flávio Bastos e Pedro Moacyr, pela troca de idéias e experiências e por acompanharem a reta final desse percurso, sempre na torcida pela comemoração de sua conclusão. À minha família, por compreenderem minhas ausências, por acreditarem no meu empenho e pelo apoio imprescindível em cada conquista. RESUMO Esta pesquisa apresenta o tema da transmissão da política analítica do sintoma e sua relevância no atual cenário das pesquisas e métodos clínicos que se aplicam ao campo da saúde mental. O tema é discutido com base na aplicação do método da Construção do Caso Clínico explorado como um instrumento de avaliação da condução clínica de uma equipe que inclui a singularidade do sintoma na leitura coletiva dos casos. A construção do caso é apresentada como um método de pesquisa clínica em psicanálise que permite acompanhar e avaliar um processo de tratamento a partir da formalização de elementos extraídos das narrativas e dos registros de casos acompanhados nos serviços de saúde mental. A discussão diagnóstica, a expressão singular dos sintomas, a relação transferencial, as demandas e os diversos momentos de um tratamento são elementos metodológicos da construção do caso que orientam o trabalho em equipe. A partir desses elementos é possível extrair uma lógica singular do sintoma em cada caso, sendo este um modo de contribuição da psicanálise na prática coletiva. Nessa perspectiva, o método da Construção do Caso Clínico favorece a transmissão da política da psicanálise e seus princípios clínicos ao campo da saúde mental. Palavras-chave: Psicanálise. Sintoma. Construção do Caso Clinico. Saúde Mental. ABSTRACT This research concerns the theme of transmission of psychoanalytic symptom policy and its relevance to the current scenario of research and clinical methods that apply to mental health services. Our discussion relies on the method of 'Clinical Case Construction', that we use as a tool for assessing the clinical procedure of a team in such a way that the singularity of the symptom in the collective reading of the cases is included. The Case Construction is presented as a method of clinical research in psychoanalysis which allows one to conduct and evaluate a treatment process based on the formalization of elements extracted from the narratives and written records of cases followed in the institutional practice. The diagnostic discussion, the singular expression of symptoms, the transference process, the demands and the various moments of a treatment, are elements for the case construction which guide the teamwork. From these elements it is possible to extract a singular logic of the symptom in each case, thus showing how psychoanalysis may contribute to the collective work. In this context the method of Clinical Case Construction facilitates the transmission of psychoanalytic policy and its clinical principles to mental health services. Keywords: Psychoanalysis. Symptom. Case Construction. Mental Health. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 01 CAPÍTULO 1. A especificidade clínica e política da ação do psicanalista................... 09 1.1. A clínica do sintoma e a política da psicanálise ........................................................... 11 1.2. Construções em análise ................................................................................................ 38 CAPÍTULO 2. A metodologia da Construção do Caso Clínico .................................... 60 2.1. A construção do caso clínico como metodologia de avaliação e pesquisa clínica ....... 63 2.2. A construção do caso clínico e a transmissão da psicanálise ....................................... 87 2.3. A construção do caso clínico como metodologia de pesquisa na Saúde Mental ........ 104 CAPÍTULO 3. A metodologia da Construção do Caso Clínico aplicada à prática coletiva em Saúde Mental ............... 122 3.1. As etapas de aplicação da metodologia da Construção do Caso Clínico ................... 123 3.2. As escrituras clínicas da construção do caso .............................................................. 133 3.3. Considerações sobre a aplicação metodológica da Construção do Caso Clínico ....... 146 CONCLUSÃO ................................................................................................................. 155 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 165 APÊNDICES ................................................................................................................... 172 INTRODUÇÃO “Voltar quase sempre é partir para um outro lugar”. Paulinho da Viola Com a frase do sambista e poeta, introduzimos o relato desta experiência de pesquisa, marcado por um movimento dialético, no qual um ponto de partida se reconstrói a cada ponto de chegada, abrindo novas e constantes direções e possibilidades de encontros. Assim se inicia o percurso acadêmico de doutorado, partindo do interesse em investigar a especificidade da ação clínica e política de psicanalistas que atuam no campo da saúde mental. Após concluir o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), com a defesa da dissertação sobre o tratamento de sujeitos histéricos nas instituições psiquiátricas e nos novos serviços de saúde mental, um novo caminho se abriu para o retorno à universidade. As consequências extraídas da pesquisa de mestrado apontavam para a eficácia do método e da ética psicanalítica para o tratamento de sujeitos histéricos, que hoje podem ser apartados das discussões diagnósticas desenvolvidas nas instituições públicas de saúde. Foi, então, a partir do ponto de chegada de um percurso realizado em torno da temática do tratamento da histeria nos serviços de saúde mental que pude retornar ao mesmo Programa de Pós-Graduação em Psicanálise, mas, desta vez, partindo para um outro lugar de investigação teórico-clínica, onde os parâmetros e modos de ação do psicanalista poderiam estar mais claramente identificados em sua especificidade na prática coletiva da atenção psicossocial. A experiência obtida no mestrado indicava o engajamento de psicanalistas no campo da saúde mental como fortalecedor de uma discussão contínua sobre uma prática clínica que sustenta a concepção do sintoma como algo que detém um sentido vinculado à experiência de cada caso, e não apenas aos signos classificatórios do saber médico. Nessa observação se apoiava a consideração da especificidade da prática analítica nas instituições ao sustentar a produção sintomática como expressão própria de cada sujeito, contribuindo, com efeito, com os campos da psiquiatria e da saúde mental por meio da discussão dos fenômenos psicopatológicos, da função dos diagnósticos no tratamento e das ofertas terapêuticas dos dispositivos da atenção psicossocial. 1 Incluída na categoria das psicoterapias, a especificidade ética e metodológica da psicanálise a diferencia de outras orientações clínicas empregadas nas instituições públicas. A referência aos princípios da teoria freudiana sobre a formação dos sintomas e aos avanços da teoria lacaniana sobre a relação que cada sujeito estabelece com seu sintoma deve, então, ser considerada como uma orientação fundamental para nortear a prática dos psicanalistas no trabalho que realizam junto aos outros profissionais nas instituições. Diferenciar a especificidade do dispositivo analítico é, sobretudo, um modo de preservar a interlocução com outros profissionais e de contribuir na condução dos casos assistidos no cotidiano das instituições. No entanto, não é uma tarefa simples a de identificar como a clínica psicanalítica opera com o sintoma na prática institucional. Partindo dessas indagações, iniciei o curso de doutorado no ano de 2008, apresentando como projeto de pesquisa o tema da clínica analítica do sintoma em sua especificidade na prática institucional. Como proposta de trabalho, a investigação sobre tratamento do sintoma foi privilegiada pela indicação do modo como a operação clínica da psicanálise, diferenciada das demais abordagens terapêuticas, marca sua contribuição ao sustentar sua referência à singularidade do sintoma. Entendia-se, com essa proposta, que a especificidade da ação do psicanalista na prática institucional não se caracterizava apenas pela oferta de tratamento psíquico capaz de acolher o sintoma como uma expressão subjetiva, mas, também, pela transmissão dessa orientação clínica no trabalho com as equipes que se ocupam dos casos nos serviços de saúde mental. Nesse caminho, prossegui no estudo dos conceitos da teoria psicanalítica sobre o estatuto do sintoma com o suporte das disciplinas do curso de doutorado, até encontrar, ainda no primeiro ano de doutoramento, uma nova direção para abordar a temática pesquisada: a da política da psicanálise. No segundo semestre de 2008, um reencontro com meus interesses de pesquisa foi conduzido pela discussão apresentada por Marcus André Vieira, no Seminário A política do sintoma, realizado na Escola Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro. Voltar ao tema da especificidade da clínica analítica do sintoma exigia, nesse momento, partir para um novo caminho guiado pela proposição política da psicanálise, cuja orientação clínica inclui a dimensão do real do gozo na experiência clínica. Essa foi, então, a perspectiva traçada para avançar no tema da clínica analítica do sintoma, retomada, a partir daí, em seu viés político de transmissão da orientação da psicanálise frente à política do mundo globalizado, que exclui o real em jogo no tratamento do sintoma para aprisioná-lo na universalização das classes e comunidades identitárias que resultam dos manuais diagnósticos da psiquiatria. 2 No ano seguinte, essa proposta de pesquisa partiu para uma experiência de estágio de doutoramento no exterior. Esse estudo passou a se desenvolver na cidade de Milão (Itália), no período de março de 2009 a janeiro de 2010, sob a orientação da professora Ana Cristina Figueiredo e a co-orientação do psiquiatra e psicanalista Carlo Viganò, por meio da autorização de intercâmbio acadêmico entre a Universidade Estadual do Rio de Janeiro e a Università degli Studi di Milano. O desenvolvimento dessa pesquisa, na Itália, trouxe consequências decisivas para o seu seguimento, a começar pela observação in loco do modelo italiano de assistência 1 , que marcou as políticas públicas de saúde mental do Brasil. Tomando como referência a articulação da psicanálise com o panorama atual da assistência italiana, pude observar, com maior regularidade, a dinâmica do serviço ambulatorial da Unità di Psiquiatria Dinamica e Psicoterapia do Dipartimento di Salute Mentale do Ospedale Niguarda Ca` Granda com participação em atividades de ensino e de pesquisa clínica, vinculadas à Università degli Studi di Milano. Além dessas atividades acadêmicas, a participação nos encontros mensais, no Cartel registrado com o título ‘Pesquisa Clínica e Transmissão da Psicanálise’, no Istituto Freudiano di Milano, tornou-se um ponto de apoio imprescindível para a construção de novos argumentos e articulações teóricas. A oportunidade de aprofundamento dessa pesquisa no exterior possibilitou uma investigação mais depurada de propostas e métodos clínicos, capazes de demonstrar como a especificidade dos princípios da clínica psicanalítica pode contribuir para o trabalho institucional. Para fundamentar essa investigação, o estudo sobre o método da Construção do Caso Clínico passou a ser priorizado como uma proposta de trabalho e de pesquisa de orientação psicanalítica, que visa a uma conduta em equipe, a partir da transmissão da lógica única e particular do sintoma em cada caso. Viu-se, aí, uma nova abertura para investigar de que modo a metodologia da construção do caso possibilitaria tratar o sintoma em sua dimensão singular, produzindo, ao mesmo tempo, uma transmissão da política do sintoma no trabalho coletivo em saúde mental. O método da Construção do Caso Clínico desenvolvido por Carlo Viganò, na Escola de Especialização em Psiquiatria e Psicoterapia da Universidade de Milão 2 , revelou-se, 1 No período de estágio de doutoramento na Itália, pude observar alguns serviços substitutivos como o Centro Psicossocial (CPS) que corresponde ao formato de funcionamento do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) no Brasil, o Setor de Saúde Mental - Curta Permanência - do Hospital Geral de Milão, o complexo de serviços do antigo Hospital Psiquiátrico da cidade e algumas de suas Comunidades Terapêuticas. Entre elas, destaca-se a experiência de intercâmbio acadêmico realizada durante quatro meses, a partir do contato com o psicanalista Domenico Cosenza, na Comunidade Terapêutica ‘La Vela’ di Moncrivello cuja particularidade clínica entre os variados dispositivos dessa rede de serviços é caracterizada pela oferta de acompanhamento de casos graves de anorexia e bulimia. 2 Referência ao curso de especialização da Unità di Psiquiatria Dinamica e Psicoterapia do Dipartimento di Salute Mentale do Ospedale Niguarda Ca` Granda conveniada a Università degli Studi di Milano. 3 então, um importante instrumento de pesquisa clínica em psicanálise, que permite acompanhar e avaliar um processo de tratamento, a partir da construção de elementos extraídos das narrativas e registros de cada caso. Como demonstração de sua operação metodológica, a construção do caso produz uma escritura clínica da qual se extraem as passagens e escansões das transformações do sintoma na condução terapêutica que seja transmissível na sua coerência clínica e subjetiva àqueles profissionais não referidos aos fundamentos da psicanálise. Essas observações instauraram, enfim, o ponto de chegada do plano de estudos desenvolvido na Itália como proposta para esta pesquisa. Assim, o método da Construção do Caso Clínico passou a ser utilizado como um instrumento para abordar o tema da política da psicanálise por favorecer a transmissão da operação analítica com o sintoma no trabalho em equipe multidisciplinar, sendo, ao mesmo tempo, uma contribuição para o campo das pesquisas que se ocupam da avaliação do acompanhamento clínico em saúde mental. Voltando ao Rio, abriu-se uma nova possibilidade de situar a temática desta pesquisa no atual cenário da rede de serviços de saúde mental da cidade. No final do ano de 2010, ao aceitar o convite para compor a Assessoria de Matriciamento da Coordenação Municipal de Saúde Mental, pude observar a relevância dessa proposta de pesquisa aplicada ao campo da atenção psicossocial. Nesse contexto, a política do ‘choque de ordem’, aplicada à clínica da saúde pública, vinha se consolidando rapidamente pela difusão do ato autoritário da internação compulsória para usuários de drogas e pela expansão galopante de equipes e unidades de Saúde da Família monitoradas por ‘metas’ de avaliação da resolutividade e agilidade dos atendimentos. Com efeito, os recursos financeiros da máquina pública escoavam para o investimento nas Clínicas de Família e para as intervenções higienistas do recolhimento compulsório realizadas pela Secretaria de Desenvolvimento Social, encerrando qualquer possibilidade de debate clínico sobre os casos assistidos. A rede de atenção psicossocial, com isso, foi sendo cada vez mais desconsiderada em termos de investimento público. Como, então, preservar a dimensão da política analítica do sintoma no debate democrático diante da imposição da política do choque de ordem? A aposta na ‘expansão’ da lógica da clínica ampliada em saúde mental passou a nortear o trabalho na Coordenação de Saúde Mental, em paralelo à proposta desta pesquisa de aplicação da metodologia da Construção do Caso Clínico na prática do matriciamento 3 , desenvolvida entre profissionais 3 Modalidade de trabalho em equipe proposta para o acompanhamento de pacientes dos serviços de saúde mental junto às equipes da Estratégia de Saúde da Família. No Rio de Janeiro, essa proposta de apoio matricial vem se desenvolvendo por 4 que atuam nas Clínicas de Família e nos serviços de saúde mental. Essa aposta esteve articulada à hipótese de que este método de pesquisa permitiria preservar a dimensão da clínica do caso a caso na avaliação do projeto terapêutico de uma equipe clínica, em contraste a uma forte tendência sanitarista e imediatista de intervenções de supressão dos sintomas, baseadas nas classificações diagnósticas. A importância desta pesquisa consiste, portanto, na possibilidade de aplicação dos princípios da psicanálise na clínica ampliada da atenção psicossocial pelo método da construção dos casos. Para fundamentar esta discussão, será necessário analisar como os elementos metodológicos da Construção do Caso Clínico possibilitam produzir uma formalização lógica do sintoma em cada caso que seja transmissível aos profissionais que atuam no campo da saúde mental. E, a partir desta análise, verificar como a transmissão da operação analítica com o sintoma pode alcançar a condução dos casos no cotidiano do trabalho em equipe. O estudo desenvolvido nesta pesquisa apresenta uma revisão da literatura psicanalítica, tendo como referência as passagens da obra freudiana e do ensino de Lacan, que fundamentam o estatuto do sintoma para a psicanálise; explorando, ao mesmo tempo, uma articulação dessa concepção com a proposta da política do sintoma. A partir daí, a proposta metodológica da construção do caso é abordada em seu viés político de intervenção na prática institucional e de investigação avaliativa no contexto atual das pesquisas clínicas em saúde mental. A pesquisa será enriquecida por referências extraídas do diário de campo, produzido na experiência de intercâmbio acadêmico e da interlocução, mantida regularmente com Carlo Viganò, proponente do método aplicado, até o início do ano vigente. Com base nessas referências, apresentaremos as etapas da aplicação metodológica da Construção do Caso Clínico realizada em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da cidade do Rio de Janeiro, visando recolher dessa experiência os efeitos de transmissão da política analítica do sintoma na avaliação das conduções e condutas do trabalho em equipe. A pesquisa se inicia com uma reflexão teórica sobre o estatuto do sintoma na clinica psicanalítica, no intuito de desenvolver uma fundamentação que possibilite identificar como a clínica psicanalítica opera com o sintoma na prática institucional. No primeiro capítulo, apresentamos uma discussão conceitual sobre a concepção de sintoma para a psicanálise, tendo como eixo a teoria freudiana da formação dos sintomas, as formulações propostas por Lacan na passagem dos conceitos de sintoma ao sinthoma e uma revisão da literatura profissionais que atuam nos Núcleos de Apoio a Saúde da Família (NASF), nos CAPS e nos ambulatórios de saúde mental, dependendo dos recursos da rede de serviços de saúde mental de cada território. 5 psicanalítica que situe as mudanças de perspectivas desses autores no que se refere à teoria do sintoma. Da obra freudiana, o texto ‘Construções em Análise’, de 1937, recebe destaque pela articulação conceitual, promovida por esta pesquisa, a partir da concepção de sintoma como uma construção de cada sujeito com o real do gozo que escapa ao sentido e à rememoração. Sob essa perspectiva, propomos explorar a tarefa da construção analítica como diretamente atrelada ao trabalho do analista com o real da experiência clínica, apreendida no nível das construções produzidas pelo analisante para lidar com o irredutível da repetição do gozo do sintoma. Será enfatizado, ainda, o caráter político dessa proposição freudiana no cenário científico do início do século XX, quando o rigor da operação analítica da construção passou a ser transmitido ao campo clínico de modo diferenciado dos métodos da ciência empírica e da sugestão. Dos seminários e escritos de Lacan, serão ressaltadas as considerações teóricas sobre o sintoma e sua relação fundamental com a linguagem, definida, na década de 1950, a partir do simbólico, e na década de 1970, a partir do real; momento em que essa definição passa a ser associada a um modo de gozo do inconsciente. Essa concepção presente no final do ensino lacaniano, em especial no Seminário 23, em que Lacan desenvolve sua teoria sobre o sinthoma, nos permitirá explorar uma abordagem clínica do sintoma, tomado não somente em sua dimensão de verdade e de sentido decifrável, mas em sua dimensão de gozo. Trata-se de uma orientação para a clínica do sintoma, cuja direção visa localizar no sujeito o seu ponto de incurável e uma nova solução frente ao manejo do gozo. Diante dessa concepção, a clínica psicanalítica não opera com o sintoma como algo a ser abolido, atenuado ou até mesmo curado; mas com um sintoma a ser assumido, inventado ou até mesmo construído. Essa seria, então, uma nova orientação do ensino de Lacan, que condiciona a política da psicanálise, concebida pela subversão que esta produz na apreensão do sintoma como categoria universal, redirecionando-o para a particularidade de um funcionamento subjetivo, que se apreende pela via do ‘sem sentido’ que o gozo introduz na experiência clínica, melhor dizendo, pelo impossível de universalizar na clínica do sintoma. Com esta discussão, pretendemos demarcar a especificidade clínica e política da ação do analista na prática institucional pelo modo como a clínica psicanalítica lida com o sintoma na prática coletiva em saúde mental. A operação analítica com o sintoma será abordada, particularmente, em sua diferença frente às práticas dos campos da psiquiatria contemporânea e das psicoterapias, não como movimento de militância ou de confronto ideológico, mas como uma contribuição fundamental para clínica ampliada na rede pública de 6 saúde, que deve ser assegurada no trabalho interdisciplinar frente ao reducionismo das classificações diagnósticas. Nessa perspectiva, apresentamos como uma proposta política da psicanálise para o campo da saúde mental o trabalho em equipe orientado pela lógica singular do sintoma, pela possibilidade de tornarmos legíveis as construções de cada sujeito em torno do incurável do sintoma psíquico. No segundo capítulo, será discutida a definição da proposta metodológica da Construção do Caso Clínico e seu modo de avaliação e de pesquisa clínica em psicanálise aplicada ao campo da saúde mental. A partir dessa apresentação, serão explorados alguns elementos, princípios e proposições políticas que compõem o método de construção do caso, visando localizar, nesse instrumento de pesquisa, a função do sintoma em cada caso. Com isso, poderemos verificar de que modo a especificidade da operação analítica com o sintoma pode ser transmitida no trabalho em equipe, com base na metodologia empregada nesta pesquisa. Para a fundamentação da Construção do Caso Clínico como método de pesquisa em psicanálise, será assinalado o modo específico de investigação, que resulta da experiência da construção dos casos na qual o valor sempre inédito do caso clínico acompanha a elaboração do saber teórico. Sobre esse aspecto, discutiremos de que maneira a avaliação clínica, produzida por essa metodologia, pode apoiar a pesquisa do analista desenvolvida na universidade, no campo da saúde mental ou nas instituições psicanalíticas. Assinalamos a perspectiva política dessa proposta inovadora, no contexto atual das pesquisas clínicas, por assegurar o valor metodológico do caso único e a verificação das modificações do sintoma no nível de uma axiomática avaliativa. Em contraposição aos protocolos estatísticos de validação terapêutica, situamos a importância desse método de pesquisa como capaz de produzir uma avaliação da lógica processual do tratamento do sintoma, incluindo a transferência no eixo de uma investigação realizada por uma equipe clínica. Apresentaremos, em seguida, o tema da política do sintoma em articulação com os efeitos de transmissão da psicanálise propiciados pela metodologia da construção do caso. A noção do testemunho articulada à transmissão da operação analítica será explorada pela escritura clínica da construção como uma ferramenta de demonstração, que inclui o testemunho de uma equipe em torno de um ato clínico que se constrói a posteriori a cada intervenção. Em linha direta com essa discussão, demarcaremos uma relação entre a transmissão e a aplicação dos princípios psicanalíticos na vida humana e na cultura como uma estratégia clínica e política da pesquisa em psicanálise. Nessa direção, o método de pesquisa da Construção do Caso Clínico será abordado a partir de pesquisas publicadas 7 recentemente, cujas análises apontam para os efeitos de transmissão da psicanálise aplicada à clínica da atenção psicossocial. O terceiro e último capítulo apresentará a aplicação da metodologia da construção do caso na prática coletiva em saúde mental, desenvolvida nesta pesquisa por meio da construção de um caso acompanhado por um profissional de formação psicanalítica que atua em um dos CAPS da cidade do Rio de Janeiro. O método empregado será sistematizado em quatro etapas de aplicação, tendo em vista os desdobramentos provocados pelo caso em questão. Entre essas etapas de construção coletiva, indicaremos o desafio proposto anteriormente de utilizar e ampliar a aplicação desse método de pesquisa clínica por meio da prática de matriciamento em saúde mental, desenvolvida por este profissional do CAPS, colaborador da pesquisa, junto à equipe de referência territorial da Estratégia de Saúde da Família, que identificou a necessidade de acompanhamento do paciente. Esta experiência nos permitirá analisar os resultados e alcances de transmissão da política psicanalítica do sintoma a um campo mais variado de cuidados e intervenções no campo da saúde pública. Como última etapa de aplicação metodológica, apresentaremos a proposta de composição do Laboratório da Construção do Caso Clínico, caracterizado como um dispositivo de pesquisa potente para a formação do analista e passível de ser aprimorado como uma proposta para o estudo de caso, que recolhe da leitura coletiva de uma equipe clínica elementos fecundos para fazer avançar a teoria e clínica psicanalítica no cenário clínico atual. Sigamos, então, entre os pontos de partida e chegada deste percurso de pesquisa em psicanálise... 8 CAPÍTULO 1 A especificidade clínica e política da ação do psicanalista No atual cenário das pesquisas e métodos clínicos empregados nos campos da psiquiatria e da saúde mental, situamos a especificidade clínica e política da ação do psicanalista na prática institucional e sua tarefa de transmitir os princípios éticos e metodológicos da psicanálise. A orientação da psiquiatria contemporânea, fundamentada no modelo médico-científico, consiste em reduzir a formação dos sintomas aos diversos transtornos que compõem os manuais de classificação diagnóstica. Na busca de uma cientificidade, a psiquiatria, cada vez mais, exclui a particularidade de cada sintoma, já que o discurso da ciência ejeta o sujeito sem levar em conta sua expressão singular e o real em jogo em cada tratamento. Ao priorizar a pesquisa científica em detrimento da clínica, as pesquisas em psiquiatria se inscrevem em um movimento amplo de objetivação dos fenômenos observados no campo dos transtornos mentais, restando à discussão dos casos um lugar onde subjetividade é esmagada pelo peso que a ciência deposita no debate clínico atual. E os sintomas, que são significativos para identificar um diagnóstico, ficam retidos na objetividade descrita nos manuais, desconsiderando a maneira singular de interrogar o sofrimento psíquico. Cria-se, assim, uma lógica de intervenções que se afasta dos princípios da clínica psiquiátrica, descartando o sujeito e suas particularidades. O sintoma transformado em ‘transtorno mental’ caracteriza uma lógica de tratamento que se resume às respostas positiva ou negativa à medicação, produzindo novas e constantes ‘evidências científicas’. Esta é a concepção de sintoma que orienta as diretrizes atuais das políticas públicas que avaliam a eficácia das terapias psicológica e farmacológica, considerando a economia de tempo e de custos para o tratamento dos transtornos mentais. Se aplicarmos esse modelo clínico ao campo da saúde mental, perdemos completamente a referência de uma prática clínica orientada pelo sintoma como correlato do sujeito para dar lugar a uma prática estatística de verificação de intervenções e procedimentos. Orientar-se pelo sintoma como marca de um sujeito é um modo de retomar a discussão clínica e diagnóstica no campo da saúde mental, sem restringi-la a um conceito ou a um modelo classificatório, mas transmitindo o que há de único em cada caso. Trata-se de sustentar a 9 política do sintoma no trabalho coletivo da atenção psicossocial, propondo uma prática clínica mais adequada ao atual paradigma da saúde mental: o trabalho em equipe orientado pela lógica singular do sintoma. Entretanto, não é uma tarefa simples a de identificar como a clínica psicanalítica opera com o sintoma na prática institucional. A concepção do sintoma para a psicanálise é marcada por atravessamentos conceituais que, consequentemente, modificam sua abordagem na direção de um tratamento. É necessário, então, introduzir essa pesquisa com algumas pontuações sobre o estatuto do sintoma na clínica psicanalítica para, em seguida, apresentar a metodologia da construção do caso clínico como uma proposta de trabalho e de pesquisa de orientação psicanalítica que visa a uma conduta em equipe, com a transmissão da lógica única e singular do sintoma em cada caso. A proposta de uma política do sintoma implica o desafio de tornar transmissível à prática coletiva o trabalho clínico com o sintoma, a partir de uma perspectiva clínica, cuja expressão sintomática não é considerada em termos de um fenômeno ‘curável’ ou ‘incurável’ e, portanto, passível de uma observação clínica a ser comprovada e avaliada empiricamente. A operação metodológica da psicanálise se sustenta na experiência de cada caso, produzindo, ao mesmo tempo, uma formalização lógica capaz de explicar e de transmitir a relação que cada sujeito estabelece com seu sintoma. E isso se reflete de outro modo, associado a uma direção fundamental: a de uma política do sintoma fundamentada na última fase do ensino de Lacan, cuja proposição considera um ‘saber-fazer’ com o sintoma, a partir de uma operação que trata o gozo sintomático como solução inventada por cada sujeito, o que podemos considerar como um modo de eficácia do método analítico. Nessa concepção, o sintoma não é algo a se superar, pois, para o ser falante, não há outro modo de se relacionar com o gozo que não seja pela via do sintoma, melhor dizendo, que não seja sintomatizando. É possível, então, modificar, construir ou inventar um modo de lidar com o real do gozo do sintoma, diante da impossibilidade de aboli-lo ou obliterá-lo. Para abordar essa discussão teórica, apresentamos um recorte conceitual, extraído da obra de Freud e do ensino de Lacan sobre o estatuto do sintoma, considerando suas articulações e variações teóricas ao longo do percurso teórico-clínico desses autores. A temática deste capítulo situa a investigação da concepção psicanalítica de sintoma para desenvolver uma fundamentação teórica que permita definir o seu estatuto e o modo como a clínica analítica opera com o sintoma no processo de um acompanhamento clínico, como uma proposta política da psicanálise para o campo da saúde mental. Como ponto de partida para desenvolver a temática desse capítulo, situamos a especificidade da ação clínica e política do 10 psicanalista diante do real em jogo na clínica do sintoma, não caracterizado por um antagonismo com o real da ciência, mas pela sustentação de sua diferença em relação ao campo científico e às psicoterapias do comportamento. Nessa perspectiva, apresentamos a proposta de uma política da psicanálise, concebida pela subversão que esta produz na apreensão do sintoma como categoria universal, redirecionando-o para a particularidade de um funcionamento subjetivo, que se apreende pela via do ‘sem sentido’ que o gozo introduz a cada experiência clínica. A política da psicanálise não se orienta pelo conjunto de normas e deveres de promoção de um ideal de saúde, bem-estar e felicidade predominantes nos tempos atuais. Esse é um princípio clínico que subverte o mecanismo da política, propriamente dita, quando, por exemplo, o sujeito é retirado das classificações identitárias que compõem os manuais diagnósticos da psiquiatria contemporânea. A política do sintoma, a da clínica do caso único, é a que deve nortear a construção de casos clínicos nas instituições. Ao considerar a dimensão do real do sintoma desde o início do tratamento, a construção do caso na orientação analítica permite recolher e transmitir os efeitos de real sobre o sujeito e o impossível de universalizar de seus sintomas. E isto não somente influencia o tratamento dos sintomas no campo da saúde mental, mas também nos adverte quanto à avaliação dos efeitos terapêuticos em psicanálise que dá lugar ao sintoma como traço mais particular do caso clínico. É, portanto, pelo viés da política de ações e de intervenções clínicas que a psicanálise pode propor ao campo da saúde mental seu modo próprio de trabalho com o sintoma na prática coletiva da atenção psicossocial. Torna-se necessário, então, discutir a inserção da política psicanalítica do sintoma na rede pública de saúde, não como movimento de militância ou de confronto ideológico, mas como uma contribuição fundamental para o acompanhamento clínico e como proposta que deve ser assegurada no trabalho interdisciplinar das instituições. 1.1. A clínica do sintoma e a política da psicanálise Na conferência proferida na Itália em 2001 e, em seguida, publicada com o título Intuições Milanesas, pela retomada do texto apresentado em seu Curso de Orientação Lacaniana, Jacques-Alain Miller apresenta considerações importantes sobre o tema da política da psicanálise. Entre elas, destacamos a mobilização política que se estende aos psicanalistas no processo democrático, em relação ao modo como o sintoma é posto em cena pelas atuais correntes terapêuticas. 11 Para introduzir sua conferência, Miller retoma a proposição de Lacan no seu Seminário, Livro 14, intitulado A lógica da fantasia (LACAN, 1966-67), em que afirma que "o inconsciente é a política". Nota-se, de saída, que Lacan não diz que a ‘política é o inconsciente’, mas sim que o “inconsciente é a política”, apontando para a definição do inconsciente pela política como um desdobramento da noção do “inconsciente como discurso do Outro” (LACAN, 1998, p. 440) 4 , referente à relação do sujeito com o Outro da linguagem que o constitui. Isto se desdobra, mais adiante, quando Lacan estabelece a concepção de que “o inconsciente provém do laço social”, com a matemização do ciclo dos quatro discursos (LACAN, 1982) 5 , momento em que assinala que todo discurso se define como uma forma de laço social, concebendo laço social como tecido e estruturado pela linguagem. Do mesmo modo, podemos retomar a proposição “o inconsciente é a política” pela definição do Witz freudiano (FREUD, 1996) 6 , levando até as últimas consequências o que Freud descobre em sua análise do chiste: de uma formação do inconsciente como processo social que tem seu reconhecimento e sua satisfação no Outro no instante de rir. Ou ainda, em Psicologia das massas e análise do eu (FREUD, 1996), em que Freud desenvolve a noção da política remetida ao inconsciente, quando analisa as formações coletivas como formações do inconsciente, pela incidência do mesmo significante identificatório em determinados modos de expressão sintomática. Ao diferenciar a sentença: “a política é o inconsciente”, que por si só representa uma redução da política ao conceito de inconsciente, da proposição “o inconsciente é a política”, Lacan abre uma via para a releitura de alguns textos de Freud, nos quais essa sentença é tomada como uma ampliação do conceito de inconsciente, conduzido para além da esfera individual e familiar para situá-lo na pólis, na cidade, e subordiná-lo à História de uma civilização. De outro modo, a afirmativa que reduz ‘a política ao inconsciente’ encontra uma série de objeções conceituais, na medida em que sabemos que “há mais na política do que o que provém do inconsciente.” (MILLER, 2011a, p. 03). Ao constatar que o que chamamos hoje de globalização é uma estrutura social diferente daquela do tempo de Freud, essa conferência nos leva a situar a psicanálise nos tempos atuais, diante do processo democrático e do desafio de sustentação da práxis analítica frente à proliferação das psicoterapias do comportamento, apoiadas pelo discurso médicocientífico. Nessa direção, podemos retomar do ensino de Lacan, por exemplo, a subversão 4 Psicanálise e seu ensino [1957]. O Seminário, livro 20: Mais, Ainda [1972-1973]. 6 Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente [1905]. 5 12 produzida no ‘sujeito da ciência’ como efeito da análise freudiana da enfermidade psíquica, remetida ao sujeito do inconsciente como sujeito da civilização. E isso nos alerta quanto à percepção do modo como hoje o sujeito da civilização é trazido para a cena dos debates clínicos e como isso também condiciona a experiência analítica. O nascimento da psicanálise está relacionado com o contexto da sociedade disciplinar 7 na passagem dos séculos XIX e XX e, consequentemente, com o mal-estar de uma sociedade submetida a interditos e imposições potentes, em especial, em relação à sexualidade. No entanto, Miller assinala que o totalitarismo foi uma ‘bela esperança’ que encantou as massas do século XX como “uma esperança de suprimir a divisão da verdade e de instaurar o reino do Um na política” (MILLER, 2011a, p. 05), conforme o modelo que pode ser apreendido em Psicologia das massas e análise do eu (FREUD, 1996). Essa aspiração à harmonia e à reconciliação postulada pelo totalitarismo também pode ser lida nos termos do discurso do Presidente Schreber (FREUD, 1996) 8 . Segundo Miller (2011a), o triunfo da democracia no pensamento contemporâneo não produz o mesmo entusiasmo da “bela esperança” da sociedade disciplinar, na medida em que o processo democrático implica uma aceitação da divisão da verdade. Se a verdade está destinada a ser dividida, podemos notar que a sua aceitação ganha uma forma objetiva na contradição insolúvel dos partidos políticos, podendo, ainda, ser avaliada pelo efeito depressivo que esse pensamento contemporâneo produz. Na época em que os ‘filtros de saber’ se desestruturam e que todos os aparelhos sociais 9 , capazes de realizar uma formalização da realidade, estão abalados e pressionados pela enxurrada de informações, característica do mundo globalizado, o autor extrai uma observação da parte dos sociólogos que afirmam que a “globalização é acompanhada de individuação” (MILLER, 2011b, p. 14). Desse modo, Miller assinala o impacto da era globalizada nos modos de vida, indicando a configuração de um laço social, com base no movimento de sujeitos desarticulados e dispersos que são, ao mesmo tempo, induzidos a um dever social e a uma exigência subjetiva de invenção. E isso se expressa sob o mote contemporâneo “living my own life” – “viver minha própria vida, vivê-la do meu jeito” – que é enfatizado pelo autor como uma fórmula que comporta o declínio da organização coletiva dos modelos e que situa o sujeito diante de uma demanda de invenção e de valorização do seu 7 Jacques-Alain Miller faz referência ao termo estabelecido por Michel Foucault em seu trabalho intitulado ‘Vigiar e Punir’ (FOUCAULT, 1987). 8 Notas Psicanalíticas sobre um Relato Autobiográfico de um Caso de Paranóia [1911]. 9 O autor menciona o exemplo das instituições educacionais como um desses aparelhos sociais. 13 estilo de vida individual. Trata-se da época do “Outro que não existe”10 , conceituada em outro momento por Miller, a partir desse mesmo ponto de vista. Nesse panorama do processo democrático e da globalização, Miller inclui a inscrição da famosa frase de Lacan – “a relação sexual não existe” – (LACAN, 1984) 11 como modo de traduzir o apagamento definitivo da norma pela lógica do ‘não-todo’, que a descompleta, e o abandono do que retinha a psicanálise na época disciplinar pela inclusão do gozo em sua teoria. Com essa frase, Lacan dá um lugar destacado à invenção sexual como uma criação “fora da norma” e, portanto, regida pela singularidade do gozo. Essa concepção acompanha a teoria de Lacan até o final de seu ensino, quando introduz a escrita do sinthoma (LACAN, 2007) 12 como um novo nome que indica o sintoma como regime próprio ao gozo, o qual o sujeito experimenta de forma inventiva e não mais condenado por sua manifestação. A propósito do tema da psicanálise na época da globalização, Miller (2011b, p. 11), demarca algumas modificações que se apresentam na clínica psicanalítica no contexto de um mundo globalizado que se apoia na lógica do “não-todo”. Segundo esse autor, “o não-todo não é um todo que comporta uma falta, mas uma série em desenvolvimento, sem limite e sem totalização” (MILLER, 2011b, p. 11), o que permite uma articulação com o termo ‘globalização’ por se tratar de um processo civilizatório em que todos os equipamentos sociais e ideológicos, que visam ao estabelecimento de limites ou da totalização de seus princípios, encontram-se ameaçados ou tornam-se cada vez mais vacilantes. Assim, a globalização é designada pelo autor como um processo de “destotalização” que se contrapõe, por exemplo, à estrutura totalitária da sociedade disciplinar, na medida em que nenhum elemento contém um atributo que lhe seja assegurado por muito tempo pelos seus princípios. Trata-se de uma época de efemeridades do conhecimento, em que não se tem a segurança de um atributo, mas a sua pluralização transportada aos bens de consumo. E para tornar esse ‘espetáculo do mundo’ algo decifrável, convém relacioná-lo à estrutura lógica do “não-todo”, conforme os ensinamentos de Lacan. Com esse argumento, Miller (2011b) assinala que relacionar essa estrutura com o processo de globalização nos reporta, necessariamente, à fórmula lacaniana da sexuação feminina. Isso implica a possibilidade de articular essa teoria de Lacan com o que observamos na ascensão dos valores ditos ‘femininos’ na sociedade contemporânea, que se apresentam desde os valores compassivos da promoção da atitude de escuta e da política da 10 MILLER, 2003. O Seminário, livro 20: Mais, Ainda [1972-1973]. 12 O Seminário, livro 23: O sinthoma [1975a]. 11 14 proximidade, até os demais valores que se desdobram nesse nível e que afetam os rumos da política. A partir dessa observação, o autor (MILLER, 2011b) situa, então, as modificações que atingem a clínica psicanalítica nos tempos atuais pelos efeitos do mundo globalizado. Ainda segundo o autor, a clínica clássica, cujos princípios aprendemos com Freud e com os ensinamentos de Lacan, tinha como pivô o Nome-do-Pai e se configurava a partir da posição que cada sujeito estabelecia em relação à metáfora paterna, que marca a relação do desejo com a Lei e a falta. Consequentemente, as diferentes modalidades do desejo eram descritas na clínica clássica por concepções distintas, como, por exemplo, o desejo insatisfeito da histérica, o desejo impossível da neurose obsessiva e o desejo prevenido do analista, incluindo nas diferentes estruturas clínicas modos distintos de defesa e de expressão sintomática. A clínica clássica, portanto, “respondia essencialmente à estrutura da sexuação masculina, à estrutura do todo e do elemento antinômico.” (MILLER, 2011b, p. 18), o que permitiu que a classificação diagnóstica em psicanálise se difundisse entre várias gerações de analistas por sua formalização mais estanque e rígida em termos teóricos. Em relação à clínica contemporânea, Miller aponta para uma mudança de vertente, cuja dimensão pode ser apreendida pela maior incidência de patologias descritas como ‘centradas na relação com a mãe’, em que se valoriza precisamente o sem-limite da série. Entre elas, enquadram-se as patologias ligadas à dependência, como a toxicomania – ou casos mais recentes de anorexia e bulimia. Nesse atual cenário da clínica, observa menor efetividade da metáfora paterna e, ao invés disto, a pluralização dos S1 e, até mesmo, sua pulverização, levada ao ponto em que podemos reconhecer essa mudança na crise das classificações diagnósticas, em que os próprios termos e categorias da clínica clássica deixaram de ser operatórios (MILLER, 2011b). Para abordar a clínica contemporânea como a clínica do ‘nãotodo’, Lacan nos indica a via do nó como uma direção possível para demonstrar a estrutura lógica do ‘não-todo’, quando nos apresenta uma série infinita de arranjos montados a partir de ‘três rodinhas de barbante’, que representam o ternário RSI (LACAN, 1975). Na “clínica do nó”, a articulação dos registros Real, Simbólico e Imaginário se distingue de uma repartição estanque e descontínua entre as estruturas clínicas da neurose, perversão e psicose. Essa mudança representa, então, um desenvolvimento dos princípios da clínica clássica para a vertente do “não-todo” da clínica contemporânea e traz, como resultado, uma nova concepção do sintoma, tomado como unidade elementar da clínica e, não mais, como uma classe que corresponde a uma determinada estrutura clínica. No final do ensino de Lacan, o sintoma se torna, então, a unidade elementar da clínica que permite enodar 15 o ternário RSI, recebendo a nova escritura de sinthoma. Com efeito, Miller (MILLER, 2011b, p. 20) assinala certa correspondência entre essa nova versão lacaniana do sinthoma e a fragmentação das entidades clínicas no DSM-IV, não pela via da fragmentação das categorias diagnósticas, mas pelo movimento de desestruturação das entidades da clínica clássica . No final do ensino de Lacan e sua clínica do nó, portanto, tem-se como pivô o sintoma, e como substância, o gozo. Nesse momento, não se trata mais de decifrar o sentido do sintoma em sua dimensão de verdade, como na clínica clássica, mas de recolher as passagens de um regime de gozo a outro, de um regime de sofrimento a um regime de prazer, como solução inventada por cada sujeito. É possível, então, discutir o que ocorre com o sintoma na época da globalização se traduzimos o modo como ele é colocado em cena pelo atual momento clínico, cuja estrutura lógica seria a do “não-todo”. Nesse contexto, é necessário diferenciar a formulação lacaniana da operação analítica com o sintoma como uma política que marca sua diferença diante de uma sociedade científica que impõe um ideal de totalidade e unidade atrelado ao sentido do sintoma. Ao observarmos a fragmentação das atuais categorias diagnósticas estabelecidas pelo discurso médico-científico, notamos, ainda, a universalização de tais categorias e, consequentemente, a redução do sujeito e de seu sintoma às nomenclaturas dos transtornos mentais que o engessa nas classificações identitárias dos manuais diagnósticos. Isto implica o aprisionamento do sentido do sintoma no conjunto de normas e deveres de promoção de um ideal de saúde, bem-estar e felicidade predominantes no mundo globalizado. Eis o que delineia a subversão da psicanálise situada fora de todo ideal a ser atingido e, portanto, fora da própria problemática do ideal e da norma. Enquanto o campo da ciência condiciona o sentido do sintoma a uma categoria universal, a psicanálise marca sua diferença ao redirecioná-lo à particularidade de um funcionamento subjetivo pela via do ‘sem sentido’ que o gozo do sintoma introduz a cada experiência clínica. Com efeito, a subversão que a psicanálise produz no campo científico pode ser remetida à proposta de uma política do sintoma que dá lugar ao sintoma como o traço mais particular do sujeito, como marca do seu estilo, em detrimento da noção de um desfuncionamento em relação a um ideal de saúde e bem-estar. 1.1.1. O real na clínica do sintoma e a subversão da psicanálise Atualmente, vem sendo cada vez mais frequente no mundo “psi” a promoção de intervenções que visam abolir os sintomas a favor de um ‘bom funcionamento’ da saúde mental, partindo de estratégias de tratamento que concebem o sintoma psíquico como 16 transtorno mental. Essa é a concepção de sintoma que orienta as diretrizes atuais das políticas públicas que avaliam a eficácia das terapias psicológica e farmacológica, considerando a economia de tempo e de custos para o tratamento dos transtornos mentais. Ao sustentar uma relação com o sintoma como um ‘querer-dizer’ inconsciente, a oferta de tratamento analítico dos sintomas implica, no entanto, uma perspectiva diferenciada de tempo e de custos que problematiza a concepção da ‘utilidade imediata’ instaurada, por exemplo, no campo da saúde pública. Podemos constatar, então, a necessidade de sustentação da práxis analítica no debate social e clínico e de uma política psicanalítica do sintoma, a partir da transmissão de seus princípios e métodos clínicos e da eficácia de suas intervenções no campo do cuidado em saúde mental. Até o final de sua obra, Freud conserva para a psicanálise a exigência de uma transmissão sobre a lógica do sintoma em cada caso, tal como a operação do método científico, mantendo a referência ao real dentro da sua teoria do sintoma, mas não sem subverter a lógica científica de seu tempo ao considerar que o sentido de cada sintoma é sempre particular. Nessa direção, Lacan avança teoricamente ao articular a verdade do sintoma com o real do sexo: impossível de se representar simbolicamente. Assim, o sintoma possui leis próprias, que funcionam seguindo uma lógica que inclui a repetição do gozo e o modo singular como cada sujeito goza do seu inconsciente. Subverter a concepção de ‘doença mental’ remetida a um significado único, generalizável, universal, fornecendo-lhe o estatuto singular do sintoma foi, portanto, a consequência prática da descoberta freudiana do inconsciente. Entretanto, deparamos hoje com os desdobramentos clínicos de uma política sanitária nos serviços públicos que “foraclui” essa descoberta científica. É necessário, então, reafirmar a inserção da política psicanalítica do sintoma na rede pública de saúde, tratando os efeitos de retorno no real causados por essa foraclusão, não como num movimento de militância ou de confronto ideológico, mas como uma consequência necessária que se impõe à ação clínica e política do analista nos tempos atuais. Mas, afinal, como apreender o registro do real na concepção lacaniana de sintoma? Dos seminários e escritos de Lacan, podemos extrair um contínuo teórico desenvolvido, tomando como base a obra freudiana sobre o estatuto do sintoma e sua relação fundamental com a linguagem, estabelecido, na década de 1950, a partir do registro do Simbólico. Nesse momento, o sintoma é designado como um significante que conecta o sujeito na cadeia simbólica dos significantes e como uma metáfora que representa um sentido que atravessa a barra do recalque. Da década de 1970 em diante, o registro do real ganha maior destaque na teoria lacaniana, a partir do que Lacan já desenvolvera em sua tópica de três registros RSI: 17 Real, Simbólico e Imaginário. Ao real, cabe aquilo que resiste à simbolização, e, assim, Lacan o define: "o real é o impossível", é o que "não cessa de não se inscrever" no simbólico (LACAN, 1973) 13 . No segundo momento, Lacan afirma que é “do real que se trata no sintoma” (LACAN, 1974-1975), associando esta definição à articulação entre o gozo e o inconsciente. O Real toca naquilo que no sujeito é o resto inassimilável, sem sentido: o gozo, designando o sintoma pelo modo como um sujeito goza de seu inconsciente. E na tentativa de fazer a psicanálise operar com esse registro que escapa à simbolização, Lacan lança mão da topologia pela via do nó borromeano, valorizando a escritura lógica que constrói na teoria da sexuação feminina. Se a maior parte do ensino de Lacan é marcada por um retorno à obra freudiana, notamos que sua transmissão deriva da noção do real na experiência clínica, como um conceito inédito para o campo da psicanálise. Ao situarmos a especificidade da ação clínica e política do psicanalista diante do real em jogo na clínica do sintoma, localizamos aí sua diferença em relação ao campo científico atual e às psicoterapias que nele se apoiam. Seguindo a direção da proposição lacaniana, anteriormente apresentada, que remete à concepção de que ‘o inconsciente é político’, na medida em que este responde e obedece à categoria de laço social, convém percorrer o caminho deixado por Lacan para fundamentar uma proposta política da psicanálise diante do discurso da ciência moderna. Para isso, apresentamos o rigor teórico de Lacan ao traduzir o impacto da descoberta freudiana do inconsciente como uma subversão do sujeito da ciência, do sujeito da civilização moderna. E, em seguida, sublinhamos os efeitos desse movimento subversivo no campo da clínica contemporânea como uma proposta política da psicanálise para a clínica do sintoma, marcado pelo modo como esta se diferencia das demais correntes terapêuticas e, com isso, condiciona a prática analítica nos tempos atuais. A ciência e o real na clínica do sintoma A partir da descoberta do inconsciente, Freud propõe uma maneira de tratar o sintoma neurótico no campo clínico, constituindo um novo paradigma para o tratamento dos sintomas. Sustentando o rigor metodológico de sua experiência, Freud dirige suas recomendações (FREUD, 1996) 14 para o lado oposto de uma lógica terapêutica de caráter universal, salientando que o sentido de cada sintoma é sempre particular, sendo, por isso, necessário construir um saber novo para dar conta daquele sintoma a cada encontro com o paciente. Desse modo, reintroduz, a cada encontro clínico, a singularidade que cada sintoma revela, 13 14 Le Séminaire, livre XI: Lês quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse [1964]. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise [1912]. 18 subvertendo a lógica científica de seu tempo. Com o advento da psicanálise, podemos situar o surgimento desse novo paradigma para a clínica do sintoma e, consequentemente, de uma política da psicanálise na civilização moderna. Ainda que nascida no seio da ciência, a psicanálise veio acrescentar-lhe uma teoria transversal sobre a clínica do sintoma. E foi introduzindo o sujeito na ciência, ainda que esta já o tivesse inventado e o excluído, que a clínica freudiana sustentou e tratou o sintoma como marca do sujeito do inconsciente. Afastado da intenção de criar um sistema filosófico ou uma filosofia setorial, Freud reconhecia que o “real implicado na experiência da análise exigia ser tratado pelo simbólico de sua teoria” (ELIA, 2001, p. 42), em convergência com toda práxis científica. As indagações freudianas começam por confrontar um determinado real de doença, exatamente à maneira da ciência, fazendo algo inédito diante disto. A original operação metodológica da clínica psicanalítica consistiu em captar, nesse real, o efeito do sujeito excluído da ciência para situá-lo como referente real absoluto. Com efeito, o campo psicanalítico torna-se um campo êxtimo 15 à ciência, justamente por ter sido criado a partir de uma operação feita no próprio corpo científico. Em sua primeira lição do Seminário, livro 13, intitulada “A ciência e a verdade” em seus Escritos (LACAN, 1998, p. 855), Lacan demonstrou que a psicanálise constitui um saber derivado; entretanto, não integrante do campo científico. Ao formular a equação “o sujeito com o qual operamos em psicanálise só pode ser o sujeito da ciência” (LACAN, 1998, p. 873), Lacan questiona a noção da ciência, desenvolvendo uma teoria sobre o sujeito cartesiano, que nos permite vincular a uma noção de constituição de sujeito. Não se tratando de um sujeito empiricamente qualificável, sujeito das qualidades sensoriais ou psíquicas da psicologia, mas de “algum qualquer sujeito, distinto de toda forma de individualidade empírica” (MILNER, 1996, p. 33), a teoria lacaniana esclarece que o sujeito do inconsciente é o sujeito da ciência. Entretanto, essa afirmativa não evidencia uma equivalência metodológica nos campos psicanalítico e científico. A incidência subversiva operada pela psicanálise na ciência implica o que Lacan indica como sendo uma subversão do sujeito (LACAN, 1998, p. 807). Se a psicanálise opera sobre o mesmo sujeito que é o sujeito da ciência, ela só o faz por meio de uma subversão na qual o sujeito da ciência atinge a condição de sujeito do inconsciente. A fundação da ciência moderna, constituída com Galileu Galilei e formulada por Descartes, produziu uma elaboração filosófica que consistiu no estabelecimento de uma 15 Termo empregado por Lacan em “A ciência e verdade”, em que designa topologicamente a noção de um movimento externo e interno, exterior e íntimo, em um mesmo objeto. 19 correspondência entre a ciência – a física moderna, empírica e matematizada – e o pensamento moderno. Ao inaugurar o Cogito, Descartes introduz a dúvida do sujeito conflitado entre o saber e a verdade, abalados pelas evidências científicas. O discurso da ciência moderna é constituído pela invenção do sujeito cartesiano – que toma o “pensamento sem qualidades” (MILNER, 1996, p. 32) como modo de pensar – e, no entanto, deve ser extraído de seu campo para que ela opere. Ou seja, a ciência estabelece condições de invenção do sujeito, mas não opera com ele nem sobre ele, ao contrário, o exclui de seu campo no mesmo ato em que o supõe para constituir este campo. O discurso da ciência moderna, constituído pela invenção do sujeito cartesiano, estabelece suas condições de domínio na relação com a verdade, por meio da demanda de saber que se dirige ao campo científico. Diante disso, a psicanálise produz uma subversão no corpo da ciência. Dando a palavra ao sujeito neurótico, concebido “como representante da verdade”, como “a verdade que fala” (LACAN, aula 6 de 12/01/1966) 16 , Freud inaugura um novo paradigma para a clínica do sintoma. Na sexta lição do Seminário, livro 13, Lacan relaciona a emergência do sujeito neurótico moderno com o momento histórico do cogito cartesiano ao produzir uma mudança do modo da razão na apreensão da incerteza, ressaltando que “este momento é inseparável também desta outra emergência que se chama a fundação da ciência.” (LACAN, aula 6, 12/01/1966). Nesse contexto, em que a fundação da ciência moderna passa a obter um domínio sobre a “relação com a verdade” , o sujeito neurótico é introduzido nesta relação com a verdade “na medida em que seu estatuto clínico e terapêutico lhe é dado pela psicanálise”. Lacan afirma que “o sujeito neurótico só existe completado pela instância da clínica e da terapêutica psicanalítica”, intervindo sob a verdade que é desvelada no sintoma. Desse modo, o autor descreve a práxis psicanalítica como sendo “literalmente o complemento do sintoma”, diante da apreensão freudiana sobre a maneira singular de interrogar o sofrimento psíquico, revelado por meio dos sintomas neuróticos. E, em seguida, assinala que “a essência do sintoma é um ser de verdade” (LACAN, aula 6 de 12/01/1966), sustentando a proposição de Freud de que a verdade se faz representar por meio do sintoma. Enfatiza, com isso, sua apreensão da verdade como causa, como um ser sem substância que representa a falta inerente à verdade, tal como sua apreensão do sintoma compreendido como efeito de uma estrutura faltante, reafirmada por meio da lógica significante. A função de primazia do 16 O seminário, livro 13: O objeto da psicanálise [1965-1966] 20 significante sobre o significado faz a significação sempre recuar, constituindo a equivocidade estrutural da linguagem e a irredutibilidade da verdade a um sentido unívoco. A leitura desse seminário de Lacan permite retomar a operação analítica com o sintoma, a partir da descoberta da verdade que está em jogo também nos sonhos, nos lapsos e nos atos falhos, embora permaneça parcialmente encoberta. Ao considerar o sintoma freudiano como “o significante de um significado recalcado da consciência do sujeito” (LACAN, 1998, p. 282) 17 , Lacan o trata como metáfora, até o final da década de 1960, e demonstra que este apresenta um efeito de sentido que atravessa a barra do recalque. O sentido do sintoma, afirma Lacan (1988, p. 470), em 1956, é “o sentido do significante que conta a relação do sujeito com o significante”, o que indica a concepção do sujeito como conectado na cadeia significante, por meio do sentido particular que o sintoma representa por ser, ele mesmo, um significante. Diante disso, Lacan (1998) esclarece dois aspectos em relação ao sentido do sintoma que nos permitem articular com o estatuto freudiano da verdade do sintoma. O primeiro aspecto é o de que o sintoma tem um sentido que não é dado a priori, mas é o “sentido emergente que ele toma em uma análise” em momentos diversos e com variados sentidos. O segundo é o de que o sentido do sintoma, tomado em termos libidinais, é um sentido de gozo (joui-sens), ou seja, é um sentido que sempre escapa por não haver sentido final, sendo possível atribuir sempre novos sentidos ao sintoma por concentrar em si a marca do real como “furo no saber”. O sentido do sintoma é o real na medida em que comporta o impossível de se escrever: a relação sexual. Dito de outro modo, o sentido do sintoma é o real do gozo como aquilo que não pode ser escrito e que, por isso, se repete. A partir dessa concepção de Lacan sobre o sintoma freudiano, retornamos a discussão desenvolvida em seu Seminário, livro 13, quando designa a essência do sintoma como sendo um ser de verdade. Quando há sintoma, a verdade fala e pode ser tocada pelo método analítico, embora algo permaneça na ordem do não dito, pois a verdade do sintoma guarda um sentido impossível de se dizer todo. Nessa perspectiva, Lacan (1998) situa uma distinção entre os campos da ciência e da psicanálise pela relação que estabelecem com a verdade e pelo modo como operam metodologicamente com a função do objeto como falta, tomado aí na dimensão de um real que não cessa de não se inscrever. Ao advertir que a “verdade nos abre sobre o furo”, sobre o “objeto como faltante”, Lacan localiza a fecundidade característica do objeto da ciência que pode ser sempre quantificado pela operação lógica do método científico com seu objeto, com base na empiricidade e na experimentação do verdadeiro e falso que, no 17 Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise [1953]. 21 entanto, exclui o sujeito e suas contingentes formulações. De outro modo, Freud estabelece a operação do método clínico da psicanálise como capaz de recolher a produção da verdade de cada sujeito pela via do sintoma, cuja estrutura faltante é reafirmada pela lógica significante. Entretanto, no atual contexto em que acompanhamos o desenvolvimento da medicina, as “evidências científicas” se propagam e são, cada vez mais, baseadas na concepção de sintoma remetido a um significado único, generalizável, universal, do qual se ambiciona extrair a fórmula: a fórmula do real do corpo. Esse é o movimento que confere cientificidade à medicina contemporânea na qual encontramos o real da ciência relacionado ao sintoma, desde as comprovações da anatomia patológica até as fórmulas medicamentosas. Por outro lado, sabemos que, no campo da medicina, nem sempre é possível encontrar tais evidências, o que demonstra que o real do corpo não corresponde ao real da ciência. Isto se constata, em especial, nos campos da psiquiatria e da saúde mental, cujo tratamento dos sintomas evidencia que há algo no corpo que resiste a ser totalmente apreendido pelo discurso médico-científico, já que o corpo não se desvincula do inconsciente e da satisfação pulsional. O sintoma na medicina se relaciona com a estatística desde o nascimento de sua clínica, quando se investigava uma doença através de autópsias e descobria-se uma lesão corporal. Desde então, a relação entre sintoma e doença se estabelece por meio de registros de casos que se incluem na estatística de determinadas classificações de doenças. A psicanálise, ao subverter a prática estatística, considera que nenhum caso é igual ao outro e, por isso, não serve de modelo para o outro, pois o significado de cada sintoma é sempre particular, sendo necessário construir um saber novo para dar conta de cada sintoma. No entanto, o fato do método estatístico ser alheio à psicanálise faz com que, cada vez mais, se questione o método clínico da psicanálise a partir do modelo cientifico: como não se tem nenhum método científico para comprovar a veracidade e eficácia da ação do psicanalista, como transmitir sua operação metodológica? Desde Freud, a operação metodológica da psicanálise implica o fato de que a verdade do sintoma pode ser desvelada, embora jamais inteiramente apreendida. E isto resulta na importância da formalização de um saber para apreendê-la, que não é um saber espontâneo, intuitivo e nem mesmo ‘esotérico’. Diferente do conhecimento científico que exclui o real de sua experiência e que implica, consequentemente, o desconhecimento ou o não reconhecimento da verdade singular do sintoma, o saber que orienta a operação analítica articula os conceitos, os matemas e a topologia como formalização lógica diante do real em jogo em sua experiência; o que se afasta absolutamente do conhecimento intuitivo, perceptivo ou imaginário. Desse modo, a psicanálise demonstra seu modo próprio de ‘evidenciar’ a 22 particularidade do sintoma em cada caso, não o reduzindo à mensuração estatística das ‘evidências científicas’. Enquanto a ciência foraclui o sujeito, a psicanálise faz valer o sujeito no sintoma, considerando-o uma manifestação subjetiva. Com a descoberta freudiana do inconsciente, a distinção entre os campos da ciência e da psicanálise passa a ser designada, portanto, pela relação que estabelecem com a verdade do sintoma e pelo modo como operam metodologicamente com a função da falta, com o “nãotodo” universalizado do sentido do sintoma inerente ao gozo. Por isso, seguimos com Lacan, na trilha deixada por Freud, de conservar para a psicanálise a exigência de uma transmissão sobre a lógica do sintoma em cada caso, mantendo a referência ao real como uma orientação política própria da psicanálise. As psicoterapias e a exclusão do real no tratamento do sintoma Ao fundar o campo clínico da psicanálise, Freud sustenta sua relação de extimidade com o campo da ciência, de modo diferente da ruptura que produz em relação ao campo das psicoterapias. Essa diferença merece ser retomada no mundo globalizado e dominado pelo discurso da ciência que se associa ao mercado de consumo, na medida em que essa lógica ameaça degradar a ação da psicanálise com as psicoterapias de massa que se proliferam. Entre elas, situamos as psicoterapias do comportamento e as técnicas pré-psicanalíticas da hipnose e da regressão, legitimadas pelo discurso da neurociência 18 . Ou ainda, as psicoterapias esotéricas e as ‘terapias evangélicas’, cuja versão bizarra temos acompanhado com o aumento do número de pastores evangélicos que se apresentam como psicanalistas. No artigo “Psicanálise, psicoterapias, ainda...”, Marie-Jean Sauret (2006) apresenta a inovação do método freudiano, situando-a frente às psicoterapias propagadas no século XIX. Esse autor indica o nascimento da psicoterapia moderna, marcado pelo enobrecimento da ação terapêutica pela sugestão, em detrimento do desuso da hipnose como método principal de tratamento daquele contexto histórico. Ao constituir o método analítico, Freud renuncia não somente à hipnose, mas também ao tratamento por sugestão, propondo-se de maneira original a escutar aquele que sofre. Podemos entender, então, que Freud não rompe com essa concepção da psicoterapia moderna, “mas com a psicoterapia ela mesma” (SAURET, 2006, p. 27), já que promove uma passagem da utilização da sugestão para a escuta do saber que cada sujeito produz sobre seus sintomas no terreno da transferência analítica. 18 Referência às práticas da hipnose e regressão, atualmente reeditadas com base na Programação Neurolingüística (PNL). Fonte: http://www.hipnoseeregressao.org, acessado em 02/02/2012. 23 O autor (SAURET, 2006) indica a figura do psicoterapeuta como aquele que tomou, no cenário do século XIX, o lugar das antigas crenças nas quais se apoiavam as religiões. Psicanálise e psicoterapia dividiram, desse modo, o espaço entre o íntimo e o social no contexto das sociedades totalitárias nas quais a ciência ou as religiões pretendiam regular a vida política. Desde então, os princípios norteadores das técnicas de psicoterapia basearam-se, em regra geral, na capacidade do indivíduo de se instrumentalizar dos conselhos do terapeuta, na tentativa de limitar o peso de seus sofrimentos. A propósito dessa abordagem clínica, Sauret (2006, p. 26) assinala que “a psicoterapia coloca a transferência a serviço da sugestão” uma vez que fortalece o assujeitamento do paciente ao olhar do terapeuta que conduz um tratamento. Na tentativa de corresponder ao método da associação livre, regra fundamental da psicanálise, Freud formulou a teoria etiológica dos sintomas para fundamentar o que sua experiência clínica lhe trazia. A investigação sobre a etiologia da neurose originou-se com a interrogação de Freud sobre os sintomas histéricos no encontro com Charcot, levando-o a postular uma causalidade psíquica e indicar o papel da representação mental no inconsciente atuando no corpo. O avanço nessa teoria constituiu um rompimento com os estudos da psiquiatria clássica e possibilitou que Freud descobrisse a origem psíquica dos sintomas, sustentando a determinação simbólica e sexual figurada na fantasia inconsciente. No início de sua obra, Freud considerava o desencadeamento de um sintoma como provocado por um evento traumático real na história do paciente. Na passagem dos anos de 1905-1906, em Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das neuroses (FREUD, 1996), Freud reformou sua teoria sobre o trauma sexual designado não mais por um evento externo, mas como um acontecimento psíquico carregado de afeto, como uma ficção de uma cena traumática, nomeada de fantasia na obra freudiana. As fantasias inconscientes, constituídas por fatores de constituição sexual, designam as tentativas de satisfação de desejos originários de privações, sendo inicialmente fantasias conscientes, denominadas por Freud de devaneios e tornadas deliberadamente esquecidas e inconscientes com o processo de recalque. Com base nessa formulação teórica, as fantasias inconscientes, expressas por meio dos sintomas, puderam ser tratadas pelo método analítico, cuja direção clínica possibilitava ao sujeito apreender tal fantasia de modo consciente a partir do método da associação livre. A teoria sobre a etiologia do sintoma histérico, portanto, conduziu Freud a indicar o papel da fantasia na formação dos sintomas, dando destaque ao saber inconsciente que o sintoma enuncia no terreno da transferência analítica. E isto demarca a originalidade do tratamento 24 freudiano dos sintomas como uma operação clínica que assume a função de fazer o sujeito falar a palavra que foi recalcada, decifrando, assim, o enigma de seu sintoma. A inovação freudiana do tratamento dos sintomas traçou a especificidade da escuta analítica diante dos métodos psicoterapêuticos e científicos e, nessa perspectiva, “é impossível avançar na psicanálise se não assumirmos essa descoberta do sintoma” (SAURET, 2006, p. 28). Retomando suas considerações a propósito da distinção da psicanálise frente às psicoterapias, Sauret considera que “a psicanálise não se coloca a serviço da fantasia” (SAURET, 2006, p. 27), ou seja, ela não se volta para essa ‘teoria íntima’ assumida pelo sujeito, no intuito de normalizar sua relação com o Outro; o que é característico da terapêutica da sugestão. Enquanto “a psicoterapia se coloca a serviço de uma fantasia” (SAURET, 2006, p. 28) fortalecida pela falência das crenças que o discurso científico inaugura, a psicanálise opera a partir do sintoma, convocando cada sujeito a extrair a sua verdade do estado sintomático que o acomete. Na medida em que Freud funda o tratamento analítico, ele descobre, ao lado da fantasia, o sintoma como uma expressão singular de um sujeito para alojar seu mal-estar no laço social. Diante disto, o método da psicanálise promove uma operação que incide sobre a fantasia até o ponto em que o sujeito do inconsciente “descobre o estofo do qual é fabricada a sua singularidade, quer dizer, o que ele é como objeção ao saber – antídoto da sugestão: nenhum Outro e nenhum si mesmo permitem ao sujeito orientar-se para uma solução (...) - somente o sintoma.” (SAURET, 2006, p. 27). Lacan apresenta a psicanálise como “uma nova abordagem para tratar a economia da linguagem” (LACAN, 2002, p. 186) 19 , em contraposição às demais abordagens clínicas que se ocupam do tratamento do sintoma. Estabelecendo uma relação “de ego a ego” 20 , as práticas psicológicas dirigem suas intervenções para o reforço do eu e, consequentemente, para o sentido oposto ao da dissolução dos sintomas, conforme a relação que Freud estabelece entre a formação dos sintomas e as fantasias inconscientes. E sobre a teoria freudiana do eu em seu caráter fantasmático, Lacan comenta: “o eu está como uma “miragem” (ideal do eu) e sua função de ilusão é fundamentalmente narcísica, a partir dela o sujeito dá a nota da realidade” (LACAN, 2002, p. 199). Com essa afirmativa, observamos o risco de tomar o relato do sintoma pela rasa análise do eu e, com isso, acentuar a relação fantasmática correlativa do eu com o “imaginário do sintoma” (LACAN, 2002, p. 187). Tomando a referência das psicoterapias que “se colocam a serviço da fantasia”, situamos o exemplo das ‘terapias do stress pós-traumático e do pânico’, como práticas que se servem dos fenômenos imaginários 19 20 O Seminário, livro 3: as psicoses [1955-1956]. Nesse texto, Lacan faz referência à ‘Psicologia do Ego’ como prática difundida pelos pós-freudianos. 25 que resultam das identidades diagnósticas. E isto nos remete às correntes terapêuticas que estão a serviço do caráter imaginário da fantasia, as quais Lacan (2002, p. 187) nos alerta que “não foi nesse nível que a psicanálise produziu a sua descoberta essencial”. Ao formular a articulação da linguagem com o saber inconsciente enunciado no sintoma histérico, Lacan lança mão do caso Dora, no qual Freud demonstra que o analista não deve se deixar apreender pelo saber ligado pelos significantes que se articulam coerentemente. Ao invés disso, o analista deve estar atento à duplicidade revelada na relação do sujeito com o sintoma como significante que o conecta na cadeia simbólica. Em Intervenções sobre a transferência Lacan (1998, p. 214) caracteriza a operação freudiana com o sintoma como uma “experiência dialética”, por ser marcada por um encontro que, ao privilegiar a verdade do analisante, se inicia com a fala do sujeito e o silêncio do analista. Esse encontro deve ser apreendido de uma dinâmica não dogmática e, portanto, ocorrendo de maneira dialética 21 com o discurso do analisante. Caracterizando a psicanálise freudiana como uma experiência dialética, Lacan (1998) afirma que o tratamento analítico deve permitir o reconhecimento do lugar que o sujeito ocupa na queixa de seu sintoma por meio de uma retificação subjetiva. E sem dar importância ao que a incoerência ou as convenções de regra venham instaurar no discurso, esse movimento dialético deve permitir a formulação da verdade do sujeito na transferência. Com essa leitura do caso Dora, é possível depreender que a verdade do sujeito vai se desvelando no transcorrer da associação livre, na qual se apresentam modulações de verdade correlatas às elaborações dos sentidos variados que o sintoma assume para o analisante. Assim, é possível compreender a relação que Lacan estabelece entre a dialética e transferência, que “não é nada de real no sujeito senão o aparecimento, num momento de estagnação da dialética analítica, dos modos permanentes pelos quais ele constitui seus objetos” (LACAN, 1998, p. 224, grifo nosso). Com isso, Lacan indica a incidência do real na clínica pelo momento em que certo elemento de verdade do sujeito ainda não cedeu o seu lugar à construção de uma nova verdade, de um novo sentido do sintoma. Em seguida lança a pergunta: “o que é, então, interpretar a transferência?” a qual responde: é “nada além de preencher com um engodo vazio desse ponto morto” (LACAN, 1998, p. 225). Como “ponto morto”, entendemos os momentos “não dialéticos”, em que o sentido do sintoma escapa à 21 Cabe lembrar que, os elementos básicos da dialética hegeliana são a tese, a antítese e a síntese. A tese é uma afirmação ou situação inicialmente dada. A antítese é uma oposição à tese. Do conflito entre tese e antítese surge a síntese, que é uma situação nova que carrega dentro de si elementos resultantes desse embate. A síntese, então, torna-se uma nova tese, que contrasta com uma nova antítese, gerando uma nova síntese, em um processo em cadeia. Nessa perspectiva, todo movimento, transformação ou desenvolvimento, opera-se por meio de contradições ou mediante a negação. A dialética é a negação da negação, ou seja, uma nova afirmação. 26 significação, que não é outra coisa senão incidência do real na própria transferência. A interpretação da transferência, ao propiciar uma retificação subjetiva ou uma nova associação de sentido ao sintoma, possibilita preencher, com um engodo, o vazio desse ponto morto, “mas esse engodo é útil, pois mesmo enganador, reativa o processo” (LACAN, 1998, p. 225). A partir do movimento dialético instaurado por Freud na experiência analítica, é possível demonstrar a especificidade de suas intervenções como modo de reativar o processo de elaboração do sujeito analisante, considerando o real em jogo, no tratamento dos sintomas. Isto se diferencia, absolutamente, da prática das psicoterapias, em que o sintoma é tomado a partir da redução a uma hermenêutica 22 , como portador de sentido que nada tem de real. Tomar a interpretação do dizer dos sintomas pelo viés filosófico da hermenêutica implica, portanto, sair do caminho percorrido por Freud de ruptura com as práticas psicológicas que mais se aproximam da consistência hermenêutica em sua análise exaustiva da linguagem, em busca de uma explicação coerente que corresponda aos ideais de uma cultura. A descoberta freudiana vai muito mais além do exercício da fala, do qual a medicina, as religiões ou as psicoterapias sempre se apropriaram para o estabelecimento de condutas e de aconselhamentos normativos. Cabe, então, ressaltar a especificidade clínica e política da operação analítica com os sintomas ao marcar, de fato, o fim da crença num “outro” que responda com um saber prévio sobre o que é o sujeito, ditando-lhe o que deve saber sobre seu estado sintomático. Considerando esta uma questão fundamental para nortear a proposta de uma política psicanalítica do sintoma, é necessário que os psicanalistas estejam advertidos quanto a sua não submissão ao saber constituído pelos serviços de tratamento ou pelos poderes públicos que os gerenciam, para que o reconhecimento de que “o saber não se encontra no sujeito e sim no sintoma que o sustenta” (SAURET, 2006, p. 29) oriente seu trabalho. Se o gênio de Freud foi o de descobrir nos fenômenos dos sintomas o mecanismo das formações do inconsciente, com Lacan avançamos nessa teoria com uma elaboração teórica precisa, que distingue o sintoma “patológico” do qual se queixa o sujeito neurótico e o sinthoma como solução. Ao dirigir a queixa de seu sintoma ao Outro, o sujeito se confronta com o fracasso de sua teoria mais íntima – a fantasia – e, por isso, demanda ao Outro que o 22 Hermenêutica é um ramo da filosofia e estuda a teoria da interpretação, que pode se referir tanto à arte da interpretação ou à teoria e treino de interpretação. A hermenêutica tradicional – que inclui hermenêutica Bíblica – se refere ao estudo da interpretação de textos escritos, especialmente nas áreas de literatura, religião e direito. A hermenêutica moderna, ou contemporânea, engloba não somente textos escritos, mas também tudo que há no processo interpretativo. Isso inclui formas verbais e não verbais de comunicação, assim como aspectos que afetam a comunicação, como preposições, pressupostos, o significado e a filosofia da linguagem e a semiótica. A consistência hermenêutica refere-se à análise de textos para explicação coerente. Uma hermenêutica (singular) refere-se a um método ou vertente de interpretação. Fonte: www.conpedi.org.br , acessado em 02/02/2012. 27 cure, já que dele espera receber as respostas para aplacar seu sofrimento. A concepção do sinthoma designa, por sua vez, uma solução inventada pelo próprio sujeito, ainda que uma análise não aconteça, por permitir não somente amarrar e enodar as dimensões da linguagem, do corpo e do gozo que constituem o sujeito, mas também articulá-las ao laço social. Dessa concepção empregada no final do ensino de Lacan, extraímos uma nova orientação para clínica e para a política psicanalítica que se sustenta com o sintoma, concebido como real do gozo, o que implica uma operação com o sintoma apreendida no nível de um sentido que concerne ao real. Trata-se de uma nova proposta para a clínica do sintoma, cuja direção visa localizar no sujeito o seu ponto incurável e uma nova solução frente ao manejo do gozo. Orientar-se pelo sintoma seria, então, um modo de lidar com o sintoma; não tentando dele se desembaraçar, mas o identificando em sua maneira de gozar. E isto implica a possibilidade de transmissão da lógica do sintoma em cada caso como uma orientação para o trabalho em equipe, que se difere das demais abordagens terapêuticas que compõem hoje o campo da saúde mental. 1.1.2. A política lacaniana do sintoma No artigo O que funda a nossa política do sintoma 23 , Maurizio Mazzott (2007) comenta a leitura das duas conferências de Freud sobre o sintoma apresentada por JacquesAlain Miller, partir do ensino de Lacan. Nessa apresentação, Miller ressalta a articulação dos três registros que configuram o estatuto do sintoma para a psicanálise, sendo estes os registros do saber, do sentido e do real. Com base nessa idéia, apresentamos um recorte teórico da obra de Freud e do ensino de Lacan sobre a concepção de sintoma, considerando suas articulações com esses três registros como o que estabelece e diferencia a práxis e a política analítica nos tempos atuais. Na clínica lacaniana, o sintoma é concebido pela repetição do gozo que se impõe ao sujeito, o que nos faz considerar o sintoma um saber que não cessa de se escrever no real. O sintoma, já advertia Lacan (LACAN apud MAZZOTTI, 2007, p. 73), é do ponto de vista da psicanálise correspondente ao que para a ciência é o real. No entanto, a política psicanalítica do sintoma não coincide com a corrente da medicina científica que reedita a decifração do sintoma em seus laboratórios, por meio do cálculo das novas tecnologias, em que o sintoma é tratado como saber sobre o real. A política da psicanálise, ao contrário, assume o lugar 23 Tradução do título do artigo Ciò que fonda la nostra política del sintomo. Nesse artigo, o autor comenta uma conferência de Jacques-Alain Miller proferida na Espanha sem, no entanto, apresentar sua referência bibliográfica. 28 deixado vazio pela medicina que, apesar de seus avanços, jamais apreenderá definitivamente a verdade do sintoma. Se excluirmos o registro do sentido da conjugação entre os registros do saber e do real, não teremos clareza do estatuto do sintoma para a psicanálise e estaremos aprisionados na percepção dolorosa da manifestação sintomática, no sofrimento causado por sua repetição e no lamento de uma fatalidade que incide sobre o corpo. É necessário, então, explorar a crença do sujeito no “querer-dizer” do sintoma (MAZZOTTI, 2007, p. 74) para que a operação analítica se instaure, a partir do sentido do sintoma, apreendido como a verdade que o inconsciente enuncia. Sob essa perspectiva, privilegiamos a articulação do sentido do sintoma com o saber inconsciente e o real, tomado em sua dimensão simbólica de verdade e em sua dimensão de real do gozo, como o que marca a ‘nossa política do sintoma’ ao se diferenciar das correntes da medicina científica, que trata o sintoma como “distúrbio real”, conferindo-lhe objetividade de sentido. Para avançar nessa discussão, Antonio Di Ciaccia nos leva a reconhecer o sentido do sintoma remetido, ainda, à proposta de uma política do sintoma quando afirma uma articulação entre as seguintes proposições: “Existe uma política do sintoma. Somente uma. E existem duas políticas do sintoma. Somente duas” (DI CIACCIA, 2007, p. 85). Ao explicar tais sentenças, aparentemente contraditórias, o autor se utiliza da idéia de que existe somente uma política do sintoma, afirmando que o complemento ‘do sintoma’ deve ser entendido no sentido subjetivo, pois o sintoma possui igualmente somente uma política. Em termos freudianos, o autor assinala que “o sintoma tem como política, que ele seja satisfação pulsional”, ou mesmo utilizando a terminologia lacaniana, “que ele seja gozo” (DI CIACCIA, 2007, p. 85). A afirmativa “o sintoma tem uma política” consiste em designar o sintoma conforme o estatuto que a psicanálise freudiana lhe confere, ou seja, o de ser uma formação do inconsciente que se inclui na pólis e se subordina à civilização, ainda que através de um mal estar. Na orientação lacaniana, o sintoma funciona para o gozo, seguindo uma lógica articulada ao “inconsciente como um saber que o sujeito não sabe que sabe”. Assim, o sintoma possui leis próprias que funcionam seguindo uma lógica que inclui a repetição do gozo e o modo singular como cada sujeito goza do seu inconsciente. Na segunda afirmação “existem duas políticas do sintoma. E somente duas” (DI CIACCIA, 2007, p. 86), esse autor esclarece o complemento “do sintoma” concebido no sentido objetivo, acrescentando que “sobre o sintoma podem existir algumas políticas” que podem ser reduzidas a apenas duas delas. Uma é a política de Lacan e a outra é a política “de todos os outros”, cuja orientação clínica se desenvolve em múltiplas perspectivas. Caracteriza 29 esta segunda política como sendo ‘uma’ política do sintoma que orienta a prática clínica ‘de todos os outros’, a partir da exclusão do real em jogo no sintoma e de sua relação com o sujeito que o habita. Em seguida, acrescenta que esta é também ‘uma política multiplicável’, na medida em que todas essas orientações tendem a adaptar o sintoma ao discurso do mestre (DI CIACCIA, 2007, p. 86). Como exemplo, tomamos os métodos clínicos que consideram o sintoma como um déficit ou um desfuncionamento, compreendendo-o por meio de uma formalização de saber que o reduz à unificação da classificação diagnóstica e de comunidades identitárias que se constituem por intermédio de variados diagnósticos. Qual seria, afinal, a política do sintoma de orientação lacaniana? A política lacaniana retoma o legado clínico e político de Freud em continuidade com os seus fundamentos teóricos. Segundo o autor (2007), Lacan é mais redutivo do que Freud no primeiro momento de seu ensino, pois privilegia a concepção de satisfação pulsional e sua possível operacionalidade no manejo do tratamento do sintoma. Essa operação com o sintoma se relaciona diretamente à proposição lacaniana do ‘inconsciente estruturado como uma linguagem’, que trata o sintoma como metáfora, como verdade do sujeito passível de decifração, produzida pela interpretação analítica. Em um segundo momento, entretanto, Lacan privilegia a relação estabelecida entre sintoma e gozo, considerando que a operação analítica se produz concebendo o sintoma como “nó de signo”, como “um saber que se trata somente de decifrar, já que consiste num ciframento” (LACAN, 2003, p. 552) 24 apreendido pelo equívoco e pela cifra repetitiva do gozo sem sentido. O inconsciente, então, trabalha sem pensar e sem calcular e desse “trabalho de ciframento, ou seja, daquilo que desfaz o deciframento” (LACAN, 2003, p. 551) se extrai algo que é da ordem do gozo. O sintoma definido como ‘nó de signo’ designa o estatuto lacaniano do sintoma como sendo a particularidade do sujeito, já que o signo instaura a relação do sujeito como falasser diante do real. Com essa particularidade, estabelecida através do universal, Lacan considera que “é pela via do particular, daquele particular que eu faço equivaler ao termo sintoma” (LACAN apud DI CIACCIA, 2007, p. 87) que é possível cernir o estilo singular de um sujeito. A singularidade do sintoma, portanto, não corresponde à sua particularidade, mas ao que Lacan nomeia, no final de seu ensino, como sinthoma. Entretanto, para conduzir a discussão sobre a teoria do sinthoma empregada por Lacan (2007), em seu Seminário 23, é necessário indicar algumas modificações propostas em seus últimos seminários, como meio 24 Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos [1973]. 30 de localizar uma passagem da concepção do sintoma como verdade à abordagem do gozo do sintoma. A orientação do real do sinthoma No ensino de Lacan, encontramos um deslocamento da teoria do sintoma que comporta mudanças acentuadas em sua abordagem, ainda que marcada por um contínuo teórico tanto de seus seminários como da obra freudiana. Desse modo, vemos a mudança na abordagem do sintoma como verdade à variedade do sintoma, do sintoma metáfora ao real do gozo do sintoma, do sintoma parasita ao sintoma como o modo como cada um goza de seu inconsciente, até chegar ao sinthoma como quarto nó que amarra os três registros real, simbólico e imaginário. Os escritos lacanianos expõem, na década de 1950, uma definição do sintoma fundamentada no simbólico e apoiada em Freud, passando a ser designada, na década de 1970, a partir do real. Neste segundo momento, como apresentado na primeira aula do seminário denominado RSI, Lacan (1974-1975, inédito) afirma que é “do real que se trata no sintoma”, associando essa definição à articulação entre o gozo e o inconsciente. Na conferência 25 intitulada A terceira, Lacan (1975) trata a abordagem psicanalítica do sintoma pelo real, apresentando como proposição três faces do real, situando o sintoma na terceira dessas faces; o que dá título à sua conferência. Lacan define o sintoma em sua vertente real como particularidade, na medida em que faz objeção ao mestre. O sentido do sintoma, afirma Lacan (1975): (...) não é aquele com o qual nutrimos para sua proliferação ou extinção; o sentido do sintoma é o real, o real na medida em que se coloca em cruz para impedir que as coisas funcionem, no sentido em que elas dão conta por si mesmas de maneira satisfatória – satisfatória pelo menos para o mestre/senhor. A vertente real do sintoma, para Lacan, é aquilo que, no sintoma, resiste à interpretação, melhor dizendo, não é aquilo que é do campo da significação, mas o que resta do sintoma, quando os efeitos da interpretação não são suficientes. Em suma, trata-se de uma vertente do gozo do sintoma, conforme afirma Lacan no seminário RSI: “... defino o sintoma pela maneira como cada um goza do inconsciente na medida em que o inconsciente o determina” (1974-1975, inédito). O sintoma, então, passa a ser designado como o que localiza o gozo do inconsciente e como marca singular do sujeito. Com essa definição do sintoma a partir do real do gozo pulsional, Lacan assinala, ainda, que o sintoma é o que não cessa de se 25 Referência ao VII Congresso da École Freudienne de Paris, realizado em Roma no ano de 1974. 31 escrever, tomando, assim, a função de letra por estar isolado da cadeia de significantes e por fixar um gozo no inconsciente. Segundo a concepção de Lacan (2007), no final de seu ensino, no sinthoma não encontramos propriamente a verdade (la verité), mas a vari(e)dade (la varité). Essa passagem resulta da variação da concepção do sintoma como verdade à variedade do sinthoma inventado pelo sujeito como modo de sustentar sua singularidade. Assim, o inconsciente é menos um saber que não se sabe e é mais um savoir y faire. No artigo intitulado Peças Avulsas, Jacques-Alain Miller (2005) sugere uma série de substituições propostas por Lacan em seus últimos seminários, salientando a substituição da verdade pelo gozo como modo de conceber a modificação do nome 26 para designar o sintoma; precisamente quando Lacan faz uma disjunção entre sintoma e verdade, dando nessa disjunção um lugar ao gozo. Ao apresentar a diferenciação estabelecida por Lacan entre os conceitos de sintoma e de sinthoma, Miller comenta a substituição da concepção do sintoma da verdade ao gozo que repercute o que Lacan apresenta em seu Seminário, livro 20, quando introduz um redirecionamento da concepção de linguagem através do conceito de lalíngua (LACAN,1985). No final de seu vigésimo seminário, intitulado Mais, ainda, Lacan interroga a definição do inconsciente estruturado como uma linguagem, pois se o inconsciente é decifrável e, por isso, só pode se estruturar como uma linguagem, a linguagem, por sua vez, é sempre hipotética, tomada como uma ficção e uma construção. Desse questionamento, Lacan introduz a diferença entre a linguagem e a lalíngua 27 , considerando que, a partir de lalíngua, se faz surgir a linguagem. A linguagem, então, deixa de ser prévia e passa a ser designada como “uma elucubração de saber sobre a lalíngua” (LACAN, 1985, p. 190). Se apreendemos com Lacan que a linguagem não passa de elucubração sobre o uso primário de a lalíngua, isto nos leva a considerar que o uso da linguagem é o de servir à comunicação, tal como designado pelo inconsciente freudiano, que desvela seu sentido no nível de uma comunicação cifrada, que demanda ser decifrada em uma análise. É, portanto, do Seminário 20 que podemos entender a linguagem como “o que se inventa a partir da lalíngua” (MILLER, 2005, p. 13), melhor dizendo, como o que se deixa entrever na linguagem e que serve a algo diverso da comunicação. Como sistema linguístico e como articulação significante produtora de sentido, a linguagem torna-se secundária à lalíngua, que se apresenta por meio de 26 Referência à mudança ortográfica empregada por Lacan em seu Seminário, livro 23: Sinthome, ao diferenciar o conceito de sinthoma (sinthome) do conceito de sintoma (symptôme). 27 Tradução do termo Lalangue elaborado por Lacan em 1972 em O Seminário, livro 20: Mais, Ainda (1985). 32 significantes desconexos e ligados ao gozo. Nessa perspectiva, o conceito de lalíngua implica tomar o significante a serviço do gozo. Tal diferenciação, traçada por Lacan em 1972, se revela como um avanço fundamental para chegarmos ao estatuto do sinthoma, postulado do Seminário 23. O sinthoma, aquele que Lacan inventa após o Seminário Mais Ainda, se ancora na literatura de Finnegans Wake, obra especial de James Joyce pelo seu caráter enigmático e não analisável. Para Lacan, o sintoma de Joyce se apresenta em Finnegans Wake pelos ecos e jogos de palavras de inúmeras línguas, melhor dizendo, como um sintoma concernente à linguagem da qual Joyce soube fazer arte, inventando-lhe a função de sinthoma. Nessa perspectiva, Lacan sustenta “a maneira plena e especialmente artística” (LACAN, 2007, p. 122) de James Joyce com sua literatura pelo seu “savoir-faire nisso”, identificando-o como “o sinthoma tal que não há nada a fazer para analisá-lo” (LACAN, 2007). Em Finnegans Wake, Joyce “tira proveitos de equívocos” (LACAN, p. 128) inerentes à sua própria língua, porém não para frisar o que é da ordem do sentido, mas para “liberar algo do sinthoma” elevado à potência de gozo da linguagem, àquilo que não se pode analisar. Ao modificar a língua inglesa, pulverizando-a entre restos, ecos e jogos de palavras, Joyce demonstra, em Finnegans Wake, como a linguagem é desfeita pelo impulso da lalíngua. A propósito dessa última obra de Joyce, Lacan chega a evocar o diagnóstico psiquiátrico da mania, assemelhando-a à escrita de Joyce na qual vemos a linguagem sendo trabalhada na via de decomposição e de dissolução. Trata-se não de considerar um fenômeno de linguagem categorizado pela psiquiatria, mas de assinalar na literatura de Joyce algo da ordem da linguagem que se mostra “decomposta, desfeita, recheada de ecos que ele faz fermentar, homofonicamente, entre outras línguas” (MILLER, 2005, p. 21). Assim, James Joyce avança como um “mestre do significante”, não fazendo deslizar o significante em sua articulação com o significado, mas contrastando “essa boa rotina que faz com que o significado mantenha sempre o mesmo sentido” (LACAN, 2003, p. 58) 28 . É, então, da leitura lacaniana de Finnegans Wake e da operação joyceana com a linguagem submetida à lalíngua, que podemos conceber deslocamento da concepção do sintoma da verdade ao gozo. Ao definir a operação freudiana como sendo “a operação característica do sintoma” (LACAN, 1998, p. 235) 29 , Lacan nos apresenta, com a sua releitura da obra de Freud, a operação do sintoma como atrelada à articulação entre o sentido do significante, tomado como verdade, e o sintoma. Da leitura lacaniana, podemos considerar o sintoma freudiano como 28 29 Prefácio à edição inglesa do Seminário 11 [1976]. Do sujeito enfim em questão [1966]. 33 verdade uma vez que é aquilo que se interpreta na ordem do significante. Se o significante é solidário a uma ordem simbólica, que se conforma na sequência expressa pela relação entre S1-S2, apreendemos nessa ordem a condição para o sentido, pois o significante só tem sentido em sua relação com outro significante. Desse modo, Miller (2005, p. 20) comenta que, por intermédio de Freud, “damos a essa verdade um outro nome, a chamamos de sintoma. O sintoma é o nome clínico da verdade”. Ao se ancorar na obra de James Joyce, Lacan nos mostra que há um além da decifração de uma verdade presente na escrita desse artista. Na conferência Joyce, o sintoma, pronunciada em 1975, na abertura do V Simpósio Internacional James Joyce, Lacan utiliza-se do exemplo da universidade que vem se ocupando do texto de Joyce e “dos problemas totalmente cativantes, fascinantes para o universitário mastigar” (LACAN, 2007: 159) na tentativa de decifrar sua obra. A posição de Lacan de reserva e de abstenção em relação à interpretação de Joyce contrasta, portanto, com a dos universitários diante da escrita enigmática desse autor. Do ponto de vista dessa conferência lacaniana, a única coisa que se pode apreender do texto de Joyce, pelo menos em Finnegans Wake, é o “gozo daquele que escreveu isso” (LACAN, 2007, p. 163), o que equivale dizer que “a única coisa que se pode apreender é o gozo, não a comunicação, não uma verdade decifrada” (MILLER, 2005, p. 21). A leitura de Finnegans Wake conduz Lacan a considerar que a escrita de Joyce desvela “uma relação com joy, o gozo [jouissance], tal como ele é escrito na lalíngua que é a inglesa, por ser essa gozação, por ser gozo a única coisa que, do texto podemos pegar. Aí está o sintoma.” (LACAN, 2007). Desse modo, o significante passa a ser considerado por Lacan como causa de gozo e o sintoma, desnudado e reduzido como apontado na literatura de Joyce, não se caracteriza mais pelo viés da verdade a ser decifrada ou interpretada, mas pelo gozo. Assim, Lacan (2007, p. 162) ressalta que: É isso que se constata no que faz de Joyce o sintoma, o sintoma puro do que concerne a relação com a linguagem, na medida em que ela é reduzida ao sintoma – a saber, ao que ela tem como efeito, quando não analisamos tal efeito –, eu direi mais, quando nos furtamos de jogar com quaisquer equívocos que abalariam o inconsciente de qualquer um. A partir dessa conferência, Lacan apresenta uma nova orientação para clínica analítica, cuja direção é menos decifrar o sintoma do que fazer uso dele. Nessa perspectiva, Miller (2005) apresenta uma abordagem do sintoma pela linguagem não somente pela via da interpretação, mas pela redução, ou seja, pela apropriação da associação livre para servir à redução do gozo do sintoma. 34 Na concepção que Lacan inaugura a partir da obra “estimulante” (LACAN, 2007, p. 116) 30 de Joyce, o sinthoma não se decifra nem tampouco se cura; trata-se, então, de saber que função encontrar para ele. Por conceber que “deve haver um Joyce manejável” que o psicanalista não deve recusar-se em considerar, Lacan (2007) introduz um uso lógico que deve ser aplicado ao sinthoma que se afasta de uma lógica do sentido. Isto implica reconhecer que o estatuto do sinthoma não se aproxima de uma formação do inconsciente como designado por Freud, mas que deve ser usado “logicamente até atingir seu real, ate se fartar.” (LACAN, 2007, p. 16). O uso lógico do sinthoma, o qual Lacan nos convida a não recusar clinicamente, se contrapõe ao uso da decifração que, como vimos, se remete à noção de verdade do sintoma, para nos conduzir à “orientação do real do sinthoma que foraclui o sentido.” (LACAN, 2007, p. 117, grifo nosso). A partir da década de 1970, encontramos em Lacan a idéia de que visar à verdade do sintoma é alimentá-lo. Assim, quando a interpretação visa enunciar uma verdade, ela alimenta o sintoma como postulado por Lacan em uma das conferências pronunciadas no mesmo ano: “A interpretação não deve ser teórica, sugestiva, ou seja, imperativa”, o que implica considerar que ela não é “feita para ser compreendida, ela é feita para produzir ondas” (LACAN, 1976, p. 16) 31 . O uso clínico da interpretação analítica, portanto, não deve ser o de alimentar o sintoma, não deve ser o “alimento da mentira verdadeira, do mentir verdadeiro do sintoma” (MILLER, 2005, p. 16). Nessa direção, o ponto de partida do Seminário 23 é o de empregar o uso lógico do sinthoma, se opondo à decifração do sintoma, a partir da interpretação para introduzir a nova orientação clínica da redução de um elemento, ou mesmo, a um significante. O importante a assinalar na concepção lacaniana do sinthoma, portanto, é a nova orientação para a clínica do sintoma, resultante dessa teoria, cuja operação é apreendida no nível de um sentido que concerne ao real. Lacan demonstra que a única possibilidade da operação analítica alcançar o real do sintoma seria o de manejar o equívoco do significante, melhor dizendo, o gozo do sentido [jouis-sens] que permeia a lógica significante. De outro modo, a operação metodológica com o equívoco significante seria algo que provocaria o ‘nutrir de sentido o sintoma’, reduzindo o sentido do sintoma a uma adaptação aos ideais que orientam as psicoterapias. Esse é, portanto, um aspecto fundamental da operação analítica com o sintoma, pois ao sustentar um manejo pela via do equívoco significante, a proposição 30 31 O Seminário 23: o sinthoma [1975, 1976]. Conférences et entretiens dans des universités nord-americaines [1975]. 35 lacaniana permite nos orientarmos pelo sintoma, sem que o real não exclua a operação com o sentido do sintoma. Eis o que nos possibilita sustentar uma direção essencial e irrenunciável da política analítica do sintoma que se diferencia da ciência e da hermenêutica. No entanto, notamos que alguns impasses atravessam a práxis analítica diante dessa orientação do real para a clínica do sintoma. O primeiro deles concerne à operação analítica com o sintoma concebido como real do gozo, cuja via do sentido comporta em si um obstáculo para a decifração. Entretanto, se por um lado o real é sem sentido, e isso nos impede de esgotar a decifração do sentido do sintoma, por outro, esta é a via pela qual é possível tocar o real do gozo do sintoma que não cessa de se escrever no corpo. E sobre esse segundo impasse, Lacan situa a possibilidade do uso da interpretação analítica, não pela via da compreensão do sentido do sintoma, mas pelas ressonâncias que a interpretação produz na fala do analisante, sendo esta uma intervenção apreendida no nível de um sentido que concerne ao real do gozo do sintoma. Nessa perspectiva clínica, Miller (1998) propõe o novo conceito da ‘operação-redução’ (MILLER, 1998, p. 29-48) como uma formalização lógica do método analítico diante dos obstáculos que se apresentam na clínica, a partir da repetição do gozo do sintoma. Ao avesso do movimento da amplificação do sentido que se opera na linguagem pelo deslizamento significante, Miller apresenta a operação da redução como aquela capaz de condensar, na associação livre, os elementos do relato do analisante, de suas palavras, de seus pensamentos e lamentos, visando limitar a proliferação de sentido. Marcada, ainda, pela contingência do ‘não programado’ do gozo do sintoma, essa operação se apresenta no nível de uma redução ao real em jogo na experiência analítica. Para concluir o tema desenvolvido da transmissão da política lacaniana do sintoma, convém indicar em que sentido o sintoma se remete à civilização. Ao localizarmos a especificidade da orientação da psicanálise pelo real do sintoma, notamos que a incidência do real na clínica se instaura sempre de modo parcial, como fragmentos do real que correspondem ao indecifrável da repetição do gozo. Trata-se de situar na experiência clínica a contingência do gozo capaz de demonstrar o real como impossível, como lógica própria ao inconsciente ‘não-todo’ decifrável. O fato da contingência permear a posição do psicanalista, entretanto, não o impede de transmitir a outros clínicos o modo do acesso ao real que lhe é próprio. Por um lado, o sintoma é o ponto impossível de ser incorporado à civilização em que o sujeito habita por se apresentar, inicialmente, por uma contingência que dá origem ao singular de cada sintoma. Transmitir o encontro com esse real demonstrado pela contingência irredutível do trauma, que constitui as diferentes maneiras de encontro com o gozo, “é o que 36 Lacan chamou de fazer o sujeito crer em seu sintoma.”, como modo de “indicar a via pela qual se pode viver o que não pode ser vivido do ‘não-todo” (LAURENT, 2007, p. 175). Por outro lado, a prova da existência do inconsciente está no sintoma pelo modo como cada um goza de seu inconsciente. E se o inconsciente é político, isto nos leva a considerar que o insuportável do sintoma pode se transformar em ponto de apoio para que o sujeito reinvente seu lugar no Outro, no laço social. Essa invenção, no entanto, não supõe fazer existir o Um desse Outro, o que se comprova na distribuição dos variados tipos de sintoma em séries díspares e estanques sem, com isso, constituir ‘mundos e civilizações unas’, por ser o sintoma uma expressão própria do mal-estar na cultura. Nesse sentido, “o sintoma depende da civilização” (LACAN, 2007, p. 175) e isto se evidencia quando novos sintomas aparecem sempre que os significantes mestres se deslocam no Outro. O exemplo da rápida evolução da clínica diagnóstica e da prática estatística dos transtornos mentais, disseminada pelos atuais manuais da psiquiatria, evidencia um processo mais complexo de ser balizado em relação às categorias diagnósticas que fizeram tradição na clínica clássica. No contexto atual da sociedade de consumo, não há como negar o modo globalizado em que são diagnosticados, por exemplo, os sintomas depressivos que, ao liderarem as vendas no mercado de psicofármacos, se apresentam constantemente na clínica contemporânea, partindo do lamento, ‘da dor, e não da delícia inventiva de ser o que é’ 32 . Nossa civilização comporta tanto as novas quanto as clássicas categorias diagnósticas da neurose, da psicose e da perversão, tanto a crise de autoridade quanto a herança dogmática da crença religiosa, enfim, uma série de contrastes entre os antigos e novos registros de malestar. O final do ensino de Lacan permite, portanto, conservar o repertório das estruturas diagnósticas da clínica clássica, enriquecendo-as com a concepção de sinthoma, que se estende tanto para as neuroses quanto para as psicoses, na medida em que parte de uma orientação em direção ao real. O discurso analítico como o avesso do discurso do mestre que incorpora os ideais de uma cultura, encontra, assim, sua função na civilização contemporânea: a de fazer o sujeito crer em seu sintoma frente às inconsistentes interpretações dadas aos sintomas, seja nos tratamentos individuais, seja nas instituições. Eis aí o modo como o psicanalista marca sua diferença e a transmite entre diferentes discursos. Ao defendermos a política da psicanálise no campo da saúde mental pela proposta do trabalho em equipe orientado pela lógica singular do sintoma, situamos, ainda, a possibilidade de tornarmos legíveis os sintomas que se 32 Parafraseando a letra de uma canção de Caetano Veloso “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”. 37 proliferam em nossa civilização, graças ao uso subversivo que o discurso analítico faz do significante mestre. Nessa direção, essa pesquisa aborda o método da construção do caso clínico como um importante instrumento para o trabalho coletivo em saúde mental, que permite localizar as escansões e as transformações das organizações subjetivas do gozo, demonstrando as passagens em que o sujeito passa a utilizar o sintoma como suplência, com a construção de novos arranjos sintomáticos. Localizar o sintoma e questionar o destino dado a este na construção coletiva de cada caso é, portanto, um desafio lançado ao psicanalista, que, ao fazer valer o sujeito no sintoma, recolhe, ainda, os efeitos de sua prática no trabalho com os demais dispositivos clínicos presentes no campo da saúde mental. 1.2. Construções em Análise A referência ao termo ‘construção’, empregado na obra freudiana, é essencial para o desenvolvimento dessa pesquisa, pois nos permite abordar os desdobramentos teóricos e clínicos que esse termo traz ao campo clínico da psicanálise. Como principal referencial teórico para essa discussão, apresentamos o texto freudiano Construções em análise, de 1937, tomando como condutoras para essa leitura, algumas pontuações empregadas por JacquesAlain Miller no artigo intitulado Marginália de Construções em Análise (MILLER, 1996) e alguns comentários registrados por Carlo Viganò. Escrito por Freud em 1937, Construções em análise (FREUD, 1996) é um texto particularmente importante, pois, como nos últimos textos da obra freudiana, extraímos as considerações de Freud em relação à descoberta do inconsciente e ao advento da psicanálise. Esse texto se inscreve na série de intervenções de Freud em resposta aos opositores da psicanálise, como realizado, por exemplo, em seu texto sobre a Análise Leiga (FREUD, 1996) no qual defende a possibilidade de ‘não médicos’ praticarem a psicanálise ou, ainda, em Análise Terminável e Interminável (FREUD, 1996) em que responde a certa ‘exigência’ de que a análise fosse concluída rapidamente. Nesse contexto de suas últimas intervenções teóricas, é possível considerar que “a psicanálise começa a ser modificada pela psicanálise” (MILLER, 1996, p. 92), na medida em que esta já ocupava seu lugar no cenário clínico do século XX e, com efeito, começava a se estender como uma prática inventada por Freud que pôde se difundir no mundo. Ao abordarmos os diversos elementos que compõem as Construções em Análise de Freud, partiremos de uma perspectiva específica da teoria psicanalítica, mantendo o rigor de uma continuidade teórica em relação à descoberta do inconsciente. Trata-se de situar, nos 38 últimos textos da obra de Freud (1996, p. 93), a “descoberta da implicação do analista na análise”, concebida pelo modo em que os próprios psicanalistas colocam em prática e transmitem a invenção freudiana ao campo clínico de sua época. Essa perspectiva, por que não dizer ‘política’ da psicanálise, já se apresenta no início do texto freudiano, quando o autor emprega o termo ‘construção’, advertindo, no debate do texto que “o analista militante nada aprenderá que já não saiba” (FREUD, 1996, p. 275). As primeiras referências estabelecidas no texto a respeito do termo ‘construções em análise’ implicam uma discussão sobre o manejo clínico do analista diante do material inconsciente e, em especial, sobre os momentos em que o analista se depara com um ‘ponto perdido’ que não reaparece na fala do analisante. Construção é, portanto, a palavra empregada por Freud para designar a relação do analista com o que permanece recalcado, ou seja, com aquilo que o trabalho analítico não consegue restituir pela via do sentido. Na estrutura do texto freudiano, podemos situar três momentos em que a palavra ‘construção’ recebe concepções diferentes. No primeiro momento, o termo ‘construção’ é designado pela analogia do ‘método arqueológico’ com o trabalho do analista, concebendo a construção como trabalho do analista. No segundo momento do texto, o termo designa a comunicação da construção e as respostas produzidas pelo paciente às construções do analista. E, no terceiro momento, Freud retoma o termo ‘construção’ sob uma perspectiva mais ampla que constitui uma clínica do retorno do recalcado, relançando o termo construção pela via de uma investigação clínica em que o recalcado retorna não apenas na lembrança, mas também nos fenômenos da alucinação e do delírio. Caberia, então, a leitura da terceira parte do texto sob a perspectiva do delírio como construção do paciente. 1.2.1. O método arqueológico e a construção do trabalho do analista A primeira parte de Construções em Análise se remete ao trabalho do analista no aspecto em que se difere do trabalho do analisante, sendo esse aspecto abordado por Freud, com sua sutileza peculiar, diante de argumentos de seus opositores. A intervenção de Freud na abertura desse artigo se remete, então, a sua própria posição de sustentar o método e a ética da psicanálise no contexto científico de sua época. Ao introduzir sua intervenção, Freud se dirige a um dos ‘opositores da análise’33 (FREUD, 1996, p. 275) que, em determinada ocasião, expressaram uma opinião sobre a 33 Em diversas ocasiões de discussão com Carlo Viganò sobre o texto “Construções em Análise”, Viganò indica a similaridade do termo empregado por Freud como ‘verdadeiro e falso, que o fez deduzir ser Karl Popper o ‘opositor’ a quem 39 interpretação analítica de modo depreciativo, tratando-a segundo o famoso princípio ‘Heads I win, tails you lose‘ 34 . Dessa expressão resulta o argumento de que se o paciente concorda com uma interpretação do analista, então, a interpretação está correta, mas, se há uma contradição da parte do paciente, “isto constitui apenas sinal de sua resistência, o que novamente demonstra que o analista estava certo” (FREUD, 1996, p. 275). Diante desse argumento provocativo de um de seus opositores, Freud parte de uma descrição que designa o modo como o analista pode “chegar a uma avaliação do sim ou do não” de seus pacientes no curso de uma análise, não tomando essa avaliação pelo viés da expressão de concordância ou de negação de um analisante diante de uma intervenção do analista. Freud assinala, então, a direção do trabalho de uma análise como sendo a de conduzir o paciente a abandonar as experiências recalcadas, levando-os “a recordar certas experiências e os impulsos afetivos por ela invocados, os quais, presentemente, ele esqueceu” (FREUD, 1996, p. 276). Nessa direção, o autor descreve o que é a ‘matéria prima’ do trabalho do analista, indicando aí os fragmentos de sonhos e de lembranças dos sonhos, as associações enunciadas livremente pelo paciente, os sintomas e as inibições, entre outros fenômenos produzidos pelas experiências recalcadas que habitam o paciente. Freud defende a presença de fragmentos, restos, pequenos pedaços que se revelam na fala do analisante como retorno do recalcado, o que implica a consideração de que “o recalcamento quer dizer que o inconsciente não surge senão em pedaços, através de fragmentos” (MILLER, 1996, p. 94). O termo construção é, então, empregado por Freud como uma tarefa do analista diante deste ‘fragmentário do inconsciente’, caracterizando a experiência analítica como essencialmente fragmentária e, portanto, diferenciada de “uma narração que visa à completude” (MILLER, 1996, p. 94). A partir desse ponto de vista, situamos no texto freudiano um deslocamento da questão levantada por um de seus opositores para a discussão do trabalho do analista de ‘construção ou reconstrução’ diante de sua matéria-prima. Assim, encontramos em Freud (1996, 276-277, grifo nosso): Todos nós sabemos que a pessoa que está sendo analisada tem de ser conduzida a recordar algo que foi por ela experimentado e recalcado, e os determinantes dinâmicos desse processo são tão interessantes que a outra parte do trabalho, a tarefa desempenhada pelo analista, foi empurrada para o segundo plano. O analista não experimentou nem reprimiu nada do material em consideração; sua tarefa não pode ser recordar algo. Qual é, então, sua tarefa? Sua tarefa é a de completar aquilo que foi esquecido a partir dos traços que deixou atrás de si ou, mais corretamente, construí-lo. A ocasião e o modo como transmite suas construções àquele que está sendo analisado, bem como as explicações com que as faz acompanhar, constituem o vínculo entre as duas partes do trabalho de análise, entre o seu próprio papel e o do paciente. Seu trabalho de construção ou, se preferir, de reconstrução, assemelha-se Freud se dirige nesse debate. Contemporâneo ao texto ‘Construções em Análise’ de 1937, Popper publica, em 1935, o clássico Lógica da Pesquisa Científica, que consagra sua teoria sobre o ‘falsificacionismo’ como crítica ao conceito de ‘indução’ do empirismo lógico. 34 Expressão que se traduz na língua portuguesa como: ‘Cara eu ganho, coroa você perde’. 40 muito à escavação, feita por um arqueólogo, de alguma morada que foi destruída e soterrada, ou de algum antigo edifício. A construção é apresentada como uma tarefa do trabalho do analista comparada ao método arqueológico, já que cabe tanto ao analista quanto ao arqueólogo a reconstrução a partir de restos, de fragmentos perdidos. Entretanto, dessa analogia, Freud assinala que o analista trabalha em ‘condições mais favoráveis’ do que o arqueólogo, pois dispõe de um material que não é correspondente ao do terreno das escavações. Trata-se de reconstruir no terreno da transferência analítica as repetições que resultam desses fragmentos de lembranças que são falados pelo analisante e que, portanto, se mantém vivos, de modo diferente da reconstrução de um objeto arqueológico destruído. O objeto psíquico, por sua vez, apreende a preservação de fragmentos inconscientes essenciais que se apresentam no curso de uma análise e, ainda que pareçam completamente esquecidos, “é possível duvidar de que alguma estrutura psíquica possa realmente ser vítima de destruição total” (FREUD, 1996, p. 277). Desse modo, Freud (1996, p. 278) diferencia o objeto psíquico do objeto material da arqueologia, demarcando como principal diferença “o fato de que, para o arqueólogo, a reconstrução é o objetivo final de seus esforços, ao passo que, para o analista, a construção constitui apenas um trabalho preliminar”. A construção, então, não é outra coisa senão um trabalho preliminar do analista. Sob essa perspectiva, o analista constrói para ele próprio, como um trabalho preliminar de construção da estrutura de um caso que é constantemente modificada pelos novos elementos que surgem a cada vez, a cada sessão. Podemos também localizar aí, a função da supervisão analítica como um dispositivo fundamental na formação dos analistas por se tratar da supervisão das construções preliminares do analista na condução de cada caso. Ao concluir essa primeira parte do texto, Freud introduz uma questão prática absolutamente relevante, e sempre atual, em relação a esse trabalho de construção preliminar do analista: em que medida é preciso comunicar as construções ao paciente? 1.2.2. A transmissão das construções em análise Na segunda parte do texto, Freud introduz a transmissão da construção ao analisante, acrescentado novas idéias à primeira parte em que se dedicou, em especial, à tarefa ‘solitária’ do analista, caracterizada pela ausência do paciente na cena inicial desse debate. Nesse segundo momento, o paciente se apresenta no eixo dessa articulação entre a construção preliminar do analista e a comunicação dos efeitos dessas construções em análise. Nessa 41 discussão, cabe acentuar, ainda, o uso do termo ‘transmissão’ (FREUD, 1996, p. 276), empregado por Freud para destacar ‘o modo como o analista transmite suas construções’ aos seus pacientes, tomado aí pelo viés clínico da implicação do analista na direção do tratamento. Contudo, damos acento também ao viés político do uso desse termo no texto freudiano, caracterizado pela transmissão do método e dos princípios da práxis analítica ao campo científico. Caberia, então, questionar em que medida já encontramos na obra freudiana a proposição de uma política da psicanálise, ao marcar sua diferença em relação aos métodos da ciência e da sugestão. De saída, Freud retoma a tarefa de construção como um trabalho preliminar do analista, porém, advertindo não se tratar de “um trabalho preliminar no sentido de que a totalidade da construção deve ser completada antes que o trabalho seguinte possa começar” (FREUD, 1996, p. 279), como no caso da construção de uma casa em que, inicialmente, se erguem as paredes para posteriormente decorá-las. Na conclusão da primeira parte do texto, a propósito da analogia com o método arqueológico, extraímos a idéia de uma “construção sincrônica” (MILLER, 1996, p. 95), designada a partir de vestígios que poderiam ser empregados na construção de um objeto que seria ‘reconstruído’ pela ligação dos elementos fragmentários do material, de modo a ‘voltar a ser o que foi no princípio’. Dito de outro modo, podemos entender que a construção se completaria e que, nesse momento, o analista comunicaria a construção ao paciente. No entanto, dessa frase que introduz a segunda parte do texto, extraímos a idéia de uma “construção diacrônica” uma vez que indica uma alternância em que o analista comunica os fragmentos de construção, recolhe o material produzido pelo paciente para, a posteriori, comunicar-lhe novamente o fragmento do material inconsciente da construção. Assim, Freud (FREUD, 1996, p. 279) assinala que a própria construção é comunicada por fragmentos e não em sua totalidade em uma única vez: O analista completa um fragmento da construção e o comunica ao sujeito da análise, de maneira a que possa agir sobre ele; constrói então um outro fragmento a partir do novo material que sobre ele se derrama, lida com este da mesma maneira e prossegue, desse modo alternado, até o fim. Em seguida, o autor apresenta uma breve articulação entre a construção e a interpretação, preservando uma distinção entre esses dois modos de intervenção ao afirmar que a interpretação “aplica-se a algo que se faz a algum elemento isolado do material”, enquanto a construção se aplicaria para o sujeito em análise a “um fragmento de sua história primitiva, que ele esqueceu” (FREUD, 1996, p. 279). Em termos freudianos, a interpretação é, então, concebida por incidir sob um fragmento de construção, enquanto a construção incide 42 sob o que não pode ser rememorado; embora ambas guardem em si uma simetria em relação ao trabalho de elaboração que está a cargo do paciente. A atenção do autor se volta, então, para o trabalho preliminar das construções no qual situa “a questão de saber que garantia temos, enquanto trabalhamos nessas construções, de que não estamos cometendo equívocos e arriscando o êxito do tratamento pela apresentação de alguma construção incorreta” (FREUD, 1996, p. 279, grifo nosso). Freud reencontra o problema lançado por seu opositor, analisando os diferentes tipos de respostas do paciente dirigidas ao analista quando lhe é comunicado uma construção. Da parte dos pacientes, há o ‘sim ou não’, enquanto que de seus opositores o ‘verdadeiro ou falso’ como possíveis respostas para os efeitos das intervenções analíticas. Ao examinar a verdade ou a falsidade da construção pelo viés da ‘garantia’, por exemplo, Freud aborda a ‘verdade’ da construção, como se interrogasse: o que nos garante que a construção que fazemos é verdadeira ou falsa? Diante da aparente “impossibilidade de responder a essa questão”, Freud lança mão de uma citação da personagem Polônio, da obra Hamlet, de William Shakespeare: “a carpa da verdade foi fisgada graças à isca da mentira”, o que nos permite uma releitura lacaniana dessa citação empregada por Freud nos seguintes termos: “não podemos agarrar a verdade senão pela equivocação” (MILLER, 1996, p. 103). A questão da ‘garantia da verdade’ do trabalho do analista pode, então, nos redirecionar ao debate freudiano sobre a verdade que o inconsciente enuncia, deslocada da questão do verdadeiro ou falso que mais caberia a uma crítica ao método da sugestão. Nessa perspectiva, Freud sustenta em seus argumentos: “posso garantir que o abuso de ‘sugestão’ jamais ocorreu em minha clínica” (FREUD, 1996, p. 280), discutindo, em seguida, ‘o sim e o não’ como respostas do analisante à construção do analista. Ao descrever detalhadamente ‘o sim e o não’ entre uma série de respostas do paciente que “produzam novas lembranças que completem e ampliem a construção” (FREUD, 1996, p. 281), o autor aponta para o aspecto parcial e ‘incompleto’ de uma construção analítica, já que esta “abrange apenas um pequeno fragmento dos eventos esquecidos” (FREUD, 1996, p. 280). Trata-se dos modos de ‘confirmação indireta’ quando não é pelo sim ou pelo não que se dá a resposta, mas quando o sujeito testemunha sua surpresa, quando ele comete um lapso e se trai, confessando o contrário do que gostaria de dizer. Para exemplificar essa passagem, Freud apresenta algumas situações clínicas e, entre elas, ressalta a palavra de um de seus pacientes que, por considerar determinados honorários muito altos, lhe diz: ‘Dez dólares não são nada para mim’, mas, em vez de dólares, inseriu uma moeda de menor valor e disse ‘dez xelins’ (FREUD, 1996, p. 283). Com esse exemplo, o autor aborda a verdade da construção pelo modo como a experiência analítica opera com a verdade como resposta do inconsciente: há o 43 sim, há o não e entre essas, tantas outras respostas. O que se extrai dessa resposta, então, é o que surge ‘indiretamente’ do material inconsciente, o que Lacan nomeará mais adiante como ‘semidizer’, a partir do que já demonstrava Freud sobre o estatuto da verdade. Se a verdade do inconsciente não se pode dizer ‘toda’, ela apenas pode ser semidita, isso implica no fato de que o analisante está sempre equivocado na sua relação com o inconsciente, porque essa relação é, em si mesma, distorcida. Aos opositores da psicanálise, portanto, Freud adverte quanto ao trabalho ‘preliminar’ da construção analítica, diferindo-a da sugestão: “só o curso ulterior da análise nos capacita a decidir se nossas construções são corretas ou inúteis. (...) não exigimos uma concordância direta do paciente, não discutimos com ele, caso a princípio a negue” (FREUD, 1996, p. 283). Essa passagem nos permite situar novamente o deslocamento produzido por Freud em relação a seu ponto de partida em que o analista propõe a construção para, em seguida, o paciente responder ‘sim ou não’ a esse enunciado. Nesse segundo momento, ‘o sim e o não’ fazem parte do material inconsciente, o paciente não responde somente a um enunciado do analista, mas a comunicação da construção diante do aparecimento de um material que resulta em certo número de ‘reações’ do analisante. Não se trata de ‘saber quem tem razão’, trata-se de estar no rastro de uma verdade inconsciente que se revela ao escapar, uma verdade que não exige exame ou aprovação. A operação analítica com a verdade de cada sujeito permite extrair e verificar a posteriori uma lógica em cada caso, segundo um princípio indicado por Freud com base na frase de Nestroy “de que no curso dos acontecimentos, tudo se esclarecerá” (FREUD, 1996, p. 283). 1.2.3. O delírio como construção A terceira e última parte de ‘Construções em Análise’ é introduzida com um novo questionamento de Freud sobre a comunicação das construções: de que modo a construção do analista se transforma em convicção para o paciente? Esse questionamento ‘familiar a todo analista’, em sua experiência clínica, leva Freud a situar um ponto de investigação e de exposição mais detalhada sobre o alcance dos efeitos da construção do analista quando ela não conduz à recordação do paciente. Na comparação empregada entre o trabalho do analista diante do ‘objeto psíquico’ e do arqueólogo diante de seu objeto material, notamos uma contradição da parte de Freud (1996, p. 277), que justifica o movimento dialético de suas intervenções ao longo do texto. Se, no primeiro momento, o autor insiste no fato de que “todos os elementos essenciais estão 44 preservados”, nessa parte conclusiva do texto, Freud (1996, p. 284) indicará que “com bastante frequência não conseguimos fazer o paciente recordar o que foi reprimido” ao introduzir a noção do recalque originário. Com essa indicação, Freud (1996, p. 284) apresenta uma formulação surpreendente: “se a análise é corretamente conduzida, produzimos nele uma convicção segura da verdade da construção, a qual alcança o mesmo resultado terapêutico que uma lembrança recapturada”. De acordo com a primeira parte do texto, no qual Freud situa a direção do tratamento analítico, como sendo a de conduzir o paciente a recuperar as lembranças que foram recalcadas, se insere, então, um novo princípio: a convicção da verdade da construção tem o mesmo efeito que uma lembrança reencontrada. A leitura desse princípio freudiano poderia ser escrita, segundo Jacques-Alain Miller, com o matema E=UWk com a formulação freudiana: Uberzeugumg von der Wahrheit der Konstruktion, a convicção da verdade da construção, é equivalente à lembrança, Erinnerung. Nessa perspectiva, Miller eleva essa passagem do texto freudiano ao estatuto de um princípio da teoria psicanalítica que pode ser matemizado. Seguindo a referência da fórmula einsteiniana E=MC2, que identifica energia e matéria, o matema E=UWk é concebido como um “princípio freudiano que identifica lembrança e construção” (MILLER, 1996, p. 96, grifo nosso). Retomando a conclusão do texto, Freud indica suas últimas considerações a respeito do tema das ‘construções em análise’ sob uma perspectiva mais ampla do termo, ao se surpreender com o fato da comunicação da construção do analista ser capaz de provocar no paciente, lembranças de uma precisão quase alucinatória. Esse aspecto é assinalado pelo autor por meio de exemplos de pacientes que “tiveram evocadas recordações vivas, mas o que eles recordaram não foi o evento que era o tema da construção, mas pormenores relativos a esse tema” (FREUD, 1996, p. 284). Nesses casos, o autor assinala a incidência de lembranças, cujo conteúdo fora evocado com ‘anormal nitidez’ em relação ao tema da construção, ao passo que, no mesmo relato, se apresentavam novos elementos sob os quais a construção não teve qualquer alcance e, portanto, não conduziram os pacientes a nenhuma elaboração. Isto ocorreu tanto nos relatos dos sonhos quanto em momentos posteriores à comunicação de uma construção, levando Freud a considerar que “essas recordações poderiam ser descritas como alucinações, se uma crença em sua presença concreta se tivesse somado à sua clareza” (FREUD, 1996, p. 285). A importância dessa observação é ressaltada pelo autor uma vez que ocasionalmente constatava a incidência de fenômenos alucinatórios no relato de pacientes, que, ‘certamente, não eram psicóticos’. Com isso, Freud (1996, p. 285) avança em suas formulações indicando que: 45 (...) talvez seja uma característica geral das alucinações — à qual uma atenção suficiente não foi até agora prestada — que, nelas, algo que foi experimentado na infância e depois esquecido retorne — algo que a criança viu ou ouviu numa época em que ainda mal podia falar e que agora força o seu caminho à consciência, provavelmente deformado e deslocado, devido à operação de forças que se opõem a esse retorno. A partir dessa passagem, Freud (1996, p. 285) passa a situar a estreita relação entre as alucinações e os fenômenos típicos da psicose, considerando que “os próprios delírios em que essas alucinações são constantemente incorporadas sejam menos independentes do retorno do recalcado do que geralmente presumimos”. E sobre o mecanismo de um delírio psicótico, o autor acrescenta dois fatores importantes que se relacionam com o retorno do recalcado, indicados por um lado, pelo afastamento da realidade e, por outro, pela influência exercida pela realização de um desejo no conteúdo do delírio cuja deformação e o deslocamento das recordações mais se assemelhariam ao mecanismo dos sonhos e dos sintomas neuróticos. O importante a assinalar nessa passagem do texto freudiano é, portanto, a equivalência empregada entre os fenômenos da alucinação e do delírio com o retorno do recalque. Isto implica a consideração de que a lembrança recalcada não pode surgir senão sob forma alucinatória e delirante e que “talvez a verdade, quando ela ressurge, comporte sempre certo coeficiente de delírio” (MILLER, 1996, p. 96). A partir dessa concepção empregada por Freud, podemos situar a idéia de que a verdade da lembrança recalcada não tem um caráter de exatidão, ao contrário, a verdade tem uma estrutura de delírio, de ficção, porque ela se manifesta sob forma de delírio. Esse é o ponto de vista de Freud indicado para a clínica das psicoses quando enfatiza “que há não apenas método na loucura como o poeta 35 já percebera, mas também um fragmento de verdade histórica” (FREUD, 1996, p. 285, grifo nosso) ao supor que a ‘certeza’, característica dos delírios, seja derivada de fontes infantis recalcadas. Como direção para o tratamento da psicose, o autor aponta para o abandono do “vão esforço de convencer o paciente do erro de seu delírio e de sua contradição da realidade” (FREUD, 1996, p. 285 para, ao invés disto, conduzi-lo ao reconhecimento de seu ‘núcleo de verdade’ como uma operação produzida pela experiência analítica, seja no campo da psicose seja no da neurose. O trabalho do analista consistiria, então, em libertar “o fragmento de verdade histórica de suas deformações e ligações com o presente, e em conduzi-lo de volta para o ponto do passado a que pertence” (FREUD, 1996, p. 286). Desse modo, Freud indica sua aposta na ‘pesquisa clínica’ com casos de psicose, ainda que não vislumbrasse um ‘sucesso terapêutico’ para o tratamento analítico das psicoses. 35 Nessa frase, Freud faz novamente alusão à fala de Polônio, em Hamlet, de William Shakespeare. 46 Sem avançar nessa investigação clínica dos fenômenos da psicose, Freud demarca apenas uma analogia que nos parece paradigmática no que tange à articulação entre os temas da psicanálise e da psicose: Os delírios dos pacientes parecem-me ser os equivalentes das construções que erguemos no decurso de um tratamento analítico — tentativas de explicação e de cura, embora seja verdade que estas, sob as condições de uma psicose, não podem fazer mais do que substituir o fragmento de realidade que está sendo rejeitado no passado remoto. Será tarefa de cada investigação individual revelar as conexões íntimas existentes entre o material da repressão atual e o do recalque original. Tal como nossa construção só é eficaz porque recupera um fragmento de experiência perdida, assim também o delírio deve seu poder convincente ao elemento de verdade histórica que ele insere no lugar da realidade recalcada.” (FREUD, 1996, p. 286, grifo nosso). Nesse parágrafo, Freud dá indicações sobre o tratamento da psicose, mas especialmente para ressaltar uma equivalência entre o delírio e a construção. A construção que ele nos apresentou no início do texto como um método equivalente ao método científico da arqueologia se revela, então, em sua familiaridade com o delírio psicótico. Podemos notar, portanto, mais uma variação do movimento dialético no texto de Freud quando o termo ‘construção’ designa uma analogia entre psicanálise e arqueologia, passando a designar uma analogia entre psicanálise e psicose. Ao concluir essa discussão, Freud nos convida a refletir criticamente sobre ‘os delírios da humanidade’, que exercem um impacto marcante sobre os homens por meio de ideologias políticas e religiosas, que configuram a ‘verdade histórica’ de uma civilização. Se, apesar disso, esses delírios são capazes de exercer um poder extraordinário sobre os homens, a investigação nos conduz à mesma explicação que no caso do indivíduo isolado. Eles devem seu poder ao elemento de verdade histórica que trouxeram à tona a partir da repressão do passado esquecido e primevo. (FREUD, 1996, p. 287). Esse argumento, exemplificado pelas crenças e acontecimentos históricos inacessíveis a uma crítica científica, permite traçar, por um lado, uma leitura política da psicanálise na qual o inconsciente e o sintoma se remetem à História e, por outro, uma afinidade entre a estrutura do delírio com a verdade recalcada. Caberia, enfim, a leitura dessa terceira parte do texto sob a perspectiva do delírio como construção do paciente. Mas isto pode ser lido ao seu avesso, que é a construção como delírio do analista: “o delírio é uma construção patológica, talvez a construção analítica seja um delírio metódico” (MILLER, 1996, p. 94), o que nos permite retomar alguns pontos do texto freudiano que fundamentam o rigor metodológico da construção analítica. Assinalemos, então, a inovação do método clínico de Freud no cenário científico de sua época, partindo da observação de Carlo Viganò de que o ‘opositor’ a quem Freud remete o debate provocado por suas “Construções em Análise” seria Karl Popper. Nesse contexto, 47 Popper é consagrado por sua teoria sobre o ‘falsificacionismo’, publicada em 1935, no livro A Lógica da Pesquisa Científica (POPPER, 1972). Com o método da ‘falseabilidade/refutação’, Popper considera ‘científica’ apenas a teoria que seja passível de ser corroborada ou falsificada por uma experiência anterior e, com isso, uma verificação só pode ser alcançada se for refutada, criticada, anteriormente por outra teoria. Dito de outro modo, para Popper se uma teoria é certa, é necessário estabelecer uma linha de diferença ou de semelhança com outra teoria que não foi corroborada. A discussão de Freud sobre o ‘sim e não’, o ‘verdadeiro e falso’ das respostas de seus pacientes parece, então, se dirigir ao método popperiano do ‘erro e acerto’ como critério para a validação de um método científico. Apesar de reconhecermos a originalidade metodológica de Popper, em especial, por estabelecer um outro critério para a “verdade científica”, com o falsificacionismo, notamos, nas respostas de Freud, o seu esforço para esclarecer que os princípios do método de investigação analítica se diferem do método da sugestão, o qual Popper parecia questionar. Para isso, Freud inclui o paciente na cena do debate e parte do método da associação livre para demonstrar que a verdade inconsciente sempre escapa ao sentido normativo, na medida em que preserva uma estrutura de delírio que não exige aprovação ou falsificação. No entanto, Freud não recua da tarefa de transmitir o rigor da operação analítica e, para isso, propõe a construção dos casos como uma investigação que permite extrair e verificar, a posteriori, a lógica das respostas de cada paciente, caso a caso. Sob esse ponto de vista, podemos considerar a ‘construção analítica como um delírio metódico’ pela formalização metodológica que esta estabelece com a verdade fragmentada do inconsciente e com o saber que se constrói no ‘après-coup’ de cada sessão. 1.2.4. Construção e sintoma O tema da política da psicanálise, concebida pelo modo como esta sustenta a operação com o real, em sua experiência clínica, nos faz retomar algumas considerações de Freud em Construções em Análise, quando discute os momentos em que o analista se depara com um ‘ponto perdido’ que não reaparece na fala do analisante. Construção é, portanto, o termo empregado por Freud para designar a relação do analista com o que permanece recalcado, com o pedaço faltante na cadeia significante, ou seja, com aquilo que o trabalho analítico não consegue restituir pela via do sentido; o que, em termos lacanianos, podemos nomear como o real do gozo do sintoma. Como metáfora, Freud indica a tarefa do arqueólogo de reconstruir as “partes do mundo perdido”, assemelhando a tarefa do analista de reconstrução do ‘objeto 48 psíquico’ com a extração de repetições que resultam de fragmentos, restos, pequenos pedaços de lembranças que se apresentam no curso de uma análise, ainda que os significantes se percam ou que sejam esquecidos. E isso nos dá a dimensão da dinâmica do inconsciente freudiano “não-todo” decifrável e do estatuto do sintoma como uma formação do inconsciente, que corresponde a essa mesma lógica. Como, então, fazer a psicanálise operar com esse ‘resto’ que escapa ao sentido? Freud diferencia, assim, a interpretação da construção, concebendo a interpretação como intervenção que incide sob um fragmento de construção, enquanto a construção incide sob o que não pode ser rememorado. Em suma, a interpretação designa uma operação simbólica que visa extrair o real do gozo pela via dos significantes, diferindo da construção que, ao invés de reintegrar os significantes perdidos, consiste em “restaurar a topologia de um furo, de um furo originário, não de um furo da perda do significante, mais exatamente do furo da falta que causa o desejo.” (VIGANÒ, 1999, p. 55). É, portanto, nessa perspectiva que retomamos a proposição freudiana da construção como tarefa do analista para definir o trabalho de construção do caso clínico como uma proposição metodológica que opera diante de um ‘furo’, de um ‘ponto cego’ que aponta para a ‘falta de saber’ que constitui o sujeito e seu sintoma e que causa o desejo do analista. Sobre esse aspecto, situamos uma possível correspondência entre a operação analítica da construção e a concepção do sintoma para a psicanálise, marcado pelo real que incide no gozo como ‘furo no saber’. Nessa direção, convém indicar a consideração destacada por Freud na última parte do texto “Construções em Análise”, quando relança o termo ‘construção’ pelo viés de uma investigação clínica, na qual o recalcado retorna não apenas na lembrança, mas por meio de sintomas como os fenômenos da alucinação e do delírio. Esse é ponto em que Freud parece considerar, por intermédio da expressão dos sintomas psicóticos, os obstáculos para a decifração do sentido dos sintomas, indicado pela idéia de que a verdade se manifesta sob forma de delírio, restando algo que não se pode analisar senão pela via da construção analítica. Caberia, então, a leitura dessa passagem freudiana sob a perspectiva do sintoma como construção do paciente, concepção que nos permite uma aproximação com o estatuto do real do sinthoma, definido no final do ensino de Lacan como solução inventada pelo sujeito para lidar com o irredutível do real do sintoma, ou seja, como uma construção singular de cada sujeito com o que resta do gozo do sintoma. Diante dessa concepção, a clínica psicanalítica não opera com o sintoma como algo a ser abolido, atenuado ou até mesmo curado; entretanto, com um sintoma a ser assumido, inventado ou até mesmo construído. 49 Articular o tema da construção analítica com o estatuto do sintoma para a psicanálise nos leva, necessariamente, a refazer o caminho de retorno à concepção do sintoma na obra de Freud e no ensino de Lacan. Para abordar essa articulação, retornamos na leitura das Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (FREUD, 1996), pontuando as passagens conceituais em que Freud aponta para um ‘ponto cego’ que se estabelece na relação do sintoma com a sexualidade e que se constitui a partir da construção de variadas significações remetidas ao sintoma ao longo de uma análise. Com Lacan, retomamos essa concepção freudiana, partindo da articulação da verdade do sintoma com o real do sexo: impossível de se representar simbolicamente, o que marca um ‘furo’ no sentido do sintoma como um saber que sempre escapa e que, por isso, se repete. Assim, o sintoma possui leis próprias que funcionam seguindo uma lógica que inclui a repetição do gozo e o modo singular como cada sujeito goza do seu inconsciente. Essa perspectiva nos indica, então, a possibilidade de situarmos como a operação analítica da construção serve ao manejo clínico do sintoma e à transmissão de sua lógica singular em cada caso, na medida em que tanto o método da construção como a concepção do sintoma são marcados pelo real como ‘furo no saber’. Sintoma e significação sexual Nas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, Freud avança em suas formulações teóricas sobre a causalidade psíquica na formação dos sintomas, abordando O sentido dos sintomas (FREUD, 1996, p. 265) em sua estreita relação com as fantasias inconscientes. O sentido de um sintoma possui uma íntima conexão com as experiências do paciente. Quanto mais individual for a forma dos sintomas, mais motivos teremos para esperar que seremos capazes de estabelecer essa conexão. A tarefa, então, consiste simplesmente em descobrir, com relação a uma idéia sem sentido e uma ação despropositada, a situação passada em que a idéia justificou e a ação serviu a um propósito (FREUD, 1996, p. 277). A originalidade dessa conferência baseia-se no relato de dois casos, cujos sintomas obsessivos e ritualizados indicam a concepção do sentido dos sintomas como algo que não se esgota na via de uma única significação. Destaca-se a construção do primeiro caso, que consiste na exposição do ritual obsessivo de uma paciente que corria de um cômodo da casa para o outro sem cessar. Freud se surpreende com o sentido atribuído pela própria paciente ao remontar com esse ritual uma cena anterior ao desencadeamento dos sintomas: a cena da noite de núpcias em que a paciente, casada com um homem de muito mais idade do que ela, observa que seu marido ficara impotente e, por isso, deambulava entre os cômodos da casa durante toda a noite. Esse é o primeiro sentido desvelado pela paciente. A seguir, a paciente acrescenta uma nova cena, conectando-a a um outro sentido: o marido havia manchado o lençol com tinta vermelha para provar aos empregados sua virilidade na noite de núpcias, por 50 isso, a paciente agora ia e vinha do quarto para a cozinha no intuito de demonstrar que a mancha não poderia ser colocada em dúvida pelos empregados. Nesse segundo sentido atribuído ao sintoma, Freud considera que a repetição do ato obsessivo de sua paciente “representava um desejo, à maneira de um sonho, como sendo satisfeito numa ação da época atual; servia ao propósito de fazer seu marido superar a desventura passada” (FREUD, 1996, p. 270). A partir do relato detalhado desse caso, Freud traça suas conexões de sentido articulados com o dizer de sua paciente, construindo uma série de significações para tais sintomas até o ponto em que se questiona: “Foi por acaso e sem maior significação que chegamos justamente à intimidade da vida sexual?” (FREUD, 1996, p. 271). Desse modo, Freud depara com o fato de que o sentido dos sintomas não se esgota a partir da produção de variadas significações; o que o fez retornar à sua teoria sobre as fantasias inconscientes e a retomar a sexualidade como principal significação. Os rituais de sua paciente correspondiam à fantasia inconsciente revelada pela interpretação analítica; no entanto, Freud atribui maior importância para esse caso ao notar, primeiramente, que tal fantasia “não pertencia a um período esquecido da infância, mas que ocorre na vida adulta da paciente” (FREUD, 1996, p. 271), permanecendo vivo em sua memória; e considera, mais adiante, que “no ritual, o que se verificou não foi o resultado de uma única fantasia, mas de diversas, embora tivessem um ponto nodal em alguma parte” (FREUD, 1996, p. 276, grifo nosso) que reproduziam os desejos sexuais da paciente através da manifestação de sintomas. O importante a assinalar nessa conferência freudiana, portanto, é o estabelecimento de uma relação do sintoma com a ‘realidade sexual’ do inconsciente (LACAN, 1998, p. 20) 36 que constitui esse ‘ponto nodal’, ou seja, um ‘ponto cego’, formado pelo emaranhado de significações em jogo no relato dos sintomas. Diante do que nos ensina Freud, podemos considerar que essa variedade de significações não esgota o sentido do sintoma e, por isso, a interpretação analítica não se dirige ao infinito das significações em busca de um sentido único. Para Freud, as significações se remetem sempre a algo da sexualidade infantil, o que nesse texto esclarece não se tratar apenas de eventos ocorridos na infância que foram recalcados. Com Lacan, retomamos essa concepção freudiana, partindo da idéia do sexual como sendo sempre um furo na significação – um ponto cego – que melhor fundamenta a concepção de que algo da sexualidade sempre se encontra na raiz do sintoma. 36 Conferência de Genebra sobre o sintoma [1975c]. 51 Em outra Conferência Introdutória sobre Psicanálise, intitulada Os caminhos para a formação dos sintomas (FREUD, 1996, p. 361), Freud adverte que “devemos lembrar que os mesmos processos pertencentes ao inconsciente têm seu desempenho na formação dos sintomas, tal qual o fazem na formação dos sonhos” (FREUD, 1996, p. 361). Essa referência freudiana nos possibilita situar a montagem de significações representadas pelo sintoma, a partir de uma equivalência com os mecanismos psíquicos que constituem os sonhos. A análise dos sonhos desenvolvida por Freud em A interpretação dos sonhos (FREUD, 1996) aborda as diversas cadeias associativas que se entrecruzam em um ponto em que “cada um dos elementos do conteúdo manifesto do sonho é sobredeterminado, representado diversas vezes nos pensamentos latentes do sonho” (FREUD, 1996, p. 289). Freud, assim, conceitua a sobredeterminação como efeito do trabalho da condensação que não se traduz apenas ao nível dos elementos isolados do sonho, mas que possibilita a análise do conteúdo manifesto do sonho a partir de duas séries de idéias latentes diferenciadas (LAPLANCHE; PONTALIS, 1998, p. 488). O conceito de sobredeterminação, portanto, não implica a independência ou o paralelismo de diversas significações de um mesmo fenômeno; por isso, aprimora a concepção de que não haverá para os fenômenos dos sonhos e dos sintomas uma significação única a percorrer exaustivamente. Como exemplo, Freud compara o sonho a certas linguagens arcaicas, em que uma palavra ou frase comportam aparentemente numerosas interpretações. Tal como o sonho, o relato do sintoma é caracterizado por deslizamentos e sobreposições de sentidos e nunca é um sinal unívoco de um conteúdo inconsciente. Dos estudos sobre A interpretação dos sonhos, extraímos outra referência importante para essa discussão, com o que Freud nomeia e conceitua como o ‘umbigo do sonho’: Mesmo no sonho mais minuciosamente interpretado, é frequente haver um trecho que tem de ser deixado na obscuridade; é que, durante o trabalho de interpretação, apercebemo-nos de que há nesse ponto um emaranhado de pensamentos oníricos que não se deixa desenredar e que, além disso, nada acrescenta ao nosso conteúdo do sonho. Esse é o umbigo do sonho, o ponto onde ele mergulha no desconhecido (FREUD, 1996, p. 556, grifo nosso). Com essa passagem, consideramos o umbigo do sonho como um ‘ponto obscuro’, circunscrito pela interpretação dos sonhos, em que todas as associações se concentram, limitando a possibilidade de novas associações. Os variados sentidos produzidos no relato de um sonho chegam a um ponto limite, a um impossível de decifrar, cuja ausência de significação indicaria o que Freud define como sendo de causalidade sexual. Dessa concepção, entende-se que a interpretação dos sonhos ou dos sintomas nunca esgotará a causa desses fenômenos psíquicos. Nessa perspectiva, retornaremos com Lacan ao sintoma 52 freudiano discutindo a concepção de sintoma como um ‘nó de signo’ composto de significações que constituem um ponto cego, um ponto ilegível, opaco e vazio de significação que caracteriza a ‘realidade sexual do inconsciente’ (LACAN, 1998, p. 20) 37 . Essa referência nos permite retomar o que Freud conceitua como sobredeterminação (Überdeterminierung), aproximando-a da propor-sição lacaniana de que o sintoma guarda algo da verdade de um sujeito que jamais poderá ser totalmente revelada. O mais importante a concluir com a apresentação das Conferências Introdutórias consiste na passagem da concepção freudiana do sintoma como um enigma decifrável pela operação analítica ao estatuto do sintoma como verdade, como uma rede de significações em torno de um ponto cego que assinala um impossível de decifrar. Nesse sentido, Lacan afirma que “a verdade não tem outra forma além do sintoma” (LACAN, aula 18, 10/05/67) 38 , enfatizando a concepção do sintoma como forma cujo conteúdo pode ser preenchido de modo variado, tal como define a verdade, designados mais propriamente no nível de sua operação do que de seu conteúdo. É, portanto, tomando o sintoma em sua dimensão de verdade que apreendemos a operação analítica com o sintoma como sendo capaz de produzir uma descoberta, em torno desse ‘emaranhado’ 39 de significações, que conduza a um saber fazer com o sintoma, sem acabar com seu ponto de obscuridade. O real do sintoma e a construção analítica Ainda na conferência Os caminhos para a formação dos sintomas (FREUD, 1996, p. 361), encontramos importantes referências sobre o estatuto freudiano do sintoma, tomado em sua relação com os mecanismos de repetição e satisfação pulsional. Freud afirma que “os sintomas neuróticos são resultados de um conflito, e que este surge em virtude de um novo mecanismo de satisfação da libido” (FREUD, 1996), demonstrando que, apesar do sofrimento psíquico causado pelo sintoma, este também encontra uma forma de satisfação que justifica a resistência em eliminá-lo. No entanto, Freud já alertava que eliminar um sintoma não significava curar a doença, pois “a única coisa tangível que resta da doença, depois de eliminados os sintomas, é a capacidade de formar novos sintomas” (FREUD, 1996, p. 361). A partir de sua experiência, Freud se questiona sobre o caráter irredutível do sintoma que faz obstáculo ao tratamento e, com isso, avança em sua teoria, abordando a expressão 37 Conferência de Genebra sobre o sintoma [1975c]. O seminário, livro 14: A lógica do fantasma (inédito) [1966-1967]. 39 A discussão abordada nesse item sobre sintoma e significação sexual, tal como o termo assinalado acima, são referentes às articulações conceituais apresentada por Marcus André Vieira, no seminário “A política do sintoma”, realizado ao longo do ano de 2008 na Escola Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro. Disponível em http://www.litura.com.br/curso_repositorio/a_politica_do_sintoma_ii_pdf_1.pdf, acessado em 03/05/2012. 38 53 singular dos sintomas até o final de sua obra. Em Inibição, Sintoma e Angústia, o autor considera que o sintoma é “o substituto de uma satisfação pulsional que não teve lugar, é o resultado da moção pulsional tocada pelo recalcamento” (FREUD, 1996, p. 95), assinalando a impossibilidade de sua eliminação ou cura por atuar como substituto de uma satisfação pulsional recalcada, que na teoria freudiana sempre se manifestará em busca de prazer. Nessa direção, convém indicar as referências estabelecidas por Lacan, na obra de Freud, para o desenvolvimento da concepção original do gozo. Freud empregou o termo em alemão Lust para designar a satisfação, mas ao se referir a uma satisfação excedente utilizava o termo Genuss, o qual etimologicamente pode ser também traduzido por satisfação ou prazer. Partindo dessa última terminologia, Lacan propõe como desdobramento conceitual a introdução do termo gozo [jouissance] como uma definição que apontará para algo que excede à satisfação pulsional. Essa foi, portanto, a passagem teórica que permitiu problematizar a cura em psicanálise, diante do caráter incurável do gozo sintoma. No artigo Análise Terminável e Interminável (FREUD, 1996, p. 223) notamos as últimas indagações de Freud, a respeito dos obstáculos encontrados ao longo de uma análise, que se relacionam aos caminhos percorridos pela pulsão em busca de satisfação, que caracteriza o aspecto incurável do sintoma. Ao relacionar o mecanismo da repetição com uma vertente do sintoma que faz resistência à decifração, Freud pôde observar a expressão particular de satisfação pulsional de cada sujeito, tomando a concepção do sintoma não como algo a ser curado, mas como detentor de algo incurável. E, logo em seguida desse artigo, Freud escreve Construções em Análise, o que nos leva a supor que seus esforços nesse trabalho se concentravam não somente na transmissão dos princípios da práxis analítica a não analistas, mas também no desenvolvimento da intervenção clínica da construção como uma tarefa do psicanalista para enfrentar os obstáculos que atravessam a experiência de uma análise. Com Lacan, avançamos no caminho percorrido em Análise Terminável e Interminável, a partir do que introduz em sua teoria sobre o real do gozo que se inscreve no corpo através do sintoma. O obstáculo encontrado por Freud diante da vertente do sintoma irredutível ao sentido e que, portanto, o torna incurável, possibilitou Lacan a apontar para a vertente real do sintoma, como aquilo que resta do sintoma, quando os efeitos da interpretação não são suficientes. Nessa perspectiva, retomamos a indicação de Freud da construção como a tarefa do analista que se articula à interpretação, por demarcar os impasses, as repetições do gozo e as transformações subjetivas que se apresentam no tratamento analítico. 54 Ao afirmarmos que o específico da nossa clínica e política de orientação lacaniana é a orientação ao real, podemos aplicar também a mesma idéia para a construção de um caso clínico. Mas o que quer dizer construir um caso, levando em conta a orientação pelo real? Que consequências podemos retirar da proposição freudiana das ‘construções em análise’ como uma intervenção orientada pelo real? Ou, ainda, como articular as premissas da construção indicadas por Freud com a operação clínica com o real do sintoma? O primeiro passo, em direção a esses questionamentos, é o de considerar o sintoma como um tipo de construção muito específica que adquire um valor privilegiado como ponto de referência no final do ensino de Lacan. Sabemos que uma constante na obra de Freud é a de pensar o sintoma pelo viés da satisfação pulsional, vinculado, ainda, à noção de uma formação defensiva contra o desprazer, contra o que excede da satisfação: o gozo. Isto implica considerar o sintoma como uma formação do inconsciente que inclui, em si mesmo, um real como modalidade de gozo. Sobre esse aspecto, situamos uma saída para pensar que “entre as construções 40 produzidas pelo sujeito, o sintoma é aquela que constitui uma referência mais segura” para a orientação lacaniana por incluir necessariamente o gozo do corpo como um elemento real (BERENGUER, 2009a, p. 21). E essa orientação se torna mais clara e precisa quando Lacan adverte que “o sintoma é o que de mais real tem alguns sujeitos” (LACAN apud BERENGUER, 2009a, p. 22), passando a designá-lo com a nova escritura do sinthoma como uma construção singular que cada sujeito produz, capaz de articular as dimensões da linguagem, do corpo e do gozo ao laço social. Trata-se, então, de aproximar a construção da operação clínica com o real do sintoma, indicando, nesse primeiro momento, a construção do lado do sujeito pela possibilidade de invenção com o gozo do sintoma induzido ao uso estratégico da transferência analítica. Ou, apenas, pelas diferentes possibilidades de construção para cada sujeito, apreendida quando algo da dimensão do gozo, da satisfação pulsional, se modifica ao longo de uma análise. Assim, podemos observar que o sujeito constrói um ‘saber fazer’ com seu sintoma quando reveladas as modificações que se produzem no registro de seu modo de gozo. 40 No Seminário, livro 5, Lacan define, com base em Freud, a fantasia como uma construção. Nessa perspectiva, a fantasia manifesta a relação do sujeito com o significante, concebida pelo mecanismo da rememoração na análise (LACAN, 1999, p. 244) como uma reconstrução de elementos inconscientes recalcados que não reaparecem na lembrança. Essa noção da fantasia implica considerar as modificações do tempo passado no presente, dado que ela se constrói, transforma os eventos antecedentes de uma história, embora algo permaneça constante. Nossa proposta é a de aproximar essa noção de construção da fantasia à construção das modalidades de gozo do sujeito que se remetem às transformações do sintoma ao longo de uma análise. 55 Sabemos que a transformação do sintoma, ao longo do tratamento, constitui os momentos cruciais da experiência analítica. E se o sintoma se modifica sob transferência, isto corresponde ao fato de ser ele mesmo uma construção que se dirige ao Outro. No entanto, não se trata de conceber o sintoma como uma construção inerte, mas como uma construção que se produz sob transferência como resultado da presença real do analista que introduz, a cada sessão, a dimensão do novo pelo efeito de seu ato diante da repetição. Daí a importância de estarmos atentos a essas modificações caleidoscópicas do sintoma, desde o primeiro momento em que é introduzido em um dispositivo clínico até os momentos em que suas modificações se articulam ao discurso do sujeito, como efeito de uma transferência em curso. Podemos concluir, com isso, que o mais significativo para o tratamento do sintoma não se remete ao seu diagnóstico nosográfico-classificatório, mas ao modo como este se modifica em um dispositivo. E isto quer dizer que, a cada momento em que se evidencia a mudança de uma determinada posição discursiva, estaremos diante de uma transformação que nos remete a algo de novo, a um real em jogo. Esta perspectiva nos leva, então, ao segundo passo que nos permite situar a construção do lado do analista e seus efeitos de transmissão e que, portanto, se articula a direção indicada por Freud da construção dos casos como tarefa do analista. Desse modo, podemos retirar consequências importantes da proposição freudiana das ‘construções em análise’, tomando-a como um instrumento que se orienta pelo real em jogo na clínica do sintoma. Para isso, é necessário partir de uma sequência lógica, capaz de localizar os momentos em que o sintoma se modifica em uma análise, conjugados às dimensões real, simbólica e imaginária que este representa. Com Freud e Lacan, vimos que o sintoma se apresenta revestido de sentidos variados, que tentam traduzir as dificuldades mais genéricas da vida do paciente, o que podemos designar como sendo a dimensão imaginária do sintoma. No ato de dirigir-se a um Outro, o sintoma é incluído pela demanda do analisante e é apresentado em sua dimensão simbólica quando se constrói a suposição de sentidos variados para sua manifestação. Entretanto, para que o sintoma possa se dirigir ao analista, é importante produzir uma operação de suspensão desses sentidos até que o sintoma adquira para o sujeito o valor de um real que atravessa sua experiência de análise. Eis aí o momento em que podemos reconhecer o sintoma em sua dimensão de real, em seu ponto de obscuridade, que adquire a forma de uma contingência para o sujeito. E isso implica percorrer, já no início do tratamento, uma direção específica para buscar, nas transformações do sintoma, aquilo que o sintoma tem de mais real. 56 No livro intitulado Como se constrói um caso? (BERENGUER, 2009a), Enric Berenguer indica dois tipos de sequência que interessam à construção do caso: aquelas que concernem ao início do tratamento e as que correspondem ao seu final, já que “o real em jogo no princípio e o real ao final não são da mesma ordem” (BERENGUER, 2009a, p. 29). O autor parte, então, do momento em que o sintoma tem um valor imaginário e é interpretado no âmbito de uma coerência que atesta a função da realidade para o paciente. Em seguida, o autor assinala a construção de uma demanda de análise a partir do momento em que o sintoma se apresenta como um real que resiste ao sentido. Entretanto, a construção dessa demanda inicial é atravessada pela emergência do estatuto simbólico do sintoma, embora sua dimensão real tenha se manifestado como um disparador da demanda de tratamento. Sob esse ponto de vista, podemos destacar as construções que concernem ao sintoma no início do tratamento, como aquelas que se situam na passagem do estatuto do sintoma, como impossível de significar ao seu estatuto simbólico que inaugura uma demanda de análise. De outro modo, as construções que correspondem ao sintoma no momento de concluir uma análise “se produzem com efeito inverso” (BERENGUER, 2009a, p. 29), quando o sintoma, como o resto de gozo inassimilável, passa a ser reduzido à sua dimensão de ‘sem sentido’, que resiste à significação e que, portanto, marca o estilo singular de um sujeito. Encontramos esse segundo tipo de sequência nos testemunhos do passe, em que a emergência de um novo real designa um estatuto distinto do início da análise. O importante a assinalar, com essas passagens lógicas do sintoma na construção dos casos, é a relevância de uma formalização que demonstre o movimento de elaboração de cada sujeito, diante de um real impossível de simbolizar. Essa formalização, entretanto, não está necessariamente referida à duração (longa ou curta) do tratamento, mas com os momentos em que se verifica, de modo evidente, uma mudança na posição discursiva de um sujeito, desde o início do tratamento. Trata-se dos efeitos possíveis de recolher do encontro com um analista, quando algo se transforma em uma posição discursiva, ainda que uma análise não chegue ao fim. A partir do que se testemunha na construção de cada caso, é possível recolher a passagem, o reviramento ou o movimento em que o gozo sintomático é recolocado em circulação no discurso. E quando algo se coloca ao avesso nesse ponto, podemos demonstrar a eficácia e a especificidade da operação analítica com o sintoma, orientada pelo real em jogo na clínica. Isso nos faz concluir, então, a proposta da construção do caso clínico apoiada pelo tema da política psicanalítica do sintoma, quando observamos, por exemplo, o modo distinto de construção produzida pelas psicoterapias e pela medicina. 57 Na direção de uma psicoterapia ou das discussões da clínica médica, encontramos a idéia de que essa passagem da dimensão real do sintoma para seu estatuto simbólico visa a uma completude na atribuição de sentidos, sem que disto resulte um resto. Os tipos de construções fomentadas por essas correntes terapêuticas excluem a dimensão do sintoma, que resiste à significação para que se obtenha um sintoma equivalente a uma determinada significação identitária. Freud, entretanto, parte de uma perspectiva inversa para as construções em análise, quando situa de saída as idéias ‘sem sentido’ que se apresentam na fala do analisante como algo a ser construído pelo analista. Desse modo, Freud sustenta a construção dos casos fora de uma ambição terapêutica que aprisiona seus efeitos nos termos do dizer ‘verdadeiro ou falso’ de seus pacientes. E nos leva a analisar o sentido do sintoma que escapa à significação como passível de uma construção que demonstre a verdade ‘semidita’, que o inconsciente enuncia, mantendo o saber que condiciona uma análise do lado do analisante. É possível, ainda, designar a proposta original da psicanálise para a construção do caso pelo modo como a suposição de saber do analista favorece a emergência do real no tratamento. No caso das psicoterapias, o terapeuta crê no ‘final feliz’ da relação do paciente com seu sintoma, já que este se dissolve na forma de um sentido unívoco, o que denota uma posição de intérprete, de um ‘saber sabido’ sobre o sintoma. Com isso, podemos considerar que há, pelo menos, duas formas distintas de construção no campo clínico que se conjugam, ou na perspectiva de uma “diluição do sujeito suposto saber para a emergência da dimensão de um real”, ou na perspectiva de uma “conversão do sujeito suposto saber em uma referência ideal” (BERENGUER, 2009a, p. 30), que se dirige àquele que teria resposta para tudo. Do ponto de vista da psicanálise, a construção dos casos deve preservar a dimensão do saber como suposto, uma vez que o que o analista deve saber é ignorar o que sabe para que uma análise avance. E isto implica no fato de ele não ser identificado imaginariamente com um saber prévio sobre o sintoma, mas de marcar a sua presença no dispositivo como o suporte de uma função que faz emergir um saber do inconsciente. De outro modo, encontramos nas entrevistas clínicas que se realizam nas instituições a idéia de introduzir, na fala do paciente, uma série de recursos de sentido para que este possa ‘reconstruir a sua história’, na direção do que seria uma sugestão para a ‘recuperação’ do seu adoecimento. A construção do caso na orientação analítica, portanto, deve levar em conta a dimensão do real do sintoma, desde o início do tratamento na via aberta de um saber suposto ao sujeito do inconsciente, como norteador para a formalização da lógica do caso único. E isto se transmite não somente na forma de apresentação dos casos, mas também na forma de se 58 CAPÍTULO 2 A metodologia da Construção do Caso Clínico Uma das consequências que o capitalismo globalizado produziu como transformação social consiste no imperativo dos cálculos quantitativos que norteiam a aplicação da exatidão científica ao campo da saúde como política do sintoma. Educar, clinicar e governar 41 são tarefas de organizações sociais complexas que seguem seu princípio democrático até o ponto em que suas competências distintas são absorvidas por uma determinada tendência da economia de mercado. Nesse contexto, as universidades apoiam o desenvolvimento de pesquisas em saúde que estão, cada vez mais, comprometidas com determinados modos de desencadeamento de um novo distúrbio em relação ao diagnóstico inicial ou como resposta ao uso de psicofármacos. A metodologia da Construção do Caso Clínico, que será aqui apresentada, inclui diretamente a proposta da política analítica do sintoma como uma contribuição para o campo da pesquisa clínica. Retomando a proposição lacaniana do ‘inconsciente como político’, nos parece fundamental situar o caminho aberto para a pesquisa do psicanalista como uma tarefa de transmissão da política da psicanálise ao campo da saúde pública. Como não é habitual a participação de analistas na política de governo, sabemos que estes podem e devem se autorizar a informar o que há de política em sua práxis, com base nas consequências que se extrai no âmbito da clínica e, portanto, da vida humana. A posição ética do analista, em relação ao particular de cada sintoma, deve ser marcada no campo da clínica, ainda que as instituições de tratamento orientadas pelo modelo médico-científico destituam sua ação clínica e política. A condição preliminar para essa implicação direta do psicanalista no social é a de que “o seu desejo de saber chegue a se interessar pela pesquisa clínica” (VIGANÒ, 2008, p. 02), mas não sem que esteja advertido da relação que a experiência analítica estabelece com a cientificidade. E essa relação de extimidade entre psicanálise e ciência, Lacan foi incansável ao demonstrar, em seus seminários e escritos, a possibilidade da formalização do objeto psíquico, passando a nomeá-lo como objeto a e a inventar a nova categoria do real psíquico. Entretanto, a foraclusão da função subjetiva e da causalidade psíquica, isoladas por Freud com a descoberta do inconsciente, constitui progressivamente o estudo dos novos fenômenos clínicos, dos quais se ocupa atualmente a ciência médica em seu campo de pesquisa. A psiquiatria, por sua vez, vem assumindo uma direção paradoxal em relação à sua doutrina fenomenológica ao utilizar o formalismo científico para salvaguardar a dimensão do sentido matematizado. Diante dessa referência empírica que determina as pesquisas no campo da psiquiatria e da saúde mental, poderíamos dizer que, desde Freud e seu cientificismo militante, não se encontrou uma clínica capaz de acolher e elaborar novas tarefas em termos de pesquisa, considerando a particularidade dos sintomas em sua natureza ética e metodológica no estudo de casos. Anos após a descoberta do inconsciente, Lacan retoma o legado freudiano, propondo aos psicanalistas um modo de desenvolver e de transmitir o crédito da psicanálise articulada à operação do método científico. O efeito de subversão que o sujeito do inconsciente produz no campo da pesquisa clínica não deixa de ser uma descoberta de interesse científico, que marca uma relação de ‘suplementariedade’ (FREUD, 1996, p. 61 262) 42 entre os campos da psiquiatria e da psicanálise. No entanto, no cenário atual das pesquisas em psiquiatria, notamos uma radical exclusão dos avanços que o estatuto do inconsciente traz ao campo da ciência, para que o reducionismo do sofrimento psíquico ao cálculo estatístico vigore, alimentando a economia pelos lucros do mercado farmacêutico. Essa forma de reducionismo nos parece convergir com o ideal de uma política universal que dá lugar, por exemplo, à terapia cognitivo-comportamental como uma estratégia de eliminação da responsabilidade subjetiva a favor do monitoramento do comportamento. E isto desvela a dimensão de uma determinada política do sintoma na nossa civilização, que obedece a um consenso político, norteado por um ideal de saúde que se associa ao “direito de evitar a experiência da patologia” (VIGANÒ, 2008, p. 03). Se na história da medicina a redução do sintoma ao modelo epidemiológico trouxe resultados úteis e, por isso, representam uma ‘evidência científica’, os efeitos dessa validação por êxito deve ser demarcado apenas em alguns casos, como, por exemplo, o das doenças infecciosas. Em relação ao fenômeno psicopatológico e ao aspecto ‘incurável’ do sintoma psíquico, não é possível fundamentar a mesma justificativa clínica para aplicação da mesma lógica avaliativa, a não ser que estejam incluídos nessa avaliação quantitativa os interesses do mercado de consumo. Ora, não temos nada contra os avanços da medicina contemporânea em seu dever social de tratamento e de prevenção das doenças, desde que esteja preservada a condição ‘científica’ de uma operação clínica com o real do incurável do sintoma. A psicanálise lacaniana assume, então, um desafio ‘antirreducionista’ para reafirmar sua política do sintoma, retomando o legado freudiano da clínica do sofrimento psíquico e das vicissitudes da ‘escolha’ subjetiva que constituem a formação do sintoma. Nesse aspecto, Lacan foi ‘mais além’ de Freud, estendendo essa noção da formação dos sintomas neuróticos para cada versão singular do sintoma, tomado não apenas como uma ‘formação do inconsciente’ mas, ainda, como uma ‘construção e invenção’ de cada sujeito diante do incurável do gozo, a qual se pode demonstrar clinicamente. A demonstração possível para esse ‘impossível de curar’ é abordada pela prática da Construção do Caso Clínico, em especial, quando se evidencia que cada caso é passível de ser avaliado em sua singularidade e contingência, a partir das modificações subjetivas que se extraem da narrativa e da leitura de cada caso. Seguindo essa perspectiva clínica e política da psicanálise, apresentamos a Construção do Caso Clínico 43 e sua proposta metodológica de avaliação e de pesquisa clínica 42 Psicanálise e Psiquiatria [1916-1917] Convém assinalar que existem práticas diversas de Construção do Caso Clínico realizadas nas instituições e, portanto, exploradas a partir de diferentes arranjos metodológicos do método freudiano de investigação. Dentre eles destacamos as Conversações Clínicas empregadas na publicação de Metodologia em Ato (TEIXEIRA, 2010) e a metodologia de trabalho em 43 62 em psicanálise aplicada ao campo da saúde mental, cuja formalização permite localizar a função do sintoma e seu estatuto no caso como modo de transmissão da operação analítica com a dimensão real da clínica. 2.1. A construção do caso clínico como metodologia de avaliação e pesquisa clínica O método da construção do caso clínico, desenvolvido na Escola de Especialização em Psiquiatria e Psicoterapia da Universidade de Milão 44 , é um importante instrumento de pesquisa clínica em psicanálise, que permite acompanhar e avaliar um processo de tratamento, partindo da construção de elementos extraídos das narrativas e registros de cada caso. A prática de apresentar e discutir os casos é um meio de avaliar a qualidade de uma equipe e de estimular a melhoria do serviço, sendo, ainda, um instrumento capaz de demonstrar que é possível uma avaliação que inclua a singularidade do sintoma e a transferência como eixo da clínica. A discussão diagnóstica, a expressão singular dos sintomas, a relação transferencial, as demandas e os diversos momentos de um tratamento são elementos da construção do caso que orientam o trabalho em equipe, a partir de um ‘saber fazer’ com a lógica do sintoma em cada caso e não apenas do saber dedutivo das classificações diagnósticas. A construção do caso clínico “é uma construção democrática na qual cada um dos protagonistas do caso (os técnicos, os familiares e as instituições envolvidas) traz a sua contribuição” (VIGANÒ, 2010a, p. 2). Trata-se de reunir as narrativas dessa rede social que acompanha um caso para encontrar o seu “ponto cego” (VIGANÒ, 2010a, p. 2), ou seja, o ponto comum extraído dessas narrativas que aponta para a “falta de saber”, que constitui o lugar do sujeito e do sintoma que o sustenta. A construção do caso instaura, então, um movimento dialético no trabalho em equipe, em que as partes se invertem: “a rede social coloca-se em posição discente e o paciente na posição de docente” (VIGANÒ, 2010a, p. 2). O que o paciente ensina não é apreendido por uma fala que se articula coerentemente, mas pela escuta de uma equipe clínica das particularidades, das variáveis e transformações que foram escandidas de sua história, do enigma de seus sintomas, dos atos falhos, entre outros elementos investigados sob transferência. equipe da Prática entre Vários (DI CIACCIA, 1999). Apresentamos aqui um novo arranjo metodológico de pesquisa em psicanálise aplicável ao campo de saúde mental como mais uma contribuição aos métodos clínicos que se desenvolvem no campo da assistência pública. 44 Referência ao curso de especialização da Unità di Psiquiatria Dinamica e Psicoterapia -Dipartimento di Salute Mentale do Ospedale Niguarda Ca` Granda conveniado à Università degli Studi di Milano. 63 O método consiste em discutir um caso apresentado a cada vez com um registro escrito pelo clínico que acompanha o caso. A construção deve compreender três etapas: a narrativa (do sujeito, da família, da instituição); as escansões do tratamento e o cotejamento entre o diagnóstico do DSM IV e CID 10 e o psicanalítico. Desse modo, é possível realizar uma avaliação do acompanhamento de uma equipe após a discussão de cada caso. Essa avaliação é produzida, por sua vez, com base na compilação de dois elementos: a sinopse da história concreta do sujeito (escansões da posição discursiva, acontecimentos cotidianos, recursos financeiros, etc.) e o prognóstico dos possíveis projetos de vida, com as hipóteses correspondentes aos mesmos itens. O princípio é o de cotejar as posições subjetivas nas passagens de discurso realizadas na história do paciente com os acontecimentos ocorridos no período de tratamento sob transferência, de onde se extraem as inferências que orientam as intervenções de uma equipe. Nesse capítulo, privilegiamos a apresentação desse método de pesquisa, considerando a relevância da extensão da psicanálise no cenário universitário e dos serviços de saúde mental 45 , na qual o analista é convocado a transmitir sua orientação na leitura dos casos que são levados ao debate clínico. Diante das exigências que o discurso da ciência médica impõe ao campo das pesquisas clínicas, tal como a reprodução experimental dos dados do caso para a mensuração estatística, torna-se necessário interrogar a lógica processual de um tratamento, tomada em sua dimensão clínica e subjetiva. Embora tenhamos clareza de que o papel da investigação em psicanálise na universidade não é o de transpor suas descobertas para o campo da ciência empírica, é possível demonstrá-las a partir de um ordenamento discursivo que, ao se contrapor ao discurso médico-científico, permite preservar a dimensão singular de cada caso em uma pesquisa. E essa nos parece ser uma tarefa fundamental da pesquisa em psicanálise no cenário atual dos métodos clínicos, em que até mesmo a discussão dos quadros clínicos vem sendo degradada pelo critério estatístico da incidência dos fenômenos. Torna-se necessário, então, retomar o valor metodológico do caso clínico para a psicanálise, expondo a um público mais amplo a especificidade da orientação lacaniana na condução de um tratamento e sua eficácia terapêutica. A metodologia proposta para a Construção do Caso Clínico permite estabelecer de que modo uma pesquisa pode incluir a clínica do caso a caso, considerando alguns parâmetros que 45 Considerando que o desenvolvimento metodológico da Construção do Caso Clínico pode acompanhar a pesquisa do analista sobre a prática clínica em Saúde Mental seja no âmbito das instituições universitárias ou psicanalíticas, daremos ênfase à sua proposta de pesquisa clínica sob o viés da psicanálise em extensão. Embora se reconheça a distinção entre a pesquisa realizada pelo psicanalista na universidade e nas Escolas de Psicanálise, optamos por não definir essa diferença para demarcar o alcance mais amplo da aplicação do método da construção do caso, privilegiando uma discussão clínica e política que fundamente sua relevância no atual contexto de avaliação das condutas e eficácia terapêutica. 64 orientam uma pesquisa no campo da psicanálise, em contraponto com os parâmetros científicos que avaliam hoje a eficácia terapêutica. No que tange ao campo de pesquisa em psicanálise, partimos da constatação de que existe uma relação intrínseca explorada pelo método freudiano, em que a investigação e o tratamento coincidem. Freud define a psicanálise como um método de investigação dos processos psíquicos e um método terapêutico apoiado nessa investigação (FREUD, 1996, p. 207) 46 , o que quer dizer que a investigação que percorre o processo de uma análise é, ela mesma, o tratamento. Assim, a teoria decorre da experiência, enquanto a concepção teórica determina o modo como se pratica a psicanálise. No artigo “Pesquisa e Psicanálise: Algumas Referências Lacanianas”, Bernardes (2010) aborda a perspectiva de indissociação da pesquisa em psicanálise com a prática clínica pelo viés da proximidade entre o trabalho investigativo e o trabalho do analisante na experiência analítica. Situemos dessa discussão, então, alguns princípios 47 da clínica psicanalítica que fundamentam o rigor da investigação da construção dos casos como uma metodologia de pesquisa em psicanálise. O primeiro princípio advém do valor da singularidade do caso, conforme ressaltado por Freud ao indicar que cada caso deve ser escutado como se fosse o primeiro, colocando em reserva o saber teórico. Essa é uma condição metodológica para toda pesquisa em psicanálise, na medida em que o saber sobre a clínica se elabora a partir da lógica de cada caso, como um “saber que é sempre parcial” (BERNARDES, 2010, p. 36). A extensão dessa primeira premissa pode ser avaliada pela proposta metodológica da psicanálise, que inclui a construção do caso como sendo sempre singular e parcial. Por parcialidade, entendemos a parte que cada analista toma de sua construção para uma elaboração conceitual não totalizante e que, por isso, acompanha o valor sempre ‘inédito’ da experiência clínica. Com efeito, toda e qualquer tentativa de classificação só pode ser feita a posteriori, no intuito de situar, ainda, o analista na transferência. Eis aí o terceiro princípio indispensável para a pesquisa clínica em psicanálise, que se contrapõe a um ideal de neutralidade científica, em especial, em relação à apresentação de seus resultados. A articulação desses três princípios mínimos que devem nortear uma pesquisa de orientação psicanalítica nos servirá como ponto de partida para fundamentar a metodologia da construção do caso, situada nessa tangente entre o trabalho investigativo e o trabalho do 46 O Interesse Científico da Psicanálise [1913]. A autora situa os princípios metodológicos do ‘caso’ e do ‘corte’ (parcialidade), articulados com a proposição lacaniana para a pesquisa clínica, a partir da frase de Picasso: “Eu não procuro, eu acho”. Os princípios da ‘singularidade do caso’, da ‘parcialidade da construção’ e da ‘transferência’ estão indicados como considerações próprias desta pesquisa sobre a metodologia da Construção do Caso Clínico. 47 65 analisante no processo de uma análise. Sabemos que uma das formas de investigação no campo da psicanálise consiste na própria experiência da construção dos casos. Isso se constata no escrito freudiano sobre as Construções em Análise (FREUD, 1996) como uma tarefa do analista que deve seguir a lógica singular de cada caso, sem dissociar a prática clínica da construção do saber teórico. Mas em relação ao caso clínico, o saber que se constrói é algo da ordem do não saber, de uma verdade “semidita” do inconsciente que deve se alojar de forma operante na experiência clínica, o que implica o modo específico de investigação da prática analítica. Com isso, retomamos a imbricação entre pesquisa e tratamento, considerando, no entanto, que na experiência analítica é o analisante quem está em posição de investigação em busca de um saber sobre a sua verdade. É necessário, então, que a construção do caso instaure nessa experiência a posição de investigação do analista como aprendiz da clínica. Na clínica freudiana, a suposição de um saber latente ao que é dito no curso da associação livre é representada como o pivô essencial da transferência que se instaura ao incluir o analista nesse saber não sabido. Podemos assinalar, então, o modo de investigação clínica característico da construção analítica pela sua referência, num primeiro momento, ao saber inconsciente que o sujeito supõe em análise, sendo este o material passível de ser investigado e construído a posteriori pelo analista sob a base da transferência. Num segundo momento, a “estrutura da suposição de saber deve orientar a investigação em psicanálise”, quando o pesquisador analista, na universidade ou fora dela, passa a ocupar “um lugar mais próximo da posição de analisante” (BERNARDES, 2010, p. 37) do que a de analista, ao deslocar algo de sua construção para a formalização de um saber teórico-clínico. Localiza-se, nesse momento, a parte que cada analista extrai de sua construção para uma elaboração conceitual ou para a verificação do efeito de seu ato na condução do tratamento. Mas como se dá, afinal, o encontro do analista com essa ‘parte’ a ser construída na direção de um tratamento ou de uma pesquisa clínica? Ao iniciar seu seminário sobre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (LACAN, 1973), proferido no auditório da École Normale Supérieure, Lacan indica sua reserva com relação ao termo pesquisa (recherche). Em oposição à démarche hermenêutica que busca (cherche) sempre outro sentido a ser compreendido, Lacan cita a famosa frase de Picasso: “Eu não procuro, encontro.” 48 (LACAN, 1973, p. 12); a qual podemos retomar como uma orientação interessante para abordar o lugar do psicanalista como pesquisador (chercheur). Mais adiante, com base nas demonstrações topológicas do nó borromeano, em seu seminário RSI (LACAN, 48 Tradução do francês “Je ne cherche pas, je trouve.” (LACAN, 1973, p. 12). 66 1974-1975), Lacan volta a se referir à etimologia do verbo chercher (procurar), que provém do latim circare: circundar, fazer o círculo. O círculo demonstrado não como uma superfície plana de um disco, mas em sua forma vazada, é o que cerca um furo, um buraco. Uma vez encontrado um furo, um círculo deve ser traçado como um contorno e uma circunscrição desse vazio. Nesse momento, então, Lacan observa: “encontro o suficiente para ter que circular” (LACAN, aula de 13 de maio de 1975), o que nos serve de direção para refletir sobre a relação entre a pesquisa e o encontro do analista com esse ponto vazado, com esse vazio de saber que causa o desejo do analista. No campo clínico da psicanálise, a pesquisa segue “a mesma lógica do tratamento em relação a esse ponto: trata-se sempre do contorno, da circunscrição, de algo que se deu como um encontro num primeiro tempo para cada um” (BERNARDES, 2010, p. 37). Seguindo essa lógica, a construção do caso corresponde a um trabalho de investigação pontual e parcial, cujo valor metodológico se sustenta na pesquisa de um analista que, ao se deparar com o ‘furo’ no saber, avança na elaboração de conceitos ou de considerações sobre sua clínica como modo de circunscrever o real da sua prática. É, portanto, nessa perspectiva que já havíamos situado a proposição freudiana da construção como tarefa do analista para definir o trabalho de construção do caso clínico como uma proposta metodológica que opera diante de um ‘furo’, de um ‘ponto cego’ que aponta para a ‘falta de saber’, que constitui o sujeito e seu sintoma. Dito de outro modo, a metodologia da construção do caso demonstra de que modo uma pesquisa clínica pode ser orientada por esse encontro com algo inassimilável pela via do sentido, preservando, em seus resultados, a transmissão do real em jogo no tratamento. Diferindo do método estatístico predominante nas pesquisas médicas, a metodologia da construção do caso permite interrogar a condução do trabalho clínico, expondo o testemunho do encontro de um analista com esse ponto inassimilável que se instaura em uma análise para, em seguida, recolher os resultados obtidos como efeito de suas intervenções. Se a intervenção do analista se dá no que é dito pelo paciente, o que se coloca em ato é, então, retomado por um método específico de investigação que interroga o tratamento: a construção do caso. A partir desse ponto de vista, podemos aproximar o método freudiano de investigação, fundamentado na associação livre, com a proposição de ‘Construções em Análise’, que dá lugar à pesquisa clínica por meio da verificação produzida a posteriori pelo analista, a partir da enunciação de cada analisante. Ao responder às indagações metodológicas supostamente dirigidas por Karl Popper, Freud propõe a construção dos casos como um modo possível de formalização lógica do saber inconsciente que se enuncia em uma análise sem, com isso, abandonar o debate sobre as pesquisas científicas. 67 O método da associação livre explorado por Freud com a descoberta do inconsciente, já designa uma metodologia específica estabelecida pela psicanálise, cujo rigor se efetua no valor sempre inédito da experiência clínica. Consequentemente, esse método original da psicanálise se afasta do empirismo lógico da pesquisa científica e da validação ‘falsa ou verdadeira’ de resultados analisados por intermédio de inferências sugestionáveis, introduzidas a priori em uma determinada experiência. Assim, Freud parece responder a Popper, indicando a construção como um seguimento metodológico da associação livre como ‘regra fundamental’ da psicanálise (FREUD, 1996, p. 118) 49 ; entretanto, dessa vez, dando ênfase ao modo de ‘avaliar’ um caso em psicanálise e de ‘verificar’ os efeitos das intervenções analíticas. Essa inovação metodológica de Freud talvez tenha maior proximidade com o pragmatismo americano de Charles Sanders Peirce 50 e sua proposição metodológica da lógica abdutiva como inferência hipotética e probabilística ‘do que pôde ser’ formalizado na teoria freudiana, partindo da elaboração de seus pacientes na base da transferência analítica. Do mesmo modo, podemos articular o rigor do método de investigação da construção analítica com a tese da ‘incomensurabilidade’ e com o princípio de ‘fecundidade’, explorados por Thomas Kuhn 51 como essenciais para o progresso das pesquisas científicas. Ainda que não aprofundemos a discussão sobre essas duas correntes filosóficas da ciência, convém apenas observar de que modo a proposta de Freud em ‘Construções em Análise’ acompanha os avanços do conhecimento científico, com a sua descoberta do inconsciente. Em 49 A Dinâmica da Transferência [1912]. Charles Sanders Peirce (1839-1914) filósofo, cientista e matemático norte-americano, consagrado como um dos fundadores do pragmatismo americano pelas importantes contribuições de sua obra à lógica, à matemática, à filosofia e, principalmente, à semiótica. A semiótica se caracteriza pelo estudo de três aspectos: gramática (sintaxe), lógica (semântica) e retórica (pragmática). Para Peirce, a lógica se denomina como o âmbito da semântica em que se concebe, pela relação ou conexão dos signos com os objetos, uma lógica aplicada a qualquer objeto, a partir da unidade do diverso, que compreende a teoria unificada da dedução, indução e abdução (inferência hipotética). O pragmatismo, como uma questão de lógica abdutiva, tem como fundamento o juízo perceptivo como fonte de conhecimento. Os juízos perceptivos, por sua vez, possibilitam a dedução de proposições gerais, por serem concebidos como um ‘juízo particular’, suficiente para responder à indagação de como se passa dos juízos perceptivos para os juízos universais. É pela lógica abdutiva que a generalidade é introduzida aos juízos perceptivos, ou seja, na criação das premissas como fundamento para a dedução (como uma inferência necessária que extrai uma conclusão já contida nas premissas) e para indução (como uma inferência experimental que não consiste em descobrir ou criar algo de novo, mas, sim, de confirmar uma teoria com a experimentação). Peirce apresenta a lógica abdutiva como uma inferência hipotética (um lampejo, uma idéia, um ato de insight) e como um método que cria novas hipóteses explicativas tomada por uma lógica da descoberta, da invenção ou da criação. A abdução "simplesmente" prova que alguma coisa pode ser. Fonte: http://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=765, acessado em 10/02/2012. 51 Thomas Kuhn (1922-1996), físico norte-americano é um autor da filosofia da ciência, consagrado por suas teorias críticas sobre o paradigma científico objetivista. Em seu livro "Estruturas da Revolução Científica”, de 1962, revisado em 1970 pelo próprio autor, Kuhn defende a tese da incomensurabilidade dos fatores subjetivos como condição necessária para o progresso da ciência, indicando, com isso, que a ciência não dispõe de um método universalmente válido como pensava a filosofia da ciência tradicional. Kuhn define sua tese sobre a incomensurabilidade com a idéia de que a disputa entre paradigmas não pode ser decidida apenas por critérios lógico-empíricos e apresenta cinco fatores essenciais que devem constituir uma teoria científica: exatidão, consistência, simplicidade, alcance e fecundidade. Por principio de fecundidade, entende-se a proposição de novas sentenças e algoritmos que tornam inventivos e fecundos os elementos que orientam as pesquisas no campo da ciência. (MENDONÇA & VIEIRA, 2007, p. 169-183) Fonte: http://www.scielo.br/pdf/ss/v5n2/a02v5n2.pdf, acessado em 10/02/2012. 50 68 contrapartida, essa observação nos permite retomar os princípios teóricos da psicanálise, que fundamentam o método de pesquisa da Construção do Caso Clínico, contrastado com o modelo empírico de avaliação das pesquisas científicas. Ao situar o valor metodológico do caso clínico na singularidade que ele representa, a construção de cada caso permite explorar uma lógica processual no acompanhamento clínico que não se universaliza, contrapondo-se, com isso, à lógica de avaliação empírica do método científico. E isso nos faz retomar, de saída, a suposição de saber, própria da posição de analisante do pesquisador, que interroga a condução do tratamento, contrastada com a posição da neutralidade científica nas pesquisas clínicas. Se na base da transferência analítica, a manifestação do inconsciente não se dissocia da presença do analista, isto implica considerar a eficácia do efeito de seu ato na transferência como um resultado que se extrai a posteriori, a partir dos momentos em que se recolhe uma transformação subjetiva na construção de um caso. Notamos, no entanto, que no campo das pesquisas clínicas atuais um caso pode ser avaliado de modo empírico e estatístico, constando como resultado a validação do êxito de uma determinada intervenção calculada a priori. Aí incluímos, por exemplo, as pesquisas em psiquiatria que, ao estabelecerem os sintomas como já alojados nas categorias diagnósticas, tomam o estudo dos casos pela avaliação dos resultados da ação química de determinados psicotrópicos na incidência desses fenômenos. Ora, se são pré-estabelecidos os critérios de avaliação pela validação dos êxitos de certas intervenções, como, então, situar o princípio de neutralidade nas pesquisas clínicas atuais? Deixamos em aberto essa questão para nos dedicar, em especial, ao modo como uma pesquisa em psicanálise recolhe seus resultados ao interrogar a direção de um tratamento. Para explorar a construção do caso em seu aspecto de avaliação da lógica processual de um tratamento, fundamentada nos princípios da psicanálise, partimos, contudo, de uma perspectiva diferente da ‘ciência da construção’ 52 . Enquanto para a ciência da construção a teoria e o cálculo são requisitos para se construir um caso, a construção do caso designa uma perspectiva inversa. Como analogia, poderíamos pensar que a construção do caso seria como se antes se construísse uma casa para depois verificar como ela permanece erguida ou sustentada por um determinado modo de funcionamento. E isso implica um modo específico de avaliar a condução do tratamento, realizado sempre a posteriori ao encontro do analista com esse ‘ponto obscuro’ em relação ao caso que constrói, ou seja, com essa parte que toma 52 Utilizamos esse termo para designar tanto as ‘ciências exatas’ da Engenharia da Construção Civil, por exemplo, como as ‘ciências médicas’ que, ao empregarem um método quantitativo de pesquisa sobre os casos clínicos, nos permite uma aproximação metodológica do que chamamos de ‘ciência da construção’. 69 do caso para sua construção. Daí a importância de demarcar três tempos fundamentais para essa metodologia da construção dos casos: o primeiro refere-se à construção analítica; o segundo, à avaliação que resulta dessa construção, realizada não a partir de um modelo préconcebido de verificação do êxito do processo, mas como uma verificação do próprio processo. Colocando em foco a contingência do caso como o que acontece em cada sessão 53 e a construção do caso como tarefa do analista, situamos, como terceiro tempo, o momento em que essa avaliação proporciona a pesquisa do analista, sempre realizada no ‘après-coup’ do trabalho de construção. Eis aí um modo de incluir a dimensão do ‘não programado’ no trabalho de investigação e de avaliação de toda pesquisa em psicanálise, quando não procuro, encontro, verifico algo no ‘après-coup’ da construção de cada caso. Outro aspecto fundamental da construção do caso, como método de pesquisa clínica, é marcado pela possibilidade de transmissão da lógica do caso único, abordada não a partir de uma determinada teoria, mas da discussão de uma equipe em torno do caso. O principal instrumento dessa metodologia de pesquisa é a construção do texto do caso clínico, como consequência do trabalho das ‘construções em análise’, recomendadas por Freud, que se produzem no momento do tratamento. O termo ‘construção’ empregado nesse método de pesquisa implica, ainda, a apresentação de um texto elaborado e finalizado pelo analista, que lhe servirá para comunicar a uma equipe de profissionais, ou ao campo clínico de um modo geral, o que se testemunha da singularidade de cada caso no curso do tratamento. A dimensão do testemunho da experiência clínica, portanto, é essencial para a metodologia da construção dos casos, pois ao favorecer uma transmissão de lógica do caso único pela apresentação da narrativa do caso, faz avançar o debate clínico, não pelo viés de uma exposição teórica, mas pela via da transmissão de algo de eficaz que se extrai dessa experiência. A construção de um texto que testemunhe a lógica de um tratamento torna-se, então, um instrumento metodológico fundamental para o pesquisador, na medida em que este poderá partir da produção desse material sobre o caso para conduzir sua pesquisa clínica. Demarcamos, então, duas etapas para o uso metodológico do texto da construção do caso: na primeira etapa essa escritura conduz a uma leitura do caso capaz de produzir uma avaliação da lógica processual de um tratamento. Na segunda etapa, essa avaliação, apreendida pela lógica clínica da contingência, do caso a caso, pode fornecer elementos fecundos para a formalização de uma discussão teórica, conduzida por uma pesquisa clínica. 53 Referências de Carlo Viganò mencionadas nos encontros realizados ao longo do ano de 2009-2010 do Cartel “Pesquisa clínica e Transmissão da Psicanálise”, registrado no Instituto Freudiano de Milão. Outras considerações sobre a metodologia da Construção do Caso Clínico que foram transcritas dos encontros desse Cartel estão presentes nesse primeiro item do segundo capítulo. 70 Disso resulta um modo de transmissão da operação analítica com a dimensão do real na clínica pela passagem da avaliação do processo clínico, onde algo que ‘não cessa de não se inscrever’ se enuncia no tratamento, para o processo da pesquisa clínica onde o que é enunciado sob transferência se inscreve, se transmite, a partir do texto do caso. Assim, a verificação que se produz no estudo de casos faz avançar a teoria pelos novos elementos e conceitos que são pesquisados a partir da construção de cada caso. Se a psicanálise dá lugar a uma pesquisa, a pesquisa que se conduz na clínica de orientação analítica é aquela na qual a teoria produz uma pesquisa no nível da prática. Na medida em que a prática analítica se estende ao campo da saúde mental, isso nos leva a pensar de que maneira a orientação analítica pode alcançar e avançar no debate clínico atual, dialogando com outras práticas. Convém esclarecer, portanto, três modos possíveis de conexão entre a teoria e a prática clínica, promovidos pelo método de pesquisa clínica da construção dos casos, que podem estar entre si articulados: 1. O primeiro modo corresponde à formalização de escrituras clínicas realizadas, partindo da narrativa do caso (1ª escritura) levada ao debate clínico (2ª escritura), sem entrar nos meandros da teoria psicanalítica. Essa segunda escritura expõe não somente o modo como o analista avalia com a equipe a condução do tratamento, mas os efeitos da transmissão do seu testemunho pelas contribuições que extrai da leitura compartilhada de outros profissionais em relação ao caso apresentado. Esse é um modo de aplicação da metodologia da construção de casos mais adequado aos serviços de saúde mental. 2. O segundo modo de aplicação da metodologia da construção dos casos corresponde a um dispositivo de formação do analista, a ser desenvolvido nas Escolas de Psicanálise Lacaniana. Partindo do texto do caso levado ao debate nas instituições de saúde mental, o praticante endereça a leitura dessa escritura a dois psicanalistas da Escola, que comentarão o texto, seguindo a lógica clínica das escansões que se extraem do texto da construção do caso. Essa proposta da Construção do Caso Clínico se aproxima da proposição lacaniana do Cartel do Passe para a demonstração da incidência lógica de um dizer na experiência analítica de onde se extrai um ‘não dito’, que revela a íntima relação do sujeito com o gozo, testemunhada nesse dispositivo. 3. O terceiro modo de aplicação da metodologia da construção dos casos corresponde à publicação da construção do texto do caso, já atravessada pela discussão da equipe clínica (2ª escritura) e, se possível, também pelos comentários da leitura realizada por outros analistas (3ª escritura), como material que propicia uma pesquisa clínica, 71 desenvolvida a partir de uma concepção teórica que determina a prática analítica. Esse modo de aplicação do método da construção é mais adequado ao contexto universitário e, por isso, a elegemos como metodologia de base para essa pesquisa de orientação lacaniana. Trata-se, portanto, de tomar uma pesquisa nesses três modos de aplicação, pelo viés da psicanálise aplicada ao campo da saúde mental, termo que será discutido mais adiante neste capítulo. O importante a assinalar nessa proposta metodológica é a maneira como se emprega o valor metodológico do caso através da especificidade da investigação psicanalítica: o caso ensina e é a partir desse ensinamento que nos colocamos na posição de ‘aprendizes da clínica’ (ZENONI, 2000) como pesquisadores. Com efeito, entendemos a clínica pela lógica relativa ao acompanhamento de um sujeito de onde se produz um caso. O caso clínico, por sua vez, inclui a dimensão da contingência, do real na clínica e, portanto, o ‘não programado’ na formalização de um saber que somente poderá ser construído a posteriori. E isto resulta no modo de transmissão da psicanálise de um saber que se constrói, a partir do caso clínico que não obedece ao saber teórico das práticas psicológicas e, tampouco, das práticas científicas. É nessa perspectiva de uma pesquisa que inclua a clínica que Viganò (2008) apresenta seu argumento no artigo Avaliação e Pesquisa Clínica 54 , no qual podemos encontrar, ainda, uma proposição política para os avanços da pesquisa em psicanálise no campo clínico atual. Nesse artigo, Viganò (2008, p. 3) indica a importância da aplicação da metodologia da construção do caso no contexto universitário 55 para que se mantenha “aberta a pesquisa dos instrumentos lógicos capazes de capturar a objetualidade que a experiência clínica demonstra como criação própria do caso clínico, sempre particular e nova”. Nessa direção, situamos os avanços da teoria lacaniana ao utilizar seus instrumentos lógicos que permitem circunscrever com a lógica do real psíquico, diferindo do método cientifico ou, ainda, das psicoterapias e do nicho filosófico da fenomenologia. Como exemplo, o autor assinala o modo como a leitura fenomenológica dos casos concebe a prática clínica, se afastando, no entanto, do valor do caso clínico ao produzir “as grandes narrações da loucura heróica” como uma práxis de interesse social comparado ao estilo da “redução de danos” (VIGANÒ 2008, p. 3), inserido em um determinado contexto civilizatório. Viganò analisa, com isso, o afastamento do rigor do método freudiano nas pesquisas clínicas, promovido inicialmente pelo campo das ciências humanas que contagiava, 54 Tradução do título do artigo: Valutazione e Ricerca Clinica. O autor faz referência ao método da Construção do Caso Clínico desenvolvido em uma pesquisa clínica sobre ‘Distúrbios Alimentares’, realizada na Unità di Psiquiatria Dinamica e Psicoterapia do Dipartimento di Salute Mentale do Ospedale Niguarda Ca` Granda, conveniado à Università degli Studi di Milano. 55 72 ainda, os clínicos psicodinâmicos do ‘setting privado’, chegando a abrir o caminho para a forma contemporânea de relação do tratamento com a cientificidade. Essa forma “hipermoderna” da cientificidade se apresenta, atualmente, para o autor como “imposta no campo da saúde mental através do horizonte avaliativo” (VIGANÒ, 2008, p. 03) dos grupos homogêneos das pesquisas sociológicas ou do controle estatístico dos estudos de ‘duplo cego’ 56 . No entanto, esse modo atual de cientificidade, além de se tornar conflituoso com a lógica da clínica, faz com que esta deixe de ser reconhecida por desaparecer no horizonte de uma cientificidade que se efetua somente no nível do semblante – do uso do número – para não dar mais lugar à verdade do sujeito. Com efeito, as demonstrações da dimensão do real da clínica são exploradas no campo das pesquisas clínicas somente para torná-las conciliáveis com a observação dos protocolos científicos e com seu modo de validação da eficácia terapêutica. Viganò (2008, p. 4) retoma, então, o desafio que se coloca no campo clínico atual de “reencontrar a clínica e, portanto, a via para a pesquisa”, através de um reencontro com a ciência que não seja apenas pela via de uma retórica com o que determina o cientificismo ou as correntes das ciências humanas. Para isso, o autor propõe a discussão de “uma pesquisa que compreenda a clínica” frente à redução da probabilidade calculável, que resulta na redução ao ‘uno’ da subjetividade que atrai a civilização contemporânea. A propósito desse reducionismo, o autor aborda as ‘classificações nosográficas’ como sendo a única hereditariedade deixada ao longo de dois séculos de psiquiatria como meio possível de “reportar os fenômenos psíquicos a uma unidade fechada”, ainda que estas constituíssem “sempre o ponto de fragilidade e de obstáculo para uma pesquisa clínica” (VIGANÒ, 2008, p. 4). E situa, na passagem dos séculos, o deslizamento da causa natural na psiquiatria do século XVIII para a objetivação da psicopatologia no século XIX até chegarmos, enfim, à homogeneidade do comportamento, característica dos tempos atuais, postulada pelo Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM). Entre essas passagens, indica 56 Estudo Duplo Cego é uma técnica realizada em seres humanos na qual nem o examinado (objeto de estudo) nem o examinador sabem o que está sendo utilizado como variável em um dado momento. É comumente usado como critério de validação de práticas experimentais quantitativas em ciência. Como exemplo, queremos testar a eficácia de um medicamento em uma determinada doença: o pesquisador contrata médicos examinadores que irão entregar uma cápsula, que pode ou não conter medicamento, a pacientes voluntários que apresentam uma determinada doença. Este medicamento foi feito por manipulação em dois tipos idênticos de cápsulas: uma com o pó do medicamento estudado e outro com farinha de trigo. O médico anota o número do medicamento sem saber se esta cápsula é o medicamento ou se é a farinha. Tampouco o paciente sabe a composição real da cápsula. Após o período que em que se espera que o medicamento faça efeito, o mesmo médico examina o paciente e anota quantitativamente a melhora ou não das alterações esperadas na doença. Esta ficha é devolvida ao examinador, que tabula os resultados, sabendo qual tipo de cápsula foi ingerida pelo paciente. Assim, o pesquisador consegue excluir o efeito placebo existente em um medicamento inerte e validar um medicamento que realmente faça efeito. Fonte: http://www.psiqweb.med.br, acessado em 02/02/2012. 73 que sempre se manteve viva e presente uma crença fundamental: “a da doença psíquica sob a qual o saber científico pode agir segundo o modelo epidemiológico” (VIGANÒ, 2008, p. 4). A partir dessa idéia, o autor apresenta o paradigma científico atual como ‘o ponto mais avançado’ do reducionismo introduzido pela medicina, sustentada por um modelo que torna o sofrimento humano um objeto científico. De outro modo, a inovação clínica de Freud, como assinala Viganò (2008), foi a de colher na raiz do sintoma neurótico a possibilidade de separar do corpo um rens cogintas, “encorajando o sujeito a fundar-se sob o pensamento e, portanto, sob o saber” (VIGANÒ, 2008, p. 4). Esse autor retoma, então, o ‘mal-estar da civilização e do neurótico’, pelo viés de um ‘seguimento impossível’ do saber com a verdade subjetiva que, por ser excluída como causa material, faz retorno ao lugar vazio deixado no sujeito pela ciência. Com efeito, a descoberta do inconsciente que opera na clínica da neurose permitiu à Freud, ainda segundo Viganò (2008, p. 4), a não designá-la como um objeto definido cientificamente, já que a relação do sujeito com os objetos definidos pela ciência “é fruto de uma combinatória do formalismo científico que agrega um grau elevado de probabilidade por meio do cálculo e da exatidão”. Nessa discussão, é incluída a originalidade de Lacan, único analista entre os seguidores de Freud, de pensar o inconsciente de modo topológico, precisamente colocado na relação subjetiva com os objetos da ciência 57 . Se no campo da ciência a verdade opera como causa formal, entre a ação de significação do significante, no campo da psicanálise e “da clínica que inclui o inconsciente”, a verdade subjetiva opera como causa material, representando o sujeito para um outro significante. Essa é, portanto, a perspectiva apontada por Carlo Viganò para que a “clínica possa reingressar no campo da pesquisa”, preservando o seu grau de probabilidade a partir de uma “certeza do tipo conjectural”, não ligada ao cálculo estatístico. Trata-se de reconhecer o valor da pesquisa clínica em psicanálise não designada como “científica no sentido da objetividade”, mas situada “na realidade transformada pela ciência como objetualidade”, a partir do que Lacan relacionou com o objeto a, um objeto particular que condensa em si a marca do incomensurável (VIGANÒ, 2008, p. 4). 57 No Seminário, livro 13: O objeto da psicanálise, Lacan apresenta a distinção entre os campos da ciência e da psicanálise pela relação que estabelecem com a verdade e pelo modo como operam metodologicamente com a função da falta. Tal distinção é demonstrada com a faixa de uma banda de Moebius que indica a verdade no buraco da banda, como objeto excluído do saber e interno ao sujeito do inconsciente. Seguindo o pensamento aristotélico, Lacan relaciona a causa natural com a causa formal pela operação do método científico com seu objeto a partir da empiricidade e da experimentação do verdadeiro e falso que, consequentemente, exclui o sujeito de suas formulações. A causa material, por sua vez, é relacionada com a operação do método clínico da psicanálise por recolher a produção da verdade de cada sujeito pela via do sintoma, cuja estrutura faltante é reafirmada pela lógica significante. 74 isto, Viganò (2008) propõe os seguintes princípios para uma pesquisa orientada pela psicanálise 58 : 1. A pesquisa clínica, conduzida por um psicanalista, não concerne à psicoterapia, mas a clínica sob transferência, a clínica do sujeito. 2. A psicanálise de orientação lacaniana constitui um paradigma científico de uma ‘ciência que inclui a psicanálise’. É, por isto, um complexo de teorias (o que é e como) que organizam uma clínica compartilhada por uma comunidade (AMP) 59 . Esse paradigma é centrado na topologia do sujeito da ciência, ou seja, daquele sujeito contemporâneo que sofre do ‘real médico’ não assimilável pela ciência, que faz disso o resto e a escória. 3. A pesquisa não é empírica, mas usa alguns matemas tratados pela lógica da clínica. Que o uso destes exija uma formação específica não deve surpreender, na medida em que esta é a tradição de cada pesquisa científica. Na pesquisa, o paradigma ocupa o lugar de S1, e o pesquisador é quem tenta contestá-lo, para substituí-lo por um paradigma mais útil e eficaz. Hoje o capitalismo não tolera que se tenham diversos paradigmas em competição entre eles, pois se pretende substituir com um saber universal – um S2 sem S1 – o que cada um pode consumar ao seu próprio gosto. 4. Os matemas do paradigma analítico foram elaborados por Lacan em seu ensino, no qual Jacques-Alain Miller deu uma continuação e uma orientação. Isso responde ao ‘o quê’ da teoria, que deve também prever o ‘como’, o método. Esse último se atualiza no passe e na verificação do tratamento pela intensão e na pesquisa clínica pela extensão. Entre intensão e extensão há uma passagem de discurso que se realiza em um plano projetivo, no qual o interno está em continuidade com o externo. 5. O objeto da pesquisa não é a cura do paciente, mas o estudo do sintoma, das suas variáveis e das transformações das organizações subjetiva do gozo, estrategicamente induzidas ao uso tático da transferência. Os algoritmos destinados a colherem essas transformações retomam a relação do sujeito com o objeto no campo do Outro e são, por isso, topológicos. 6. A base ‘cientifica’ (confrontabilidade do caso particular) da pesquisa é o Audit 60 e, portanto, a formação em equipe. Isto implica a construção (escritura do texto do 58 Os itens citados abaixo correspondem à tradução literal, realizada pela doutoranda, dos princípios apresentados pelo autor no artigo citado (VIGANÒ, 2008, p.04-05). 59 Abreviatura de Associação Mundial de Psicanálise que indica a referência do autor à comunidade de psicanalistas a qual pertencia como membro integrante da comissão de saúde mental. 60 Carlo Viganò utiliza frequentemente, em seus artigos, o termo médico de língua inglesa Audit, que designa a exposição e a discussão de casos clínicos. 76 tratamento) e desconstrução (leitura dos significantes do caso). Nesse trabalho, a causa eficiente faz interseção com o objeto a como causa. A pesquisa, portanto, participa da formação do analista. 7. Não há avaliação que não se fundamente sobre uma pesquisa, organizando o saber na relação ao seu S1. Consequentemente, não se pode aspirar a um saber acima das partes. Concerne à política levar em conta os dados de pesquisa, verificando se na sua metodologia o sujeito é incluído no lugar da verdade e não no lugar de comando. 8. A pesquisa assim delineada, como critério de validade, substitui uma ‘cientificidade’ que seria de puro semblante por uma ética que é a da clínica. Com isso, a pesquisa pode dialogar com as exigências de mercado (custos econômicos), mas não com as de marketing (persuasão). De fato, o saber que dá forma à evidência clínica não é totalmente exposto (medido), mas é suposto pelo sujeito (incomensurável do objeto). Por isso, a utilização política dos resultados da pesquisa não será a de programar e financiar os patrocinadores, mas servirá somente para os projetos clinicamente fundamentados. 9. Os resultados da pesquisa devem usar a linguagem do outro para contribuir na retificação do discurso do mestre, dialetizando o S1 da política. Para obter esse resultado não é necessário ‘standarizar’ os procedimentos terapêuticos como única forma de garantir a formação dos clínicos. Na clínica do sujeito, a confrontabilidade se dá no nível da estrutura do sintoma e não entre grupos de pacientes. É possível reagrupar os pacientes, para fins estatísticos, somente no ‘après-coup’ do tratamento (follow-up). 10. Para superar a censura da clínica, operada pelos falsos semblantes de ciência, não há outra política, senão aquela de ‘clinicar’ o furo no real operado pela ciência no corpo do falasser, como efeito da aliança entre a medicina e psicologia cognitivocomportamental. Para que a pesquisa clínica de orientação lacaniana possa se confrontar com outros paradigmas clínicos, é necessário que a universidade se abstenha da subordinação do modelo sanitário de governo. Se a pesquisa não é livre, torna-se um instrumento da segregação social do sintoma. A partir da apresentação desses dez princípios propostos para a direção de uma pesquisa clínica, podemos considerar a metodologia da construção dos casos como sustentada pelo rigor freudiano da investigação analítica e, ainda, pelas exigências éticas e metodológicas postuladas por Lacan para o avanço da pesquisa em psicanálise. Esses princípios nos servem, ainda, para situar o modo como a política lacaniana do sintoma se inclui nessa metodologia de 77 pesquisa, levando em conta que esta política não se reconhece nos critérios estatísticos e experimentais do discurso da ciência. Em contraposição às exigências das pesquisas científicas atuais, destacamos dois aspectos específicos do método de investigação e de avaliação da construção do caso clínico: o valor metodológico da singularidade do caso, que preserva a lógica clínica da pesquisa em detrimento da utilização do estudo de casos para fins de comprovação teórica, e a relação entre a verificação das transformações do sintoma no tratamento e a transmissão da política da psicanálise ao campo clínico atual. Uma via para abordar o valor metodológico do caso clínico no âmbito da pesquisa em psicanálise parte da investigação da condução de um tratamento, dos impasses e obstáculos que atravessam a experiência clínica, e segue em direção à construção da lógica do sintoma em cada caso. O resultado dessa construção, por sua vez, é avaliado pela leitura lacaniana do caso levada ao debate clínico, sem entrar nos meandros do ensino teórico. Isso se torna possível quando, por exemplo, introduzimos nas discussões clínicas o modo lacaniano de propor o relato dos casos, utilizando alguns algoritmos capazes de traduzir como o sintoma é colocado em evidência na nossa orientação clínica. Como resultado, o efeito de transmissão da orientação lacaniana é recolhido a cada momento em que se verifica que um caso foi entendido e compartilhado por uma equipe clínica, ainda que uma determinada concepção teórica não fosse explorada. Essa é a contribuição metodológica da construção do caso clínico para o campo da pesquisa clínica que permite explorar, ainda, os temas da avaliação e da evidência clínica, conforme os princípios acima apresentados. 2.1.1. A avaliação e a evidência clínica na saúde mental A experiência de Construção de Casos Clínicos foi iniciada por Carlo Viganò na Escola de Especialização em Psiquiatria da Universidade de Milão, com uma proposição metodológica que pôde ser aplicada, ainda, em diversas instituições psiquiátricas italianas 61 . Nesse cenário, a prática de apresentar e discutir os casos se revelou um potente instrumento de formação e de avaliação da qualidade clínica do trabalho institucional e, por isso, passou a ser adaptada também à prática em saúde mental. O método da construção do caso adotado, tanto na universidade quanto nos serviços de saúde mental, tornou-se, então, um instrumento 61 Referência à experiência iniciada em 1998 por Carlo Viganò, com a participação de psicanalistas lacanianos, na composição de um laboratório de pesquisa na Escola de Especialização em Psiquiatria da Universidade de Milão. Em seguida, com a participação dos estudantes e de profissionais que atuam nos serviços públicos de saúde mental, o método de Construção do Caso Clínico desenvolvido nessa instituição universitária passa a ser aplicado também nas instituições de saúde mental. 78 capaz de tratar o tema da evidência clínica com o propósito de demonstrar que é possível uma avaliação que compreenda a transferência como eixo da clínica. Para apresentar essa discussão, partimos de dois artigos de Carlo Viganò, traduzidos e publicados recentemente, que apresentam a metodologia da Construção do Caso Clínico em articulação com a atual temática da avaliação e evidência clínica na saúde mental 62 . Convém indicar que o detalhamento metodológico proposto pelo autor para a construção coletiva dos casos será retomado no próximo capítulo para que seja explorada, por enquanto, a fundamentação da proposição clínica e política dessa contribuição para o campo das pesquisas clínicas que se desenvolvem nos serviços de saúde mental. No primeiro artigo, o autor apresenta a relevância da proposta metodológica da Construção do Caso Clínico (VIGANÒ, 2010a) aplicada ao campo da saúde mental como estratégia para inserir o discurso analítico no debate clínico atual, fortemente influenciado pelo ‘ideal de cura’ promovido pela política contemporânea, centrada na redução de custos. Nessa direção, Viganò indica o modo como atualmente vem sendo formulada a demanda social de avaliação dos serviços de saúde em que “o que está em jogo não são mais a duração e a eficácia do tratamento, mas seus semblantes culturais” (VIGANÒ, 2010a, p. 3), definidos pela utilidade imediata dos protocolos de avaliação. A hipótese levantada pelo autor é a de que a forma contemporânea da avaliação vem sendo sustentada “pela intenção de neutralizar a variável transferência” (VIGANÒ, 2010a, p. 3) com corretivos do tipo ‘duplo cego’, tornando não influenciáveis os fatores subjetivos. Com isso, as terapias passam a ser avaliadas tal como o uso de um fármaco e, na ausência de uma avaliação que compreenda a transferência como eixo da clínica, os casos privilegiados são aqueles em que a transferência é desconsiderada e, portanto, deixada funcionar de modo selvagem. O autor apresenta, então, um breve relato da construção de um caso acompanhado por um profissional de formação lacaniana em uma Comunidade Terapêutica italiana, durante um período de quatro meses. A construção desse caso expõe não somente como os efeitos terapêuticos da psicanálise podem ser colhidos em curto tempo, mas também como seu modo de eficácia marca uma diferença notável em relação aos resultados que foram obtidos anteriormente com os tratamentos cognitivistas e farmacológicos. Em outros termos, o caso apresentado avalia a eficácia do ato analítico, quando inserido entre os tratamentos cognitivo62 Priorizaremos, portanto, a discussão estabelecida por esse autor sobre o tema apresentado, por duas razões: primeiro, por ser este o propositor da metodologia aplicada nessa pesquisa, sendo, por isso, pertinente assinalar os argumentos clínicos e políticos que norteiam o método da Construção do Caso Clínico. E em segundo lugar, para explorar as contribuições deixadas pelo autor no intuito de homenageá-lo com essa pesquisa de doutorado, acompanhada continuamente pelo mesmo até o mês de seu falecimento. 79 comportamentais que produziam uma história de cronicização, demonstrando que o efeito terapêutico de uma escuta analítica é rápido (VIGANÒ, 2010a, p. 7). No entanto, é importante demarcar a exigência de um projeto de estabilização que dê prosseguimento à clínica sob transferência e não à rigidez de um ideal de cura. Sobre esse aspecto, Viganò assinala que o ato analítico se opõe à cura rápida obtida com as internações psiquiátricas e às intervenções cognitivistas, que se revelam de duração sempre mais breve. E, com isso, o autor conclui que para inserir a transferência como fator da terapia, é necessário remover da perspectiva da avaliação a referência a qualquer ideal de cura que considere, unicamente, o dado concreto do custo financeiro de um acompanhamento clínico. No segundo artigo, Viganò apresenta o tema da Avaliação e evidência clínica na saúde mental (VIGANÒ, 2010b, p. 469) em continuidade com o argumento anterior, em que contrapõe o modo de avaliação do método da construção de casos em relação aos métodos de verificação empírica ou de avaliação de eficácia que, atualmente, condicionam também as psicoterapias. Esse argumento é sustentado pelo autor, considerando que atualmente “o psicanalista tornou-se sensível ao tema da avaliação” (VIGANÒ, 2010b, p. 471), já que a exigência social de calcular o custo econômico das terapias começa a atingir também a sua prática. Com essa dificuldade, estão sendo confrontados os projetos de reforma da saúde mental, em diversos países 63 , como na França e na Itália, chegando ao Brasil por meio das mais recentes propostas de reforma sanitária. Esses projetos estão centrados na idéia de pedir à “ciência médica” a definição inicial da doença para, em seguida, proceder segundo a lógica da avaliação estatística que estabelece a exatidão dos custos e gastos dos procedimentos terapêuticos. Para o autor, a transposição desse modelo empírico para a avaliação da prática analítica nas instituições parece responder a uma exigência de ocultar a real contribuição da psicanálise, que é a de “dar contribuições essenciais a cada axioma 64 de avaliação clínica” (VIGANÒ, 2010b, p. 470), na medida em que cada avaliação produz, por si mesma, um quadro axiomático. 63 Em relação ao cenário italiano de assistência em saúde mental, o autor indica o projeto de lei proposto por Maria Burani Procaccini, em 2001, que, entre vários retrocessos em relação à Lei 180 da Reforma Psiquiátrica Italiana, prevê o Tratamento Sanitário Obrigatório com tempo determinado para o acompanhamento de casos de saúde mental. Na França, indicamos a resolução do HAS (traduzido como Autoridade Máxima em Saúde francesa), que recomenda técnicas comportamentais e educacionais para o tratamento do autismo, em detrimento da prática clínica da psicanálise. No Brasil, além das ‘metas’ de produtividade, que estimula o tempo cada vez mais breve de intervenções clínicas, damos ênfase ao projeto de lei 111/10, que prevê a Internação Compulsória de usuários de drogas lícitas (álcool) e ilícitas, sob o mote da ‘Justiça Terapêutica’, apoiado pela psiquiatra contemporânea e pela esfera judicial, que pode ‘condenar’ um usuário de drogas a uma ‘pena’ de seis meses e um ano de ‘tratamento obrigatório’. 64 Definição de axioma: proposição que se admite como evidente porque dela se podem deduzir as proposições de uma teoria ou de um sistema lógico ou matemático. Fonte: Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 1ª edição, 1975: p. 168. 80 Da parte do campo médico, Viganò situa as exigências da corrente de avaliação da EBM (Evidence Based Medicine) que vem promovendo a idéia de verificar as intervenções a partir de uma objetivação instrumental do quadro clínico, considerando a evidência como critério de leitura dos êxitos do mesmo quadro. O autor observa que, de um modo geral, esse modelo de avaliação foi importado acriticamente de algumas disciplinas particulares, “dandolhe um valor universal inapropriado e qualificado como científico” (op. cit, 2010b, p. 475). Diferentes quadros axiomáticos, como os de tipo sociológico – estudo por classes homogêneas – se misturam com os modelos de farmacologia clínica – estudo de duplo cego – e, com isso, o processo dedutivo, que deveria conduzir a axiomática avaliativa, é substituído pelo cálculo estatístico. Consequentemente, os elementos heterogêneos e, portanto, incomensuráveis, como o efeito do uso de psicotrópicos, das psicoterapias e da psicanálise aplicada passam a receber arbitrariamente a atribuição de um índice numérico que, ao se reportar ao cálculo estatístico, “elimina cada referência ao real, tornando-se uma anticiência” (VIGANÒ, 2010b, p. 476). Convém ressaltar que essa corrente de avaliação, presente no campo da saúde pública, segue uma lógica que se afasta do modo como vem sendo avaliada a condução dos casos por meio das discussões e supervisões clínicas realizadas com as equipes multidisciplinares que atuam, hoje, nos serviços de saúde mental. Instaura-se, então, um conflito entre o modo de avaliação da lógica processual da condução de um tratamento e o modo como as instituições devem programar suas ‘metas’ de intervenções clínicas, estabelecidas pela atribuição dos custos, conforme “a lógica desenvolvida historicamente na organização dos tratamentos hospitalares” (VIGANÒ, 2010b, p. 471). Na base dessa lógica estatística e avaliativa, Viganò inclui o Diagnostic Rating Group (DRG), no qual os diagnósticos são reagrupados em classes, correspondendo a uma tarifa para o reembolso. Segundo Viganò (2010b, p. 472), o pressuposto para este cálculo é o de que um determinado diagnóstico corresponda a um protocolo de tratamento homogêneo e previsível. Como efeito da aplicação dessa lógica nos serviços de saúde, a clínica é considerada somente para produzir o resultado da ‘cura do sintoma’ ou de sua contenção com o menor dispêndio de dinheiro e de tempo. Assinala que esse modelo de avaliação de um tratamento “perde o valor preditivo real quando a definição do sintoma e da sua modificação ou estabilização entram na competência clínica do caso a caso” (VIGANÒ, 2010b, p. 472). Diante disto, o autor problematiza a inclusão desse modelo no campo da saúde mental, pois “se omitido o tempo lógico da transformação do problema psicológico como uma evidência clínica, essa transformação deixa de ser um dado determinante para o cálculo”, tornando-o “ideológico ou, ainda, conflituoso” (VIGANÒ, 2010b, p. 472). E, com isso, localiza a 81 contribuição de métodos clínicos que desenvolvam uma operação inversa ao método científico, recolhendo as evidências que as várias disciplinas clínicas produzem no estabelecimento de um quadro axiomático que sirva ao cálculo avaliativo. O autor aponta, então, para a evidência clínica como um critério ‘mais manejável e aderente’ (VIGANÒ, 2010b, p. 471) à operação do tratamento que se quer avaliar, e não como um procedimento ‘científico’ em que o valor de diagnóstico e, sobretudo, de cura – operações de sentido não quantificáveis – são tomados de modo arbitrário, tendo como única mensuração a estatística. Diferindo da mais avançada corrente da EBM, Viganò propõe a indicação da evidência clínica, com uma axiomática avaliativa que se fundamenta na orientação lógico-estrutural da psicanálise lacaniana. Essa proposição é considerada pelo autor como capaz de fornecer um importante suporte metodológico para as diferenças técnicooperativas que configuram o trabalho em equipe. Para isto, Viganò agrupa em ‘três tempos lógicos’ os elementos do processo de acompanhamento na saúde mental, aplicando uma formalização da clínica lacaniana, com base nos três tempos da clínica clássica: a anamnese, o diagnóstico e a terapia. E ressalta que esses três grupos de operações clínicas, não necessariamente, devem ser ordenados em um único protocolo operativo65 , mas servem para a elaboração de um projeto terapêutico que deve considerar a articulação dessa temporalidade lógica, ainda que sejam contemplados em modos e tempos particulares em cada caso. 1. Um instante de ver é designado como uma operação que isola o ‘olhar clínico’ como “o filtro que estabelece a ‘evidência’ e que coincide, cada vez menos, com o clássico diagnóstico categorial” (VIGANÒ, 2010b, p. 473). A evidência clínica que inclui o tratamento e, portanto, a contingência clínica é diferenciada da exigência do diagnóstico categorial que privilegia a categoria sociológica de ‘distúrbio’ para alimentar a quantificação epidemiológica na lógica da avaliação. O autor assinala, então, que este “não é um tempo de mensurações, mas de avaliação” (VIGANÒ, 2010b, p. 473) da evidência que permanece ancorada ao caso e que permite avaliar, posteriormente, quais seriam os dados adequados a sobrepor no tempo da mensuração. 2. Um tempo para compreender concerne ao tempo “da avaliação da transferência e da formulação de um projeto de tratamento que coincide com o critério diagnóstico” (VIGANÒ, 2010b, p.473). Entretanto, o autor aponta para o modo como essa operação clínica “vem sendo hoje comprimida e aspirada pelo tempo lógico sucessivo” do 65 Embora o autor considere que esses ‘três tempos lógicos’ não necessariamente estejam ordenados em um único protocolo operativo, podemos situá-los na axiomática avaliativa que conduz o ‘Roteiro da Apresentação dos Casos’ (ver anexo I) como instrumento metodológico para Construção do Caso Clínico. 82 momento de concluir, como uma ‘perversão lógica’, que tende a negligenciar o tempo de compreender para dar precedência ao tratamento da urgência. Sob esse ponto de vista, Viganò situa também a ‘perversão da política’ de negligenciar a manutenção do tratamento para se ocupar, unicamente, da redução dos custos, endossada pela idéia de que cada distúrbio deve corresponder a um determinado custo financeiro. Nesse tempo lógico, a mensuração pode desempenhar uma função importante para o estabelecimento de medidas políticas que considerem o processo clínico e não somente sua mensuração financeira. 3. O momento de concluir designa o momento “capaz de criar o espaço para o analítico ou terapêutico” (VIGANÒ, 2010b, p. 474) após o tempo da elaboração de um projeto de tratamento. Se um critério terapêutico não for estabelecido no tempo anterior, caberá à ‘utilidade imediata’ a decisão do ‘tratamento mais adequado e rápido’ para um determinado distúrbio, baseada nas evidências científicas. Viganò situa nesse tempo lógico o momento em que, frequentemente, o valor de eficácia do ato analítico é descartado e degradado. No entanto, o autor adverte que “devemos encontrar todos os aliados possíveis no propósito de construir a dignidade ética e cultural do ato analítico”. (VIGANÒ, 2010b, p. 474), ressaltando, assim, a importância de preservar a transmissão da eficácia da psicanálise, evitando o confronto ideológico com outras concepções clínicas. O estabelecimento dessa axiomática avaliativa de orientação lacaniana nos permite problematizar o modo como a dimensão subjetiva torna-se hoje irreconhecível no tema da avaliação, o que nos leva a interrogar o uso do cálculo no âmbito da saúde mental. Esse é um problema que se coloca para a saúde mental “quando não é mais a homeostase natural e biológica do vivente a definir o estado de saúde, mas uma quota de gozo do corpo que é própria de cada sujeito; não mais o silêncio dos órgãos, mas a sua palavra” (VIGANÒ, 2010b, p. 474). Trata-se do desafio de não tornar eliminável nas avaliações clínicas o resíduo de incurável do sintoma psíquico, reconhecendo seu caráter ‘não mensurável’ e não reduzível a um bom funcionamento. Entretanto, o autor situa nesse ponto o surgimento da hostilidade pela psicanálise no campo científico, na medida em que na experiência analítica “este elemento incomensurável é algo do que se pode falar” (VIGANÒ, 2010b, p. 477). Enquanto as ciências médicas partem ‘do que não se pode falar’ para reduzir o sintoma a uma disfunção ou a um distúrbio, a presença do analista incide no nível do equívoco da palavra para impedir que esta seja substituída pelo ideal da utilidade imediata subordinada ao mote dominante do “direito à saúde”. 83 Uma importante tarefa para a psicanálise é, então, a de escutar algo no relato do sintoma que trabalha contra o ideal enunciado “da exigência unívoca da mensuração que leva ao silêncio.” (op. cit.). E isto implica tornar legível algo que não é mensurável e que se extrai do sintoma pela ressonância da palavra que nos faz encontrar no mensurável de seus sinais o não mensurável de seu sentido. Tornar o incurável do sintoma um elemento fecundo para avaliar a condução de um tratamento é uma direção possível para introduzir novas propostas e métodos clínicos no campo da saúde mental que se diferenciem da operação do cálculo estatístico. Nessa direção, a prática lacaniana marca a sua diferença na avaliação de um acompanhamento clínico, já que “não visa ao funcionamento de cada caso, mas assume a falha no seu centro e transforma a noção de êxito” (VIGANÒ, 2010b, p. 477). Esse é, portanto, um modo específico de estabelecer uma relação com o real do gozo do sintoma, com a insistência do impossível de curar, no nível de uma axiomática de avaliação do tratamento no qual “o fracasso torna-se somente um modo não subjetivado do sucesso” (VIGANÒ, 2010b, p. 477). Para incluir na lógica avaliativa os princípios da prática psicanalítica de tratamento do sintoma, Viganò indica “alguns dados que podem se tornar patrimônio comum da saúde mental” (VIGANÒ, 2010b, p. 478), se preservada a idéia da utilidade ancorada no real da experiência clínica. Entre esse dados, sintetiza três princípios da política lacaniana do sintoma que são entre si correlatos: A normalidade não é outra coisa senão o sintoma uma vez elaborado pelo sujeito como medida da sua saúde. O tratamento é transformação do sintoma que o reduz a agente do desejo: é o sujeito que trata de si mesmo. Desta “desconstrução” é possível fazer uma construção transmissível (VIGANÒ, 2010b, p. 478). A apresentação desses princípios, estendidos à prática da saúde mental, se articula com a exigência da evidência clínica instaurada na prática médica, no intuito de dispor da teoria e dos protocolos que dela derivam para a avaliação da clínica e, mais precisamente, do caso particular. Se abolida a disciplina clínica do estudo contínuo do caso clínico e das modificações do sintoma em cada caso, o autor adverte que qualquer uma das duas práticas tende a “transformar-se em uma ideologia em que o quadro nosográfico funciona como véu fantasmático do doente real, contingente” (VIGANÒ, 2010b, p. 478). Nessa perspectiva, a medicina baseada em evidências responde a uma axiomática científica, na qual a evidência é atribuída com base na leitura da mensuração instrumental dos quadros nosográficos aplicada ao texto do caso. De modo diferente, a axiomática mais adequada à avaliação da prática da saúde mental concerne à leitura do caso único, a partir do texto que se produz na construção do caso clínico. 84 A proposta da construção do caso aplicada ao campo da saúde mental parte da concepção do tratamento como um processo criativo, no qual cada sujeito introduz a dimensão do novo e do real na clínica ao criar suas soluções para lidar com o gozo de seu sintoma. E isso implica a tarefa de se construir um discurso nas instituições que transmita, de maneira clara, a uma equipe clínica ‘o que é o sintoma’ e ‘como se trata um sintoma’, seguindo a orientação da psicanálise lacaniana. Trata-se, então, da ação política do analista de tornar legível o que se apreende dos princípios teórico-clínicos de Freud e Lacan como determinantes para a sua prática no âmbito da saúde mental. Nessa direção, Viganò interroga: “por que, no campo da saúde mental, não utilizar a lógica e a topologia como instrumento para construir a evidência clínica de um tratamento?” (op. cit, 2010b, p. 470). Com esse questionamento, o autor propõe a metodologia da construção dos casos como uma contribuição da psicanálise para a avaliação da experiência clínica, pela extensão da proposta do passe 66 de produção de uma escritura que testemunhe o final de uma experiência analítica. Seguindo essa proposta, o crédito dado à escritura do caso como construção do objeto psíquico 67 concerne a algo que é relançado pelo analista com seu ato e que, portanto, vai além do dito do analisante. Do mesmo modo, o texto da construção do caso produzido pelo clínico, que conduz um tratamento, permite “construir a conexão, a passagem exata do que se compreende no tratamento ao que disto se pode ler na avaliação” e, com efeito, “a evidência vem da resposta do paciente” (VIGANÒ, 2010b, p. 471). É notável, nas discussões de uma equipe clínica, como os diversos momentos de transformação da posição discursiva de um sujeito, testemunhados no tratamento, podem atravessar a apresentação e a avaliação clínica do caso. No entanto, para fomentar esses espaços de discussão clínica, a prática da construção coletiva dos casos não deve entrar em competição com outras leituras teóricas, mas deve recolher na leitura do texto da construção as estruturas reais do caso clínico e a lógica de suas respostas. A contingência dessas estruturas “é ligada ao caso clínico e não à teoria”, enquanto que o valor metodológico do testemunho na construção dos casos “é garantido pela escritura e pela discussão dos casos” (VIGANÒ, 2010b, p. 471). A leitura coletiva do texto da construção, por sua vez, propicia uma desconstrução que evidencia a relação singular e contingente que cada sujeito estabelece com seu sintoma. 66 Dispositivo proposto por Jacques Lacan (1967) na ‘Proposição de 9 de outubro de 1967’ (LACAN, 2003), na intenção de verificar como no final de sua análise, o analista praticante torna-se Analista da Escola (AE), a partir do testemunho de sua própria experiência de análise. 67 Referência ao termo empregado no texto freudiano “Construções em Análise”, de 1937. 85 O texto da construção do caso apresenta os pontos de descontinuidade e de escansões das transformações do sintoma no curso de um tratamento que podem ser lidos como uma evidência clínica, a partir dos ‘furos e saltos lógicos’ que a leitura do caso permite localizar como produções subjetivas de cada sujeito. Nesses pontos descontínuos da leitura do caso clínico, Viganò considera que “a evidência intervém no sentido etimológico, como reforço para ver” (VIGANÒ, 2010b, p. 478), afastada da dimensão de uma interpretação do clínico que assumiria o valor de ‘supervisão’ do trabalho de discussão dos casos. Para explorar essa idéia, o autor indica a homofonia oferecida pela língua francesa à palavra evider [perfurar] como um modo interessante para designar a operação da evidência de “furar a imagem produzida na narração do caso em um ponto de indício onde se apresenta a transferência” (VIGANÒ, 2010b, p. 478) como eixo da clínica. Dito de outro modo, trata-se de recolher no plano do texto da construção as ‘perfurações’, as escansões produzidas por um significante que age no après-coup de um ato clínico, como o que evidencia a resposta do paciente no processo terapêutico. O método da construção do caso permite, portanto, tratar o tema da evidência na saúde mental, preservando o valor metodológico do caso clínico e a importância da prática de apresentação dos casos para a avaliação coletiva da condução clínica de uma equipe. Isto decorre da proposição do algoritmo 68 psicanalítico, utilizado não somente para evidenciar o modo mais adequado de leitura do texto do caso no âmbito da saúde mental, mas também para transmitir o modo como a prática analítica coloca em evidência as modificações do sintoma no curso do tratamento. Com isso, concluímos que “a evidência clínica vale para qualquer prática de tratamento com a condição de não tornar absoluta uma técnica, dando-lhe o seu valor de axioma” (VIGANÒ, 2010b, p. 479). Essa é uma via aberta pela metodologia de pesquisa da construção do caso que, ao aplicar o valor axiomático das estruturas subjetivas descobertas por Freud e Lacan, marca a sua contribuição para o tema da avaliação e da evidência clínica na saúde mental. Seguir o caminho inverso ao da ciência, tanto no tratamento quanto na sua avaliação, implica sustentar a política lacaniana do sintoma de “renunciar a atribuição imaginária dos números, e sua ilusão de tornar tudo possível, para circunscrever o real” (VIGANÒ, 2010b, p. 476), o impossível de mensurar das variáveis subjetivas do gozo. Enquanto a ciência contemporânea constrói suas evidências, atribuindo-lhes o valor de certeza e de 68 Definição de algoritmo: processo de cálculo ou de resolução de um grupo de problemas semelhantes em que se estipulam, como generalidade e sem restrições, regras formais para a obtenção do resultado ou da resolução do problema. Fonte: Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 1975, p. 68. 86 universalidade, Lacan nos ensina que é suficiente dar um estatuto rigoroso e transmissível à estrutura subjetiva e à operação analítica, sem que seja necessário encobrir com um valor universal os algoritmos que acrescenta ao estudo dos casos. Nesse caminho, prosseguiremos com algumas considerações sobre a prática psicanalítica da apresentação de casos e da verificação da experiência clínica que concernem à formação do psicanalista e à transmissão da política psicanálise. 2.2. A construção do caso clínico e a transmissão da psicanálise Como referência para explorar a proposta da construção de casos pelo viés da transmissão da psicanálise, apresentamos a temática proposta na XXX Jornadas da École de la Cause freudienne, realizada em Paris, no ano de 2001. O tema indicado para esse evento, ‘Como analisamos [os casos] hoje’, implicou muitos analistas de orientação lacaniana na importante tarefa de aprofundar e refletir sobre sua prática clínica nos tempos atuais. Nesse contexto do movimento psicanalítico na França, notava-se uma tensão existente entre a perpetuação da tradição clínica da psicanálise e a prática do ato analítico tal como foi transmitido por Jacques Lacan. A temática dese 2.2.1. O relato e a narrativa do caso O trabalho intitulado O relato de caso, crise e solução, apresentado por Eric Laurent nessas Jornadas, em Paris, tornou-se referência para a discussão levantada ao longo do evento em relação ao método empregado para apresentação e construção de casos clínicos. Ao introduzir o tema, Laurent assinala que “O método é de tradição na disciplina e ele não é sem críticas” uma vez que “o prestígio da ciência e da série estatística arruína, nas ciências humanas, o brilho do caso único” (LAURENT, 2001, p. 19). Convergindo com a discussão apresentada sobre a metodologia clínica da construção do caso, Laurent considera a existência de uma crise na tradição do relato do caso que não se limita ao campo da psicanálise, mas que também alcança o campo das ciências humanas, muitas vezes, fascinado pela série estatística em detrimento do caso singular. O desafio que se coloca, então, é o de “escrever a contingência do caso na necessidade” (LAURENT, 2001, p. 19) das descrições seriadas e classificatórias. Laurent (2001, p. 19) aborda a “crise do relato do caso em Psicanálise” a partir do fato “de não se saber mais muito bem como redigi epistemológica das classificações, que nos faz perceber a função de toda classificação como uma nominação de uma ‘individuação’. Do ponto de vista da psicanálise, ‘nomear o caso’ é um dos nomes da lógica da experiência analítica e de sua ética do bem-dizer, que orienta na transferência o dizer do analisante e o dizer interpretativo do analista. ‘Um caso’, por sua vez, é designado como tal quando se testemunha a incidência lógica de um dizer no dispositivo clínico como uma orientação na direção do tratamento de um problema real, de um problema de gozo. Se observarmos essa gravitação da lógica significante no campo do gozo, então, poderemos falar de caso, no sentido em que encontramos a palavra “casus”, em latim, como ‘isso que cai’ da regulação simbólica e que é contingência “infeliz”, encontro direto com o real. A questão que se coloca, então, seria a de como inscrever a particularidade da lógica do sintoma em cada caso nos tipos de classificações dos atuais manuais diagnósticos. Para abordar esse questionamento, Éric Laurent apresenta um breve histórico sobre a crise da tradição da apresentação de caso e as soluções possíveis a serem traçadas como proposta para o estabelecimento de um método clínico que considere a transferência e o sintoma em sua singularidade. Ao abordar a crise do relato do caso, com base no ‘modelo freudiano’, Laurent caracteriza o início da narrativa do caso freudiano, a partir do modelo do romance goethiano, ao observar que a narração dos sofrimentos de Dora (FREUD, 1996)69 se assemelham, em sua forma de expressão, aos sofrimentos do jovem Werther que atravessaram o idealismo alemão. Entretanto, esses relatos inauguraram um modelo baseado no relato do sonho e suas associações partindo da forma original desenvolvida por Freud em sua Interpretação dos Sonhos [Traumdeutung] (FREUD, 1996), na tentativa de apreender e transmitir a experiência de uma análise. Freud foi capaz de formular um modo de narrativa, conseguindo integrar a sessão analítica em um mesmo relato contínuo do diálogo do sujeito com seu inconsciente. Com efeito, Freud pôde transmitir a Abraham e a Ferenczi seu modo próprio de narração, marcado pelo estilo romântico que continuou a ser empregado na direção dos prolongamentos do romance histórico alemão e dos sonhos apresentados, de certo modo, como uma ficção. Laurent (2001) ressalta que o desdobramento do romancista e de sua ficção está presente na obra freudiana, conforme observado na leitura de ‘Gradiva’ de Jensen (FREUD, 1996)70 e dos romances biográficos de heróis culturais, como o Leonardo da Vinci (FREUD, 1996) 71 . A 69 Fragmento da Análise de um Caso de Histeria [1905]. Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen [1907]. 71 Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância [1910]. 70 89 partir da Primeira Guerra Mundial e do estudo sobre “O homem dos lobos” (FREUD, 1996) 72 - ultimo ‘caso’ freudiano a tomar essa forma clássica de “relato do caso” – podemos, então, notar a ruptura freudiana com esse formato de narrativa. Na virada do ano 1920, a “crise da interpretação” instaura um impasse no formato do ‘relato do caso’, na medida em que os psicanalistas começam a lidar com o sintoma como o que resiste ao desvelamento inconsciente, ao invés de tomá-lo, a partir da associação triunfante que vem à tona no sonho, conforme o modelo freudiano. O relato do caso passa, então, a ter que dar conta das dificuldades de cada analista diante da extensão da psicanálise à clínica das psicoses em que, por exemplo, o sonho não traça seu curso. A unidade da sessão de análise se torna conteúdo de relatório dos analistas, no intuito de fazer coincidir tais relatos com a experiência de uma análise, não considerando mais o destino de um sujeito, mas a apresentação do fato memorável extraído de uma sessão. Desse modo, a forma curta da apresentação dos casos passa a prevalecer, com a extração de momentos cruciais de uma sessão. Anos depois, Melanie Klein (1991) inventa uma nova narrativa, partindo da modalidade do ‘bloco de notas’ de sua experiência, na qual relatava seus casos sessão por sessão. O ‘material’, imediatamente traduzido em termos ‘inconscientes’ pela analista, se diferencia da ordenação dos relatos freudianos. Segundo Laurent, o interesse de Klein estava centrado no que o autor denomina como sendo a “epifania 73 própria de cada sessão” (LAURENT, 2001, p. 23) pelo modo como descrevia a manifestação do inconsciente na sua materialidade e a demonstração do ‘saber-fazer’ do psicanalista. Laurent assinala, ainda, a dificuldade da analista em tornar público o relato de seus casos como um problema que consegue desviar somente após a sua morte, nos anos 1960, quando a ‘análise de uma criança de dez anos’, conduzida em 1940, pôde ser publicada no formato de uma monografia. Esse formato monográfico de apresentação de casos foi o último trabalho a ser publicado. Em seguida, as narrativas passaram a assumir o formato de vinheta clínica, como uma forma breve de apresentação da prática analítica, com base na ‘ilustração’ de um aspecto parcial dessa experiência. No contexto da ‘crise do relato do caso’, Éric Laurent (2001) situa a evolução do método escolhido por Jacques Lacan com a sua tese de psiquiatria, desenvolvida em torno do 72 História de uma Neurose Infantil [1914-1918]. Epifania é uma súbita sensação de realização ou compreensão da essência ou do significado de algo. O termo é usado nos sentidos filosófico e literal para indicar que alguém "encontrou finalmente a última peça do quebra-cabeças e agora consegue ver a imagem completa" do problema. Fonte: http://pt.wikipedia.org/, acessado em 12/02/2012. 73 90 conceito de ‘personalidade’ (LACAN, 1987) 74 , partindo do método jaspersiano em direção à concepção francesa da ‘psicologia concreta’. Com esse trabalho, Lacan almeja a publicação de monografias exaustivas sobre o estudo do caso, no intuito de testemunhar a verdade do sujeito em questão. Trata-se, segundo Laurent, de um “verdadeiro ‘single case experiment’, apoiado sobre a unidade da ‘personalidade’” (LAURENT, 2001, p. 24), cuja perspectiva Lacan manterá parcialmente ao longo de seu ensino. É, então, na passagem de sua tese para o início de seu percurso na psicanálise que Lacan abandona o método exaustivo de relato de caso, substituindo a exaustão pela coerência do nível formal do estabelecimento do sintoma. Na medida em que torna lógico o inconsciente, Lacan direciona o relato do caso psicanalítico para a concepção do ‘envelope formal do sintoma’ (LACAN, 1976, p.40) como um tipo de matriz lógica. Do mesmo modo, a estrutura lógica e topológica dos casos freudianos começa a ser apresentada por Lacan com uma nitidez incomparável na literatura psicanalítica. Na leitura comentada dos casos de Freud, Lacan eleva alguns desses casos ao estatuto de paradigma, por ser capaz de demonstrar as propriedades formais das manifestações do inconsciente freudiano. Ao apresentar os casos paradigmáticos de Freud, Lacan demonstra o que diz respeito à estrutura lógica dos casos, concebendo o sintoma como pertencente a uma classe diagnóstica e, ainda, a partir de elementos singulares que se repetem e que se permutam na vida de um sujeito. Nessa perspectiva, podemos abordar a leitura dos comentários lacanianos a respeito dos trajetos do caso Pequeno Hans, em torno do vazio da fobia, do esquema R, em que demonstra as arestas da psicose do caso Schreber, com os significantes isolados por Freud, do quarteto de Dora articulado ao caso da Jovem Homossexual para indicar os modos de transformações da sexualidade feminina em torno do significante do desejo, ou ainda, do caso do Homem dos ratos, em que Lacan apresenta a ‘combinatória geral’ das formas do labirinto obsessivo. A ênfase dada por Lacan para a combinatória inconsciente, em cada um desses casos paradigmáticos, redefine os ‘falsos dilemas’ apresentados pelo movimento psicanalítico americano. Laurent (2001, p. 26) cita, então, alguns desses dilemas: “é preciso ou não ler os textos de Freud como os de um fundador? Uma verdadeira ciência tem fundadores? Será que não perdemos nosso tempo lendo os textos princeps?”. O autor comenta tais questionamentos como distorções retóricas, as quais a crítica norte-americana considera que Freud se enganou, falsificou seus resultados e apresentou desvios injustificáveis entre suas anotações de sessão e publicação. Desse modo, Laurent (2001, p. 27) retoma a discussão a respeito de uma suposta 74 Da Psicose Paranóica em sua relações com a Personalidade [1932]. 91 ‘cientificidade da psicanálise’, afirmando que “se ela fosse uma ciência exata, e não um discurso, nós não teríamos mais nada a aprender de Freud, tudo seria transmitido integralmente”, ressaltando a importância de ‘ir mais além de Freud’ para repensar a psicanálise e colocar à luz os novos conceitos para pensar seu objeto, como demonstra o ‘retorno a Freud’, de Lacan. Como, então, inscrever a particularidade da construção lógica de cada sintoma nos tipos de classificações empregados pelo método científico? Em primeiro lugar, Laurent assinala que o caráter de coerência lógica do sintoma apresentado por Lacan, ao mesmo tempo em que afirma a existência de ‘classes de sintomas’, efetua a desconstrução dessas, já que a nominação do sintoma remete, necessariamente, a um impossível: ao que da pulsão se recusa ao significante. Em segundo lugar, o autor acrescenta que enfocar o ‘envelope formal do sintoma’ não implica abordar ‘o todo do caso’, pois “é preciso que o sujeito ‘reconheça o lugar que ele ocupou’ nessa partida jogada logicamente, como todos os grandes jogos” (LAURENT, 2001, p. 28). Essa parte ocupada é, segundo Laurent, a via pela qual um sujeito poderá apreender algo da verdade que lhe é revelada no curso de sua análise. Enquanto que o lugar dessa parte ocupada seria o que inicialmente Lacan definiu como o lugar do desejo e, no momento seguinte, em que modifica sua teoria do sintoma, como o lugar do gozo. Assim, a construção formal da lógica de cada sintoma gira em torno de um impossível que inscreve um ‘lugar vazio’, que deve ser reconhecido pela comunidade psicanalítica como crucial para considerar o real em jogo em um tratamento. Esse aspecto se desdobra, contudo, no âmbito da transmissão da psicanálise diante do questionamento sobre o modo como o discurso analítico constitui sua comunidade expositores dos relatos clínicos, na medida em que reconhecem a evidência que lhes é conferida pela narrativa dos casos. É no avesso de uma via discursiva que estabelece uma língua comum sobre o que seria um caso ou uma ‘análise ideal’, com resultado previsível que o discurso analítico procede. Convém considerar que o relato do caso comporta diferentes formas pautadas nas diversas comunidades psicanalíticas, sendo a distância estabelecida entre esses diversos modelos o lugar onde o rigor do trabalho de cada analista e sua presença se faz escutar. Nesse sentido, o caso clínico produz, ao mesmo tempo, uma inscrição e um afastamento pertinente, conforme indicado por Lacan através da experiência do passe. Esse dispositivo, no qual cada analisante relata seu próprio caso no final de sua análise, sustentando, assim, a demonstração e o testemunho de sua experiência de análise, é o modelo da transmissão da psicanálise, proposto por Lacan, do qual podemos nos apropriar para a construção dos casos. 92 Ao finalizar a discussão sobre a diversidade de formatos do relato psicanalítico dos casos, Laurent aponta para a via do discurso psicanalítico, localizando-o no contraste que se produz entre uma linguagem heterogênea e uma linguagem universal presentes no campo clínico. Desse modo, o autor afirma que “é preciso atualizar uma clínica dos sintomas, estabelecida por cada sujeito” (LAURENT, 2001, p. 31), considerando o que é nomeável e o que é inominável no uso que se faz da língua empregada e estabelecida por cada comunidade, seja a psicanalítica ou a científica. Tal consideração implica a tarefa de manter vazio o lugar ocupado pelo prêt-à-porter das classificações diagnósticas segregativas, dando lugar às distinções traçadas ‘caso a caso’. Laurent aposta, assim, na solução da crise do relato do caso no contexto da diversidade do campo de saber clínico, dando acento à demonstração da particularidade dos casos, como uma direção comum para que cada um exponha o modo como responde ao caso que acompanha e o modo como se defronta com o real em jogo em cada caso. Notas sobre a construção do caso Avançando na discussão desenvolvida por Éric Laurent (2001), indicamos o trabalho de Pierre Malengreau, intitulado Notas sobre a construção do caso (MALENGREAU, 2001), também apresentado na XXX Jornadas da ECF, em 2001, em mesa de debate sobre a construção do caso clínico. A importância dessa apresentação consiste na discussão sobre a possibilidade de especificar um modo de apresentação clínica que favoreça a elaboração de um impasse que se instaura no processo analítico. Questão que comporta para Malengreau uma dupla abordagem, que diz respeito tanto ao material clínico apresentado quanto ao uso que fazemos desse material para os mais variados fins, seja o de ensino, o de transmissão seja o de demonstração da experiência analítica. Essa questão se desdobra, ainda, no âmbito da pesquisa em psicanálise uma vez que certo uso da clínica e, portanto, do caso pode, ocasionalmente, incidir sobre a própria clínica de onde o extraímos. Torna-se necessário, portanto, questionarmos o uso que fazemos dos casos nas discussões clínicas e para fins de ensinamento psicanalítico, indagando, ainda, se existe uma maneira própria da psicanálise expor os seus casos. A clínica psicanalítica exige uma elaboração dos casos, seguindo uma perspectiva que supõe uma abordagem do caso, que inclui a orientação de sua experiência em direção ao real. Malengreau apresenta as duas dimensões do real que se conjugam na experiência clínica que, para a psicanálise, é “a experiência de um encontro com um real que se esquiva.” (MALENGREAU, 2001, p. 45). Desse modo, o autor assinala uma dimensão concernente ao 93 real como um encontro, enquanto que a outra concerne ao real como fora do sentido. Uma abordagem do caso coerente com essa orientação da psicanálise, em direção ao real, supõe, portanto, a inclusão da contingência na sua própria construção. Assim, a clínica psicanalítica interroga os próprios psicanalistas para que possam considerar o que sua prática contém de ‘inusitado’, ou seja, de um ‘acaso’ que atravessa a experiência analítica e que, na orientação lacaniana, podemos transmitir em sua especificidade. Que lugar damos, afinal, ao real da clínica no modo de relatar nossos casos? Pierre Malengreau indica uma observação de Jacques-Alain Miller, extraída da ‘Conversação de Arcachon’, (MILLER, 1997) para desdobrar essa questão, situando do relato dos casos os seus processos simbólicos. Malengreau faz referência a uma nota extraída dessa conversação que deflagra e opõe duas abordagens do caso, também consideradas como duas concepções da clínica. A primeira abordagem concerne a uma concepção de clínica, que o autor nomeia como objetiva. A clínica objetiva se apóia sobre o que se observa a partir de um ponto de vista que pode ser ‘inocente ou advertido’ no uso do significante-mestre para fins de identificação. Nessa concepção, a noção do gozo do sintoma se transforma em instrumento de observação, perdendo, com efeito, seu rigor conceitual por não ser designado a partir do real da experiência. A segunda abordagem clínica destacada por Malengreau como demonstrativa, apoia-se sob um modo de construção do caso que considera a impossibilidade de se dizer tudo. Essa concepção clínica, fundada sobre a temporalidade freudiana do après-coup, necessita de instrumentos que não dependem dos métodos da observação, mas de instrumentos de lógica. Para desenvolver essa concepção, o autor discute a articulação entre a noção intuitiva da série e a teoria das sequências a partir de outra referência de Jacques-Alain Miller, em seu texto “Homologue de Malaga” (MILLER, 1993). A experiência analítica é uma experiência de seriação de significantes que direciona um sujeito a apreender os diferentes traços, lembranças e identificações que marcaram a sua história. É desse ponto de partida que Malengreau situa a seriação significante no processo de uma análise como o “passo a passo de uma colocação em série daquilo que importa para o analisante” (MALENGREAU, 2001, p. 47) tal como localizado na construção do caso. Entretanto, ressalta que essa localização das identificações e dos significantes em série não são especificamente referentes ao método psicanalítico e, por isso, podem levar ao que Lacan denomina como o “engano comum da compreensão” (LACAN, 1998) 75 . Descrever a ordem simbólica na qual um sujeito está enredado não é específico de uma prática orientada em 75 A direção do tratamento e os princípios de seu poder [1958]. 94 direção ao real. Para precisar a especificidade da experiência analítica seria necessário, então, que nas construções de caso, a falta de um significante fosse introduzida na cadeia dos significantes que determinam o sujeito, considerando essa falta como ‘não acidental’. Este seria, portanto, um modo preciso do método analítico indicar a ‘falta’ abordada em sua experiência e, consequentemente, o real em jogo em sua práxis. Sobre esse aspecto, o autor indica dois tipos de sequência, extraídos da teoria das sequências apresentada por Miller (1993), que podem nos servir para conceber uma construção do caso que convenha à psicanálise. A primeira sequência, a dita ‘normal’, é aquela que se extrai de ‘um todo’ e que é uma sequência sem surpresa, pois se apresenta de um modo inteiramente determinado. Malengreau assinala que, frequentemente, as construções de caso se apoiam nessa sequência convincente em sua forma. E indica um outro tipo de sequência, apresentada por Jacques-Alain Miller, que representa uma aproximação entre a lógica do tratamento e a posição feminina. Essa sequência se distingue da anterior ao se apoiar sobre ‘a falta’, designada por Lacan nos termos do ‘não-todo’ e que, por isso comporta ‘a falta’ como um buraco na própria série. Para exemplificar essa operação lógica com a sequência indicada, o autor se utiliza dos elementos de um ‘Jogo de Batalha’, que permite introduzir na sequência um elemento aleatório, uma incógnita capaz de fornecer ao jogo uma estrutura de encontro que implica o desejo do jogador. A construção do caso em psicanálise pode encontrar sua perspectiva lógica nesse segundo tipo de seriação. Trata-se, então, de construir uma sequência que possibilite o aparecimento, na própria sequência, não da falta de um termo, mas da parte que confere a incógnita que ela comporta e, que consiste, concretamente, em fazer aparecer na sequência a incidência do ‘não programado’. Nesse sentido, Malengreau conclui que “a única sequência que conviria à construção do caso para a psicanálise seria, então, uma sequência que incluiria a parte inusitada da experiência” (MALENGREAU, 2001, p. 47), como demonstrado em certos testemunhos de passe que podem servir de exemplos para as nossas construções. No entanto, o autor adverte quanto à possibilidade de uma objeção a essa concepção, cuja sequência, depois de construída, se torna uma descrição do caso; o que seria subestimar a proposição de Lacan de considerar o que da experiência analítica concerne ao real do encontro. Nessa perspectiva, Malengreau (2001) afirma que a inclusão do ‘como que por acaso’ na construção do caso não vale somente para a sequência construída, mas também para o uso que fazemos dessa sequência para a transmissão da lógica extraída de cada caso. A clínica demonstrativa se mostra, por isso, indissociável da formação do analista e em oposição à 95 proposta da clínica objetiva “que espera de seu parceiro amor e reconhecimento” (MALENGREAU, 2001, p. 47) pela definição de uma língua comum empregada na exposição de casos clínicos, que, com efeito, encobre o real da contingência clínica com resultados previsíveis e ilustrativos de uma determinada teoria. Em contraposição, a clínica demonstrativa se oferece como “um parceiro que tem chance de responder” (MALENGREAU, 2001, p. 47) ao convite da formalização lógica de um material sequencial que torna possível a construção coletiva dos casos, a partir de uma discussão que se inscreve em torno do ‘não programado’ da experiência clínica, que deve ser reconhecido em uma transferência de trabalho. Essa construção formal da lógica de cada caso se demonstra pelo testemunho da experiência analítica que será apresentado, em seguida, como modo privilegiado de transmissão da psicanálise empregado pela metodologia da Construção do Caso Clínico. 2.2.2. Testemunho e transmissão da psicanálise Tentemos penetrar um pouco na noção de testemunho. Será que o testemunho também é, pura e simplesmente, comunicação? Certamente que não. É claro, no entanto, que tudo aquilo a que damos um valor enquanto comunicação é da ordem do testemunho. A comunicação desinteressada é, no limite, apenas um testemunho mal- sucedido, ou seja, alguma coisa sobre a qual todo mundo está de acordo. Cada um sabe que é o ideal da transmissão do conhecimento. Todo o pensamento da comunidade científica está fundado na possibilidade de uma comunicação cujo termo se decide numa experiência a respeito da qual todo o mundo pode estar de acordo. A própria instauração da experiência é função do testemunho. Nós lidamos aqui com outro tipo de alteridade. (LACAN, 2002, p. 49-50, grifo nosso) 76 . A partir dessas primeiras referências à noção de ‘testemunho’, empregadas no início do ensino de Lacan, discutiremos o ‘ato de testemunhar de uma experiência clínica’ na prática da construção dos casos, conforme a indicação de alguns autores (VIGANÒ, 2010b, p. 471; LAURENT, 2001, p. 31; MALENGRAU 2001, p. 47). Como ponto de partida, vale retomar o fio condutor do texto Construções em Análise (FREUD, 1996, p. 276-278), na passagem em que Freud sustenta a tarefa da construção preliminar dos casos e, com isso, se questiona sobre ‘o modo como o analista comunica, transmite suas construções’ aos seus pacientes, incluindo aí a função do testemunho. Nessa passagem, demarcamos os esforços de Freud na transmissão do método e dos princípios da práxis analítica, marcada em sua radical diferença em relação aos métodos da sugestão e do empirismo lógico científico. Essas considerações nos levam a destacar as primeiras referências lacanianas sobre a dimensão do testemunho na experiência analítica, uma vez que estas já apontam para uma perspectiva de transmissão da psicanálise, que se afasta da comunicação e da compreensão consensual de seus princípios clínicos e 76 O Seminário, livro 3: as psicoses [1955-1956]. 96 teóricos. Trata-se de uma perspectiva que inclui a função do ‘testemunho de um encontro com um real’, não apenas na instauração da experiência clínica, mas também na demonstração do modo como operação analítica recolhe seus resultados em cada caso. Esse é, então, o ponto de onde partiremos para abordar a função do testemunho na ‘clínica demonstrativa’, apoiada pelo texto da construção do caso clínico. Uma primeira hipótese nos direciona para uma breve reflexão sobre a dimensão do testemunho articulada à escritura clínica, que se produz na construção dos casos como um instrumento lógico que se oferece à pesquisa do analista tanto no âmbito de sua formação, quanto no âmbito da transmissão de sua ação clínica e política a um público mais amplo e de formações diversas. Para seguir com essa reflexão, convém retomar algumas referências que elucidam a concepção do testemunho ao longo do ensino de Lacan, designado como modo privilegiado de transmissão, ainda que essa concepção acompanhe algumas variações, no que tange à invenção do dispositivo do passe. No final dos anos 1960, Lacan constitui ao dispositivo do passe, deixando-o à disposição daqueles que, no final de sua análise, se arriscam a testemunhar sobre a “verdade mentirosa” (LACAN, 2003, p. 569) 77 de uma enunciação que se recolhe na experiência analítica. A dimensão do testemunho é introduzida nesse dispositivo para que se transmitam os momentos cruciais de um percurso de análise, no ponto em que o mais singular da experiência de uma análise se enlaça ao epistêmico do ensino da psicanálise e ao político de ensino sem testemunho” (BERENGUER, 2009, p. 73). E isto implica considerar que toda e qualquer proposição designada por Lacan, sob a rubrica do ensino e transmissão em psicanálise, se relaciona fundamentalmente com a dimensão do testemunho. A partir desse ponto de vista, Macedo dá prosseguimento aos comentários de Berenguer e recolhe os numerosos usos da noção de testemunho, estabelecidos por Lacan ao longo de seu ensino, observando, nas versões brasileiras, a tradução do termo testemunhar por atestar, demonstrar, verificar ou evidenciar. A autora considera que essas traduções são dignas de nota já que o estatuto do testemunho no ensino de Lacan “não parece monolítico, apresentando-se sob uma diversidade de modalidades e perspectivas” (MACEDO, 2010, p. 02), atravessadas pela posição de analisante, seja no ato de testemunhar o próprio inconsciente na experiência analítica, seja no de testemunhar os impasses na direção do tratamento no dispositivo da supervisão analítica. Se podemos situar o testemunho mais além do dispositivo do passe e, portanto, incluído nos demais dispositivos que compõem a formação do analista, como aproximá-lo da proposição metodológica da construção dos casos em seu viés de pesquisa clínica em psicanálise? Para abordar essa interrogação, retornamos ao nosso ponto de partida, que aponta para a escritura clínica como um instrumento metodológico da construção do caso, fundamentada sob a égide de um testemunho, ainda que esta não corresponda diretamente ao dispositivo do passe, ou seja, ao ato de testemunhar a própria experiência de uma análise, quando esta chega ao seu percurso final. É necessário, então, prosseguir nesse argumento, dando um próximo passo em direção à dimensão do testemunho como correspondente à posição de analisante, que assume um analista na formalização de uma pesquisa clínica ou de um relato sobre a condução do tratamento diante dos limites do saber em circunscrever o real em jogo em cada caso. Nessa direção, acompanharemos os caminhos trilhados por Lacan que conduzem a variadas acepções da noção de testemunho para demarcar aquela que fundamenta o texto da construção do caso clínico como instrumento de demonstração, de verificação de uma lógica do caso que evidencia, ao mesmo tempo, o limite do discurso e da formalização de um saber “onde o discurso não diz, testemunha” (BERENGUER, 2009, p. 70). Em seus seminários, Lacan faz um uso bastante livre e heterogêneo do termo testemunho, tomando-o tanto em seu aspecto alusivo em que “nem sempre o que se pretende testemunhar é o que efetivamente se testemunha”, quanto declarativo, quando se “recolhe aportes de seu auditório e fragmentos de sua prática enquanto demonstração do que diz e ensina” (MACEDO, 2010, p. 04). Nota-se, ainda, nos seminários de Lacan, o uso do termo testemunho, designado como um traço de estilo como idéia relacionada ao real da experiência 98 analítica, na qual “um estilo testemunha” (MACEDO, 2010). Ao discorrer sobre essas diferentes acepções do testemunho no ensino de Lacan, a autora nos adverte quanto ao ‘fio’ deixado por Freud, como sendo aquele do qual Lacan fez uso em seu próprio ensino, mantendo-se na posição de analisante. A autora estende esse trabalho de tessitura feito por Lacan em torno do real da experiência clínica à produção de uma enunciação-escrituradiscurso, como resultado obtido de sua posição de analisante que o levou a tecer cada uma dessas produções, seguindo a recomendação de Freud de exigir para cada descoberta um novo conceito. Servindo-se do fio tênue da obra freudiana, Lacan testemunha em sua posição de analisante, a cada vez e sempre de modo inédito, os limites do saber em circunscrever o real, “esse ponto de opacidade que descompleta os conjuntos pretensamente universais, apontando inconsistências que desestabilizam o estabelecido” (MACEDO, 2010, p. 05) pela teoria. Essa observação nos permite retomar a incidência da dimensão do testemunho na posição de analisante para demarcar uma correspondência com a posição assumida pelo analista na construção dos casos e na elaboração de uma pesquisa clínica, na qual algo que se testemunha no ‘après-coup’ da experiência analítica conduz a novas formulações teóricas, fazendo avançar o ensino e a transmissão da psicanálise. Voltemos, então, para as passagens nas quais Lacan se serve da noção do testemunho, ao longo de seus seminários, para chegar até aquelas que poderiam nos remeter à demonstração ou à verificação da experiência clínica que se produz através da escritura do caso clínico. No Seminário, livro 3 (LACAN, 2002, p. 49-54), encontramos pela primeira vez a concepção de testemunho, designada a partir do testemunho aberto e “verdadeiro” do psicótico que, como mártir, testemunha do inconsciente de modo diferente do testemunho do neurótico, que requer uma decifração. Ao recolher essa passagem, Macedo (2010) destaca que, do lado do neurótico, a noção do testemunho encontra-se intimamente articulada à herança freudiana da interpretação como ‘decifração da mensagem cifrada do inconsciente’, enquanto que, do lado do psicótico, essa concepção se remete ao modo como se testemunha o inconsciente ‘a céu aberto’. Na leitura do Seminário, livro 7 (LACAN, 1997), a autora assinala no uso do termo ‘testemunhar’ partindo de uma primeira reviravolta, anunciada por Lacan ao interrogar o mal a partir do gozo, e não do Bem ou da Lei simbólica: “[...] estou testemunhando perante vocês de que não há lei do bem, senão no mal e pelo mal, devo eu prestar esse testemunho?” (LACAN, 1997, p. 232). Em seguida, Lacan aponta para a questão da sublimação, na obra de Marquês de Sade: “Essa obra é um testemunho?” (LACAN, 1997, p. 243). No Seminário, livro 10 (LACAN, 2005), Macedo observa que Lacan retoma a 99 testemunhar algo que concerne ao indizível do “gozo opaco do sintoma, que exclui o sentido” (LACAN, 2003, p. 566) 79 . A escritura topológica formalizada por Lacan evidencia, através do uso lógico-clínico dos nós, não somente os limites do simbólico em representar o real, mas, ainda, os efeitos da inércia significante inerente à tentativa de ‘significantização’ do real que resiste ao sentido. O percurso realizado em torno da concepção de testemunho nos leva a considerar que o ensino de Lacan, proferido em seus seminários, seria “ele mesmo um testemunho” (MACEDO, 2010, p. 7). Entretanto, Macedo toma o testemunho de Lacan não exatamente pela via mártir, daquele que viveu até o fundo uma experiência e que, portanto, pode dar o seu testemunho disso que foi vivido, mas pela via do que Lacan pôde testemunhar da experiência analítica “no ponto em que esta toca os confins do saber em seu litoral com o real” (MACEDO, 2010). Essa autora aproxima, então, o testemunho de Lacan a uma vertente que designa o ato imperfeito de autor de “dar existência” a uma narrativa que porta, em si mesma, uma insuficiência. Eis aí uma via a ser retomada no âmbito da escritura clínica, que atesta a função do testemunho da experiência analítica no ponto em que um analista assume uma posição de analisante em relação à insuficiência do saber em representar o real da clínica, sendo necessário, com isso, construí-lo a partir da narrativa de cada caso para que não caia no saber estabelecido. A perspectiva do testemunho como ‘mártir’ é comentada pela autora a partir de literária e social, seguiremos a via da narrativa clínica como aquela que mais se aproxima da noção da escritura como testemunho do real em jogo na experiência analítica. No final de seu ensino, Lacan considera que “o inconsciente é alguma coisa no real” (LACAN apud MACEDO, 2010, p. 03) e evoca a escritura como o “apoio” no qual concentra seus esforços de interrogar o saber inconsciente como impossível de se ‘saber todo’. Com essa passagem, incluímos na perspectiva traçada por Macedo, os momentos em que o testemunho de Lacan se apoia na escritura clínica dos matemas, dos discursos e da topologia diante do real que incide na experiência da psicanálise. Essa é, então, uma via possível para abordamos a função do testemunho apoiado na escritura clínica 80 , que se produz na metodologia de pesquisa da construção do caso clínico, seja pela produção de matemas ou pela leitura das escansões extraídas do texto da construção que demonstram a lógica de um caso. Para avançar nesse argumento, convém retomar algumas considerações sobre o instrumento lógico do texto da construção do caso, que emprega a narrativa clínica como ‘ato de testemunhar’ a condução de um tratamento. Ao indicarmos a escritura clínica como um instrumento lógico da metodologia da Construção do Caso Clínico, que propicia uma demonstração dos momentos cruciais de um acompanhamento clínico, é importante demarcar algumas condições para que um testemunho se desenvolva. Para se chegar a uma ‘demonstração’ por intermédio do texto da construção de casos, é necessário situá-lo entre dois extremos que devemos evitar: o da apresentação do caso como demonstração da teoria, geralmente, reduzida ao diagnóstico diferencial do paciente, e o da condução do tratamento reduzida à exposição de uma sorte de significantes da qual se subtrai o real do ato, como no formato das narrativas exaustivas ou vinhetas clínicas comentadas anteriormente por Eric Laurent (2001). O que se trata de demonstrar, portanto, consiste em algo a ser apreendido em torno de um ato clínico que se constrói a posteriori, a partir do que testemunha uma equipe clínica da fala de um sujeito em sua expressão pontual e evanescente. A escritura clínica como instrumento lógico da construção do caso inclui o testemunho do encontro com o ‘não programado’ da experiência clínica e com o ‘indizível’ do gozo de um sujeito que, ao ser recolhido por um analista, o leva a construir coletivamente as 80 Consideramos ser mais apropriado para designar o instrumento metodológico do texto da construção do caso o uso do termo escritura, em detrimento do termo escrita clínica. Partimos de um raciocínio muito simples: enquanto a escrita requer um ‘ato de autor’ de fazer existir uma narrativa, a escritura é um ‘ato que prescinde de autoria’, por produzir a formalização de elementos lógicos (ou até mesmo jurídicos, como nos casos da escrituras públicas) por meio do que se pode testemunhar de uma experiência. Nesse argumento, acrescentaríamos a questão de quem seria o autor do texto da construção do caso: o paciente, o analista, a equipe clínica?. Do mesmo modo, nos perguntaríamos: ‘quem seria o autor das escrituras públicas de bens imobiliários? Deixamos em aberto essas questões, pois seus desdobramentos ultrapassam os limites dessa pesquisa. 102 passagens, os reviramentos de uma lógica discursiva “até que algo se possa ler de real através de escansões que extraem a letra subjetiva de gozo.” (VIGANÒ, 2009, p. 200). Considerando que essas passagens não podem ser provocadas, estas poderão ser explicitadas somente a posteriori, se estivermos atentos ao texto da construção do caso. A primeira escritura do caso é levada ao debate como hipótese de construção, abolindo as citações do texto teórico para dar lugar ao texto do caso, cuja sequência lógica da narrativa inclui um ‘ponto obscuro’, que faz obstáculo na condução do tratamento. O debate clínico realizado em torno desse impasse corresponde à construção coletiva do caso que, por sua vez, é retomada a partir de uma segunda escritura, que inclui o testemunho de uma equipe como verificação da condução do caso no trabalho clínico-institucional, podendo servir de material para a pesquisa de uma nova teoria em torno do ato demonstrado no après-coup dessa construção coletiva. Convém assinalar que esse instrumento metodológico permite realizar uma construção do caso como verificação do trabalho em equipe através da demonstração do ato, desde que essa demonstração não seja fornecida apenas por aquele que apresenta o caso. A construção do caso, portanto, não se limita aos impasses, resistências ou obstáculos que se colocam ao longo de um acompanhamento clínico, mas é a tentativa de introduzir uma lógica às escansões do tratamento e, com isso, demonstrá-las logicamente. Essencialmente, o método da construção do caso corresponde ao da verificação tal como aquela que se produz na supervisão de casos, sendo, por isso, capaz de demonstrar o real em jogo no tratamento. Entretanto, considerando que o real não se pode dizer e nem sequer representar, a lógica torna-se a do testemunho, da descoberta ‘après-coup’ de uma escansão que surpreende no momento em que se constrói, no silêncio da cadeia significante (VIGANÒ, 2009, p. 202). E isso se reflete no trabalho clínico-institucional, na medida em que essa dimensão do testemunho instaura o trabalho preliminar da construção dos casos como uma prática vivenciada pela equipe na posição de aprendizes da clínica. Ao pesquisar o tema do testemunho, concluímos que um de seus fundamentos designa que “o saber se acumula no lugar do analisante” (MACEDO, 2010, p. 11) e é desse lugar que devemos sempre partir para que se transmita e se inscreva cotidianamente, no trabalho institucional, um ‘saber fazer’ com o real da experiência clínica. Essa concepção do testemunho corresponde ao que Carlo Viganò indica como a função do terceiro (VIGANÒ, 2009, p. 203), que produz uma leitura do caso entre os relatos do analisante e do analista na prática da construção dos casos tal como é desenvolvida nos dispositivos da supervisão ou do cartel do passe, que concernem à formação do analista. 103 No âmbito da construção do caso realizada nos serviços de saúde mental, Viganò retoma a função do terceiro, mas dessa vez, estabelecida pelo grupo, por uma equipe clínica que, na posição de analisante, se envolve no trabalho de re-escritura do caso a partir do que testemunha na leitura do texto da construção. Isto de diferencia, por exemplo, da prática da apresentação de pacientes, desenvolvida nas instituições de formação em saúde mental, ao incluir na função do ‘terceiro’ não uma platéia que assiste a entrevista preliminar de um paciente, mas a leitura do texto da construção. Viganò (2009) relaciona, então, a escritura do caso com a função do terceiro, como um instrumento para a demonstração lógica das escansões que direcionam um tratamento, capaz de fomentar, ainda, a ‘autoridade clínica’ que orienta o trabalho em equipe, como uma autoridade que não pode ser pré-constituída, mas somente reconhecida a posteriori à construção de cada caso. Dessa observação, destacamos, ainda, a diferença entre uma prática de estudo de caso, que poderá simplesmente narrar, ‘historicizar’ uma determinada teoria, sem testemunhar a contingência de cada encontro clínico; e uma prática de construção, que testemunha, no plano da enunciação e da escritura clínica, o ‘ponto cego’ da narrativa de um caso, sem engessar o impossível em jogo na experiência. Para concluir, convém pontuar algumas considerações que concernem ao estatuto do testemunho no ensino e transmissão da psicanálise, não apenas relacionadas à experiência do passe, mas ao que se transmite de sua política ao campo clínico atual. Se consideramos que as questões levantadas por Lacan, em sua Proposição de 9 de outubro de 1967 (LACAN, 2003, p. 251) fazem ressoar a dimensão do testemunho mais além do dispositivo do passe, isto implica produzir alguns deslocamentos dessa experiência para demarcar, no âmbito da formação do analista, seu constante trabalho na posição de analisante, seja em sua própria análise seja na construção dos casos. Assim, a função do testemunho, configurada na proposição lacaniana do passe, encontra maior alcance “via uma política da enunciação e, porque não, de uma política do testemunho” (MACEDO, 2010, p. 10) de favorecer a contingência do caso a caso com a construção de narrativas clínicas que apontam para o ‘furo no saber’ como uma orientação que se transmite no campo heterogêneo de saberes sobre clínica. 2.3. A Construção do Caso Clínico como metodologia de pesquisa na Saúde Mental Em continuidade com a apresentação dos princípios e fundamentos que orientam a metodologia de pesquisa clínica da Construção do Caso Clínico, concluiremos esse capítulo 104 indicando o desenvolvimento dessa proposta de pesquisa e de avaliação do trabalho clínicoinstitucional aplicada ao campo da saúde mental. Convém assinalar que essa proposta, introduzida por Carlo Viganò, vem se difundindo, cada vez mais, entre analistas que pesquisam, na universidade ou nas Escolas de Psicanálise, a prática psicanalítica aplicada aos serviços substitutivos da rede de atenção psicossocial. A discussão sobre a prática da construção de casos no campo da saúde mental recebe destaque a partir da conferência de Carlo Viganò, proferida em 1997, no Seminário de Saúde Mental, Psiquiatria e Psicanálise, no estado de Minas Gerais, sendo esta a ocasião em que a proposta da Construção do Caso Clínico é apresentada pela primeira vez no Brasil como uma contribuição da psicanálise para o trabalho em equipe. A publicação dessa conferência, que resultou no artigo intitulado A construção do caso clínico em Saúde Mental (VIGANÒ, 1999, p. 50), fomentou, ainda, o debate sobre o acompanhamento clínico dos casos entre estudantes e profissionais de formações diversas que atuam nos serviços de atenção psicossocial, inaugurados pelo movimento da reforma psiquiátrica. Com efeito, essa metodologia de pesquisa clínica passou a ser discutida e empregada no esteio da aplicação e da transmissão da psicanálise à clínica ampliada na saúde mental. Como referência para explorar essa discussão, indicaremos duas importantes publicações de psicanalistas que pesquisaram a contribuição da Construção do Caso à psicopatologia e à saúde mental (FIGUEIREDO, 2004) e os desdobramentos dessa Metodologia em Ato (TEIXEIRA, 2010) aplicada ao campo das pesquisas clínicas que se desenvolvem nos serviços de saúde mental. Observaremos, portanto, diferentes modos de aplicação da metodologia psicanalítica da construção dos casos. Mas, antes disto, é relevante introduzir algumas pontuações sobre o tema da psicanálise aplicada, conforme as propostas apresentadas por Freud e Lacan. A partir dessas pontuações, nos interessará refletir, então, sobre os efeitos de transmissão que podem ser extraídos da aplicação dos princípios psicanalíticos na prática coletiva em saúde mental, a partir da metodologia da construção do caso clínico. O que equivale questionar de que maneira a aplicação da metodologia da construção do caso, nesse campo, pode alcançar o desafio da transmissão da política psicanalítica do sintoma pelo viés da pesquisa em psicanálise. 2.3.1. A pesquisa clínica entre a aplicação e a transmissão da psicanálise Na Conferência 34, intitulada Explicações, aplicações e orientações, Freud (1996) indica uma única vez a possibilidade da aplicação dos princípios da psicanálise em diversos 105 campos de saber. Freud se ocupa especialmente da aplicação do saber psicanalítico à terapêutica médica, mantendo a contraposição metodológica da psicanálise frente ao empirismo do campo científico, da medicina e da psiquiatria. Convém observar que a primeira incursão freudiana no campo das aplicações da psicanálise aparece no texto O interesse científico da Psicanálise (FREUD, 1996, p. 199-229), em que Freud trata, no primeiro momento, do interesse psicológico da psicanálise e, no segundo, do interesse da psicanálise para as ciências não psicológicas. Tanto nesse texto quanto na Conferência 34, notamos o movimento de uma diferenciação entre os campos de saber da psicanálise e os demais, no intuito de se chegar à possibilidade de sua aplicação. Ao introduzir sua conferência, por exemplo, Freud assinala a importância de se dissolver os ‘mal-entendidos’ sobre o método clínico da psicanálise, que ressoam nos campos da ciência e da cultura de um modo geral. Logo em seguida, Freud começa a tratar do tema das ‘aplicações’ da psicanálise, demonstrando, a princípio, sua maior preocupação com a autonomia disciplinar dos princípios psicanalíticos do que propriamente com a sua aplicação. No primeiro campo das aplicações, Freud reúne a compreensão da hostilidade que o mundo contemporâneo move contra aqueles que exercem a psicanálise. No segundo campo, aponta para a possibilidade de aplicação da psicanálise nas mais variadas áreas do conhecimento, como as da mitologia, da história da civilização, da etnologia, da ciência da religião, entre outras (FREUD, 1996, p. 178); na medida em que os estudiosos desses campos já buscavam o estudo da psicanálise para aplicá-la aos seus conhecimentos. Nesse campo de aplicação ‘não médica’, Freud defende que as aplicações da psicanálise assumem um valor de confirmação de alguns dos fundamentos psicanalíticos que foram explorados criticamente, a partir dessas áreas do saber. No terceiro campo, Freud situa a aplicação da psicanálise à educação, detendo-se especialmente nele sob duas maneiras: a educação infantil e a psicanálise de crianças, por considerá-lo de maior importância para as novas gerações pela “riqueza de promessas para o futuro” (FREUD, 1996, p. 179). No quarto, aborda as investigações quanto à origem e prevenção da delinquência e da criminalidade. Por fim, no quinto e último campo de aplicação, recorre ao método da psicanálise, propriamente dito, destacando que a validação da psicanálise não se faz por meio de dados estatísticos de sucesso terapêutico, mas, sobretudo, com a verificação da própria experiência do analisante. Com isso, Freud destaca um esclarecimento importante quanto ao método de investigação psicanalítico, delimitando, além da eficácia da psicanálise, seus limites de aplicação e seus obstáculos. O primeiro obstáculo é reconhecido pela impossibilidade de se reviver totalmente antigas experiências, uma vez que o estatuto do inconsciente implica a consideração de que 106 nem tudo pode ser rememorado. E o segundo obstáculo se refere ao aspecto incurável da doença psíquica, pela particularidade de sua economia pulsional e constituição etiológica. É importante observar o modo como Freud finaliza sua conferência, afirmando que a psicanálise “é um método entre muitos, embora seja, para dizer a verdade, “primus inter pares” (FREUD, 1996, p. 191), o que nos leva a considerar que seu valor terapêutico constitui um campo de saber autônomo e original que pode, então, se conectar com outros saberes. A especificidade desse campo de saber é inaugurada por uma descoberta que estabelece ‘um saber que concerne à verdade’ do sujeito do inconsciente, exigindo de Freud um rigor metodológico elevado às ‘explicações, aplicações e orientações’ sobre o modo de como o saber inconsciente é aplicável à terapêutica ou à interpretação de outras disciplinas ‘não terapêuticas’. Em seu Ato de Fundação (LACAN, 2003, p. 235), Lacan trata pela primeira vez do tema da psicanálise aplicada ao fundar sua escola, em 1964. Nesse escrito, Lacan retoma o rigor da proposta de Freud, instituindo, sob o nome de ‘psicanálise pura e aplicada’, o dever que compete à psicanálise em nosso mundo. Para Lacan, a questão da psicanálise pura e da aplicada é eminentemente uma questão vinculada à formação do psicanalista. Por isso, emprega a palavra Escola para atestar o ato, que estava implícito na descoberta freudiana, de se passar da conservação e transmissão dogmática da doutrina analítica para a preocupação em se produzir um psicanalista nessa Escola. Na ata de fundação de sua Escola, Lacan propõe, então, três seções para seu funcionamento: 1) Seção de Psicanálise Pura; 2) Seção de Psicanálise Aplicada e 3) Seção de recenseamento do campo freudiano. A Seção de Psicanálise Pura contempla a “práxis e doutrina da psicanálise propriamente dita, que não é nada além – o que será estabelecido no devido lugar – da psicanálise didática” (LACAN, 2003, p. 236), e possui três subseções: a) doutrina da psicanálise pura; b) crítica interna de sua práxis como formação; e c) supervisão dos psicanalistas em formação. Na Seção de Psicanálise Aplicada, se concentram os ‘grupos médicos’ ou se preferirmos, as ‘equipes clínicas’, sejam estes compostos ou não por sujeitos psicanalisados. A condição que se inclui nessa seção é a de contribuição dessas equipes ou grupos para a experiência psicanalítica, tanto “pela crítica de suas indicações em seus resultados”, como “pela experimentação dos termos categóricos e das estruturas”, as quais Lacan (2003, p. 237) introduz como sustentada “pela linha direta da práxis freudiana no exame clínico, nas definições nosográficas e na própria formulação dos projetos terapêuticos.” Esta seção possui, ainda, três subseções: a) doutrina do tratamento e de suas variações; b) casuística; e c) informação psiquiátrica e prospecção médica. A Seção de recenseamento do campo freudiano assegura o levantamento e a avaliação crítica das publicações endereçadas a 107 esse campo que, por sua vez, “fará a atualização dos princípios dos quais a práxis analítica deve receber, na ciência, seu estatuto.” (LACAN, 2003, p. 238) de uma experiência que não se reconhece como ‘esotérica’ ou inefável. Essa seção, portanto, convoca para o debate aquelas pesquisas ‘desenhadas pelas ciências que chamamos conjecturais’, que podem tanto instruir, quanto comunicar a experiência analítica, sem que fique “a mercê da deriva política que se alça da ilusão de um condicionamento universal.” (LACAN, 2003, p. 238). Nela se incluem também três subseções: a) comentário contínuo do movimento psicanalítico; b) articulação com as ciências afins; e c) ética da psicanálise, que é a práxis de sua teoria. A propósito da formação do analista e a função de uma Escola, Lacan escreve, em continuidade com seu ‘Ato de fundação’, a Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola (LACAN, 2003, p. 248-264). Esse escrito revela uma idéia diferencial entre ‘psicanálise pura e aplicada’, dessa vez concebida por Lacan, a partir da estrutura topológica de um plano projetivo que demonstra uma junção da psicanálise em intensão e extensão que, mesmo em momentos diferentes, se manteriam unidas mutuamente. Ao estabelecer uma crítica sobre as distorções do ensino em psicanálise, Lacan propõe uma retomada da psicanálise didática para recobrir a ‘falha’ que imperava na formação do psicanalista por certo ‘status’ de imponência entre aqueles que se tornavam analistas, por meio de um formalismo prático e teórico pré-concebido para sua formação. Não sem consequências, essa ‘falha’ distanciava os analistas de uma formação que não nega o real em jogo como responsabilidade do psicanalista com sua própria formação. Reconhecida essa falha, Lacan retoma, então, a idéia da psicanálise pura, passando a designá-la com o termo de Psicanálise em Intensão, que inclui, na formação do analista, a experiência do passe de produzir, ao final de uma análise, um analista da Escola. Essa proposta redefine os ‘moldes’ do ensino em psicanálise de um saber que poderia servir apenas para a formalização de conceitos para o ensino e transmissão de um saber que poderá ser apreendido e testemunhado, somente no ponto em que o sujeito que o escuta ou lê está em relação ao que lhe causa e, portanto, atravessado pela sua própria ‘experiência com o inconsciente’. É, então, na perspectiva de convocar o psicanalista a responder por sua própria formação que Lacan propõe aos adeptos de sua Escola a junção de dois momentos que denomina, respectivamente, “psicanálise em extensão, ou seja, tudo o que resume a função de nossa Escola como presentificadora da psicanálise no mundo, e psicanálise em intensão, ou seja, a didática, como não fazendo mais do que preparar operadores para ela” (LACAN, 2003, p. 251). Essa passagem nos conduz, novamente, à possibilidade da psicanálise em extensão funcionar como uma experiência que renova o próprio campo da psicanálise; seja no âmbito 108 da formação do analista, seja no da transmissão de uma prática fiel aos princípios freudianos e, portanto, diferente das demais terapêuticas. Cabe destacar a originalidade da experiência analítica diferenciada por Lacan (2003, p. 251) da terapêutica, cuja definição de “reestabelecimento de um estado primário” seria “impossível de enunciar na psicanálise.”. Dessas observações que conferem a proposta de Freud e Lacan de aplicação da psicanálise em um campo mais amplo de intervenções clínicas, demarcamos algumas consequências que podem ser extraídas no nível da pesquisa em psicanálise em sua tarefa de transmissão dos princípios psicanalíticos ao campo da saúde mental. a. A primeira consequência é delimitada pela autonomia disciplinar da psicanálise que, ao se conectar com outros campos de saber, possibilita a utilização do saber analítico em práticas que se ocupam da subjetividade, ainda que não tenham um alcance terapêutico. Trata-se de um saber que não se limita a uma técnica terapêutica, na medida em que concerne a um ‘saber fazer’ com determinadas estruturas do sujeito, antes desconhecidas, que o implicam em seu ser, em particular, e em suas relações com a realidade e com o social. A ênfase marcada por Freud e Lacan, no entanto, é aquela em que o saber que o inconsciente enuncia – e que a psicanálise sustenta em sua práxis – é um saber aplicável à terapêutica e, portanto, transmissível ao campo da clínica. b. A segunda consequência é extraída da concepção lacaniana da psicanálise aplicada à terapêutica da medicina e ao campo de saber psiquiátrico. Em linha direta com a práxis freudiana, Lacan inclui, na formação do analista, a contribuição do saber médico, ainda que este se configure como um saber prático e objetivo e, portanto, de natureza diferente daquele que a experiência analítica permite elaborar. Essa proposta parece convergir, ainda, com o receio de Freud em relação ao risco do experimentalismo de alguns psicanalistas que ambicionavam curar todo o tipo de enfermidade com a análise, sem levar em conta os fatores que limitam sua eficácia. Ao isolar a experiência analítica da terapêutica, Lacan confirma a autonomia disciplinar e original que fundamenta a operação da psicanálise, preservando sua aplicação nos demais campos de intervenção clínica como uma orientação pertinente para a formação do analista. c. A terceira consequência se delineia a partir da Seção de recenseamento do campo freudiano, em continuidade com a orientação deixada por Lacan aos analistas de sua Escola na Seção de Psicanálise Aplicada. Trata-se de recolher, no âmbito das pesquisas clínicas, o levantamento e a avaliação crítica de propostas e, por que não 109 dizer, de metodologias clínicas que atualizem os princípios da psicanálise aplicada ao saber conjectural de um campo abrangente de procedimentos clínicos. Essa seção indica a dimensão política que atravessa a transmissão da ética da psicanálise aos ‘de fora’ da Escola; diante do ‘condicionamento universal’, que reduz as pesquisas clínicas a um ‘empirismo aplicado à terapêutica’. Com isso, situamos a importante tarefa da pesquisa clínica em psicanálise entre a aplicação e a transmissão dos princípios psicanalíticos na vida e na cultura, como uma estratégia clínica e política da psicanálise em extensão. d. A quarta consequência é concebida, enfim, no ponto de junção entre a ‘psicanálise em intensão e extensão’, que define o lugar da pesquisa em psicanálise, tanto no nível da formação do analista, quanto da transmissão de sua práxis para não analistas, como presentificadora da psicanálise no mundo. A metodologia da Construção do Caso Clínico recolhe essas consequências extraídas, mais especificamente, da proposta da psicanálise em extensão 81 por meio da aplicação da prática analítica da construção coletiva dos casos, formalizada a posteriori, no nível de uma pesquisa clínica em psicanálise. De saída, seu aporte metodológico concentra a autonomia e o rigor dos princípios psicanalíticos como fundamentação para uma pesquisa clínica. Entretanto, tais princípios se colocam em desenvolvimento não como uma resposta ou solução pré-concebida para a pesquisa, mas como possibilidade de contribuição da leitura analítica dos casos que se realiza primus inter pares, ou seja, junto às demais leituras das equipes que se ocupam do acompanhamento clínico nos serviços de saúde mental. Trata-se, portanto, da transmissão de um saber que a experiência psicanalítica permite construir, caso a caso, que é aplicável à terapêutica da atenção psicossocial, na qual o trabalho em equipe e as práticas coletivas se efetuam. Nesse cenário, o testemunho do analista, tomado em sua dimensão de aprendiz da clínica, se dissolve entre tantas outras leituras que testemunham um savoir y faire com o sintoma em cada caso, conservando a transmissão da política analítica do sintoma a um campo clínico amplo e heterogêneo de saberes. A partir dessas pontuações, apresentamos a aplicação metodológica da construção do caso clínico explorada por psicanalistas que pesquisaram os desdobramentos clínicos e 81 Referência ao quarto princípio da Pesquisa em Psicanálise, apresentado por Carlo Viganò na página 76 deste capítulo. Acentuamos aqui a construção do caso como uma metodologia de pesquisa clínica em psicanálise que pode ser desenvolvida em variados contextos: na universidade, nas instituições de formação psicanalítica e nos serviços de saúde mental, ainda que sigam propósitos distintos em relação à transmissão da psicanálise. Não definimos, no entanto, a distinção entre a prática de pesquisa em psicanálise realizada na universidade ou nas Escolas de Psicanálise, por tentarmos apenas localizá-la sob o viés da proposição lacaniana da ‘psicanálise em extensão’. 110 institucionais dessa contribuição para o trabalho em equipe nos serviços de atenção psicossocial. 2.3.2. Contribuições da construção do caso clínico à Saúde Mental O artigo A Construção do Caso Clínico: uma contribuição da psicanálise à psicopatologia e à saúde mental (FIGUEIREDO, 2004) é a primeira publicação de pesquisa em psicanálise que utilizaremos como referência para a discussão da aplicação do método da construção de casos no trabalho multidisciplinar. Dessa discussão, destacamos os elementos metodológicos, explorados no âmbito da pesquisa clínica, que configuram a construção coletiva dos casos nos dispositivos da atenção psicossocial. Entre tais elementos, destacam-se: a articulação entre as práticas diagnósticas da psiquiatria e da psicanálise como balizadores da discussão dos casos; o estabelecimento de distinções conceituais, que fundamentam a construção analítica do caso clínico; e a possibilidade de aplicação desses elementos como ferramenta de transmissão da política do sintoma no trabalho em equipe, constituído por profissionais de formações diversas. O campo da saúde mental caracterizado por sua heterogeneidade, tanto no que diz respeito às referências teórico-práticas, quanto ao conjunto de serviços de atenção e cuidado psicossocial da rede pública, comporta em si uma variedade de saberes que problematiza uma direção comum para o acompanhamento dos casos. Incluindo nesse campo a psiquiatria, Figueiredo (2004) salienta a importância dos conceitos psicopatológicos, implicados nessa metodologia de pesquisa, que se oferecem na direção do diagnóstico, e na localização do pathos do sujeito, como balizadores do tratamento, recusando certa oposição entre psiquiatria e saúde mental instaurada nesse campo. A metodologia da construção do caso introduz no campo da atenção psicossocial a concepção de diagnóstico e tratamento herdados da psiquiatria, criando novas exigências para ambos e abrindo uma nova porta para a psicopatologia. Nessa perspectiva, Figueiredo (2004) assinala a importância da prática diagnóstica como modo de localizar uma contribuição específica da psicanálise para a psicopatologia e para a saúde mental, incluindo aí o sujeito do inconsciente como a herança da própria psicopatologia. Torna-se necessário, então, inserir uma proposta de trabalho no campo da saúde mental com os casos que contemple a prática clínica de diferentes formações profissionais e, consequentemente, de diferentes referências teóricas, “de modo a não reduzir os instrumentos clínicos da psicanálise a uma banalização de seu uso ou a uma supervalorização de seus conceitos” (FIGUEIREDO, 2004, p. 4). 111 Como constituir, então, um solo comum de trabalho para diferentes profissionais que não teriam qualquer compromisso com uma formação em psicanálise, mas poderiam se valer de sua contribuição? Partindo desse questionamento, a autora ressalta a contribuição da psicanálise ao introduzir, nesse campo multidisciplinar, uma concepção que avança do particular – o diagnóstico – para o singular, retomando o geral – as diretrizes de cuidados da saúde mental –, a partir dos efeitos colhidos em cada situação clínica. Desse modo, a ação clínica do psicanalista atua sobre o ‘geral’, indicado por determinadas diretrizes do campo da saúde mental, como a reabilitação, a cidadania, a autonomia e a contratualidade, no intuito de ampliar as relações sociais dos usuários e fazer proliferar suas possibilidades. O ‘singular’, por sua vez, designa a articulação do ‘particular’ de uma referência das classes diagnósticas com o movimento do sujeito do inconsciente. Entre a singularidade de cada caso e a particularidade das categorias diagnósticas, Figueiredo (2004) destaca uma primeira diferença marcada pela psicanálise na condução dos casos através da operação analítica com o sintoma, quando o analista encontra meios de transmitir, no trabalho institucional com os casos, que “o sintoma não vai sem o sujeito, nem o sujeito pode ser pensado sem o seu sintoma. Um constitui o outro, melhor dizendo, um se constitui no outro, o sujeito através do sintoma e vice-versa.” (FIGUEIREDO, 2004, p. 5) Com essa especificidade, a psicanálise propõe implicar o diagnóstico e o tratamento como elementos indissociáveis e intercambiáveis, e a noção de tratamento, como um processo em que se estabelece o diagnóstico e não apenas o contrário. Segundo a autora, essa relação estreita do sujeito com o sintoma – o sintoma neurótico, ou as produções psicóticas – demarca uma diferença radical no que se refere à concepção funcionalista-organicista da psiquiatria atual, que se propõe a separar esses dois termos e, portanto, a distinguir ao máximo o diagnóstico do tratamento, tanto no método, quanto na dinâmica. Se na orientação psicanalítica o sintoma não vai sem o sujeito, e esse sujeito é o do inconsciente, o sintoma é, então, concebido como uma formação (neurose) ou uma exposição (psicose) do inconsciente ‘a céu aberto’ 82 . Diante disso, Figueiredo considera que um estudo de caso não pode se restringir a um relato compilado de acontecimentos e procedimentos dispostos em uma sequência com critérios pré-estabelecidos a serem preenchidos, como no caso da anamnese, que resulta na súmula psicopatológica padronizada. A diferença marcada pela ação clínica da psicanálise é configurada, portanto, pelo esforço diagnóstico, deslocado desse modo de 82 Expressão designada por Jacques Lacan em O Seminário, livro 3: as psicoses (2002). 112 ‘assepsia’, para trazer à cena o sujeito e suas produções pela via do discurso, em que podemos localizar seu sintoma ou seu delírio. A contribuição da psicanálise para a psicopatologia e para a saúde mental é apresentada por Figueiredo (2004) por meio do trabalho da ‘construção do caso’. Retomando os termos indicados anteriormente por Carlo Viganò (1999), a autora discute o termo construção e sua diferença em relação à interpretação: “a construção é um arranjo dos elementos do discurso, visando a uma conduta; a interpretação é pontual visando a um sentido” (FIGUEIREDO, 2004, p. 07). Aponta a finalidade da construção como sendo a de partilhar determinados elementos de cada caso em um trabalho conjunto, o que seria inviável na via da interpretação e, por isso, considera “a construção como um método clínico de maior alcance” (FIGUEIREDO, 2004, p. 7) para o trabalho institucional. A propósito da definição dos termos ‘construção do caso clínico’ 83 , a autora assinala sua concepção sobre esse método clínico como sendo capaz de produzir “o (re)arranjo dos elementos do discurso do sujeito que ‘caem’ e que se depositam a partir de nossa inclinação para colhê-los, não ao pé do leito, mas ao pé da letra” (FIGUEIREDO, 2004, p. 7). Nessa concepção, estão incluídas as ações do sujeito, concebidas por uma determinada posição no discurso, que resulta do deslocamento das dimensões do enunciado (os ditos) ao da enunciação (o dizer), onde se localiza a ‘posição discursiva’ de um sujeito. No entanto, convém lembrar que o caso não é o sujeito, mas uma construção realizada a partir dos elementos que são recolhidos de seu discurso e que, com efeito, permitem inferir sua posição subjetiva através do que pode ser recolhido, do dito ao dizer. A autora apresenta, então, a possibilidade de desenvolver um método aplicável a diferentes contextos clínicos. A partir do desenvolvimento de seu trabalho com uma equipe de pesquisa clínica em psicanálise, realizada no Instituto de Psiquiatria IPUB/UFRJ, Figueiredo (2001) e colaboradores apresentam considerações sobre um método de pesquisa que permite recolher da experiência clínica seus elementos de base, a fim de reter dessa experiência algo transmissível e avaliável de cada caso (FIGUEIREDO, et alii, 2001; VIEIRA e NOBRE, 2001). Esses autores indicam um modo de desenvolvimento para a construção de um caso, retomando as premissas necessárias para sua aplicação, com um recorte produzido pelo que 83 No artigo A construção do caso clínico em Saúde Mental’ (VIGANÒ, 1999), Carlo Viganò apresenta o termo ‘caso clínico’, designado a partir da epistemologia das palavras ‘caso’ – oriunda do latim cadere, cujo significado ‘cair, sair para baixo’, implica a noção de ‘algo que cai de uma regulação simbólica’, sendo, portanto, um encontro direto com o real, com aquilo que é indizível e impossível de ser suportado. A palavra ‘clínica’ é designada, por sua vez, a partir do grego Kline, que significa ‘leito’, implica ‘o ensinamento que se faz no leito, diante do corpo do paciente, com a presença do sujeito’ 113 denomina ‘binômios da construção do caso’ (FIGUEIREDO, 2004, p. 7), que seriam balizadores para indicar o caminho dessa construção metodológica. O primeiro binômio é designado pela distinção dos termos História « Caso, entendendo a história como uma apresentação do relato clínico, enriquecido por detalhes, cenas e conteúdos; e o caso, como produto do que se extrai das intervenções do analista na condução do tratamento e do que é decantado de seu relato. A história, portanto, pode ser fatigante, se muito detalhada, podendo eliminar o caso se o reduz apenas a uma fórmula. O estabelecimento desse binômio retoma, então, a idéia de uma formalização necessária do relato, que não se reduz a uma teorização formal nem a uma elaboração de saber sobre os problemas do paciente. Ao contrário, trata-se de colocar em jogo os significantes do sujeito, suas produções, a partir da elaboração em análise, tal como a resposta do analista em seu ato e os efeitos que surgem daí para cernir certos significantes numa composição mais esquemática, visando decantar a história e traçar o caso a partir do discurso. Desse modo, a autora afirma que “uma história deve se fazer caso para que se possa trabalhar em psicanálise” (FIGUEIREDO, 2004, p. 8), diante da possibilidade de recolher, dos infindáveis detalhes de uma história, a direção de um caso. O segundo binômio é apresentado por meio da distinção dos termos Supervisão « Construção, considerando que as discussões realizadas em equipe de pesquisa remetem mais a um trabalho de construção do que ao de supervisão, ainda que no seu desenrolar tangenciem a experiência de supervisão. No entanto, ao contrário da supervisão, a discussão do caso não se encerra ao término da sessão, pois ela continua e se remete ao pesquisador/analista que apresentou o caso. Para formalizar o emprego desse binômio na construção dos casos, é necessário observar que, num primeiro tempo, ocorre um retorno sobre o pesquisador em sua condição de sujeito, o que não difere exatamente da supervisão. Num segundo tempo, trata-se da reapropriação do saber pelo analista na condição de pesquisador; momento em que, finalmente, este saber, que é depositado, torna-se um produto. Esse produto, por sua vez, é o ponto de basta, feito pelo pesquisador na condição de analista/praticante. Assim, o entrelaçamento das funções de sujeito, pesquisador, analista permite romper qualquer fixidez de posição diante do saber, permitindo sustentar o trabalho de construção, a partir do manejo dos impasses que atravessam o cotidiano de prática clínica e de uma aposta na formalização possível dos princípios psicanalíticos. No terceiro e último binômio assinalado pela autora, os termos Conceitos « Distinções são apresentados, concebendo os conceitos fundamentais da psicanálise que são colocados em questão a cada passo da construção. Entretanto, não é necessário definir 114 exatamente o que esses conceitos significam nem a que evento correspondem em cada caso para que se obtenha o resultado esperado. Por outro lado, nota-se que é fundamental estabelecer algumas distinções conceituais sem as quais não há condução possível do caso. Nesse sentido, a psicanálise concerne não ao efeito de um saber do Outro sobre uma história, mas ao feliz encontro entre as ferramentas conceituais do analista e as contingências de uma história, produzindo um caso e, no melhor dos casos, um novo sujeito. Ao formalizar esse binômio, busca-se uma aproximação da possibilidade de constituir enunciados sobre esse saber propriamente psicanalítico, singular e inventado a cada nova situação. Ao retomar a discussão sobre a construção do caso clínico como proposta para o trabalho em equipe, Figueiredo se volta, novamente, para o trabalho em equipe nas instituições de saúde mental, acentuando a complexidade desse trabalho e o modo como as equipes se estruturam como um aspecto decisivo para o destino da clínica. Destacam-se, então, duas lógicas ou modalidades de organização das equipes que podem melhor situar tal problemática: a formação hierárquica e a formação igualitária. Se as equipes são formadas mais na lógica hierárquica de funções e saberes, tendem a burocratizar a clínica, a verticalizar o poder e o saber e a cristalizar as práticas. Se são mais igualitárias, tendem a horizontalizar o poder, a misturar as funções, escapando das especialidades, mas caindo na falta de especificidade e confundindo as funções, a ponto de perder a referência da clínica e imobilizar o trabalho conjunto (FIGUEIREDO, 1997). Nessa direção, a autora retoma o termo lacaniano que define a relação de trabalho nos cartéis, a ‘transferência de trabalho’, como referência valiosa para orientar o trabalho com as equipes de saúde mental. Esse termo designa a possibilidade de dissolver os efeitos narcísicos imaginários que inevitavelmente ocorrem, seja na confusão de papéis (modelo igualitário), seja na fixação de papéis (modelo hierárquico). No que se refere ao trabalho coletivo com cada sujeito, a autora assinala a importância de ‘seguir seu estilo para, a partir daí, lhe indagar o que é pertinente a seu sintoma’ (FIGUEIREDO, 2004, p. 11), fazendo-o tomar minimamente a responsabilidade por seus atos, ainda que não tenha responsabilidade ‘plena’, conforme o sentido jurídico. É preciso, portanto, separar esse campo de responsabilidades, pois, na maioria das vezes, os sujeitos se apresentam tutelados e desresponsabilizados, o que os leva à imobilidade, à falta de solução e à confirmação da doença. Outra orientação importante para conduzir o trabalho das equipes, no campo da saúde mental, é indicada pela autora com base no termo ‘aprendizes da clínica’ (ZENONI, 2000). Essa expressão, empregada pelo psicanalista Alfredo Zenoni, sintetiza a posição da equipe em formular as boas questões, verificar os efeitos de suas intervenções, tomar novas decisões ou dar novo rumo a cada caso, com as indicações do sujeito que, 115 convém lembrar, não são tão óbvias ou intencionais, mas estão dadas de algum modo no seu sintoma, em suas diferentes manifestações. Partindo desse ponto, a autora retoma o objeto central de seu artigo: a contribuição da construção do caso clínico, como proposta aplicável ao campo saúde mental, na medida em que permite recolher da experiência do sujeito, de seu discurso, os elementos com os quais se fará a construção do caso, entendendo que esta é sempre parcial, visa dar direções para determinada intervenção ou ação da equipe, sendo passível de revisão na medida dos acontecimentos. Assim, a construção do caso pode conter elementos discursivos de familiares, de outros envolvidos, mas não pode perder seu fio condutor, que é a referência ao sujeito em questão. O estabelecimento dos ‘binômios’ apresentados serve, portanto, como ferramenta da construção para serem aplicados no trabalho em equipe; diferindo de um trabalho de análise, mas contendo os elementos metodológicos aplicáveis à condução terapêutica, com base nas referências de cada sujeito. Desse modo, a autora conclui que o que caracteriza a construção do caso na equipe de saúde mental – e diverge do trabalho mais específico do psicanalista – é exatamente o fato de a equipe ser heterogênea em sua composição – diferentes profissionais e referências teórico-técnicas, diferentes níveis de formação. A ação do psicanalista, nesse trabalho coletivo, direciona a discussão do caso a partir da posição assumida por uma equipe como ‘aprendizes da clínica’, possibilitando colher, das produções do sujeito, os balizadores clínicos para seu tratamento, em detrimento de uma posição técnica que impõe o modelo da reabilitação em sua dimensão moral e pedagógica. 2.3.3. A metodologia em ato da construção do caso clínico A segunda publicação de referência sobre a aplicação dos princípios psicanalíticos no campo da atenção psicossocial apresenta a Metodologia em Ato da Construção do Caso Clínico como proposta de pesquisa orientada pela abordagem psicanalítica no campo da saúde mental. Nessa publicação, se concentram os relatos do projeto de pesquisa “Investigação dos efeitos discursivos da capsização da atenção em saúde mental: avaliação qualitativa dos processos de institucionalização do modelo CAPS” 84 , cujos resultados são apresentados no 84 Pesquisa vinculada ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), seguindo a proposta dos ‘Estudos de avaliação dos Serviços em Saúde Mental com ênfase nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)’ para o desenvolvimento e avanço da aplicação de novas tecnologias: novos métodos e técnicas de investigação. Com essa proposta, esse projeto de pesquisa buscou analisar, sistematizar e avaliar qualitativamente os processos de institucionalização do modelo CAPS, a partir da construção do caso clínico e da formação dos profissionais da rede de saúde mental. Os autores esclarecem que o termo ‘Capscização’ não designa uma crítica ao serviço de atenção psicossocial, mas um interesse de 116 livro intitulado “Metodologia em Ato” (TEIXEIRA, 2010). Essa pesquisa, desenvolvida durante quatro anos, por psicanalistas que atuam nos serviços de saúde mental e em diferentes instituições universitárias, produziu uma investigação da prática da Construção do Caso Clínico como operação da psicanálise aplicada ao trabalho em equipe dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Com base na apresentação dessa proposta de pesquisa, daremos ênfase ao modo de aplicação do método da construção do caso clínico e ao estabelecimento do termo ‘Metodologia em Ato’, que designa o modo específico de investigação de uma pesquisa em psicanálise. O desenvolvimento dessa pesquisa parte da indissociável relação entre a investigação e o tratamento que marca o rigor do método psicanalítico. Nessa perspectiva, a proposta metodológica da construção do caso clínico foi empregada como instrumento de análise, de intervenção e de transmissão, capaz de “a um só tempo, avaliar qualitativamente a efetividade da resposta clínica dos serviços de saúde mental, assim como orientar a equipe na direção do tratamento, fazendo avançar a clínica a partir dos impasses encontrados em cada caso.” (TEIXEIRA, 2010, p. 27). A escolha de uma nova terminologia, para fundamentar o método de pesquisa e de trabalho em equipe da construção dos casos, se deu, então, com a consideração de que o saber que determina a pesquisa em psicanálise “emerge como efeito de sua colocação em ato” (TEIXEIRA, 2010, p. 28). E isto implica superar, de certo modo, o problema da metodologia a ser aplicada em uma pesquisa clínica de orientação analítica, cuja formalização metodológica não dispõe de regras previamente codificadas sobre o seu procedimento clínico. A originalidade do termo ‘metodologia em ato’ se refere diretamente à prática coletiva da construção do caso clínico como um instrumento de pesquisa que faz valer “o saber do caso no momento pontual de sua colocação em ato” (TEIXEIRA, 2010, p. 28) como um operador que produz mudanças, tanto em relação às intervenções clínicas de uma equipe, quanto ao que tange à verificação do trabalho clínico-institucional. A metodologia da construção do caso clínico foi aplicada em onze serviços de saúde mental do Estado de Minas Gerais apoiada na proposta introduzida pelos pesquisadores, de que cada equipe deveria escolher um caso para a construção realizada conjuntamente com os profissionais do serviço e com a equipe da pesquisa. A intervenção do grupo de pesquisadores se realizou a partir de dois encontros em cada serviço: o primeiro encontro para a construção do caso e o segundo para o retorno da equipe clínica em relação ao caso construído. Essa proposta foi demarcada, ainda, pela solicitação dos pesquisadores de escolha de ‘casos estudo em relação à operacionalidade clínica do modelo CAPS. No centro dessa pesquisa, a construção do caso foi investigada como um método clínico orientador do trabalho em equipe. 117 problemáticos’, cujos impasses do tratamento poderiam dar maior visibilidade às dificuldades do serviço e da equipe na condução dos casos. Desse modo, além dos impasses avaliados no acompanhamento clínico dos pacientes, como dificuldades diagnósticas, de manejo, encaminhamentos, circulação do caso na rede, etc., foi possível também avaliar algumas dificuldades institucionais, como, por exemplo, o funcionamento da equipe e sua inserção na rede intersetorial de serviços públicos. Para operacionalizar a aplicação do método da Construção do Caso Clínico no trabalho em equipe, os pesquisadores incluíram, nessa proposição metodológica, o dispositivo da Conversação Clínica. Esse dispositivo foi, então, privilegiado para a aplicação da construção do caso por possibilitar a ‘circulação da palavra’ entre os profissionais de cada equipe, apoiada “numa aposta de que algo inédito, até então não pensado, pudesse surgir a partir do convite à fala” (TEIXEIRA, 2010, p. 29). Com esse modo de aplicação da construção do caso, a verificação possível de se extrair, a partir dos relatos de uma equipe, passou a ser atravessada pelo dispositivo da conversação. Diferindo do modo proposto, nesta pesquisa de doutorado, de aplicação da construção do caso clínico no trabalho em equipe por meio do instrumento metodológico do texto da construção, a ‘metodologia em ato’ da construção dos casos emprega a conversação clínica como um dispositivo metodológico “em que a fala livre de cada um pode ‘tocar’ no outro, o que possibilita a concordância, o acréscimo, um complemento, a réplica, do momento em que a fala desencadeia no outro uma idéia, uma lembrança ou uma observação” (TEIXEIRA, 2010, p. 29). Em outros termos, trata-se de colher na incidência lógica de uma “livre associação coletiva” um elemento de surpresa como um ponto de sustentação “que implica todos os envolvidos em uma mesma situação de trabalho, na qual a responsabilidade de cada um dos que estão nela envolvidos encontra-se engajada.” (TEIXEIRA, 2010, p. 30). Com essa proposta, todos os membros da equipe foram convidados a se debruçar sobre a construção de cada caso, buscando, durante a conversação clínica, construir um ‘saber fazer’ em cada caso diante dos seus pontos de impasse. Como efeito, novas possibilidades de intervenção e condução do tratamento foram encontradas e compartilhadas como orientação para o acompanhamento de cada caso. A experiência de Construção dos Casos, desenvolvida através das Conversações Clínicas, permitiu que a equipe de pesquisadores pudesse recolher, após as reuniões sistemáticas do grupo de pesquisa e ao trabalho de transcrição desses encontros, alguns elementos essenciais que delimitam esta metodologia de pesquisa. Dentre eles, o ‘esvaziamento do saber prévio’ recebe destaque como um princípio articulador da 118 Construção do Caso Clínico. O primeiro aspecto observado nos relatos das equipes sobre as dificuldades na condução do caso aponta para a modificação da percepção dessas dificuldades em relação ao caso, anteriormente, considerado como ‘problemático’. A partir dos encontros de construção dos casos, as equipes se depararam com os momentos em que o próprio sujeito oferecia uma resposta diferente daquela caracterizada como um impasse na condução do tratamento. Notou-se, portanto, a potencialidade do método da construção dos casos de “desestabilizar o conjunto de saberes prévios” (TEIXEIRA, 2010, p. 32), ao relativizar o saber da equipe sobre o caso e produzir, ao mesmo tempo, a construção de um saber inédito, que permitiu operar uma mudança na condução clínica das equipes. O segundo princípio destacado como articulador da ‘Metodologia em Ato’ da construção dos casos refere-se à ‘circulação de saberes’ como efeito do esvaziamento do saber prévio da equipe em relação ao caso clínico. Tal efeito era favorecido pelo dispositivo da conversação que permitia a ‘livre circulação da palavra’ (TEIXEIRA, 2010, p. 33) entre profissionais de formações diversas. Esse aspecto foi avaliado pelas equipes dos serviços como um dos principais meios de intervenção da pesquisa, por permitir que os profissionais envolvidos expressassem suas percepções em relação ao caso, sem que nenhum saber fosse hierarquicamente estabelecido como o ‘mais importante’. Apesar da psicanálise deter um saber que se aplica à construção dos casos na saúde mental, cabe considerar que esse não se estabelece de modo hegemônico em relação às demais formas de saber, mas pela transmissão de seu modo próprio de operação clínica, por meio da articulação de diferentes saberes que compõem o trabalho coletivo. Da ‘circulação de saberes’ promovida por essa metodologia de pesquisa, destaca-se, ainda, o terceiro princípio da ‘autoridade clínica’ designada como “conceito fundamental da metodologia em ato” (TEIXEIRA, 2010, p. 34). Esse termo proposto por Carlo Viganò, durante o Seminário de Saúde Mental, Psiquiatria e Psicanálise, realizado em 1997, introduz uma nova lógica para a condução clínica no âmbito dos novos serviços de atenção psicossocial, inaugurados com o movimento da reforma psiquiátrica. Enquanto o manicômio se organizava em torno da soberania do saber médico, como autoridade máxima para o ‘tratamento da loucura’, o processo da reforma psiquiátrica exigiu a pluralização da autoridade clínica expandida ao debate democrático. Desse modo, a autoridade clínica passa a ser estabelecida em meio a um debate entre vários atores e profissionais do campo da saúde mental, mas, não por isso, deve ser confundida com um ‘consenso democrático’, no qual a opinião da maioria rege a condução do caso no trabalho em equipe. O que se destaca nesse modo de operação ou de ‘autorização’ de uma equipe clínica concerne à extração 119 compartilhada “de um diagnóstico referido à posição discursiva em jogo, na dinâmica da parceria que o sujeito estabelece com o Outro, representado pela família, pela comunidade ou pela equipe de tratamento” (TEIXEIRA, 2010, p. 34). A validação do ‘diagnóstico de discurso’ é, portanto, o que deve ser tomado como autoridade clínica na condução dos casos, podendo ser verificado por meios das mudanças de posicionamento, produzidas sobre a equipe e pelos efeitos que essas mudanças geram na evolução clínica do paciente. O quarto e último princípio, que configura essa ‘metodologia em ato’, é demarcado pela ‘exterioridade’ do grupo de pesquisadores em relação às equipes e aos serviços investigados. Essa exterioridade, considerada como um “fator primordial na abertura das equipes à Construção do Caso Clínico” (TEIXEIRA, 2010, p. 35) possibilitou a instauração de um ‘novo olhar sobre os casos’ e, portanto, a composição de uma ‘outra forma de saber’ sobre cada caso apresentado. Os desdobramentos desta pesquisa alcançaram, contudo, um modo de intervenção mais ampla, conduzindo os pesquisadores à observação de que a incidência de seu trabalho tangenciava, ainda, uma investigação sobre a própria instituição reconhecida como sendo, ela mesma, ‘o nosso caso clinico’ (TEIXEIRA, 2010, p. 31). Ao utilizar a construção do caso clínico como metodologia de pesquisa e de avaliação do trabalho clínico institucional, tornouse notável nos relatos dos pesquisadores o modo como os efeitos de suas intervenções puderam ser recolhidos, caso a caso, e no âmbito do trabalho das equipes nos serviços. Tais intervenções puderam contribuir não somente para a prática clínica coletivizada, mas também para desfazer alguns impasses burocráticos, administrativos ou teóricos que incidiam no trabalho com cada caso. Nota-se, mais uma vez, a potencialidade do método clínico de verificação da construção do caso, capaz de favorecer a invenção de novas soluções clínicas em detrimento de normas e regras prescritivas que podem atravessar o cotidiano das instituições. Concluindo esta discussão, convém assinalar a utilização do termo ‘Metodologia em Ato’ que, como balizador teórico da pesquisa apresentada, expressa claramente a “dimensão em ato do saber que não se sabe sem o movimento em que se realiza” (TEIXEIRA, 2011, p. 3) como uma fundamentação essencial para toda e qualquer pesquisa em psicanálise. Vimos aqui, o rigor do método analítico aplicado à pesquisa clínica e seus efeitos de transmissão de um saber que concerne à experiência clínica e que, portanto, só pode ser apreendido no próprio momento em que essa experiência se apresenta. Em contraste com os parâmetros metodológicos pré-codificados dos atuais protocolos científicos e “de uma experimentação controlada da abordagem do padecimento mental” (TEIXEIRA, 2011, p. 3) situamos a 120 pertinência de uma metodologia articulada ao ato clínico, sempre inédito e imprevisível, mas ao mesmo tempo, passível de demonstração, a partir do que testemunha uma equipe clínica na construção de cada caso. A transmissão que resulta desta pesquisa alcança, ainda, uma dimensão política da psicanálise, ao demonstrar ‘em ato’ a eficácia do método analítico e o valor axiomático da operação analítica no campo clínico de saúde mental. Neste caminho, prosseguiremos com a apresentação da aplicação da metodologia de pesquisa da construção do caso clínico explorada, no capitulo seguinte, em seu viés de transmissão da política analítica do sintoma. 121 CAPÍTULO 3 A metodologia da Construção do Caso Clínico aplicada à prática coletiva em Saúde Mental A apresentação da aplicação do método clínico de pesquisa da construção do caso clínico no campo da saúde mental é apoiada na experiência de intercâmbio acadêmico, realizado no ano de 2009, entre o Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e o Curso de Especialização em Psiquiatria e Psicoterapia da Universidade de Milão 85 . A proposta de aplicação desse método clínico foi observada nos encontros de pesquisa, em especial, com a utilização de instrumentos metodológicos para a construção dos casos acompanhados na referida instituição italiana de ensino e de assistência em saúde mental. A formalização metodológica desta pesquisa de doutorado parte, então, dos registros do diário de campo produzido nessa experiência de intercâmbio acadêmico e de instrumentos, como esquemas e roteiros de narrativas clínicas, que apoiam a aplicação da Construção do Caso Clínico como metodologia de pesquisa em psicanálise e de verificação da condução clínica dos casos, no trabalho em equipe dos serviços de saúde mental. Com base nessas referências e instrumentos, apresentamos a construção coletiva de um caso acompanhado, inicialmente, por um profissional de formação psicanalítica, que atua em um dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) da cidade do Rio de Janeiro. Com a colaboração desse profissional e da autorização prévia86 da direção do serviço de saúde mental escolhido para a aplicação do método da Construção do Caso Clínico, empregamos essa metodologia de pesquisa, a fim de discutir e avaliar as conduções e condutas clínicas do trabalho em equipe no acompanhamento desse caso. A construção do caso realizada com a equipe clínica do CAPS contou com dois desdobramentos interessantes nessa etapa de investigação. Um primeiro desdobramento foi produzido pela oportunidade de utilizar e ampliar a aplicação do método de pesquisa clínica 85 Referência ao intercâmbio acadêmico certificado pela Università degli Studi di Milano/Unità di Psichiatria Dinamica e Psicoterapia del Dipartimento di Salute Mentale dell Ospedale Niguarda Ca´Granda, realizado com o suporte de tutoria do psiquiatra e psicanalista Carlo Viganò. 86 O estudo desenvolvido nesta pesquisa de aplicação da metodologia da construção do caso clínico ao campo da saúde mental foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil da Cidade do Rio de Janeiro. 122 por meio da prática de matriciamento 87 em saúde mental, desenvolvida pelo profissional do CAPS, praticante da psicanálise e colaborador desta pesquisa, junto à equipe de referência territorial da Estratégia de Saúde da Família, que identificou a necessidade de acompanhamento do paciente em questão. Com efeito, a prática coletiva da construção do caso atravessou diferentes serviços e equipes que compõem a rede intersetorial da atenção psicossocial, ampliando o alcance de transmissão da política psicanalítica do sintoma a um campo mais variado de cuidados e intervenções. O segundo desdobramento de investigação desta pesquisa clínica instaurou a última etapa da construção realizada pela composição do Laboratório da Construção do Caso Clínico, caracterizado como um dispositivo de pesquisa que se aproxima do formato de um cartel. Dessa etapa final, recolhemos considerações importantes sobre a composição de um dispositivo interessante para a formação do analista e passível de ser aprimorado como proposta para as instituições psicanalíticas. Vejamos, então, como essas experiências se desenvolveram com o método de pesquisa em psicanálise utilizado. 3.1. As etapas de aplicação da metodologia da Construção do Caso Clínico A metodologia da Construção do Caso Clínico foi explorada nessa pesquisa de doutorado em quatro tempos isolados, embora articulados entre si. A articulação entre essas etapas está diretamente relacionada com os instrumentos metodológicos que servem de apoio para a produção das escrituras e re-escrituras do texto do caso clínico. Tais instrumentos foram traduzidos dos modelos originalmente empregados na Universidade de Milão: o Roteiro de Apresentação do Caso 88 foi traduzido integralmente, enquanto o Esquema História/Tratamento/Intervenções 89 obteve pequenas adaptações, passando a ser designado como Quadro Registro/Intervenções/História. Optamos pela adaptação dos termos para tornarem mais claras a tradução dos tópicos e a acomodação destes nos instrumentos empregados. A construção do caso apresentado se apoia nos registros correspondentes aos onze primeiros meses de tratamento do paciente no CAPS, sendo este o corte temporal estabelecido para a construção e exposto nos instrumentos metodológicos. Iniciaremos pela apresentação 87 Prática de trabalho proposta para o acompanhamento de usuários dos serviços de saúde mental realizado conjuntamente com a Estratégia de Saúde da Família. Tal proposta vai ao encontro da Portaria nº. 154, de 24 de janeiro de 2008, que fundamenta o trabalho dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). 88 Ver apêndice I. 89 Ver apêndice II. 123 sistematizada dos encontros clínicos de construção para, em seguida, detalhar os instrumentos metodológicos empregados. Primeira etapa: a construção do caso na supervisão analítica No primeiro momento, o praticante levou o caso para a supervisão analítica 90 e pôde construir certo número de sessões com o paciente que acompanhava em modalidade de atendimento individual e semanal no CAPS. O caso foi construído na supervisão analítica do praticante com base nos primeiros registros escritos no Quadro Registro/Intervenções/História 91 . Em seguida, o praticante iniciou a escritura da construção do caso no Roteiro de Apresentação do Caso, com as elaborações produzidas nos encontros de supervisão. O roteiro começou a ser preenchido antes da apresentação do caso à equipe clínica do CAPS, mas recebeu novos registros e elaborações após as etapas seguintes da construção coletiva do caso. Segunda etapa: a construção do caso na reunião de equipe do CAPS Na segunda etapa, o caso acompanhado pelo profissional de formação lacaniana foi discutido pela primeira vez com a equipe do CAPS durante o encontro semanal de reunião da equipe e supervisão clínico-institucional 92 do serviço. A apresentação do caso junto à equipe do serviço trazia como ‘pontos de impasse’ para o praticante e, portanto, como elementos balizadores para a construção do caso, a dúvida diagnóstica, o manejo da transferência com o analista e com a própria instituição e os efeitos terapêuticos rapidamente observados no curso do tratamento. A exposição dos registros e elaborações sobre o caso, inscritos no Roteiro de Apresentação do Caso, foi realizada pelo praticante de modo mais informal, conforme a dinâmica das reuniões de equipe, sem se prender à leitura propriamente dita do texto da construção do caso. Após a discussão com a equipe, foi possível incluir, na escritura do roteiro, as reformulações do projeto terapêutico e a verificação/avaliação do trabalho da equipe na condução do caso. Convém observar que a utilização desse instrumento 90 Referência ao dispositivo proposto para a formação do analista. Esta difere da ‘supervisão clínico-insitucional’ do CAPS, apresentada em seguida, pois designa a escolha individual do praticante em ter um supervisor ligado à Escola de Psicanálise, na qual vincula sua formação, a quem remete a construção dos casos que acompanha. 91 Ver apêndice III. 92 A supervisão clínico-institicional é um dispositivo que fomenta a prática do trabalho em equipe com os usuários acompanhados nos CAPS. Nos CAPS do Rio de Janeiro, os encontros das equipes com os supervisores costumam ocorrer uma vez por semana, no horário que o serviço disponibiliza para a reunião de equipe. Convém assinalar a importância da inserção de psicanalistas nessa função da supervisão como forma de situar a transmissão da orientação psicanalítica sobre a leitura dos casos e sua contribuição na avaliação de um acompanhamento clínico. 124 metodológico permitiu introduzir uma lógica de escansão e de redução das associações e dos deslizamentos significantes no relato do praticante sobre o caso, favorecendo uma demonstração no nível formal do estabelecimento do sintoma, em detrimento de certa tendência de exaustão de detalhamentos no relato do caso. Nesse momento, optou-se pela ausência do pesquisador na construção do caso, realizado na reunião de equipe do CAPS, para comprovar a viabilidade de aplicação do método empregado pelo próprio praticante e, portanto, por qualquer profissional referido aos princípios clínicos da psicanálise que atue nos serviços de saúde mental. Cabe, ainda, esclarecer que a metodologia da Construção do Caso Clínico foi possível de ser aplicada nesse encontro de supervisão clínico-institucional, uma vez que se tratava, pela primeira vez, da discussão do caso em questão, preservando, com isso, o caráter pontual dessa metodologia de pesquisa. Caso contrário, não poderíamos reduzir a discussão dos casos, realizada frequentemente nos encontros de supervisão clínico-institicional dos CAPS, ao rigor metodológico dessa proposta de Construção do Caso Clínico, cuja premissa é a de que o caso seja apresentado e construído, pontualmente, uma única vez. Tal premissa esclarece uma sutil diferença entre a discussão desenvolvida regularmente a partir da complexidade dos casos e a construção do caso que concerne a um momento preciso de avaliação da condução clínica de uma equipe; embora ambos os termos estejam articulados na metodologia apresentada. Terceira etapa: a construção do caso na prática do apoio matricial Nessa etapa, a construção do caso foi aplicada à prática de matriciamento em saúde mental, desenvolvida pelo profissional do CAPS com a equipe que acompanha o paciente e sua mãe na Clínica da Família de referência territorial do serviço de atenção psicossocial. A função do matriciador de saúde mental se caracteriza pelo suporte técnico e clínico às equipes da Estratégia de Saúde da Família na condução de casos em sofrimento psíquico, contribuindo, ainda, com a complexa tarefa de ordenamento do fluxo dos casos encaminhados aos serviços de saúde mental. A proposta do apoio matricial às equipes da Estratégia de Saúde da Família (ESF) vem sendo desenvolvida na cidade do Rio de Janeiro com o suporte de profissionais que atuam nos serviços de atenção psicossocial (CAPS), nos ambulatórios de saúde mental e, em especial, nos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). A integração desses profissionais com as equipes da ESF é apoiada pela prática de matriciamento realizada por meio de interconsultas, de visitas domiciliares, de encontros para a discussão dos casos, entre outras intervenções desenvolvidas territorialmente, como ações de compartilhamento do cuidado em saúde mental 125 que seguem uma lógica de corresponsabilização pelos casos acompanhados nas Clínicas da Família. Trata-se de uma prática de trabalho em rede que favorece a ampliação de procedimentos clínicos e de cuidados em saúde mental pela condução compartilhada dos casos, conforme preconizado pelas diretrizes da Reforma Psiquiátrica. Nessa etapa da construção do caso, a presença do pesquisador no encontro realizado com equipe de saúde da família foi essencial para atestar a viabilidade de aplicação dessa metodologia de pesquisa e de trabalho em equipe nas reuniões de matriciamento em saúde mental. Nesse encontro de discussão clínica, o praticante apresentou novamente seu registro inscrito no Roteiro de Apresentação do Caso, mas, dessa vez, já atravessado pela reformulação do projeto terapêutico do paciente, como efeito da construção coletiva do caso realizada anteriormente com a equipe do CAPS. A exposição desses registros à equipe da Estratégia de Saúde da Família seguiu o mesmo formato, mais informal, empregado na reunião de equipe do CAPS. A construção tornou-se operativa, nesse terceiro momento, ao recolher dos relatos dos agentes comunitários de saúde 93 (ACS), da enfermeira e da médica de família as hipóteses e dificuldades que envolviam, especialmente, alguns acontecimentos com a mãe do paciente. A partir dessa etapa, a avaliação da equipe da ESF sobre a condução do caso foi incluída no roteiro, atestando a importância da construção desse trabalho, em rede, pelo compartilhamento de uma leitura clínica sobre o caso. Quarta etapa: a proposta do Laboratório da Construção do Caso Clínico A última etapa da construção do caso desenvolveu-se com um desdobramento investigativo, proposto especificamente para essa pesquisa de doutorado. Trata-se da proposta de constituição de um encontro para a construção do caso clínico que se aproximou do formato de um ‘cartel pontual’, realizado entre os psicanalistas envolvidos nessa pesquisa e na condução do caso escolhido para a tese: os pesquisadores (a doutoranda, a orientadora da pesquisa e proponente do método), o praticante e o supervisor clínico 94 . Cabe assinalar que o 93 Os Agentes Comunitários de Saúde costumam ser moradores do bairro em que realizam a assistência comunitária em saúde e, frequentemente, trazem informações precisas sobre o histórico dos pacientes na comunidade onde residem. 94 Citados respectivamente: Daniela Bursztyn, Ana Cristina Figueiredo, Carlo Viganò, Wagner Erlange e Marcus André Vieira. A rigor, como mencionado no segundo modo de aplicação da metodologia da Construção do Caso Clínico, conforme o primeiro item do segundo capítulo, esse ‘Cartel da Construção do Caso’ corresponderia a um dispositivo de formação do analista, que poderia ser inscrito na Escola Brasileira de Psicanálise (EBP-Rio). Nesse formato, os analistas que comentariam a leitura do texto do caso estariam, preferencialmente, ‘de fora’ da condução clínica do caso e não haveria, portanto, a presença do supervisor do caso. Entretanto, optamos pela ‘adaptação’ para o formato acima descrito, por considerarmos ser esse um dispositivo criado a partir do caso clínico e como apoio para a metodologia proposta nesta pesquisa de doutorado e, por isso, foi interessante envolver os analistas pesquisadores e o supervisor clínico que, por sua vez, trouxe contribuições fundamentais para o desenvolvimento metodológico desta pesquisa. 126 formato proposto para esses encontros favorece o caráter pontual da prática de construção dos casos, uma vez que sua configuração visa a uma intervenção específica por meio de encontros que se compõem e se dissolvem pontualmente entre seus participantes. A princípio, a proposta de formação de um Cartel da Construção do Caso estava relacionada à sua composição naturalmente constituída pela implicação de cinco analistas, envolvidos na leitura do caso e no desenvolvimento metodológico desta pesquisa de doutorado. Com a composição de cinco participantes, seria viável retomar a proposição de Lacan para a constituição de um Cartel 95 , na qual entre esses analistas, um seria escolhido pelos demais para assumir a função do ‘mais um’, configurando, assim, a composição de 4+1 participantes. Nossa proposta inicial tentou aproximar a posição do pesquisador analista à função do ‘mais um’ do Cartel da Construção do Caso, já que este ocupa um lugar de ‘agente provocador’ da elaboração de um trabalho em equipe, tanto no dispositivo de formação analítica do cartel como nas etapas da construção do caso, aplicada a um campo heterogêneo de saberes sobre a clínica. Nessa perspectiva, o pesquisador como ‘mais um’ assumiria uma posição externa à condução do caso que o permite interrogar e produzir ‘perfurações’ no próprio texto da construção coletiva do caso, sem que esteja envolvido diretamente na condução do tratamento junto à equipe, ao praticante ou ao próprio paciente. Nossa hipótese foi, então, a de que o pesquisador poderia convidar ao trabalho do Cartel da Construção do Caso aqueles analistas interessados na leitura da escritura clínica, que expõe o testemunho do praticante e da equipe como verificação da condução clínica e institucional do caso. No entanto, notamos que a função de ‘mais um’ 96 se apresentaria como 95 Em 1964, quando funda sua Escola, Jacques Lacan inventa uma nova forma de trabalho em pequenos grupos – o cartel – em oposição aos ‘modos de agrupamento’, estabelecidos pela IPA para o ensino da psicanálise. Proposto como órgão de base de sua Escola, tal dispositivo tem o nome oriundo da palavra latina cardo, que quer dizer ‘dobradiça’. Sua estrutura, consonante com a do próprio sujeito, está calcada na topologia do nó borromeano, em que x (número de aros) mais 1 (qualidade borromeana) se enlaçam, preservando o fundamental para o desejo de cada um: o furo no saber. Incentivando a transferência de trabalho, e marcado por uma temporalidade em que o fim está posto de entrada, o cartel introduz o vivo na experiência de trabalho na Escola, enlaçando a política e a episteme com a lógica que sustenta o princípio mesmo da experiência psicanalítica. O Cartel é composto por três a cinco integrantes Mais Um, a partir de um desejo de saber sobre algum tema em psicanálise, referido à clínica, teoria, política, ou nas conexões com outros campos de saber. O trabalho tem a duração de um a dois anos, quando o cartel é dissolvido, sendo as produções individuais apresentadas em uma Jornada convocada exclusivamente para receber os resultados dos trabalhos, que são ofertados à comunidade analítica, também por meio das atas que reúnem tais textos. Fonte: http://www.ebpsc.com.br/wordpress/?page_id=5, acessado em 14/03/2012. 96 O Mais Um é um membro convidado pelos demais membros de um Cartel e tem a função essencial de manter a operatividade do grupo, estando também movido por um interesse de saber sobre o tema de pesquisa proposto. É o responsável por ‘empuxar’ a todos à tarefa que os reúne e, para levá-la adiante, trabalha na contramão dos efeitos imaginários que a ele são conferidos, necessariamente, tal como nos aponta as descobertas freudianas sobre os efeitos da psicologia das massas: todo grupo está sujeito aos efeitos de um líder, do qual – colocado como ideal de eu – será esperado o saber, assim como será o depositário do amor e do ódio que seria conferido ao Pai. Espera-se que o Mais Um seja um integrante advertido de tais efeitos, para poder manejá-los, desconsistindo o lugar do líder e também das identificações horizontais, que são as fontes das obscenidades nos grupos, tal como nos aponta Lacan. O Mais Um também tem a incumbência de inscrever o cartel na Escola, assim como a de dissolvê-lo, quando as condições de trabalho se afastam da possibilidade de levar a tarefa a seu termo. Fonte: http://www.ebpsc.com.br/wordpress/?page_id=5, acessado em 14/03/2012. 127 aquele que propõe ao Cartel da Construção do Caso um trabalho de releitura do texto da construção, não estando essa função fixada na figura do pesquisador. Mas dirigida ao integrante escolhido entre os demais membros do Cartel, que poderia assegurar as contribuições de cada um desses e/ou de uma equipe de saúde mental na elaboração coletiva que se produz na construção do caso. Identificamos, nessa proposta, a possibilidade de constituição de um dispositivo interessante para a formação do analista por incluir o caso clínico no eixo do trabalho investigativo de um Cartel, fazendo avançar a psicanálise e sua transmissão entre os próprios analistas em formação. Desse modo, poderíamos recolher, nas primeiras etapas de aplicação da Construção do Caso Clínico, os efeitos da transmissão da psicanálise para ‘não analistas’, enquanto, nessa última etapa, poderíamos extrair, ainda, a pertinência dessa metodologia de pesquisa para a própria formação do analista. Para essa etapa final, agendamos dois encontros, cuja composição se aproximou do formato de um Cartel da Construção do Caso Clínico. No primeiro encontro, os participantes se reuniram e se ocuparam, particularmente, da discussão e dos esclarecimentos relativos à metodologia da construção do caso clínico. Os pontos abordados e esclarecidos, nessa discussão inicial, referiam-se aos instrumentos empregados, às etapas de sua aplicação metodológica e ao rigor conceitual da estrutura de um cartel. Essa ocasião foi fundamental para o entendimento dos participantes em relação ao método de pesquisa e para a problematização da própria concepção de cartel e da função do pesquisador como ‘mais um’. De saída, a proposta da função do ‘mais um’, relacionada à posição do pesquisador na construção do caso, foi problematizada diante de um impasse ‘infeliz’, instaurado na ocasião desse primeiro encontro. A recente notícia do falecimento do proponente do método, que também se envolvera diretamente nessa proposta do Cartel da Construção do Caso, nos impediu de avançar na nossa hipótese inicial sobre a função do ‘mais um’ na pesquisa em psicanálise, na medida em que, naturalmente, essa função lhe fora designada pelos demais participantes. Carlo Viganò acompanhou continuamente as primeiras etapas de desenvolvimento da metodologia empregada nesta pesquisa, tendo mantido viva e, cada vez mais, fecunda sua contribuição para a construção do caso em questão. Não poderíamos negar, contudo, o modo como estivemos causados pela ‘presença de uma ausência’ tão marcante e decisiva para o desenvolvimento deste trabalho, o que resultou na nossa escolha de eleger o proponente do método como o ‘mais um’ dessa proposta de cartel. Além desse impasse, ainda deparamos com outro limite frente ao rigor da proposta de Lacan para a formação do Cartel da Escola, o que nos impediu de sustentar esse dispositivo 128 constituído por uma pesquisa de doutorado sob as premissas necessárias para a composição de um cartel. Por um lado, tal impedimento se apresentava na medida em que propúnhamos um dispositivo de construção de casos que tangenciava a formação do analista, sem, no entanto, haver qualquer registro formal de inscrição em uma Escola de Psicanálise. Por outro lado, se a proposta de um Cartel é a de produzir intervenções teóricas e clínicas para fazer avançar o ensino e a transmissão da psicanálise, observamos, nesse aspecto, certa correspondência com esse dispositivo de pesquisa ao privilegiar o estudo do caso como meio de transmissão da psicanálise entre analistas e praticantes de uma determinada comunidade psicanalítica. Após essa discussão em torno dos impasses encontrados para sustentar a composição dessa última etapa de pesquisa como um cartel, agendamos o segundo encontro para a construção do caso entre os participantes. Esse último encontro, aqui nomeado Laboratório de Construção do Caso Clínico 97 , continuou se desenvolvendo aproximado ao formato de um cartel, sendo pertinente, no entanto, a escolha de um novo termo que melhor defina a etapa conclusiva de aplicação do método de pesquisa. Essa última etapa da construção favoreceu, então, a formalização do texto final da construção do caso, realizado pelo praticante e do texto elaborado pela pesquisadora sobre os efeitos de transmissão da psicanálise, extraídos dessa experiência de pesquisa; ambos apoiados pelas considerações recolhidas da discussão realizada em torno do caso e das etapas anteriores da construção. Para esse último encontro, foi solicitado ao praticante que enviasse para os demais participantes os instrumentos metodológicos nos quais constavam seus registros sobre o caso. Antes do encontro, cada participante se comprometeu com a leitura de todo o material enviado e, a partir daí, cada um pôde introduzir algumas hipóteses, pontuações e contribuições acerca da narrativa do caso. Para além dos aspectos teóricos que cada analista participante poderia assinalar em sua leitura sobre o caso, considerou-se a importância de enfatizar os efeitos das intervenções clínicas durante esse processo investigativo da construção do caso. Assim, até mesmo o tema da pesquisa de doutorado, abordado nesse último encontro, “A política do sintoma na Construção do Caso Clínico: o que é possível transmitir ao campo da saúde mental?”, esteve condicionado ao estudo do caso e não a uma determinada teoria. As considerações produzidas por cada analista participante foram 97 Esse termo foi empregado pela própria doutoranda, com as reflexões que surgiram a posteriori à discussão realizada nos dois encontros entre os pesquisadores, o praticante e o supervisor clínico. A substituição do termo Cartel para ‘Laboratório de Construção de Casos Clínicos’ não exclui o modo de funcionamento de um ‘cartel pontual’, identificado e proposto para essa última etapa metodológica da pesquisa, mas amplia a possibilidade de inscrição do rigor dessa proposta nos termos de uma pesquisa clínica e acadêmica. Nessa perspectiva, a noção de ‘Laboratório’ traduz, ainda, a idéia de um espaço destinado ao estudo de casos clínicos, com a aplicação de uma metodologia de intervenção e investigação capaz de formalizar e demonstrar a operação lógica da psicanálise e seus efeitos na condução de cada caso. 129 registradas, gravadas e transcritas 98 , servindo de suporte tanto para a escritura final do caso, formalizada pelo praticante, quanto para o texto de conclusão do método explorado pela pesquisadora. As etapas de escrituras e re-escrituras do texto da construção do caso atravessaram cada um desses quatro momentos de aplicação da metodologia de pesquisa. Essas etapas foram apoiadas pelos instrumentos metodológicos utilizados pelo praticante e pelo pesquisador, conforme a ilustração seguinte e sua sistematização: Figura 3.1. Ciclo das Etapas da Construção do Caso Clínico Fonte: Elaborado pela autora Escritura do praticante O profissional de formação analítica de referência para essa pesquisa, desenvolvida no CAPS, produziu um material escrito para cada etapa da construção do caso clínico, utilizando os respectivos instrumentos metodológicos: 1ª Escritura: os registros dos encontros com o paciente e a elaboração desses registros em supervisão analítica, por meio da construção de certo número de sessões. Instrumentos Metodológicos: Quadro Registro/Intervenções/História 99 Roteiro de Apresentação do Caso 100 Analisando esses instrumentos, verificamos uma distinção entre a escrita do praticante, transposta ao ‘esquema’ como registro literal do dizer do paciente nas sessões, e a escritura clínica, iniciada pelo praticante no ‘roteiro’ como uma construção em torno dos impasses do tratamento, que pôde ser formalizada com as elaborações extraídas na supervisão 98 Ver apêndice IV Ver apêndice III. 100 Ver apêndice I. 99 130 analítica. Tal distinção nos permite retomar o modo como o testemunho do real em jogo na experiência clínica se apresenta na escritura da construção do caso, em que o saber que se constrói é aquele que deriva da narrativa clínica do caso e da equipe clínica que dele se ocupa. De outro modo, a escrita como ato de um autor 101 permite construir um saber teórico ou individual daquele que testemunha determinados acontecimentos em nome próprio, seja no âmbito artístico, seja no acadêmico. 2ª Escritura: a construção do caso com a equipe do CAPS. Instrumento Metodológico: Roteiro de Apresentação do Caso 102 Nesse instrumento, foram incluídas novas considerações sobre a relação do paciente com os profissionais do serviço, o efeito da construção do caso como estratégia clínica de pluralização da transferência e a avaliação da equipe sobre a condução do caso. O roteiro foi utilizado como texto norteador para a discussão em equipe, revelando-se um instrumento capaz de evidenciar os pontos menos esclarecidos em relação ao caso levados à construção coletiva. Trata-se, no entanto, de um registro particular do praticante, que favorece a apresentação mais precisa e demonstrativa desses pontos de impasse em relação ao caso. Esse instrumento não deve constar no prontuário institucional do paciente, mas pode estar disponível para o acesso do profissional da equipe que se interesse pela leitura desse material. 3ª Escritura: o terceiro momento da construção do caso realizado com profissionais da Estratégia de Saúde da Família (ESF), que acompanham o paciente e sua mãe. Instrumento Metodológico: Roteiro de Apresentação do Caso 103 Após a discussão com a equipe da ESF, foram incluídas no roteiro novas informações sobre a relação do paciente com sua mãe, e a avaliação, realizada conjuntamente com a equipe, sobre a importância do acompanhamento familiar na Clínica de Família. 4ª Escritura: o último momento da construção do caso realizado entre psicanalistas no Laboratório da Construção do Caso Clínico. Instrumentos Metodológicos: Quadro Registro/Intervenções/História Roteiro de Apresentação de Caso Transcrições da construção do caso 104 101 Referência à discussão desenvolvida no segundo item do capitulo 2, p. 102. Ver apêndice I. 103 Ver apêndice I. 104 Ver apêndice IV. 102 131 Trata-se da última escritura da metodologia da construção do caso clínico, formalizada pelo praticante de modo compilado, a partir das escansões produzidas nos textos anteriores e demarcadas pela leitura dos analistas envolvidos nessa última etapa da construção. Nesse momento, a narrativa (do paciente, das equipes, dos familiares, etc.) torna-se a construção do caso. A finalização do texto da construção do caso pode ser exposta a um público mais amplo e/ou publicada como demonstração das contribuições da operação analítica, aplicada à prática coletiva da atenção psicossocial. Convém esclarecer que a finalização desse texto elaborado pelo praticante foi submetida à revisão do pesquisador, tendo em vista o rigor exigido para a publicação do texto da construção do caso em uma pesquisa acadêmica de doutorado. Para a demonstração do método de pesquisa, optou-se, ainda, por uma exposição mais detalhada das etapas da construção no próprio texto do caso. Para outras modalidades de exposição ou publicação, no entanto, o praticante poderá se apropriar do texto final da construção do caso de modo ainda mais compilado, conforme seus interesses de demonstração. Escritura do pesquisador O pesquisador produziu um novo texto após a última etapa da Construção do Caso, utilizando os mesmos instrumentos metodológicos empregados pelo praticante. 5ª Escritura: o texto final da construção do caso produzido pelo praticante é articulado com o tema da pesquisa de doutorado e com as contribuições recolhidas da última etapa da construção realizada entre psicanalistas. Instrumentos Metodológicos: Quadro Registro/Intervenções/História Roteiro de Apresentação de Caso Transcrições da construção do Caso Texto final da Construção do Caso A partir do texto da construção do caso, finalizado pelo praticante colaborador da pesquisa, e das contribuições recolhidas na última etapa da Construção do Caso Clínico, o pesquisador produziu uma escritura compilada do caso, tomando-o como apoio para a formalização de um saber teórico-clínico sobre a transmissão da política analítica do sintoma no campo da saúde mental. O texto finalizado pelo praticante produziu essa nova escritura, contendo as considerações extraídas da leitura dos analistas em torno do ato demonstrado no après-coup da construção coletiva, particularmente, com as passagens e escansões que atestam as modificações do sintoma ao longo do tratamento. Essa escritura clínica da 132 construção testemunha um modo de transmissão da operação analítica do sintoma extraído das escrituras anteriores da construção coletiva do caso. 3.2. As escrituras clínicas da construção do caso 3.2.1. A escritura clínica do praticante O Caso Dario ∗ A construção do caso foi empregada por um profissional de formação analítica diante das dificuldades relacionadas à condução do tratamento de um paciente, que aqui será chamado de Dario, no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). Dario tem 45 anos e é morador de uma comunidade cercada por uma das favelas mais violentas da cidade do Rio de Janeiro. Iniciou tratamento no CAPS em novembro de 2010, a partir de três visitas domiciliares realizadas por esse profissional, com a equipe de referência territorial da Estratégia de Saúde da Família (ESF), que identificou a necessidade de acompanhamento do CAPS. Nessa ocasião, Dario completava ‘trinta anos sem sair de casa’, conforme o relato da mãe do paciente com quem a equipe da ESF conseguiu obter informações, já que Dario recusava-se a receber qualquer visita. O paciente vivia somente com a mãe idosa em um apartamento pequeno e bastante simples, porém cuidado e organizado. Assim, a mãe revelou o histórico familiar de Dario: a família de cinco filhos morava em outra casa no mesmo bairro e, após falecimento do pai, no ano de 1993, Dario passou a viver somente com a mãe. Segundo a mãe, após uma abordagem policial, vivenciada aos 15 anos, Dario não conseguiu mais sair de casa e passou a se relacionar com dificuldades também com os irmãos e familiares. Antes da equipe do CAPS agendar a primeira visita domiciliar, obteve-se a informação pela equipe da ESF de que a médica generalista da Clínica da Família, que tem formação em psiquiatria, havia indicado para esse caso o diagnóstico de ‘esquizofrenia’, embora a mesma ainda não o tivesse atendido, tendo apenas escutado o relato da mãe. De saída, a proposta levantada pelo praticante para a equipe da ESF foi a de que os profissionais não ‘se prendessem a um diagnóstico’ e que tentassem uma aproximação do paciente sem um ‘saber previamente estabelecido’ sobre o seu diagnóstico. Com essa recomendação, a visita a casa ∗ Dario, o nome fictício dado ao paciente em questão é uma homenagem à memória de Carlo Viganò, proponente da metodologia da Construção do Caso Clínico empregada nesta pesquisa em psicanálise. Dario é um nome próprio comum na língua italiana, mas ‘da Rio’ significa também ‘do Rio’. Enfim, uma homofonia que se traduz em homenagem por meio da construção de um caso DaRio, da cidade do Rio. 133 desse paciente foi realizada pelo praticante na companhia de duas agentes comunitárias da equipe da Clínica da Família. Chegando à residência de Dario, a equipe da ESF e o profissional do CAPS foram recebidos, na sala de estar, pela mãe do paciente, que informou que o filho tinha aceitado a visita da equipe. A mãe foi até o quarto ao lado e retornou dizendo que Dario ‘não queria sair’ para receber visitas. Mas, em seguida, entregou uma carta escrita por ele naquele mesmo dia e endereçada à equipe presente na visita domiciliar. Apesar de sua recusa em ter um contato direto com os profissionais que ali estavam, Dario tomou a iniciativa de fazê-lo pela carta. De imediato, o praticante acusou o recebimento da carta e propôs lê-la em voz alta para compartilhar a leitura de seu conteúdo, tanto com os demais profissionais presentes, quanto com o próprio paciente que se encontrava no cômodo ao lado. Nesse momento, o praticante supôs que Dario também poderia escutar o que dizia pela primeira vez com o seu escrito. Ao escutar a leitura da carta, a equipe da ESF pareceu impactada com a clareza do seu conteúdo, mas ao mesmo tempo, permaneceu sem saber como abordar esse paciente. O praticante solicitou, então, que a mãe o convidasse, mais uma vez, para vir até a sala de estar, mas Dario se recusou novamente a sair. Então, o profissional propôs à mãe que solicitasse a Dario que o recebesse em seu quarto, proposta por ele prontamente aceita. Ao entrar em seu quarto, o praticante o cumprimentou com um aperto de mãos, correspondido ainda com certa inibição. Dario mantinha uma aparência bem cuidada e um discurso organizado e coerente. Apontou para a poltrona ao lado de sua cama e convidou o profissional para se sentar ao seu lado, mostrando boa receptividade, ainda que permanecesse a maior parte do tempo sem lhe dirigir o olhar. Dario fez um relato sobre diversos temas que já adiantara na carta. Falou de seu isolamento, demarcando suas expectativas em relação ao tratamento: ‘comecei a ficar isolado com treze anos. Foi antes do episódio da polícia. Nunca veio nenhum profissional aqui. Penso em ter amigos, arrumar uma namorada, voltar a estudar’. Falam, ainda, sobre o tratamento que poderia realizar no CAPS e sobre a disponibilidade do profissional de retornar a sua casa diante de sua dificuldade de ‘sair’. Na visita domiciliar seguinte, situou nesse relato um interesse específico: ‘Queria me relacionar melhor com minha família.’; associando essa fala às lembranças do ‘bom relacionamento’ que mantinha com seu pai, antes do falecimento dele, e com sua mãe, e ao ‘medo da violência e da internação psiquiátrica’ que tinham impedido que o filho ‘saísse de casa’, até mesmo para buscar ajuda médica. Após três atendimentos domiciliares, realizados no quarto do paciente, Dario aceitou comparecer no CAPS na semana seguinte, acompanhado de sua mãe. Sua quarta entrevista 134 foi, então, realizada no CAPS. Revelou não ter sentido muita dificuldade de sair de casa para essa consulta e se propôs a acompanhar a mãe, em seguida, ao supermercado. Diante do pedido de uso ‘dos remédios para o seu problema’, registrado na sua carta, o paciente foi também atendido pela psiquiatra nessa primeira ida ao CAPS. Na última sessão de 2010, antes das festividades de Natal e Ano Novo, Dario agradeceu ao analista por tê-lo ajudado a sair de casa: ‘foi graças a você’, pedindo-lhe um abraço. Nesse momento, a mãe de Dario também se aproxima para agradecer ao analista a recuperação de seu filho e, então, o praticante interveio, dizendo-lhe que ‘antes de qualquer coisa, a saída de Dario se devia a ele próprio, ao seu desejo de sair’. A partir daí, o praticante começou a observar o surgimento de uma transferência fortemente ‘idealizada’ desse sujeito em relação ao analista. Com isso, aposta na possibilidade de ‘pluralizar’ a transferência como estratégia para envolver outros profissionais do CAPS no acompanhamento do caso. O paciente, então, começou a ser atendido pela assistente social do serviço, que o ajudou com uma nova demanda: “Assim que tirar meus documentos, vou começar a sair sozinho. Quero voltar a estudar”. Desde o primeiro atendimento realizado no CAPS, Dario foi informado das diversas atividades que são oferecidas pelo serviço, mas preferiu não participar das oficinas e grupos. O paciente realizava apenas tratamento analítico e psiquiátrico no CAPS, até ter aceitado os convites da equipe para participar das atividades oferecidas ‘fora’ do serviço. Dario acompanhou, então, o bloco de carnaval “Loucura Suburbana”, com outros usuários e técnicos do CAPS e, dessa vez, esteve desacompanhado de sua mãe. Olhava atentamente todos os detalhes e cores do evento com certo ar de contemplação e de satisfação. Voltou para casa com transporte público na companhia de um outro paciente e, quando retornou ao CAPS, revelou: “adorei o carnaval!”. Participou, ainda, da comemoração do Dia Nacional da Luta Antimanicomial, realizada na Praça da Cinelândia. E, no mês seguinte, da festa junina do CAPS. A partir dos relatos e demandas que começaram a surgir nos atendimentos analíticos realizados no CAPS, Dario passou a procurar a assistente social com maior frequência, solicitando-lhe suporte para a retirada de seus documentos civis, pois tinha apenas a ‘certidão de nascimento’. O paciente e sua mãe passam, então, a serem orientados a retirar os demais documentos como cadastro de pessoa física (CPF), certificado de reservista e título de eleitor. Em seguida, Dario começou a afirmar o seu desejo de retomar os estudos. Em junho de 2011, o paciente foi, então, encaminhado a uma escola, que oferece um projeto de Educação para Jovens e Adultos, e voltou a cursar o ensino fundamental. A mãe de Dario, por sua vez, foi 135 orientada pela assistente social a participar dos encontros do Grupo de Família, o qual passou a frequentar assiduamente, sem mais acompanhar o filho nas consultas. Para que a Construção do Caso Dario? Aproximadamente, com seis meses de tratamento no CAPS, o praticante observou que, entre os casos complexos discutidos na reunião de equipe do serviço, o caso Dario ainda não havia perpassado essa discussão. Ao praticante, eram feitas questões quanto aos ‘efeitos terapêuticos rápidos’, obtidos na condução do tratamento do paciente, quanto à dúvida diagnóstica e ao manejo da transferência com o analista e com a equipe do CAPS. E foram esses os pontos pouco esclarecidos em relação ao caso, levados para construção na supervisão analítica. Apesar da aposta na ‘pluralização da transferência’ ter se desdobrado nos atendimentos com a assistente social e com a psiquiatra, o praticante notava que o restante da equipe se demonstrava ‘pouco curiosa’ em relação ao caso. Sua suposição era a de que os próprios efeitos terapêuticos dos atendimentos individuais poderiam ter causado na equipe certa ‘despreocupação’ em relação ao tratamento de Dario no CAPS. Nas supervisões analíticas, a dúvida diagnóstica se apresentou de imediato. A princípio, o praticante e a psiquiatra acreditavam tratar-se de um caso grave de neurose obsessiva, pela ausência de fenômenos elementares, como delírios e alucinações, pela forma ‘coerente e organizada’ de Dario se expressar, pelos re-arranjos realizados rapidamente pelo paciente no laço social e pela resposta satisfatória ao uso de psicotrópicos antidepressivos. A informação dos ‘trinta anos sem sair de casa’ representava, porém, um impasse quanto a essa hipótese diagnóstica e, ao mesmo tempo, o que causava o trabalho investigativo do praticante nas supervisões analíticas. Em relação ao desencadeamento dos sintomas, Dario revelava, já nas entrevistas iniciais, a recordação de um episódio vivenciado quando tinha 13 anos e foi abordado por policiais quando estava com os amigos. Contrariamente à sua mãe, que localiza esse episódio como o ‘desencadeador de sua doença’, Dario afirmava que tal agressão não teria provocado seu isolamento. Essa divergência de Dario, em relação à opinião de sua mãe sobre a origem do que nomeia como ‘sintomas de isolamento’, aponta tanto para uma posição discursiva já descolada da fala de sua mãe, permitindo-lhe enunciar seu sofrimento ao seu modo próprio, como para a ausência de um evento traumático causal: “não teve um motivo específico”, afirmou o paciente. Outros elementos etiológicos que indicavam o desencadeamento dos sintomas começaram a ser construídos na supervisão analítica, a ponto de recolher, nos relatos do 136 paciente, a manifestação de sintomas alucinatórios, como uma “sensação de que a mente era muito grande e depois ficava muito pequena”, experimentada aos 8 anos de idade. Ainda sobre sua infância, recordava do incômodo sentido diante do “barulhinho do pingo da chuva: quando pingava sem parar, ficava muito mal. Rezei, aí parou o barulho”. Outra passagem significativa para a investigação diagnóstica está relacionada à reação que Dario teve na adolescência, quando traficantes entraram na sua casa e encostaram uma metralhadora em sua cabeça: “não fiquei com medo de morrer, mas fiquei com medo de acenderem a luz, porque não gosto de que as pessoas me olhem”. Entre esses elementos etiológicos, é importante situar um modo de defesa contra os ‘sintomas de contaminação e de isolamento’ que o paciente refere ter criado ao longo dos últimos trinta anos: a criação de “um mundo mágico”, “um mundo perfeito, um paraíso”, no qual poderia fazer tudo, já que “levava as coisas do mundo real para a minha fantasia”. Dario descreve seu “mundo imaginário” como sendo da ordem de uma ‘ficção’ e o justifica como sendo, naquela ocasião, o modo que encontrava para acessar outras pessoas sem sair de casa, ou seja, para acessar o Outro de modo mais protegido: “era a forma que tinha de me relacionar. Hoje eu posso me relacionar diretamente. Me sentia muito acuado. As pessoas me criticavam muito quando eu fiquei doente. Elas me feriam. Ficava pior ainda, aí tinha umas depressões. Isso tem diminuído.”. Assim, o paciente revela que quando começou a isolar-se, criou “um mundo novo”, no qual se relacionava com todos, inclusive com as mulheres que via passar pela janela, e no qual poderia “reproduzir a sua família e ter uns cinco filhos”. Desse modo, Dario avalia que poderia “trazer as coisas do mundo externo para o meu mundo”, como um arranjo singular que, ao seu modo, traduz: “o real eu levo para o mundo imaginário”. Diante das associações do paciente, recolhidas mais precisamente na supervisão analítica, a hipótese diagnóstica de psicose começou a ser considerada pelo praticante. Nessa perspectiva, os efeitos terapêuticos produzidos pelas intervenções clínicas passam a ser investigados, em especial, com a retirada de documentos e do retorno de Dario aos estudos escolares. Supõe-se que o retorno à escola, possivelmente, represente uma solução subjetiva construída por Dario para sustentar o seu ‘desejo de sair’ do isolamento e um lugar próprio no laço social. Ainda no início do tratamento, o paciente conseguiu ‘retirar seus documentos e começou a sair sozinho’, conforme literalmente planejara. Com efeito, Dario criou condições para transitar do ‘mundo imaginário’ que criara para o ‘mundo real’, no qual – desligado da mãe’ – passou a conseguir “ter uma estratégia de comunicação para poder pôr para fora”, o que em suas palavras “antes acontecia só com a mãe e, agora, tem ajudado nos 137 relacionamentos, na escola”. O retorno aos estudos escolares foi, então, mais um dos aspectos levantados na supervisão analítica, realizada como primeira etapa para construção desse caso. Nesse momento, o praticante pôde situar a importância do movimento sustentado por Dario de ‘voltar a estudar’, como modo de reconstituir uma história defasada, frente ao que foi perdido nos últimos trinta anos e que, portanto, é passível de ser esquecido e reconstruído. Essa seria a possibilidade de Dario de construir uma nova versão para a sua vida e de ressignificar o ‘tempo perdido’, ainda que construindo uma versão ‘mais leve’, coerente e organizada, para o sofrimento que o acometeu por tantos anos. Nesse aspecto, é situado o papel da equipe do CAPS e, mais especificamente, a função do analista como a de ouvir, recolher, registrar e acompanhar cada etapa dessa reconstrução que permitiu a Dario “ver as coisas pela primeira vez e ficar encantado com o que via”. Ainda sobre o retorno aos estudos escolares, destaca-se um dado clínico interessante: a invenção do personagem Tubarão. Dario cria uma personagem para responder às perguntas de seus colegas de escola sobre sua vida nos últimos anos: onde trabalhou, se é casado, entre outras. Inventou essa personagem baseado na vida de um amigo de seu irmão, que “é tudo o que eu queria ser: um pai de família, um bom amigo”, para não ter que dizer aos colegas que ficou trinta anos sem sair de casa. Esse parece ter sido um arranjo produzido pelo paciente para se preservar do olhar invasivo do Outro: “acho que é porque eu tenho medo das pessoas me discriminarem se souberem quem eu sou”. Um arranjo singular desse sujeito que, sem a mediação da fantasia, se utiliza de um personagem como semblante para uma mediação possível entre a reclusão, que o faz escapar do olhar do Outro que o contamina, e o Tubarão, que o permite ser ‘visto’ como um ‘bom homem’, admirado pelo que faz. Com essas elaborações, o praticante retoma seu interesse de ampliar a investigação e a discussão do caso junto às equipes do CAPS e da ESF, mantendo a aposta na pluralização da transferência desse sujeito com outros profissionais e serviços que o acompanham. Para isso, o praticante escolheu empregar a metodologia da Construção do Caso Clínico como instrumento que permite provocar uma elaboração coletiva da equipe em torno do caso e uma verificação sobre os impasses e efeitos observados nessa condução clínica. A hipótese diagnóstica de psicose fortaleceu, portanto, o investimento nessa aposta de compartilhamento da leitura do caso e de avaliação da equipe em relação ao tratamento de Dario no CAPS. Um impasse diagnóstico introduz a pluralização da transferência A construção do caso Dario, realizado com a equipe do CAPS, permitiu recolher as falas da equipe sobre o paciente e, entre elas, os efeitos da estratégia da ‘pluralização da 138 transferência’, como uma aposta lançada pelo praticante ao trabalho de equipe. A assistente social afirmou ter ficado ‘muito emocionada’ ao vê-lo circular nas proximidades do CAPS, sozinho, segurando pacotes nas mãos, que indicavam que havia feito compras no comércio do bairro. Uma das técnicas que coordena o Grupo de Familiares contribuiu com sua leitura do caso, revelando a implicação por parte de sua mãe no tratamento de Dario, que participou assiduamente dos encontros desse grupo. A técnica, então, apresentou uma fala da mãe do paciente, dita de forma recorrente, sobre sua preocupação com o ‘comportamento’ do filho, que ultimamente se mostrava ‘muito impaciente e estressado’ com ela, afirmando que ‘sempre cuidou dele e que, por isso, se sentia injustiçada’. Na leitura da coordenadora do grupo, esses problemas parecem ter se intensificado, na medida em que vem se promovendo uma separação entre mãe e filho cada vez mais; suposição fundamentada no relato da mãe do paciente quando afirmou que “antes meu filho não me dava trabalho, pois estava sempre dentro de casa.”. Uma das copeiras falou do quanto aprendeu ‘coisas novas’ com aquela discussão e que também gostaria de conhecer o paciente. Essa etapa da construção do caso com a equipe do CAPS foi realizada na véspera do início das férias do praticante, período em que havia orientado o paciente a procurar qualquer técnico do serviço, se assim o desejasse. O aspecto que mais suscitou questionamentos para a equipe, porém, foi o da dúvida diagnóstica em relação ao caso. Alguns profissionais, entre eles a psiquiatra e os psicólogos, assinalaram a ausência de fenômenos da psicose, como delírios e alucinações, como determinantes para indicar um diagnóstico de neurose obsessiva. Os sintomas de isolamento, como o ‘medo de contaminação’, cercado por rituais de limpeza das mãos e o ‘medo de sair na rua’, foram elementos extraídos do caso que apontariam para um diagnóstico de Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), mais específico dos manuais diagnósticos da psiquiatria. Na leitura diagnóstica da equipe, o discurso organizado e bem elaborado do paciente também corroborava a hipótese diagnóstica de TOC indicada pela psiquiatra. Diante desses argumentos, o praticante introduziu os relatos sobre o ‘mundo mágico’ criado por Dario, suscitando para parte da equipe o questionamento se esta seria uma construção da ordem de uma fantasia ou de um delírio. Introduziu, ainda, a suposição de que o ‘medo de contaminação, de sair na rua’ não se associava diretamente a uma ‘ritualização culpabilizada’ de limpeza, conforme os fenômenos característicos da neurose ou do TOC, mas com um ‘medo de ser olhado’ pelo Outro. No entanto, a rápida estabilização do quadro clínico e o fato do paciente ter saído logo de casa representava para a maior parte da equipe mais um elemento diagnóstico indicativo para TOC. Ponto este que, ao seu avesso, indicaria para o praticante a suposição diagnóstica de um sujeito psicótico que produz, rapidamente, uma 139 solução subjetiva com o retorno à escola, como um lugar novo e estratégico para sua inserção no laço social. O supervisor da equipe apontou para essa avaliação do caso como efeito de uma intervenção de ‘diluição’ da transferência entre outros profissionais que atualmente o acompanhavam. Além disso, o supervisor do CAPS ressaltou a importância de ‘ter levado a sério’ as palavras de Dario, quando descrevia seus sintomas na carta, finalizando-a com o pedido “Eu queria tentar!”, como uma abertura para convidá-lo a ‘sair de casa’ para ir ao CAPS e iniciar seu tratamento. Outro ponto também destacado pelo supervisor foi a de que a hipótese diagnóstica deve ser construída a partir da relação transferencial, ainda que seja necessário, por enquanto, manter em suspenso o diagnóstico. A experiência da construção do caso Dario demonstra que, nesse caso, a hipótese diagnóstica de psicose permitiu ao praticante se recolocar na condução do tratamento e diante do trabalho em equipe. O principal efeito da construção foi, portanto, o de produzir uma mudança na posição da equipe diante do caso, pluralizando a transferência do paciente com outros profissionais do serviço. Verificado isto, avaliou-se a pertinência de manter, em suspenso, o saber diagnóstico em detrimento de um confronto com a prevalência do saber psiquiátrico sobre o ‘sintoma de isolamento’. Nesse momento, não seria interessante fomentar um embate teórico e diagnóstico sobre o caso para que se preservasse o debate clínico. A transmissão dos princípios analíticos recolhidos nesse debate não se deu com base no diagnóstico, mas, sobretudo, a partir da ‘surpresa’ da equipe em relação às rápidas soluções construídas pelo paciente. Manter o diagnóstico em suspenso foi, então, uma nova estratégia do praticante com a equipe para sustentar a investigação no curso do tratamento e para manter ‘aberto’ o saber que se constrói, a partir daí, coletivamente sobre o caso. Outros efeitos da Construção do Caso Dario Após a construção com a equipe do CAPS, foi realizada mais uma etapa da construção do caso em um dos encontros de matriciamento com a equipe da ESF, que vinha acompanhando o paciente e sua mãe na Clínica da Família. De saída, uma das agentes comunitárias de saúde (ACS) afirmou que, antes de ser tratar no CAPS, Dario “não chegava nem na janela. A gente passava por lá e só passou a conhecê-lo quando ele passou a ir à clínica”, afirmando sua ‘curiosidade em saber mais’ sobre o paciente. E acrescentou: “a minha cunhada era vizinha dele, então, a gente sabia que não era um cárcere privado. Dizem que quando ele era adolescente, ele levou uma surra dos policiais e nesse momento ele se trancou no quarto e não saiu mais”. A partir desse relato, o praticante retomou a discussão 140 sobre o primeiro contato com o paciente e sobre a surpresa da equipe diante do que Dario escrevera na carta. Observaram que, na carta, o paciente já apontava para o ‘desconhecimento’ do que lhe fez adoecer, o que pôde ser mais explorado somente quando ele iniciou o tratamento no CAPS. O praticante apresentou, então, alguns trechos da fala de Dario, pontuando seu modo próprio de construir um sentido para o que estava acontecendo com ele, diferente do motivo da doença dito por sua mãe e vizinhos. Esse aspecto foi retomado com a equipe da ESF pela importância de pensar que, sobre seu sofrimento, é ‘o paciente que sabe’ e que esse é o saber que deve ser considerado para direcionar um tratamento. Sobre o isolamento, assinalou que, para Dario, ‘não há um motivo específico’, e que é necessário estarem atentos para os novos elementos que o paciente trazia ao longo dos atendimentos, tomando suas palavras para orientar essa discussão sobre o caso. Ao apontar os avanços obtidos no tratamento no CAPS, quando Dario encontrou condições de sustentar seu ‘desejo de sair de casa’, de ir à praia, à escola, ao supermercado, às festas no CAPS, aos aniversários e casamentos de familiares que, até então, desconhecia, abriu-se uma discussão sobre a importância dos novos vínculos criados pelo paciente, não reduzido mais à companhia exclusiva de sua mãe. E esse foi um novo aspecto da leitura do caso, que permitiu à equipe da ESF a trazer notícias do acompanhamento das atuais crises hipertensivas da mãe de Dario na Clínica da Família. A outra agente comunitária que acompanhava, mais regularmente, as consultas da mãe de Dario, considerou que ‘quando o filho começou a sair, percebi que a mãe perdeu alguma coisa, que ela não ficou muito satisfeita dele sair. Ela, de alguma forma, se ressentiu pelo fato do filho querer agir por ele mesmo’. Com essa leitura do caso, a agente se recordou do seguinte episódio: “me lembro que antes dele sair, a gente encontrava com a mãe dele na rua, sempre correndo e dizendo: ‘eu tenho que ir para a cidade resolver um problema para o meu filho’. Aí quando ele saiu, a mãe ficou quase doida! Ela me encontrou afobada e disse: Ele saiu, mas ele não sabe sair assim! Aí eu disse para ela: Calma, ele saiu, mas vai voltar!”. Sobre esse aspecto, o praticante acrescentou que a mãe de Dario tem frequentado o Grupo de Familiares do CAPS e que a técnica, que coordena o grupo, fez uma observação semelhante quanto ao adoecimento da mãe do paciente. E que Dario, por sua vez, também já associara as crises hipertensivas de sua mãe com o momento em que ficava longe dele. Com efeito, a agente comunitária concluiu que as queixas constantes que a mãe do paciente vinha apresentando, nas consultas médicas na Clínica da Família, seriam da ordem do que “vocês chamam de somatização, porque é um sofrimento que ela não sabe dizer o que é, então ela 141 começa a sentir esses sintomas (...), porque realmente ela não está doente, ela está ressentida depois de 30 anos cuidando do filho”. Nesse momento, a equipe da ESF avaliou a possibilidade de participação da mãe de Dario nos ‘grupos de convivência’ da Clínica da Família, ampliando a oferta de cuidados com ela para além das consultas médicas: “ela precisa de um pouco de convivência!”, disse a agente comunitária mais envolvida no acompanhamento da mãe do paciente. Em seguida, levantou a seguinte proposta: “é o que eu vou sugerir, porque eu acho que ela mesma já não tem essa dinâmica depois de 30 anos ali dentro de casa fazendo a mesma coisa, acho que ela mesma já se desligou dessa idéia de conviver com alguém que não seja o filho.”. E, assim, o projeto terapêutico de Dario foi sendo reformulado, incluindo, dessa vez, o acompanhamento da mãe do paciente pela assistência da equipe da Estratégia da Saúde da Família. A recomendação da suspensão de um saber diagnóstico sobre o caso, lançada pelo praticante ainda nas discussões iniciais com a equipe da ESF, foi retomada, dessa vez, pela orientação do ‘esvaziamento de um saber prévio’ em relação ao quadro clínico do paciente. A transmissão desse princípio clínico se demonstrou, mais precisamente, pela via aberta para a produção de novos sentidos associados ao adoecimento da mãe de Dario e pela consequente aposta da equipe de ampliação das ofertas de cuidados com a mesma na Clínica da Família. Verificação e avaliação do trabalho em equipe A partir da construção do caso, foram avaliadas as seguintes reformulações para a condução do tratamento junto às equipes do CAPS e da ESF, apoiadas na aposta da pluralização da transferência: • A assistente social mantém o acompanhamento psicossocial do caso, em especial, das questões financeiras que envolvem o cotidiano familiar e escolar do paciente; • A psiquiatra mantém sua referência para o caso, observando a ‘resposta’ do paciente no período atual de suspensão do uso de psicofármaco; • A mãe do paciente continua sendo acompanhada pelo Grupo de Familiares do CAPS, ampliando as ofertas de acompanhamento clínico com as novas atividades propostas pela equipe da Clínica da Família de sua referência. 142 3.2.2. A escritura clínica do pesquisador Do isolamento ao encantamento de ver um mundo novo Trinta anos sem sair de casa. Assim se inicia o acompanhamento de um paciente no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), do bairro onde sempre viveu. Dario tem 45 anos e se isolou em casa ainda no início de sua adolescência. Viveu somente com a mãe idosa, que solicitava tratamento para o filho, que ‘não conseguia sair’. Dario tem quatro irmãos e passou a viver com a mãe, após o falecimento do pai. Seu pai construiu, anos antes de morrer, um quarto só para o filho, diante de suas dificuldades de relacionamento com a família e com os vizinhos. Os pais não procuraram antes um serviço de saúde, pois temiam que o filho pudesse ser levado ao manicômio. Após uma abordagem policial, vivenciada aos 13 anos de idade, a mãe afirmou que Dario não conseguia mais sair de casa. Dario discordou de sua mãe em relação à causa de seu isolamento que, para ele, ‘não teve um motivo especifico’. Sobre esse episódio, relatou não ter sentido ‘medo de morrer, mas de acenderem a luz, porque não gostava que as pessoas o olhassem’. Nos últimos trinta anos, abandonou os estudos e passou a ‘evitar qualquer tipo de contato’, pois se tocasse em alguém, teria que se lavar várias vezes para se sentir ‘limpo’. Não conseguia ‘falar com ninguém porque ninguém o entendia’, ao contrário, ‘achava que o Outro poderia o destruir e o fazer sofrer’ com julgamentos e críticas, associados à sua escolha de manter-se isolado. Permaneceu em seu quarto ‘para se proteger’ de algo que não entende bem, era ‘como se a pessoa entrasse dentro dele’ e pudesse ter acesso aos seus pensamentos. Que solução teria construído Dario para isto? Da sua janela, avistava os amigos de infância e as garotas da comunidade por quem se apaixonava e ‘imaginava’ que poderia se casar e ter filhos. Essa imaginação foi aprimorada, nos últimos vinte e cinco anos, pela construção de um ‘mundo mágico, imaginário’, em que Dario podia ‘fazer tudo’, protegido do olhar invasivo do Outro. Esse foi o ‘paraíso, o mundo perfeito’ por ele criado para protagonizar, nessa ‘ficção’, um modo de se relacionar com as pessoas que via pela janela, sem por elas ser visto. Um modo de gozo, de satisfação pulsional, que permitiu a esse sujeito ‘trazer as coisas do mundo externo para o seu próprio mundo’ com a construção de um ‘mundo novo’. Dario parecia estar pronto para abrir mão dessa organização subjetiva de gozo, quando aceitou sair de casa para se tratar no CAPS. 143 Chega ao serviço de atenção psicossocial após três atendimentos domiciliares, realizados por um profissional de formação psicanalítica. A primeira visita domiciliar foi agendada por esse profissional do CAPS, com a equipe da Clínica de Família, que identificou o caso. Sem conseguir receber ‘visitas’, Dario endereçou uma carta à equipe na qual registrou alguns motivos e sensações de estar isolado por trinta anos. Entre eles, destaca a hipótese de ter sofrido de ‘síndrome do pânico, de uma depressão monstro, de acne, de fobias e pensamentos obsessivos compulsivos’. Concluiu a carta com a informação de que ‘viu na TV que teriam remédios para esses problemas’ e com um pedido claro dirigido à equipe: ‘Eu queria tentar!’. O profissional de orientação lacaniana acusou o recebimento da carta, lendo-a em voz alta para que os demais profissionais presentes e o próprio paciente pudessem ouvir o que dizia pela primeira vez a uma equipe clínica. Com efeito, Dario aceitou a proposta de receber o praticante em seu quarto – e o recebeu com um aperto de mãos, mas ainda sem lhe dirigir o olhar. Iniciou o tratamento, no CAPS, com o praticante e a psiquiatra, três semanas após os primeiros ‘contatos’ dos atendimentos domiciliares. A psiquiatra introduziu o tratamento medicamentoso com antidepressivo para o monitoramento dos ‘sintomas de isolamento e de contaminação’ diagnosticados, por ela, como Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC). No final do primeiro atendimento no CAPS, Dario se despediu do praticante e da psiquiatra e acompanhou, logo em seguida, sua mãe ao supermercado. Passou a frequentar semanalmente o serviço para dar continuidade aos tratamentos analítico e psiquiátrico. Poucos meses depois, aceitou participar do bloco de carnaval e de festas organizadas ‘fora’ do CAPS. Retornou aos atendimentos, dessa vez, desacompanhado de sua mãe. No segundo atendimento realizado no CAPS, Dario pediu um abraço ao analista e lhe agradeceu por tê-lo ajudado a sair de casa: ‘foi graças a você’. Nesse momento, o praticante interveio, associando a saída de Dario ‘ao seu desejo de sair’. Mas observou, com essa fala, o surgimento de uma transferência fortemente ‘idealizada’ e, com isso, o praticante apostou na possibilidade de ‘pluralizar’ a transferência como estratégia para envolver outros profissionais do CAPS na condução do caso. Dario começou a ser atendido, então, pela assistente social do serviço, que o ajudou com uma nova demanda revelada nas sessões de análise: “assim que tirar meus documentos, vou começar a sair sozinho. Quero voltar a estudar”. Dito e feito: Dario retirou seus documentos civis, começou a circular sozinho pelo bairro e se matriculou na turma de jovens e adultos de uma escola pública. No final do ano, recebeu uma medalha de ‘melhor aluno’ da turma. 144 Que nova solução teria construído esse sujeito para transitar do ‘mundo imaginário’ que criara para o ‘mundo real’ do qual se isolou por tanto tempo? Como situar a rápida transformação do seu modo de gozo ‘isolado’ do olhar do Outro para a construção de uma nova solução subjetiva, que permitiu a Dario “ver as coisas pela primeira vez e ficar encantado com o que vê”? De saída, evidenciou-se o rápido efeito terapêutico produzido pela transferência analítica. É possível supor que esse modo anterior de gozo ‘não interpretável’ pôde ser recolocado discursivamente em uma cadeia associativa sob o efeito da transferência analítica instaurada, ainda, nos atendimentos domiciliares. O encontro com um analista teria produzido uma abertura para que Dario pudesse subjetivar seus sintomas e torná-los seu, inserindo os restos, fragmentos de lembranças que escapam ao sentido, em uma cadeia simbólica que o permitiu reconstruir e ressignificar o ‘tempo perdido’. Vê-se aí o sintoma se modificando sob transferência, como uma construção singular e dinâmica que se dirige ao Outro, dessa vez, menos invasor e mais acolhedor a sua demanda de ‘querer tentar’ abrir mão de um modo de gozo que o mantinha isolado do mundo. A estratégia da pluralização da transferência se apresenta, então, com uma aposta do praticante de incluir a equipe clínica do CAPS em cada uma dessas etapas de reconstrução do paciente, dirigindo-as ao Outro institucional e não somente à ‘imagem’ idealizada do analista. Com efeito, a função do analista de ouvir, recolher, registrar e acompanhar cada etapa dessa reconstrução se pluraliza como uma estratégia clínica que passou a orientar o trabalho da equipe. Há, porém, mais uma verificação que merece ser demonstrada nesse caso: que efeitos de transmissão da psicanálise se produzem para uma equipe clínica quando deixamos em aberto o sentido do sintoma? A construção do caso Dario testemunha o desafio da transmissão da operação analítica com o sintoma entre os diversos saberes e práticas que compõem o trabalho coletivo no campo da saúde mental. Esse caso demonstra que o mais significativo para o tratamento do sintoma não se remete ao seu diagnóstico nosográfico-classificatório, mas ao modo como este se modifica sob transferência. Se por um lado o saber dos manuais psiquiátricos encobre com o sentido normativo o ‘sintoma de isolamento e de contaminação’ de Dario sob o diagnóstico de TOC, por outro, a resposta rápida e, portanto, ‘não programada’, dada pelo próprio paciente ao tratamento psiquiátrico, abre uma via para a transmissão de uma operação lógica com o sintoma que concerne ao real em jogo na experiência clínica. Transmitir o encontro com o real da clínica implica tornar legível no trabalho coletivo a contingência do caso a caso, o modo ‘não programado’ que cada sujeito constrói com o 145 clínico esteja mais estabilizado. Embora essa observação corresponda às responsabilidades clínica e territorial do serviço de atenção psicossocial de manejo à crise e de assistência aos casos mais graves de neurose e psicose, convém interrogar se a sobrecarga de trabalho e, portanto, do número de pacientes em tratamento no CAPS não estaria dificultando a discussão da condução terapêutica de casos mais ‘estabilizados’. De qualquer modo, a escolha de levar para a construção coletiva um caso ‘menos problemático’ na avaliação da equipe, possibilitou recolhermos uma consideração que aponta para a importância de uma leitura compartilhada da equipe sobre os casos atendidos individualmente no CAPS; sendo esta uma prática que se difere dos atendimentos individuais realizados nos ambulatórios de saúde mental. A intervenção produzida pela construção do caso esteve mais diretamente relacionada ao reposicionamento da equipe e à sua localização diante da lógica singular de funcionamento do paciente e ao modo como este iniciou o tratamento no serviço. Com efeito, manteve-se aberta a possibilidade de outros profissionais do CAPS testemunharem os efeitos clínicos que a própria instituição produz ao acompanhar as novas estratégias de inserção no laço social, sustentadas pelo paciente a partir de seu tratamento no CAPS. Vimos, aí, mais um alcance da construção do caso, tomado como um momento de avaliação que inclui um modo de demonstração do que vem a ser um ato clínico, cujos efeitos só podem ser colhidos a posteriori, conforme testemunhado no caso Dario. Esse fundamento, caro ao campo de saber psicanalítico, se aplica ao trabalho coletivo com a prática de construção dos casos que, por sua vez, o inclui como uma orientação essencial para a avaliação da condução de cada caso no trabalho em equipe. Tal consideração nos permitiu acrescentar um alcance, mais específico, desse método de pesquisa clínica, ao fomentar o trabalho investigativo, ancorado no valor metodológico da singularidade do caso clínico e na verificação das transformações do sintoma no curso de um tratamento. Isto implica a transmissão de uma leitura clínica do caso único que se deixe conduzir por uma temporalidade particular de ‘um antes e depois’, no sentido menos cronológico e mais lógico, que evidencie os efeitos das intervenções realizadas sob transferência. Uma vez transmitido esse fundamento da psicanálise, apostamos na pertinência de sua utilização para a leitura dos episódios de crise ou dos quadros clínicos mais complexos, cuja causalidade só poderá ser revelada a posteriori pelo próprio paciente no momento em que constrói uma determinada significação para o que lhe ocorreu. Ainda que não se trate de um episódio de crise, o caso Dario ensina como o ato clínico da leitura de sua própria carta foi capaz de modificar a relação de um sujeito com o seu isolamento radical, levando-o a 147 ressignificar a sua própria escolha. Nesse ponto, entretanto, localizamos um limite instaurado na aplicação metodológica da construção do caso em questão, na medida em que na escritura do praticante os efeitos de transmissão da psicanálise para ‘não analistas’ prevalecem em relação aos registros das intervenções realizadas nas sessões com o paciente. Consideramos que esses registros, ausentes na escritura clínica do caso, nos permitiriam recolher algo da dimensão do ato e da resposta produzida por esse sujeito, indicando, ainda, de que modo e em que momento, este passou a se apropriar da transferência analítica no curso do tratamento. Isto nos leva a observar mais um limite em relação ao modo de aplicação metodológica empregada nessa pesquisa: talvez se tivéssemos mais de um caso clínico sendo trabalhado com a mesma metodologia, seria possível recolhermos mais elementos que apontem para os modos de transformação do sintoma como efeito de um ato analítico empregado sob transferência. Nesse sentido, podemos dizer que o caso Dario demonstrou apenas de modo parcial o alcance do método da Construção do Caso Clínico. As considerações que seguiremos apresentando, portanto, correspondem mais aos efeitos de transmissão da política analítica do sintoma às equipes clínicas dos serviços de saúde mental e aos profissionais cujas práticas não se orientam pelos princípios da psicanálise. Outro aspecto importante de ser abordado se refere ao tema sempre presente do saber psiquiátrico aplicado à prática clínica coletivizada nos serviços substitutivos de saúde mental. O diagnóstico psiquiátrico, centrado no manual de classificação da CID-10, é o que orienta a condução terapêutica das equipes e o que, consequentemente, pode introduzir a lógica de um ideal de cura dos sintomas e de monitoramento dos comportamentos como referência para o acompanhamento clínico. A construção do caso indica, no entanto, o momento em que a equipe se encontra dividida entre uma orientação que toma a posição subjetiva do paciente na investigação diagnóstica e aquela que a exclui para encerrar a significação dos fenômenos psíquicos, com as nomenclaturas das classificações diagnósticas dos transtornos mentais. Evidencia-se, nesse ponto, certo confronto discursivo entre os profissionais que se orientam pelo discurso analítico e, portanto, pela transferência incluída no eixo da investigação diagnóstica, e os que se remetem à terapêutica como eliminação dos sintomas. A construção do caso realizada com a equipe do CAPS aponta para a possibilidade de uma leitura coletiva do caso, desviada do risco de um embate com saber teórico e diagnóstico da psiquiatria atual que, não raro, engessa a continuidade de um debate clínico mais amplo sobre as soluções singulares encontradas por cada paciente. A estratégia da pluralização da transferência introduz, nesse nível de debate, uma abertura para que o saber cristalizado pelos manuais diagnósticos se coloque em suspenso para dar lugar às falas de 148 Dario sobre seu modo de se reposicionar diante das dificuldades de relacionamento familiar e social, às quais respondeu por trinta anos com seus ‘sintomas de isolamento e de contaminação’. Sobre esse aspecto, convém assinalar o modo sensível da psiquiatra do CAPS de acompanhar as respostas do paciente ao uso de psicofármacos desde o momento de sua introdução ao de sua retirada. Sem a aposta na pluralização da transferência, a condução coletiva do caso poderia se diluir em intervenções isoladas e fixadas por um saber préestabelecido, tornando inaudíveis os efeitos terapêuticos recolhidos no trabalho em equipe da construção do caso. Por fim, atestamos o alcance dessa metodologia de pesquisa em psicanálise como um método de avaliação que inclui a transferência no eixo da clínica. A orientação psicanalítica, aplicada à prática da construção do caso, nos conduziu a formular aqui uma axiomática avaliativa capaz de demonstrar os impasses e avanços instaurados na prática coletiva da equipe clínica de um CAPS. E isso nos faz defender a contribuição da Construção do Caso Clínico como um método clínico de intervenção capaz de produzir um cálculo permanente em torno do ‘não mensurável’ da experiência clínica, sem encobri-lo com um valor universal de condutas e procedimentos. Clínica da Família Um alcance inovador constatado nesta pesquisa refere-se à aplicabilidade da prática da construção dos casos nos encontros de matriciamento em saúde mental. Diante do desafio de estabelecer uma rede de cuidados na lógica da clínica, observamos que o método da construção se revelou um operador estratégico para alcançar a condução do caso em rede, entre diferentes equipes que atuam ‘dentro e fora’ das paredes do CAPS. Convém ressaltar que, por um lado, este trabalho parte de um movimento particular do praticante em considerar os vários pontos da rede do paciente, começando pelo compartilhamento da condução do caso com a equipe da Clínica da Família, que identificou o caso e o acompanha desde o primeiro atendimento domiciliar. Por outro lado, a própria função de matriciador da equipe, assumida por esse profissional do CAPS, favorece o compartilhamento do caso em rede. Atesta-se, com isso, a potencialidade desse método de pesquisa ao estimular a construção de uma rede de cuidados desenhada por cada paciente pela implicação de diferentes profissionais envolvidos no tratamento e na leitura clínica do caso. Seguindo uma lógica clínica, a prática de construção dos casos se oferece ao apoio matricial em saúde mental também como uma ação de educação continuada aos profissionais das equipes da Estratégia da Saúde da 149 Família (ESF) não referidos aos princípios da reforma psiquiátrica e, tampouco, aos princípios clínicos da psicanálise. Os efeitos da construção deste trabalho, em rede, com o caso puderam ser recolhidos tanto no âmbito da avaliação do processo terapêutico, quanto pelo viés da transmissão de uma leitura clínica compartilhada sobre o caso. Verificamos, nessa etapa da construção, as contribuições do saber psicanalítico aplicado à prática do matriciamento em saúde mental, quando o matriciador das equipes da ESF introduz, na leitura dos casos, uma operação específica com o saber que se extraí, posteriormente, a cada intervenção e que é passível de se conectar com outros saberes e práticas presentes no campo da saúde pública. Observamos ter sido esse um momento oportuno para a transmissão da especificidade da operação analítica com o sintoma àqueles profissionais que atuam nas Clínicas da Família, onde os procedimentos terapêuticos são, comumente, orientados por uma lógica sanitarista e imediata de intervenções, baseada nas classificações diagnósticas e nas ‘metas’ de produtividade dos protocolos que avaliam a prática clínica generalista desses serviços. Sobre esse aspecto, convém esclarecer que essa tendência imediatista de intervenções e de resultados terapêuticos é fortemente caracterizada pelo modo como a implantação dos serviços de Atenção Primária em Saúde (APS) vem se consolidando na cidade do Rio de Janeiro. A expansão das Clínicas de Família na rede municipal segue uma política de âmbito nacional, que prevê a ampliação da assistência em saúde de base comunitária nos variados municípios e Estados do país. Na cidade do Rio de Janeiro, a proposta de expandir de 2% para 60% a cobertura de saúde da família 105 , no período de 2009 a 2016, foi tomada como prioridade no atual governo municipal, tendo alcançado, no primeiro semestre de 2012, uma cobertura aproximada ao percentual de 35%. No entanto, esse processo de expansão, indiscutivelmente necessário para o acesso da população carioca aos serviços de saúde, trouxe consequências preocupantes para a ‘SUStentação’ 106 da proposta de uma clínica ampliada, que contempla a elaboração de projetos terapêuticos singulares e sua continuidade no trabalho em equipe. O modelo privado da gestão das Clínicas de Família, colocados sob o domínio das Organizações Sociais (OS’s), vem provocando uma explícita ‘privatização’ do sistema 105 Todos os dados estatísticos apresentados foram recolhidos diretamente na Secretaria de Saúde e Defesa Civil da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (SMSDC/RJ). As demais conclusões sobre o assunto partem das observações da própria pesquisadora que, ao longo dos anos de 2010 a 2012, assumiu o cargo de Assessora de Matriciamento da Coordenação de Saúde Mental – SMSDC/RJ. 106 Jogo de palavras que inclui a idéia da sustentação dos princípios da integralidade, universalidade, equidade, participação da comunidade e, principalmente, da descentralização político-administrativa que regem o Sistema Único de Saúde no Brasil. São esses os mesmos princípios que fundamentam as diretrizes da reforma psiquiátrica e dos serviços de atenção psicossocial substitutivos ao manicômio. 150 público de Atenção Primária em Saúde, cujos impactos se refletem na alta rotatividade de profissionais nesses serviços, na contratação de profissionais que não aderem ao trabalho em equipe, por atuarem ainda sob a lógica da assistência hospitalar e ambulatorial e no estabelecimento de ‘metas’ para a avaliação da resolutividade, que deve ser cada vez mais rápida, dos atendimentos realizados. Tais impactos se articulam, claramente, ao modo ‘toque de caixa’ como as equipes e unidades de Saúde da Família são montadas: o alto valor dos salários e dos investimentos públicos geridos ‘mais rapidamente’ pelas OS’s possibilitam que a cada dia se inaugure mais uma Clínica de Família em ritmo de festa e de comemoração “propagandística-eleitoreira”. Enquanto isso, a cobertura de 30% de CAPS na ‘cidade maravilhosa’ permanece a mesma desde 2009. Esse breve e crítico relato nos parece necessário para situar o modo particular como a atual gestão municipal de saúde vem desenvolvendo a proposta nacional de reforma sanitária. O risco sempre presente no campo das políticas públicas de uma ‘sanitarização’ do sofrimento psíquico se intensifica frente à faceta higienista do ‘choque de ordem’, aplicado ao campo da saúde. Esse mote popular do prefeito atinge a prática de cuidados em saúde mental, desde a difusão do ato autoritário da internação compulsória para usuários de drogas à da prescrição de psicofármacos pelos médicos generalistas da Estratégia de Saúde da Família, que, por sua vez, devem tratar de diversas doenças com ‘agilidade’, sem necessariamente ter obtido formação para isso. Para que haja uma ‘expansão’ da lógica da clínica ampliada em saúde mental nos resta, então, apostar na prática do matriciamento em saúde mental, que pode partir dos NASF, CAPS e ambulatórios de saúde mental, dependendo dos recursos da rede de serviços de cada território. Apesar dos impactos apresentados que dificultam a prática coletiva do trabalho em rede com os casos, notamos a importância do apoio matricial em saúde mental, representado por profissionais comprometidos e implicados no desafio do trabalho clínico em rede, da transmissão da lógica do caso a caso e da contenção de certa tendência higienista da prescrição, pouco criteriosa, de antidepressivos e ansiolíticos na APS: o conhecido efeito ‘Rivotril na caixa d’água da comunidade’. O caso Dario nos remete a esse cenário político e, mais precisamente, a essa aposta na prática do matriciamento em saúde mental, assumida por profissionais de formação psicanalítica. Nesse cenário, o método de pesquisa da construção do caso revelou-se uma estratégia de avaliação clínica interessante para o trabalho em rede, demonstrando, ainda, os efeitos rápidos e eficazes da prática analítica aplicada ao campo da saúde mental. Além disso, a construção do caso Dario, realizada com a equipe da Estratégia da Saúde da Família, nos 151 permite extrair elementos importantes que assinalam os efeitos de um modo de transmissão da política analítica do sintoma, em contraponto à política sanitária de eliminação dos sintomas psíquicos. De saída, o princípio psicanalítico do ‘esvaziamento do saber prévio’ sobre o sintoma, indispensável para aplicação metodológica da Construção do Caso Clínico, foi introduzido pelo praticante. Com efeito, testemunhamos, no texto da construção do caso, uma evidente relação entre a transmissão desse princípio clínico e a abertura provocada no relato das agentes comunitárias sobre os ‘sintomas de somatização’ da mãe do paciente, até então tratados apenas como um quadro hipertensivo. A concepção do sintoma, como expressão singular de um sujeito, passou a orientar as novas ofertas de cuidado que compõem o projeto terapêutico do paciente, incluindo aí a percepção clínica do ‘adoecimento da mãe com a melhora do filho’ na leitura coletiva do caso. Concluindo, os alcances e efeitos recolhidos, nessa etapa da construção do caso, atestam as contribuições desse método clínico de investigação e intervenção no trabalho entre diferentes equipes de saúde. Devemos estar advertidos, no entanto, quanto à proposição de que a aplicação dessa metodologia de trabalho seja desenvolvida por profissionais em formação psicanalítica que atuem no campo da saúde mental. Tal proposição permite evitar o risco de uma prática ‘padronizada’ da construção do caso aplicada aos encontros de matriciamento que destitua a dimensão da ‘surpresa’ e da relação com o ‘saber não sabido’, características do campo de saber da psicanálise. Para avançar na proposição de um dispositivo clínico, que favoreça o trabalho coletivo com os casos, retomaremos a idéia apresentada na última etapa da aplicação do método da construção por meio da proposta de constituição do Laboratório de Construção do Caso Clínico, inaugurado por essa pesquisa de doutorado. Laboratório de Construção do Caso Clínico Conforme apresentado anteriormente, o principal alcance da composição desse dispositivo está diretamente relacionado aos efeitos que dele se extraem no âmbito da formação do analista. O Laboratório de Construção do Caso, que nesta pesquisa se aproximou do formato de um Cartel, é uma proposta que privilegia o estudo do caso único como uma contribuição para a formação permanente em psicanálise, que permite extrair da leitura coletiva da construção do caso elementos fecundos para fazer avançar a teoria e clínica psicanalítica no cenário clínico atual. 152 psicanalíticos ao campo das pesquisas clínicas. Assim, ainda que esse dispositivo não se desenvolva em uma instituição psicanalítica, este implicará o comprometimento de analistas e praticantes com sua formação na tarefa de fazer avançar a práxis analítica no cenário clínico atual como um debate que se produz internamente e externamente ao campo da psicanálise. Por fim, cabe ressaltar que a principal sustentação para esses encontros clínicos deve estar apoiada no interesse de seus participantes em relação ao caso e ao método proposto de pesquisa. Essa pesquisa de doutorado demonstra, portanto, de que modo a metodologia da construção do caso pode se oferecer como suporte para a formalização das produções individuais de cada participante, a partir da leitura coletiva de um caso, podendo ser aprimorada e ofertada a uma comunidade analítica ou a um campo clínico mais amplo com a publicação dos resultados obtidos com esse trabalho. 154 CONCLUSÃO O que se transmite da política analítica do sintoma ao campo da saúde mental? Esta pergunta acompanhou o percurso desta pesquisa e encontrou em cada uma de suas etapas diferentes modos de nos aproximarmos de uma resposta conclusiva sobre o tema. O primeiro capítulo se remete diretamente a esse questionamento ao produzir uma discussão conceitual, como ponto de partida para a apresentação do tema da política da psicanálise, definida em sua especificidade em relação ao tratamento do sintoma no cenário clínico atual. Neste capítulo, é apresentada a concepção do sintoma atravessada por variações teóricas que se estabelecem no ensino e na transmissão da psicanálise e que, não sem consequências, modificam sua abordagem na condução clínica. Ainda que marcada por um contínuo teórico definido pela obra freudiana e pelos seminários e escritos de Lacan, nossos esforços se concentraram na investigação da concepção do sintoma na teoria psicanalítica para chegarmos a uma definição conceitual mais precisa sobre o seu estatuto. Foi, então, com a releitura de Lacan sobre o estatuto do sintoma freudiano que encontramos uma direção mais clara para alcançarmos uma definição que fundamenta o tema, cada vez mais relevante, da política do sintoma. Mais além da vertente simbólica do sintoma freudiano, Lacan investiga sua vertente real e nos adverte quanto ao modo como cada sujeito goza do seu inconsciente através da expressão singular do sintoma. Assim, Lacan estende a concepção freudiana da formação dos sintomas neuróticos para cada versão singular do sintoma, tomado não apenas como uma formação do inconsciente, mas, ainda, como uma invenção e ‘construção’ de cada sujeito diante do caráter incurável do sintoma. Orientar-se pelo real do sinthoma é, então, uma recomendação que se extrai do final do ensino lacaniano e que fundamenta a operação lógica com o incurável do gozo do sintoma, cuja direção é menos decifrá-lo do que fazer uso dele. Com efeito, essa orientação designa uma operação clínica com o sintoma, que redimensiona o uso tático da interpretação, passando a ser concebida mais pelos efeitos de sua ressonância no processo de uma análise do que pela decifração da verdade inconsciente que o sintoma enuncia. Vimos, ainda, a possibilidade dessa operação incidir sob o real do gozo do sintoma, 155 que se repete e que escapa à significação, pela apropriação da associação livre para servir ao manejo do equívoco do significante, em detrimento de uma amplificação de sentido no nível de seu deslizamento na cadeia associativa. Essa passagem na teoria lacaniana indica o modo específico da operação analítica com o sintoma, designada como uma orientação que inclui o real em jogo na experiência clínica e, portanto, no tratamento do sintoma. Isto nos possibilitou encontrar uma direção para definir a política da psicanálise diferenciada tanto da operação médico-científica, que exclui o real do gozo do sintoma pela universalização de uma significação única e classificatória, quanto das práticas psicológicas, que buscam exaustivamente no relato do sintoma uma explicação coerente que corresponda aos ideais da cultura, tratando-o como portador de um sentido que nada tem de real. Seguindo esse percurso teórico, nos deparamos com uma nova perspectiva apresentada no final da obra de Freud, que nos fez aproximar a vertente real do sintoma com a operação da construção analítica. Trata-se de uma articulação conceitual, originalmente proposta por esta pesquisa, que aponta para a possibilidade de uma releitura do texto ‘Construções em Análise’, a partir da concepção do sinthoma como uma construção que permite ao sujeito um ‘saber fazer’ com isso que resta, que escapa ao sentido e à rememoração, o que em termos lacanianos se refere ao real do sintoma. Construção é o termo empregado por Freud para designar a relação do analista com um ‘ponto perdido’ que não reaparece na fala do analisante, senão pela repetição, ou seja, com aquilo que o trabalho analítico não consegue restituir pela via do sentido. Ao analista, cabe a tarefa da construção como uma operação clínica que se produz diante de um ‘furo’, de um ‘ponto cego’ e que marca a falta de saber que constitui o sujeito e seu sintoma. Do lado do analisante, por sua vez, situamos o sintoma como uma construção, como uma solução inventada por cada sujeito para lidar com o irredutível do real do gozo, melhor dizendo, como uma construção singular com o que resta do gozo do sintoma. A tarefa da construção analítica estaria, então, diretamente atrelada ao trabalho do analista com o real da experiência clínica, apreendida no nível do gozo do sintoma: dos restos e fragmentos de lembranças que não se inscrevem em uma cadeia significante, mas que podem ser usados e demonstrados logicamente. Essa trajetória conceitual tornou-se ainda mais instigante ao recolhermos, nas passagens do texto ‘Construções em Análise’, o caráter político dessa proposição freudiana no cenário científico do início do século XX. Sob esse viés, a construção analítica se apresenta na resposta a um ‘opositor da psicanálise’ como uma intervenção que se apropria do método da associação livre para produzir a posteriori a cada sessão, uma verificação lógica 156 que condiciona a direção do tratamento. Desse modo, Freud transmite o rigor da operação analítica da construção não somente aos analistas, mas, em especial, ao campo científico de sua época, diferenciando-a dos métodos da ciência empírica e da sugestão como uma proposição clínica e política da psicanálise. Existe uma política do sintoma. Somente uma. E existem duas políticas do sintoma. Somente duas. Essas duas sentenças formuladas por Antonio Di Ciaccia esclarecem o que tentamos concluir sobre o tema: a existência de uma política do sintoma na práxis analítica que corresponda à lógica freudiana da satisfação pulsional, designada por Lacan sob o estatuto do gozo. Assim, o sintoma possui uma política de leis próprias, que funcionam seguindo uma lógica que inclui a repetição do gozo e o modo singular como cada sujeito goza do seu inconsciente. Há, ainda, duas políticas do sintoma na civilização contemporânea: uma é a política de Lacan e a outra é a política que orienta a prática clínica a partir da exclusão do real em jogo no sintoma e de sua relação com o sujeito que o habita. Essa é a política que se prolifera no mundo atual globalizado entre métodos e correntes terapêuticas que consideram o sintoma como um déficit ou um desfuncionamento, compreendendo-o a partir de uma formalização de saber que o aprisiona nas classes e comunidades identitárias que resultam dos manuais diagnósticos. A nossa política do sintoma, no entanto, é aquela que se dirige ao real da experiência clínica, preservando a contingência, o caso a caso e o ‘não programado’ das organizações subjetivas do gozo que se apresentam no curso de uma análise. Se essa é uma tarefa para os analistas do mundo globalizado do século XXI, isto nos faz retornar ao nosso ponto de partida para incluir na pergunta “o que se transmite da política analítica do sintoma” a questão de como transmiti-la ao campo da clínica. Esse questionamento segue, no segundo capítulo da tese, uma direção mais precisa, sustentada pela aposta da transmissão dos princípios da psicanálise na prática coletiva em saúde mental. O que e como foram perguntas que orientaram o estudo metodológico dessa pesquisa clínica, aplicada ao campo da atenção psicossocial por meio do método da Construção do Caso Clínico. Nossa hipótese foi, então, a de que a aplicação dessa metodologia de orientação psicanalítica possibilitaria extrair uma lógica singular do sintoma em cada caso que fosse transmissível na sua coerência clínica e subjetiva aos profissionais que atuam no campo da saúde mental. Partindo daí, revisamos a literatura sobre o método de pesquisa em psicanálise da Construção do Caso Clínico, tendo como principal referência os artigos do autor Carlo Viganò, propositor da metodologia empregada nesta pesquisa. De saída, encontramos, na justificativa teórica do método da Construção do Caso, a perspectiva política dessa proposta no contexto atual das pesquisas clínicas. No tempo 157 em que as ‘evidências científicas’ reduzem as transformações do sintoma aos dados de mensuração estatística dos protocolos de avaliação terapêutica, situamos a importância desse método de pesquisa, capaz de produzir uma avaliação da lógica processual do tratamento do sintoma, incluindo a transferência como o pilar dessa investigação realizada por uma equipe clínica. Notou-se, com isso, a possibilidade de contribuição do saber analítico, aplicado ao âmbito das verificações que se extraem da prática coletiva com os casos, considerando o sujeito e o sintoma como seu correlato no nível de uma axiomática avaliativa. E isso se reflete como uma proposta de avaliação do trabalho clínico-institucional com o ‘incurável’ do sintoma em cada caso que nos parece ter um maior alcance para a demonstração dos impasses cotidianos da prática em equipe, se comparada com a dos parâmetros e metas dos protocolos de validação estatística, que avaliam a eficácia e a ‘agilidade’ da condução terapêutica no campo da saúde pública. Por ser um método de pesquisa em psicanálise, a Construção do Caso Clínico implica uma operação investigativa com os casos, conforme explorado pelo método freudiano, no qual investigação e tratamento coincidem. Sobre esse aspecto, enfatizamos o modo específico de investigação do campo da psicanálise que deriva da experiência da construção dos casos, sendo esta uma tarefa, recomendada por Freud, que não se dissocia da construção do saber teórico. Para esclarecer esse fundamento, foram demarcados três tempos essenciais para a metodologia da construção: o primeiro refere-se à construção do caso, o segundo à avaliação que desta resulta, realizada não a partir de um modelo pré-concebido de verificação do êxito do processo terapêutico, mas como uma verificação do próprio processo. No terceiro momento, essa avaliação clínica pode servir à pesquisa de um analista, organizada em torno de um saber teórico que se elabora sempre a posteriori ao trabalho da construção analítica. Nesse ponto nos reencontramos com o tema da política do sintoma transmitida pelo método da Construção do Caso Clínico, que se apoia no valor metodológico da singularidade do caso para produzir uma verificação das transformações do gozo do sintoma no curso de um tratamento. Eis aí um modo de preservar o saber conjectual da operação com o real em jogo em toda e qualquer experiência clínica, em contraponto à utilização do estudo de casos para fins de comprovação teórica ou empírica. Mas como transmitir a operação analítica com a dimensão do real na clínica que não cessa de não se inscrever? Essa questão nos indicou um novo caminho para abordar a noção do testemunho articulada ao tema da transmissão da psicanálise. Essa é uma via aberta pela metodologia da construção dos casos pela possibilidade de transmissão da lógica do caso único, abordada não a partir de uma determinada teoria, mas a partir do testemunho de uma 158 equipe no encontro com ‘não programado’ da experiência clínica e com o indizível do gozo do sintoma, recolhido na narrativa de cada caso. O principal instrumento dessa metodologia de pesquisa é a construção do texto do caso clínico como um texto elaborado e finalizado pelo analista, para comunicar a uma equipe de profissionais ou ao campo clínico, de um modo geral, o que se testemunha clinicamente da singularidade de cada caso. Trata-se, portanto, de um instrumento que inclui a dimensão do testemunho de um encontro com o real da clínica na demonstração do modo de como a operação analítica recolhe os efeitos de suas intervenções em cada caso. O que se trata de demonstrar consiste em algo a ser apreendido em torno de um ato clínico que se constrói a posteriori, a partir do que testemunha uma equipe clínica na condução do tratamento, pelas narrativas do paciente, de seus familiares ou de outros profissionais que representem os pontos da rede social do mesmo. O texto da construção do caso é uma escritura clínica que extrai dessas narrativas a formalização de uma sequência lógica, marcada por um ‘ponto cego’ em relação ao caso que faz obstáculo no acompanhamento clínico de uma equipe. Desse modo, a construção do caso não se limita aos impasses que se colocam no processo terapêutico, mas é a tentativa de introduzir uma lógica às escansões, aos momentos em que o sintoma se modifica sob transferência para, assim, demonstrá-las logicamente. Considerando, então, que o real não se pode dizer e nem sequer representar, a transmissão da operação lógica da psicanálise com o real em jogo, no tratamento do sintoma, está diretamente relacionada com a função do testemunho como uma prática experimentada por uma equipe clínica na posição de aprendizes da clínica. Na trilha aberta pela discussão sobre a noção do testemunho como uma função essencial para a transmissão dos princípios psicanalíticos, encontramos orientações importantes para as pesquisas clínicas em psicanálise. Ao associarmos testemunho e transmissão, incluímos nessa articulação a especificidade da clínica demonstrativa do psicanalista, que esclarece seu modo próprio de propor o relato e a construção dos casos, transmitindo, ao mesmo tempo, de que modo somos capazes de fazer o que nós dizemos e de dizer o que nós fazemos; isto é, de tornar transmissível a prática clínica da psicanálise no campo eclético de saberes da saúde mental. Em linha direta com essa tarefa de transmissão, situamos a dimensão do testemunho, registrada na escritura clínica do texto da construção dos casos como uma demonstração que se oferece à pesquisa do analista. Mas, para se chegar a uma demonstração da lógica do testemunho na construção de casos, é necessário situá-lo entre dois extremos a serem evitados: o da apresentação do caso como uma demonstração da teoria e o da exposição exaustiva de uma sorte de significantes da qual se subtrai o real do ato 159 clínico e seus efeitos na condução do tratamento. Com isso, destacamos a diferença entre uma prática da apresentação do caso, que poderá simplesmente narrar, ‘historicizar’ uma determinada teoria, sem testemunhar a contingência de cada encontro clínico; e uma prática de construção, que testemunha, no plano da enunciação e da escritura clínica, o ‘ponto cego’ da narrativa de um caso, sem engessar o impossível em jogo na experiência. Para prosseguir nesse argumento, foi importante dar um último passo em direção à função do testemunho para designá-lo como correspondente à posição de analisante que assume um analista, seja na formalização de uma pesquisa clínica ou de um relato sobre a construção de um caso, diante dos limites do saber em circunscrever o valor sempre inédito da experiência clínica. Ao pesquisar o tema do testemunho, concluímos que um de seus fundamentos designa o modo como o saber se acumula no lugar do analisante e é desse lugar da suposição de um saber sobre os casos que devem partir as hipóteses e elaborações de um analista para conduzir sua pesquisa clínica. Essa orientação se remete, ainda, à maneira como se emprega o valor metodológico do caso clínico na investigação psicanalítica: o caso ensina e é a partir desse ensinamento que nos colocamos na posição de aprendizes da clínica como pesquisadores. Não há, portanto, outro modo de demonstrar os resultados de uma pesquisa em psicanálise que não seja testemunhando a posteriori os dados recolhidos dessa experiência. Chegando ao final do segundo capítulo, nos reencontramos novamente com o tema da transmissão da política da psicanálise, mas, dessa vez, articulado à aplicação do saber analítico às práticas terapêuticas que compõem o campo da saúde mental. A metodologia da Construção do Caso Clínico foi apresentada, nesse momento, a partir de sua aplicação no campo da atenção psicossocial com as pesquisas realizadas recentemente, cuja análise aponta para os efeitos de transmissão da psicanálise aplicada à clínica ampliada da saúde mental. Em especial, tentamos demarcar uma aproximação entre a transmissão e a aplicação dos princípios psicanalíticos na vida humana e na cultura como uma estratégia clínica e política da pesquisa em psicanálise. Continuamos nosso trajeto teórico, buscando definir a proposta da psicanálise aplicada, conforme as ‘explicações e orientações’ deixadas por Freud, no que tange ao modo de como o saber inconsciente se aplica à terapêutica ou à interpretação de outras disciplinas ‘não terapêuticas’. Em seguida, localizamos, nos escritos de Lacan, a concepção do termo ‘psicanálise pura e aplicada’ como uma questão eminentemente vinculada à formação do psicanalista, na qual acentuamos a tarefa da transmissão da política do sintoma como um dever que compete à psicanálise em nosso mundo. Mais adiante, Lacan passa a designar a proposta da psicanálise aplicada, concebendo-o a partir da estrutura topológica de um plano 160 projetivo que demonstra uma junção da ‘psicanálise em intensão e extensão’ que, mesmo representando momentos diferentes na formação do analista, se manteriam unidas mutuamente. Das observações que conferem as propostas de Freud e de Lacan de aplicação do saber psicanalítico em um campo mais amplo de intervenções clínicas e sociais, demarcamos algumas consequências extraídas no âmbito da pesquisa em psicanálise em sua tarefa de transmissão dos princípios psicanalíticos ao campo da saúde mental. A primeira delas é delimitada pela autonomia disciplinar da psicanálise que, ao se conectar com outros saberes, possibilita a utilização do saber que o inconsciente enuncia e que o psicanalista sustenta em sua práxis, como aplicável à terapêutica e transmissível ao campo da clínica. Dito isso, recolhemos uma segunda consequência da proposição lacaniana da psicanálise aplicada à terapêutica da medicina e do campo de saber psiquiátrico. Para sustentar tal proposição, Lacan inclui, na formação do analista, a contribuição do saber médico, ainda que este se configure como um saber prático e objetivo e, portanto, de natureza diferente daquele que a experiência analítica permite elaborar. Em continuidade com essa proposta, se delineia a terceira consequência extraída de uma orientação deixada por Lacan para os analistas de sua Escola: a de que estes recolham o levantamento e a avaliação crítica de publicações que atualizem os princípios da psicanálise aplicada ao saber conjectural de um campo mais abrangente de procedimentos clínicos. Foi, então, nesse ponto que pudemos indicar a dimensão política que atravessa a transmissão da psicanálise diante de uma forte tendência que reduz, cada vez mais, as pesquisas clínicas a um ‘empirismo aplicado à terapêutica’. Situamos, assim, a importante tarefa da pesquisa clínica em psicanálise entre a aplicação e a transmissão dos princípios psicanalíticos no debate clínico atual, para que se mantenha sempre atualizada a demonstração da operação analítica com o sintoma, não reconhecida como ‘esotérica’ ou inefável. Com isso, chegamos a uma última consequência que define a pesquisa em psicanálise no ponto de junção entre a ‘psicanálise em intensão e extensão’, o que implica considerá-la como uma estratégia para que a formação do analista presentifique a ação da psicanálise no mundo. Sob essa perspectiva, apresentamos os desdobramentos das pesquisas de psicanalistas que assinalam a contribuição do método da Construção do Caso Clínico pela articulação que este promove entre as práticas diagnósticas da psiquiatria e da psicanálise, favorecendo a transmissão da especificidade da operação analítica com o sintoma no trabalho em equipe. Outra contribuição do método da construção do caso se constata por meio de sua proposta metodológica articulada ao ato clínico, sempre inédito e imprevisível, mas, ao mesmo tempo 161 passível de demonstração; contrapondo-se aos parâmetros metodológicos pré-codificados dos atuais protocolos de validação científica. Tais desdobramentos se apresentam em convergência com o desafio da transmissão de uma leitura psicanalítica dos casos realizada junto às demais leituras das equipes que se ocupam do acompanhamento clínico nos serviços de saúde mental. Trata-se, portanto, da transmissão de um saber que a experiência psicanalítica permite construir, caso a caso, que é aplicável à terapêutica da atenção psicossocial em que o trabalho em equipe e as práticas coletivas se efetuam. A partir dessa trajetória mais conceitual sobre a metodologia de pesquisa clínica da Construção do Caso Clínico, chegamos ao terceiro e último capítulo com a aposta de que a aplicação desse método no trabalho coletivo possibilitaria recolher efeitos de transmissão da política analítica do sintoma no campo da saúde mental. Foi, então, por intermédio da apresentação das etapas da construção de um caso, acompanhado pela equipe de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) do Rio de Janeiro, que pudemos testemunhar de que modo a política analítica do sintoma pôde ser transmitida às equipes clínicas envolvidas na condução do tratamento do paciente em questão. Além dos resultados apresentados no último capítulo como uma verificação da condução terapêutica da equipe com o caso, a aplicação metodológica da construção produziu, ainda, uma avaliação que indica os impasses e avanços observados no cotidiano clínico-institucional do CAPS. Considerando, no entanto, que esses dados já foram detalhados anteriormente, nos dedicaremos aqui às passagens extraídas da escritura clínica do caso produzida pelo pesquisador, que se remetem à nossa pergunta inicial reformulada, dessa vez, com base no caso clínico: o que nos ensina o Caso Dario sobre a clínica analítica do sintoma? Para responder a essa pergunta, cabe retomar a proposição desta pesquisa de releitura da concepção da construção analítica articulada ao trabalho do analista com o real em jogo na clínica do sintoma, por meio do qual se apreende as construções de um sujeito para lidar com o irredutível da repetição do gozo sintomático. Sob esse viés, o tema da política do sintoma é designado pelo modo como o sintoma é tomado em sua dimensão de real, como aquilo que não se interpreta pela via de um sentido único, mas que pode ser construído por uma equipe clínica, se esta estiver atenta às modificações do sintoma induzidas ao uso estratégico da transferência. Assim, a construção do caso permite isolar, no modo de gozo de cada sujeito, as soluções por ele mesmo construídas, preservando uma orientação que se dirige à incidência do real no curso do tratamento. 162 O caso Dario testemunha a construção de um sujeito em torno dos restos e fragmentos de lembranças de uma escolha subjetiva que o manteve isolado do mundo por trinta anos. Foi, então, a partir do encontro com um analista que esse modo singular de gozo do ‘sintoma de isolamento’ pôde ser isolado do discurso do paciente no terreno da transferência, testemunhando, ao mesmo tempo, os momentos em que esse modo de gozo é recolocado discursivamente numa cadeia simbólica, permitindo que esse sujeito pudesse reconstruir uma nova solução para sua inserção no laço social. Nessa direção, a escritura clínica do pesquisador demonstra uma formalização produzida pela leitura coletiva do caso como uma esquematização não concebida pelos significantes que se articulam coerentemente numa cadeia associativa, mas pelos pontos de gozo não interpretável que puderam ser construídos pontualmente, mantendo aberto o sentido do sintoma na verificação que resulta da construção de um caso clínico. Esse caso testemunha, ainda, a construção do analista e sua tarefa de transmissão da operação analítica com o sintoma na prática coletiva da atenção psicossocial caracterizada, em especial, pela suspensão de um saber teórico ou diagnóstico previamente estabelecido para a condução do tratamento. Os efeitos recolhidos da aplicação de princípios psicanalíticos na avaliação da condução da equipe permitiram localizar a utilidade clínica destes no desafio da transmissão da política do sintoma ao campo da saúde mental. Entre eles, o princípio do ‘esvaziamento de saber prévio’ tornou-se operativo na leitura produzida pelas equipes do CAPS e da ESF sobre as rápidas e constantes transformações do sintoma, não mais fixado em uma determinada significação diagnóstica. Nota-se, com isso, a importância da transmissão desse princípio clínico para que sejam introduzidos cotidianamente do trabalho em equipe outros princípios da psicanálise, como o da ‘suposição de saber ao sujeito’ que mantém sempre aberta uma via para abordar a dimensão real do sintoma. Sobre esse aspecto, a construção do caso Dario testemunha a surpresa de uma equipe diante da resposta rápida e, portanto, ‘não programada’ do paciente em relação ao tratamento psiquiátrico e às novas soluções por ele inventadas para sustentar sua singularidade no laço social. Nessa perspectiva, a estratégia da ‘pluralização da transferência’ revelou-se um modo de transmissão da operação analítica com o sintoma para uma equipe clínica que passou a acompanhar as novas transformações e soluções inventadas por esse sujeito como uma orientação clínica compartilhada na condução do tratamento. Constatamos, por fim, que o resultado extraído dessa metodologia de pesquisa favorece a transmissão da política analítica do sintoma, tanto no nível mais pontual do trabalho em equipe quanto no âmbito mais amplo do debate clínico, levado adiante pela 163 publicação desta pesquisa em psicanálise, cujo alcance se estende ao campo universitário ou ao próprio campo da formação psicanalítica. Com essa conclusão, não encerramos nosso trabalho de aplicação do método da Construção do Caso Clínico, mas propomos seu aprimoramento e sua continuidade entre analistas e praticantes comprometidos com a formação em psicanálise e, portanto, com a tarefa de fazer avançar a teoria e clínica psicanalítica no cenário clínico atual, partindo de uma experiência com os casos que renova e atualiza o campo da psicanálise lacaniana. 164 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERENGUER, E. Cómo se contruye um caso? Capiton Seminarios Clinicos. Caracas: Ediplus, 2009a. ___________. Testemunho: Ensino Irônico. In: Opção Lacaniana Revista Internacional de Psicanálise, Ed. Eólia: São Paulo, n. 54, 2009b. BERNARDES, A. Pesquisa e Psicanálise: Algumas Referências Lacanianas. In: Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, Vol. 26, n. 1, Jan-Mar, 2010, p. 35-38. BURSZTYN, D. C. A política do sintoma e a construção do caso clínico: considerações sobre a transmissão da psicanálise no trabalho coletivo em Saúde Mental. 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L´autre pratique de la clinique: psychanalyse et institution therapeutique. Belgica : Editions Érès, 2009. 171 APÊNDICES APÊNDICE 1 172 Roteiro para apresentação do caso ∗ É importante que os pontos listados sejam tratados, mesmo que em outra ordem. A narração • • • Do sujeito (a palavra do paciente) Da família (pais, cônjuge, filhos, irmãos, ou até vizinhos e empregadores) Da instituição (os documentos e registros: fichas, relatórios, atas, etc.) A dinâmica da clínica Trata-se de construir as etapas, as escansões (avanços, ‘congelamentos’, regressões) da dinâmica da verdade subjetiva. Este ponto é mais histórico-documentário e, por isso, não deve ignorar nenhuma das pessoas que possuem uma relação significativa com o paciente, incluindo os técnicos da equipe. Nesse ponto a narrativa torna-se construção do caso e a definição da doença, recontratação do sintoma: • • • • • • • • • • As expectativas subjetivas (os pedidos, as demandas, se existirem) A relação do paciente com o(s) técnico(s) da equipe e com a(s) instituição(s). A(s) discussão clínica da equipe. As identificações do paciente. As etapas no uso dos fármacos. Os ‘nós’ sintomáticos que o sujeito reconhece, suas necessidades. As histórias afetivas e sexuais As fases da relação com as substâncias. Escansões clínicas (passagens ao ato, mudanças do sintoma, abstinências e recaídas, distanciamentos, retornos, etc.) Reformulações do projeto terapêutico. Verificação e Avaliação • • • • • • • ∗ Anamnese Diagnóstico(s) (DSM-IV ou CID-10) e suas eventuais modificações no curso da observação e do tratamento Diagnóstico psicodinâmico ou de outra abordagem clínica (se realizada pela equipe) O uso de fármacos Eventuais intervenções com a família. Participação em grupos, comunidade, outras estruturas. Psicoterapia. Tradução da ‘Griglia per la presentazione del caso’, disponível no site www.forumpsi.it organizado por Carlo Viganò. Os comentários inseridos entre os itens desse instrumento seguem o mesmo formato apresentado no texto original como observações do proponente. APÊNDICE II ANOIdade HISTÓRIA DATA Esquema História/ Tratamento/ Intervenções ∗ Tempos no ‘après coup’, tempos históricos transformados pelo inconsciente. Tratamento/ MATEMA INTERVENÇÕES . . ∗ Instrumento empregado pela Metodologia da Construção do Caso Clínico, conforme observado na experiência de intercâmbio acadêmico. Originalmente, no campo ‘tratamento’ está incluída a possibilidade de ‘matematização’ do caso clínico. Por não termos formalizado em matema ou em grafos topológicos a construção do caso, optamos pela adaptação desse instrumento, conforme o anexo apresentado em seguida. APÊNDICE III REGISTROS INTERVENÇÕES ANO / Idade DATA Quadro Registro/ Intervenções/ História HISTÓRIA APÊNDICE IV Transcrições do Laboratório da Construção do Caso Encontro com Carlo Viganò: Milão, 06/07/2011 A tendência nesse caso é a de consolidar um delírio psicótico. Wagner é o protagonista, o Deus da transferência, e se entra no delírio, transforma-se no Deus de Schreber, torna-se persecutório. É importante ter em mãos a transferência e observar que Dario ‘racionalizou’ o mundo que construiu, mas toda a equipe é pouco curiosa. 30 anos em casa, o que fez? Que gozo havia lá? Dario responde: ‘construí um mundo imaginário onde tudo estava bem’. A questão é descobrir o que se pode ligar ao mundo externo, e isso se chama transferência (do mundo imaginário com o mundo real via Wagner). Mas se transforma sozinho, Wagner se torna Deus: ‘foi graças a você’, diz Dario. É importante que o analista se subtraia para que consiga abrir essa transferência que pode se desenvolver em uma pluralidade. Deve ser plural a transferência na psicose (na praia, no carnaval, no supermercado...). Quando descobre o mundo real, Dario recomeça sua leitura sobre esse mundo. Wagner pode estar envolvido nesse delírio que agora já não faz no seu próprio quarto, mas nas sessões, toda a semana... como ‘delirar a dois’. Wagner torna-se um regente e talvez não em ritmo semanal como uma analise neurótica. Nota-se que na fala de Dario não se cria uma associação. A demanda ‘queria me relacionar melhor com minha família’ é um ponto que chama a atenção, o que isso significa? Há aí uma contradição: do ponto de vista realístico não significa nada, pois Dario esta com a mãe tem seus irmãos e cita o pai adorado, mas Dario continua dizendo que esta isolado. Não é uma demanda tomada pela via do sentido, é diferente, é tipo de demanda não subjetivada, ao modo psicótico (sinthoma) análogo do que pretende reordenar o mundo, a sociedade, o laço social. A mãe tinha estruturado a causalidade de doença do filho, e Dario diz: não, antes disso já sentia sensações estranhas. Aos 8 anos sente a cabeça: perde a organização da realidade (ponto de desencadeamento: perde a realidade em relação ao próprio corpo) e busca os pais para reencontrar a organização da realidade. Mas ali já se sente isolado da família, o que é da ordem do desejo parental: a organização da realidade é perdida e deve ser reconstruída com a fantasia edípica. Como é feita a psicose? A psicose é feita de dois tempos lógicos: defender-se do Outro persecutório, a realidade se desorganiza e torna-se persecutória. Por isso Dario se fecha em casa e disso se defende (movimento de defesa, de auto-proteção). Através dos olhos (visão) em que não se destaca o ‘olhar’ porque ‘entra na cabeça e é invadido pelo Outro’, portanto disso deve se proteger. A partir desse isolamento, o psicótico deve reconstruir uma realidade onde inclua o gozo, senão adoece. E isso se organiza de modo paranóico ou de modo mais esquizofrênico. Dario não é compreendido por ninguém, nem por sua mãe: nesse ponto é possível encontrar o sinthoma que não é interpretável, encontrar os pontos que não são lógicos, “relacionar-se melhor com sua família” não é lógico, é um enigma: sinthoma: tentar ter um laço melhor com a família, tentar construir um mundo paralelo. Sobre a relação com a mãe dedicada ao filho, que vive para o bem estar do filho. É um mundo artificial que a mãe manteve em vida (o que alguns chamam de simbiose), como uma relação uterina que caracteriza uma gravidez de 30 anos. O que será que a vizinhança dizia: porque Dario não vai trabalhar? Não sai de casa, por quê? A mãe tinha o problema de não conseguir explicar a doença do filho, talvez por medo que a psiquiatria o levasse ao manicômio. Em relação ao diagnóstico de esquizofrênico: a equipe questiona: o que fazer com um esquizofrênico? Do ponto de vista da classificação é um diagnóstico correto, o que deseja. Essa intervenção pode ser assinalada ao longo do tratamento: se foi uma intervenção eficaz do analista, se houve subjetivação da parte da mãe ou não. Mas até aqui, Dario parece ainda acreditar num ‘milagre’ e na magia do encontro com Wagner. Sobre o uso do fármaco, é importante indicar a dosagem, o tipo de fármaco, etc. Não há equipe, porque não vê que se reduz o fármaco, Dario começa a delirar. Wagner pode discutir isso com a psiquiatra. Há um laço ligado ao fármaco que precisa entrar na transferência como um objeto a como coagulador do gozo, fundamental na transferência. O psiquiatra deve ser cúmplice dessa política com a equipe, uma política de redução ao mínimo, mas mantendo o fármaco como objeto de transferência, entrar nessa ótica (...). Não é somente a química que deve ensinar sobre o uso dos fármacos. Nesse caso, há indicação de neuroléptico: Seroquel, que age sob o pensamento obsessivo psicótico, freia esse pensamento. Enquanto que os novos seratoninérgicos agem mais para o pensamento obsessivo neurótico. Sinthoma / micro-eventos: • • • Relato de 10/01: “Durante 30 anos criei um mundo mágico só para mim”. Esse é o assunto que trata o que fez Dario ao longo desses últimos 30 anos. É uma outra forma de sinthoma, ou seja, seu modo de gozo, que o fez viver durante 30 anos, era o de construir um mundo mágico, onde ‘eu podia fazer tudo’. Não há nada de maior satisfação do que é isso. Parece que Dario estava pronto para sair, porque tendencialmente outro nessa condição não sairia: porque sair é perder esse gozo. Agora Dario quer transferir esse mundo mágico também ao externo, a ver esse externo com seus olhos. É importante esse aspecto porque deve se levar em conta que o seu corpo quis por 30 anos esse gozo, senão seria uma memória somática. “Um ponto onde via tudo de cima pela janela: meus amigos de infância, a menina”. Um gozo de ver o bairro pela janela, ligado ao ver e não olhar, porque não há Outro (gozo autístico de ver o mundo paradisíaco) porque ‘levava as coisas do mundo real para a minha fantasia’, um paraíso. Auto-história: acidente 13-14 anos de bicicleta: o Outro quer me amassar? Medo de acender a luz e não da morte: a morte chegou. Esses são alguns dos episódios singulares que descreve Dario. Como, ainda, o sonho ou a sensação de queda do teto a cama. É um sonho rápido, uma alucinação, o que é? Dario diz: ‘é como se a pessoa entrasse dentro de mim’, ‘ficava isolado para me proteger não sei do que...’ aqui há uma direção de intervenção: os outros entram dentro dele, então veremos quais os tipos de proteção que podemos oferecer. O Outro (CAPS) não entra dentro dele porque não o entende e por isso não é persecutório, verificar como o Outro o invade fora dali. Encontro do dia 25/02/2012: Laboratório da Construção do Caso Clínico Wagner: A equipe do CAPS esta há dois meses sem supervisor e tem trabalhado sozinha. Fala da dificuldade do uso diagnóstico com a equipe e acrescenta: aquele paciente com dificuldade com a lei, o que é muito comum na psicose, se não é escancaradamente psicótico, como um usuário de cocaína com problemas com o tráfico, por exemplo, vira um caso de psicopatia. Daniela: Propõe iniciar a discussão, seguindo a narrativa do Wagner a partir do roteiro que trabalhou no caso Dario. Por ser um texto que já tem uma elaboração de quem atende o paciente, seria interessante partir dele e na medida em que as informações faltarem, podemos retomar o esquema para recolher novos dados e também cotejar com os novos comentários de vocês. Os comentários do Viganò já foram enviados e os nossos podem começar a aparecer agora. Então, seria mais interessante, metodologicamente falando, que a gente começasse pela narrativa que o Wagner fez, a rigor, o debate parte desse texto que já contém algumas elaborações do Wagner. Ana: O primeiro ponto, que é um ponto ‘espinhoso’ em relação ao caso é o diagnóstico, que esta no texto como ‘transtorno obsessivo compulsivo’ que foi indicado pela psiquiatra e é assim que ela medica com dose alta de antidepressivo. Ela dá algum neuroléptico? Não sei, pode até ter sido a salvação para o paciente, mas não sei, não esta claro isso aqui. Wagner: Ela medica com Clomipramina e diz que é a medicação mais eficaz para TOC e antes mesmo da discussão do caso que eu levei para a equipe, eu já tinha feito supervisão com o Marcus e já tinha conversado bastante com a Dani. Eu não levei o diagnóstico fechado de psicose, porque não me sentia seguro para argumentar, mas a tendência da psiquiatra com parte da equipe era a de continuar sustentando esse diagnóstico de TOC. Marcus André: Eu acho que a gente esta chegando num ponto em que os diagnósticos não se recobrem mais. Sei lá, há dez anos atrás, era esquizofrenia/psicose, transtorno bipolar, etc. Mas agora os nossos saem como, por exemplo, o TOC não tem nada a ver com o nosso mais... TOC psicose/neurose? Wagner: É, para TOC pode ser tanto um neurótico quanto um psicótico. Ana: Mas se bem que na perspectiva continuísta evolucionista a neurose obsessiva e a paranóia, por exemplo, são fronteiriças. Então, tinha confusões entre neurose obsessiva e psicose, resumindo, é uma área que se confunde particularmente. Tem isso que você Wagner: Mesmo na psiquiatria tem uma diferença entre ‘se contaminar porque não quer se sentir sujo’ e ‘se contaminar porque a contaminação vem do Outro’. E outra coisa que eu observei, que contribuiu para esse diagnóstico de TOC, de neurose, para boa parte da equipe, não só da psiquiatra, foi a melhora rápida do paciente, os ‘efeitos terapêuticos rápidos’ da medicação: ele ter saído logo de casa, etc. Isso foi interpretado assim: como ele é louco? Louco não melhora tão rápido assim! Marcus: É, mas isso até na gente coloca dúvida né? E tudo tão maravilhoso, tão perfeito que a gente duvida mesmo. Ana: Esse é um ponto, ele responde muito bem ao antidepressivo, quer dizer, é uma droga que não tem nenhum efeito antipsicótico. Daniela: Mas ele responde bem e mesmo quando a medicação é retirada, ele continua bem. Então tem algo que e anterior ao medicamento, acho que parte da transferência mesmo. Eu estou tentando retomar algumas perguntas que eu remeti a esse encontro, e duas delas tem a ver com esse ‘ponto de partida’ que a gente esta introduzindo aqui: a primeira questão é ‘o que se transmite da Psicanálise ao campo da SM’, essa marca da transmissão eu acho importante passar pela nossa discussão. Eu localizei na narrativa do Wagner dois aspectos da transmissão da psicanálise: primeiro quando ele marca o ‘esvaziamento do saber prévio’ com a equipe, seja a da ESF, seja a do CAPS. E depois, algo muito peculiar que esse caso traz que é o ‘surgimento da transferência’, quando isso começa a aparecer desde o primeiro momento de uma visita domiciliar até, três semanas depois, quando o paciente está no carnaval, no bloco da Loucura Suburbana. Enfim, o que acontece aí nesses primeiros momentos em que a transferência surge? Nesse item, eu coloquei algumas perguntas para o Wagner a partir de três questões: quais foram as hipóteses ou os impasses encontrados pelo praticante que nortearam a construção do caso? Quer dizer, o que fez você escolher esse caso a ponto de decidir: ‘esse é um caso que eu quero discutir, levando adiante a construção do caso’. Tem a ver com a duvida diagnóstica, tem a ver com essa transformação rápida ou tem a ver com o manejo na transferência? Porque no início tinha uma fala muito idealizada do paciente, como aquela ‘foi graças a você’, enfim de que perguntas ou questões você parte para dizer: ‘eu quero construir coletivamente esse caso’. Wagner: A dúvida diagnóstica era uma questão de imediato. Quando eu levei o caso para a discussão no CAPS, eu já havia feito uma ou duas supervisões com o Marcus. Quando eu trouxe o caso pela primeira vez para a supervisão, eu estava convencido de que era um caso de neurose obsessiva. Eu ainda não conseguia levar em consideração que algumas falas dele apontavam para uma psicose, como aquele episódio que o Viganò aponta do ‘cérebro que vai diminuindo e aumentando’ ou aquele outro episódio, muito estranho, que o Marcus marcou ‘dos policiais entrando na casa dele e ele não tinha medo de morrer, mas que alguém acendesse a luz” e, sobretudo, esse isolamento. A primeira hipótese foi de cárcere privado, eu achava que ia encontrar um ‘homem das cavernas’ em função desse isolamento. E depois da supervisão é que fui me deparando com essa possibilidade de um caso de psicose. Isso é importante tanto para a direção do tratamento quanto para a ‘transmissão’ disso junto à equipe. Daniela: É, mais parece que era uma equipe pouco curiosa, né? Porque na medida em que o paciente ia bem, estava melhorando, eles não tinham nem muita curiosidade com essa melhora rápida. Wagner: Teve uma coisa que eu acho que não foi de imediato, mas ao longo do tratamento, que me chamou atenção foram os ‘efeitos terapêuticos rápidos’, a saída dele de casa. Eu já fiquei surpreso com o fato dele ter topado que eu entrasse no quarto dele para atendê-lo porque naquele momento eu pensei assim: eu tenho que tomar todo cuidado para não forçar a barra, para não ser invasivo, mas insisti ate o fim. No final da VD quando ele não topou sair do quarto, mas mandou a carta eu notei que ali tinha um terreno e fiz questão de ler a carta em voz alta, até porque ele não estava endereçando aquela carta a mim. Eu estava ali com outras pessoas da equipe e fiz questão de ler em voz alta para a equipe e para a mãe que estavam ali na sala e também para ele próprio escutar. Daniela: O que vocês acham, então? A gente poderia ficar com aqueles três itens para discutir inicialmente ou ver se Ana e Marcus querem trazer mais alguma coisa. Mas pelo que você falou acho que esses três itens interessam a você nessa discussão pelo modo como você destacou na narrativa do caso, né? Quais são? O diagnóstico, localizar esses ‘efeitos terapêuticos rápidos’ e de que modo houve (ou não), se foi possível a transmissão para essa equipe, ou seja, que efeitos de transmissão a gente pode recolher que houve para a equipe. Não sei, pensei em delimitar alguns pontos para que agente possa reduzir e fazer circular... Marcus, você pensou algo que possa incluir nessa discussão? Marcus: Essa questão que a equipe, que a gente tem um olhar especificamente lacaniano ou psicanalítico sobre o assunto é que o sentido de uma vida é muito diferente numa psicose e numa neurose. E a relação com o sentido, estou falando em sentido para ficar bem geral, então quando a gente fala de um caso desse a gente diz: ah, eu acho que é psicose, porque a gente está preocupado com um sentido geral e ele está num sentido completamente ‘fora do sentido compartilhado’, em geral. Ninguém fica 30 anos fora a toa e depois volta a toa, sem problema nenhum. E estranho porque isso aí tem alguma coisa a ver com o jeito de se relacionar com o sentido compartilhado, com a ruptura e tal. Mas para a equipe isso não faz diferença, o que a equipe quer e o que o mundo quer é que ele entre num sentido compartilhado e pronto, e ele entrou! Ana: Pois é, ele é o primeiro da turma! E numa escola convencional. Marcus: Falar da equipe é também falar de uma relação nossa, da psicanálise, com o mundo. Aonde o mundo esta satisfeito porque o sujeito se converteu, a gente está dizendo que essa conversão tem um formato específico. E isso vai ter conseqüências e a gente vai ter que lidar de uma maneira ou de outra, mas o mundo só quer saber que ele se converteu. Aí lutar com o diagnóstico de psicose nesse caso, é muito difícil, porque em nome de que a gente diz: ‘ah ele é psicótico. Porque é?’ O que se poderia dizer é ‘ah, o meu TOC está muito bom, e o que você me dá a mais se chamar de psicose?’ O que a gente diz para eles? Esse é ponto, o debate com a equipe é fundamental, até porque funciona muito bem com a equipe. Não digo que a gente não deve debater com a equipe, mas o que a tem que se pensar é quando fazer isso com a equipe. Está todo mundo muito bem, feliz, e ninguém mais quer saber o que fazer com essa história de psicose. O problema do diagnóstico eu acho que é esse: porque se é psicose ou não, acho que a gente poderia definir que é e não ficar discutindo muito mais isso. Apesar de ser super complicado porque tem pouca coisa: uma que o Viganò chamou atenção é o que a gente já pode ver que vamos partir da hipótese de que é psicose. Sei lá, de neurose obsessiva ele não traz nada, nada de um mundo interior qualquer que pudesse justificar ficar tanto tempo trancado, alguma fantasia de que ‘ele tem que ficar ali porque senão algo vai acontecer’. Até um psicótico que já esta no delírio ou que esta criando um delírio tem causa, é porque algo vai acontecer se ele não se lavar. Mas a gente encontra uma causa muito diferente da causa da realidade psíquica, mas aí não tem nada, é muito estranho. Não dá para ser neurose obsessiva sem nada, geralmente aparece nem que seja no próprio sintoma. Então, vamos assumir que é uma psicose, como hipótese de trabalho e não divulgando que é, e sendo assim, a maior complicação num caso desses é ficar lutando por um diagnóstico de psicose. Ana: Nem vale a pena, porque senão a psiquiatria iria medicá-lo ainda mais, coisa que não precisou porque ela apostou em TOC e para ele foi mais vantajoso, inclusive em termos de medicação. Marcus: Então, esses são os pontos sobre o diagnóstico que eu teria para falar, é melhor deixar TOC. Ana: É, manter a posição da equipe, mas eu acho que a gente não pode deixar TOC porque a gente não está assinando que é. Mas não interessa muito o diagnóstico para a discussão da equipe, a transmissão não vai ser feita a partir do diagnóstico. Marcus: É isso, mas ao mesmo tempo nós vamos ficar num mundo paralelo? Daniela: Não, porque eu acho que tem uma outra via que está localizada no texto do Wagner que é o fato dele ter conseguido discutir a hipótese diagnóstica e situar melhor o caso na psicose, fez com que ele tivesse um manejo com o caso que ele chama de ‘pluralizar a transferência’ que teve um efeito. Então, não se trata de ficar discutindo TOC ou psicose, mas que ele pôde assumir uma posição diante do caso que fez com que outros colegas da equipe começassem a acompanhar o caso junto. Eu acho que se teve alguma contribuição do diagnóstico aí, talvez tenha sido para ele conseguir conduzir esse caso de um outro modo que não seja ‘venha aqui me ver toda a semana’. E aí ele começou a conseguir falar com a assistente social, a falar com a psiquiatra, etc. Enfim, teve uma pluralização da transferência que até então estava muito direcionada a ele, não sei, tive a impressão que a hipótese diagnóstica de psicose fez com que ele se recolocasse diante do caso e da equipe. Ana: Interessante porque tem todo um trabalho a ser feito com a mãe, que também tanto a Saúde da Família quanto o CAPS ficaram atentos para isso. Marcus: Mas ao mesmo tempo, caso a gente não vá discutir com a equipe se é TOC se é esquizofrenia, o que seria num linguajar mais comum: ‘não deixa TOC porque é só sintoma, vamos trabalhar com hipótese de psicose aqui só entre nós’, isso levanta um problema que é o de como a psicanálise pode funcionar com um registro completamente distinto do registro dos psiquiatras. Eu não saberia como avançar nisso, mas vamos mudar as nossas categorias para as do mundo de hoje? Ana: Mas você fala em relação à equipe ou em relação a um trabalho entre psicanalistas? Em relação à equipe, é colocar a dúvida diagnóstica porque tem algumas coisas muito estranha, é manter o estranhamento, eu acho. Marcus: Mas eu quero fechar essa questão, o que eu quero levantar é de se a coisa continuar assim, talvez a gente chegue em situações em que a gente não tenha mais como dialogar com a equipe se a equipe é tomada pelo discurso da psiquiatria. Então a gente teria que ter equipes psicanalíticas? Ana: Não, não eu também não acho que é o discurso da psiquiatria, é o diagnóstico apressado ou do senso comum. Marcus: Mas o nosso mundo é cada vez mais avesso a psicanálise, tem horas que as nossas categorias não são mais compreensíveis e aí? Então fica a questão... Ana: Mas na reforma psiquiátrica a categoria é de ‘grave sofrimento psíquico’ ou ‘paciente grave, paciente não grave’, então trinta anos trancado é grave e ponto. Se deu uma boa resposta, que bom, mas não pode não ser grave. Porque senão aí, começa a fazer psicoterapiazinha e ao mesmo tempo, o fato dele responder bem com medicação e sem medicação, acho que essa psiquiatra foi, como todo o psiquiatra deve ser, sensível a resposta do sujeito a droga. Porque ela diminui a medicação quando ele disse: ‘olha, eu estou sonolento’, ele pediu, e o psiquiatra que se preza, da reforma pelo menos, e não precisa ser psicanalista para ser sensível a resposta do sujeito. Marcus: Mas é importante observar que talvez no futuro não haja mais esse psiquiatra. E num futuro próximo. Ana: Ah, mas aí eu não quero pensar no pior dos mundos hoje não. Marcus: Mas esse caso levanta o pior dos mundos. Em alguns aspectos ele aborda o pior dos mundos, é o caso e não sou eu. Daniela: Mas esse diagnóstico de TOC se sustenta para a equipe ou somente para a psiquiatra? Porque acho que isso faz alguma diferença. Wagner: Para boa parte da equipe é TOC. Mas alguns colegas com certa leitura psicanalítica duvidavam: ‘não é um delírio, é mais da ordem da fantasia’. Ana: A dúvida é entre fantasia e delírio, né? Marcus: Essa necessidade de se satisfazer com o delírio compartilhado em que ninguém dá mais problema, é muito evidente nesse caso: “que bom, ele cria e já chega com a coisa pronta - eu me prendi depois voltei”, agora já me esqueci bem como ele disse. Ana: Ele tem nomes para essas coisas que ninguém deu para ele, ele cria. Eu acho que foi um grande trabalho que ele fez nesse mundo aí. Marcus: Ele vai se aproximando desse senso comum do Fantástico, de modo que todo mundo engole fácil, e aí fica uma coisa fechada. Ana: Não, não fica. Ele é bem sucedido, porque por acaso ele se aproximou do senso comum. Marcus: Sim, mas o nosso trabalho com a equipe fica amarrado num sentido fechado que não tem muito a ver a com a realidade dele, mas tem muito mais a ver com a realidade do Fantástico. E amanhã ninguém vai poder interceder quando ele mexer para lá e para cá porque vai romper com um sentido que todo mundo concorda. Ana: Mas aí, ele vacilando, quer dizer: ficar 30 anos trancado é grave, é um caso complicado, ele deixa uma porta aberta para não fechar o diagnóstico, para não bater de frente no diagnóstico psicose x TOC e para poder amanhã, se o cara der uma descompensada, seja por qual motivo for, tropeçou numa pedrinha. E aí tem que fazer todo um outro trabalho que não sabem qual é, mas por enquanto não esta precisando. Mas aí, por enquanto eu acho que essa coisa de manter o saber em suspenso. O mais importante na transmissão eu acho que é ‘como lidar com o saber’, porque aí dá uma segurada: ‘não sabemos muito bem’. Marcus: Mas que condições adversas, né? Não é uma situação em que você, por exemplo, pode fazer uma postura e ver que a equipe esta sendo positiva, não a equipe esta sendo patológica. De certo sentido, porque ela aceita e fica fechadinha naquilo, acabou, pronto. Então assim, a equipe esta longe de conseguir, não essa equipe, estou falando de uma questão... o trabalho para a gente é um trabalho que você tem que ficar sozinho, só fazendo, só trazendo a dúvida diagnóstica, é um trabalho que não o trabalho de equipe, entendeu? Não é um trabalho em que a equipe está sentindo que é uma coisa mais ampla. Ana: Mas você viu que ele falou que mesmo o pessoal com certa orientação da psicanálise ficou na dúvida entre delírio e fantasia? Ou seja esse caso é mesmo uma pedrona!! Marcus: É, é um caso difícil por isso! Daniela: O que eu pude recolher na forma como o Wagner narrou o caso, é que não havia equipe! Em relação a esse caso não havia um trabalho em equipe. Wagner: Por que? Porque veio a partir do matriciamento, veio para atendimento comigo, ele faz a demanda inicial de ‘remédio’ e eu aproveitei para dizer que não poderíamos oferecer só remédio, que o CAPS dispõe de outras atividades e ele topou. Ele já estava topando vir, eu já estava atendendo e ele vai na primeira vez ao CAPS na quarta entrevista minha com ele. Ele tem a consulta com a psiquiatra e eu mostro para ele o CAPS e as várias atividades do CAPS como para qualquer outro paciente que está sendo matriculado. Ele não se interessou, assim de cara, ele disse em relação as oficinas: ‘não, por enquanto não’. Então, assim, é um paciente que no momento vai ao CAPS só para os atendimentos individuais comigo e não procura se interessar pelas oficinas e por isso é menos ‘conhecido’ ainda, porque ele não circula no serviço. Ana: Mas ele entrou nos dispositivos de atenção psicossocial, foi para o carnaval. Ele entrou no que é oferecido fora do CAPS, digamos assim, pontualmente. E ele fala: ‘graça a vocês’, ele pluraliza isso e responde no plural. Apesar de inicialmente ser com você, depois ele responde ao CAPS. Wagner: Com relação a essa questão diagnóstica, é muito comum que as equipes queiram ‘fechar com o diagnóstico psiquiátrico’, mas nem todos fecham. Até pela transferência de trabalho que eu observo que alguns têm comigo pelo fato de introduzir algumas discussões inclusive em relação a outras hipóteses diagnósticas. Daniela: Então, eu acho que a gente podia seguir em relação a esse item da transmissão e do diagnóstico, a gente poderia situar em dois tempos: um primeiro momento em que não havia equipe em relação a esse caso e foi a partir da primeira discussão, da reunião de equipe que você introduz essa idéia do diagnóstico em suspenso, como algo que ainda tem que se investigar melhor e não ‘fechar’ e que começou a ter ali algum trabalho de ‘pluralização da transferência’. Mas aí o Marcus, localiza um segundo momento que seja talvez a consequência dessa primeira convocação ao trabalho de equipe que tenha sido a equipe começar a trabalhar com um sentido mais fechado e, não necessariamente, ficar no registro de um saber em suspenso, é isso Marcus? Marcus: Não, eu não sei se foi uma consequência dessa chamada. Acho que essa chamada... a tendência natural de todo mundo, dele e da mãe, é dizer : ‘ah, eu me isolei no meu mundo imaginário, porque eu não tive coragem de lutar com o mundo”, como uma novela. Essa novela já se passa, não é por nossa causa, ao contrário, a gente vai contra essa novela. Ana: Mas ele monta um semblante ai, ou um ‘pseudo-semblante’, não saberia dizer se isso é um semblante, mas ele construiu alguma coisa: meu mundo interior, a minha fantasia... Marcus: Por exemplo, uma passagem de um sonho: “Deus pede para eu sacrificar um filho, mas eu não consegui. Deus pediu para Abraão sacrificar um filho dele que era a coisa mais importante para ele.”. Então, tem um sonho, tem uma associação e aí começa a maquininha do sentido: “me livrar de uma coisa importante é difícil para mim, quando eu comecei a me isolar eu criei um mundo novo, lá eu me relacionava com todo mundo, lá era perfeito”. Esse sujeito é o sujeito universal, é o semblante psicanalítico da novela. E ele vai direitinho, ele pegou bem esse semblante. Ana: É, e sabe-se lá como, né? Porque nunca se tratou e tinha medo do hospício. Marcus: Agora o sonho de “Deus ter que sacrificar um filho”, não tem nada a ver com essa história. É muito barra pesada, a Bíblia, Deus tentando sacrificar um filho, sabe-se lá como era esse sonho, mas não, é só ‘ah, eu prefiro essa coisa mais light’, mas esse é o trabalho dele. Ana: É o trabalho dele, ele vai colocando o véu. Marcus: Agora o trabalho do delírio em geral quando vai colocando o véu, é um trabalho fechado, rígido. Esse que é o problema da paranóia, aqui não, fica uma coisa geral e tal, mas se a equipe aumenta, porque tudo que o coletivo quer é que isso continue rígido. Quando ele precisar dizer para a equipe que ele é o Abraão, a equipe vai dizer: ‘não, o que é isso, você só tem medo do mundo externo, você não é Abraão não’, ele não terá margem para jogar. Então nesse sentido a equipe não é terapêutica, ela tende a seguir num sentido ao contrario do trabalho dele. Ele precisa saber jogar com o semblante, ele jogou bastante quando ele estava sozinho, não sei o quanto ele é capaz de jogar agora. Nesse sentido, o trabalho da equipe aí, o fato de ter pluralizado e institucionalizado a transferência foi fundamental, agora se esse Outro transferencial que é a instituição, responde sempre do mesmo jeito para ele: “você é o nosso menino que tem medo do mundo”, ele não vai poder fazer outra coisa, ela vai ter que ser ejetado dali para poder criar um novo semblante se a mãe precisar. Ele não vai poder fazer com a instituição, esse é que o perigo da pluralização também, a instituição não pode ser tão fixa. Ana: Pois é, aí alguma transmissão da psicanálise tem que se fazer valer, senão para que tudo isso, né? Que eu acho que é a ponto de deixar valer esse saber em suspenso, uma certa suspensão metódica do saber, porque amanhã ele aparece dizendo que é Abraão e ai você diz: ‘gente, é então a gente vai ter que rever, não é bem assim ou a gente não pode ir com tanta pressa achando que ela já esta bom, que esta curado’ ou seja lá o que for, porque amanhã ele aparece dizendo que é Abraão, vamos supor. Essa hipótese de que o delírio estoure, né? No começo do tratamento o delírio estoura, e aí quando você põe o saber em suspensão e diz: ‘mas olha, a gente não sabe qual vai ser o próximo passo, o cara é que diz para a gente’. Então aí, se for erro diagnóstico ou não, naquele momento parecia tudo organizado, mas agora não esta mais. Eu acho que isso que é quebrar esse mundo duro, progressivo, evolucionista de que o cara melhora e vai melhorando toda a vida, como ninguém. Nem normais melhoram progressivamente. O ponto então é o saber, na transmissão desse tipo de relação com o saber, e isso a gente não transmite falando com a equipe, a gente transmite trabalhando: ‘olha, não sei, vamos ver, agora esta assim, vamos com cuidado, ele melhorou a mãe caiu, todo mundo já observou isso. Não era cárcere privado, era ele que se escondia, ao mesmo tempo ele se escondeu tempo demais e isso não deixa de ser estranho mesmo para TOC’. Acho que são esses pontos que vão caminhando pelo senso comum e que as pessoas dizendo: ‘é, pode ser que sim, pode ser que não’. Deixar essa coisa vacilando, acho que não tem outro jeito. A transmissão mais importante nesse ponto eu acho que é essa, é deixar a possibilidade de deixar vacilar o saber. Ai, então a gente não precisa trabalhar escondido, achando que é psicose, né? Mas realmente, você não pode dizer que ele tem um delírio sistematizado. Ele não tem uma figura delirante, ele colocou ‘véus’ numa história, é impressionante como ele trabalha mais para o semblante do que para o delírio. Daniela: É como se ele estivesse ‘racionalizando’ um pouco essa história e com isso inventando um novo modo... acho que esse é um aspecto importante no caso também, né? Como ler esse ‘sintoma de isolamento’, como ele chama? Ana: É ai a gente vai entrar nos nossos pontos, né? O que o Viganò apontou... tem uma coisa do olhar aqui que é fantástico. Tem pelo menos duas cenas que eu marquei que você diz: pela relação com o olhar, objeto olhar, você vê que tem um estranhamento ali. Daniela: Eu acho que até aqui a gente já fez um bom cotejamento entre diagnóstico e transmissão, né? O que a Ana acabou de falar já localiza algo que se mantém em suspenso como causando o trabalho de uma equipe. Talvez entrar um pouco mais nos meandros da leitura analítica do caso, que poderia ser ‘como ler esse sintoma de isolamento’, eu acho que a gente poderia cotejar com o outro item que seria ‘os efeitos terapêuticos rápidos’ apontado pelo Wagner. Porque se a gente localiza algo aí, a gente pode extrair alguma coisa da transferência que foi operativa nesse sentido, para recolher os efeitos. Wagner: O que eu teria a dizer, por exemplo, de como vem sendo o tratamento nesses últimos meses, ele vem cada vez se reportando menos a essa situação do passado. Ele traz questões atuais, ele fala do que ele esta experimentado na escola, por exemplo. Ele veio dizendo que não pode mais freqüentar aquela escola, e foi falar com assistente social e tal, e o que ela fez? Ela fez um levantamento de escolas e entregou para ele, ao invés dela conseguir uma escola para ele e dizer onde era. E isso partiu de uma conversa que tive com ela para ele tentar numa escola que seja melhor para ele. Então, ele tem falado dessas situações: das dificuldades, que esta conseguindo isso e aquilo e também do seu interesse pelo mundo da informática. Daniela: Então, ir para a escola é uma solução subjetiva? De que maneira ele consegue se situar, ficar bem, com esse lugar que ele encontra na escola? Tem passagens muito claras do tipo: ‘quando eu tirar os meus documentos vou começar a sair, e vou freqüentar a escola’. Enfim, até que ponto essa oferta de um lugar ‘civil’ possibilitou que ele pudesse construir um novo lugar? Será que essa escola assume uma função de suplência que antes era da ordem do isolamento ou ate mesmo do horror? Enfim, como é que a gente localiza essas ‘novidades’ no momento em que ele sai de casa e diz claramente o que ele quer. E quando ele consegue? Seria uma solução? Ao mesmo tempo ficar isolado 30 anos representa o que? Marcus: Acho que primeiro a gente tem que especular sobre essa solução anterior. Quer dizer, a mudança para o asfalto seria uma situação em que a gente pega e se você tivesse me contado a história? E se a gente tivesse conversado? Tem um sujeito lá em cima, ele diz que quer se mudar para o asfalto, você conversa com ele e ele diz que de lá vê tudo, a gente ia começar a especular que iria abrir um delírio pesado ou que ele iria ficar violento. Não foi isso? A gente imaginaria que essa passagem para o asfalto deveria dar numa catástrofe subjetiva. E não deu, foi muito rápido, me refiro à catástrofe da solução anterior. Daniela: Ele disse que do alto do morro para o asfalto ele chorou muito e ficou muito mal. Marcus: É, mas no que chega o Wagner já ficou tudo muito bom. Quer dizer, muito rapidamente depois dessa catástrofe ele começou a construir alguma coisa e essa construção deve menos a gente e mais a ele, como a Ana tava falando. Ele já chega quase pronto. Ana: A carta, ele já escreve na carta: olha o que eu já trabalhei nesses 30 anos? Marcus: Mas eu imaginaria assim que durante os últimos 29 anos, ele estava de um jeito, depois desestruturação total e reconstrução de outro. Talvez imediatamente, a gente não estava lá para ver, mas esse outro jeito que não é o anterior. Ana: Mas que desestruturação total? Marcus: Que a gente não viu, a gente imagina logicamente alguma coisa que desmontou porque não é mais ele lá olhando para o mundo afastado do mundo, um pouco como o Viganò falou. Ele estava no olhar do mundo e fora do mundo, trinta anos assim... com a televisão, a mãe e ele olhando... Daniela: Ele vê, mas ninguém o vê. Marcus: É, e isso era um modo de estruturação. Aí hoje em dia, não tem mais nada a ver com isso e a gente se pergunta: ué, como é que pode? E porque ele construiu outra solução e essa outra solução não é a mesma anterior: não é em cima dele fora do mundo, fazendo metáfora do carnaval, porque na esquizofrenia cada ala sai de um jeito, né? Não tem como, você vai pegando por pedacinhos. Daniela: O Viganò faz uma consideração importante, porque eu perguntei a ele: ‘vc acha que é uma esquizofrenia clássica? Ele disse que sim, que a gente está acostumado com o imaginário psiquiátrico da psicose e que não é uma esquizofrenia refratária, institucionalizada. A forma como ele fez a montagem do seu delírio, tirou ele do risco do manicômio, esse era um medo da família, a mãe fala isso. Então, até que ponto também tantas soluções foram feitas aí, e a gente só localiza uma parte delas, a ponto da gente poder localizar uma psicose, uma esquizofrenia que seja, mas escapando do imaginário psiquiátrico do que é a esquizofrenia. Tem uma coisa bacana aí, ele se isolou mas diz como ele estava lá se deparando com a própria loucura. Ana: Mas não é só o imaginário psiquiátrico, mas a condução clínica da psiquiatria clássica também que é processual, quer dizer, ela tende a um esfacelamento ou então ela tende a paranóia, se organiza através da paranóia. Acho que o Viganò fez um argumento ousado, né? Marcus: Mas acho que de repente vale a pena marcar esse ponto intermediário, a gente poderia imaginar que ele tem um sentido delirante muito normalizado, ele é um náufrago que está sendo reencontrado depois de sair da ilha, e isso pode ser um postulado e ele esta usando isso para retomar a vida dele. Ou também, qualquer coisa assim: ele esta reconstruindo isso artesanalmente, como o Viganò diz, mais aí há de se prever que blocos estranhos vão começar a aparecer. E nessa hora a equipe não vai agüentar: ‘ah, ele era TOC e agora é sei lá o que’. Daniela: O Tubarão, ele inventa um personagem para conseguir ficar na escola. Porque quando ele vai para a escola, e ele é muito bonitinho dizem as ACS, e as meninas o paqueram e perguntam para ele como era a vida, se já trabalhou, etc. E ele inventa esse personagem. Wagner: Ele se inspira no Tubarão e fala na análise que se faz passar pelo Tubarão, para não dizer que ficou 30 anos trancado, mas sabendo que não é nada disso. Marcus: É tudo muito coerente. Na esquizofrenia é tudo mais descompactado, mas não deu merda até agora. Agora, ao mesmo tempo do lado da paranóia, bem com ele é tudo muito excepcional, mas na paranóia ele teria que ser mais rígido. Se fosse ‘eu sou aquele que saiu de casa depois de 30 anos’, ele não teria inventado o Tubarão, ele iria ficar como um cara que saiu depois de 30 anos do buraco que ele tinha no mundo e pronto, acabou. Daniela: Mas também não nenhum problema de culpa em ser o Tubarão, no sentido de ‘ah se um dia alguém descobrir que isso é mentira’, enfim, nada disso aparece. Marcus: Concluindo, aquilo que a gente tenderia a chamar de paranóia seria muito mais alguém que saiu depois de ficar em casa 30 anos, mas agora ele iria para a televisão para contar essa história. Ele iria criar uma associação daqueles que ficaram isolados, esse é o paranóico. Ele iria ser o líder disso, ia juntar gente e ia fazer um grupo no Facebook. Mas de repente ele troca e agora eu vou ser o Tubarão. Ana: Ele é o Tubarão, mas não é... ele dá uma jogada. Marcus: Uma hipótese poderia ser assim: ele saiu da catástrofe que a gente nem viu, com o sentido de ‘eu sou um menino querendo aprender sobre o mundo”, um troço meio vago assim, que mais ou menos funciona bem assim com o Wagner e com a equipe: eu sou o produto do desejo de vocês que eu seja alguém para o mundo, e isso prossegue. Aí dá para entender o personagem, não dá? Não aparece assim no significante: eu sou um bom aluno, um bom menino da demanda desse mundo de que eu seja legal, que sai do buraco e tal. Aí poderia ser o Tubarão e ainda manter esse sentido. Agora é o máximo que dá para fazer, porque é tudo especulação. Ana: Mas ninguém fez grandes demandas a ele sobre isso. Isso é uma demanda que ele cria por ele mesmo. Marcus: Mas por exemplo, as moças querem saber dele porque ele é bonitinho, qual é a demanda? Dentro dessa demanda tem alguma coisa embutida. Ana: Ninguém diz para ele que ele tem que estudar. Marcus: Ninguém disse, mas é assim o que todo mundo no CAPS quer que ele faça? Que ele volte a estudar, enfim em qualquer lugar. Ana: Ah, mas essa é a demanda do mundo, dos pais, da televisão, ele vai construindo isso antes mesmo de chegar no CAPS, o CAPS chegou lá de ‘gaiato no navio’. Marcus: Então pronto, mas isso dá um lugar para o Wagner também. O Wagner dá corpo para essa demanda, O Wagner não diz nada, mas veicula essa demanda. Daniela: A demanda é: “eu quero voltar a estudar, ter uma namorada e me relacionar melhor com a minha família”. Marcus: Então, a demanda do Outro é: você deve voltar a estudar, etc.” E o CAPS que é o Wagner não poderiam ser o vetor dessa demanda? Mesmo que ele não diga nada? Daniela: Ele diz isso antes de sair, na VD. Marcus: Então talvez ele continue nessa demanda até agora. O CAPS só esta dando corpo para isso, como a Ana estava falando. Ana: Pois é, o CAPS de ‘gaiato no vaio’, mantenha isso que é anterior ao CAPS. Marcus: Meu medo é que é muito bom e gostoso ficar sustentando esse lugar, então não sei até que ponto a equipe esta preparada quando isso muda. Ana: Eu acho que tem que deixar acontecer, porque ninguém se prepara para o real. Marcus: A construção do caso é também para a gente ter um horizonte. O horizonte é: se esse caso é de psicose isso não vai durar. E se isso não vai durar, a gente tem que estar pronto para mexer em algumas coisas quando elas tiverem desestruturadas. Daniela: Estou lendo a passagem sobre o Tubarão, e estou pensando aqui se não há um modo dele se preservar do olhar do Outro que é devastador.: “acho que é porque eu tenho medo das pessoas me descriminarem se souberem que eu sou”. Marcus: Essa é a arrumação da elaboração psicológica dele, o problema maior é com o olhar invasivo do Outro, com o gozo do Outro chegando, aí ele diz: ‘ah, me vejam como uma pessoa menos tímida” Daniela: É, então: “me vejam como o Tubarão”. Marcus: Então, o que segura ele é o Tubarão como semblante que ele vai usar como mediação entre o menino tímido e bom (do sentido compartilhado) e o olhar do Outro que vai me contaminar (da psicose dele). Aí a gente pega esse sentido comum e diz: ‘ah, ele é um menino tímido, é isso o que todo mundo pode fazer e é isso o que ele está usando agora. Mas só isso faz a hipótese de neurose, e a gente sabe que não é só isso. Se a colega da escola quer alguma coisa dele, a gente deve saber que ele não tem a mediação da fantasia que a gente teria, então ele se pergunta: o que eu faço com isso? Eu vou ser o Tubarão ou eu vou me isolar no meu quarto, e ele faz o que ele pode, né? Ana: E o pai constrói um quarto para ele para ele se isolar aos 18 anos. Daniela: Esse personagem me fez lembrar algumas etapas que estão no texto do caso, em relação às histórias sexuais: como as meninas de quem ele gostava e se apaixonava eram aquelas que ‘ele via passar através da janela: sentia o cheiro, alisava o gato dela’. Enfim era sempre evitando o olhar, ele não era visto, ele estava sempre fora da cena. Tem algo aí que o Tubarão modifica né? Talvez pelo fato de ser um personagem que se coloca diante do olhar de uma mulher, aí eu quero ser visto como um bom amigo, um bom pai, etc. Antes ele prescindia do personagem porque não havia um encontro. Marcus: Então ele tem várias cartas na manga, teve essa da reclusão e essa do Tubarão e quem sabe terá outras ainda, mas supondo essa hipótese da psicose qual seria o dispositivo relacional que ele tem hoje? Era a mãe, era a televisão e as moças que passavam, agora ele tem o Wagner que parece que faz parte e quem mais? Tem mais coisa? Com a mãe, por exemplo, ele já não conta da mesma maneira. Wagner: É, ele voltou a estudar, esta aprendendo a usar o computador e participa de algumas festas no bairro, da família, mas não circula muito. Ele, por exemplo, mostrou interesse de passar reveillon em Copacabana, mas não se sentiu a vontade de ir sozinho. Ana: Mas ele teve numa festa de família, que dessa vez ele fala que se sentiu super a vontade e antes ele se sentia estranho. Marcus: Mas a gente vê que a hipótese da psicose faz a gente não deixar para trás a história do isolamento, porque tratando-se de uma psicose ninguém pode deixar isso para traz. Isso faz parte da identidade dele pelos próximos 30 anos, ou pode ser que não, que ela já construiu outra coisa e o isolamento ficou lá no passado. Então a gente tem isso, a idéia da instituição mais do que a da pessoa que pode ajudar, mas pelo visto ainda não aconteceu muito. Ana: Com a instituição aconteceu sim, o Wagner esta ali e faz parte da instituição. Marcus: Mas ele está ligado nisso? Se amanhã ele tem o troço e o Wagner não esta lá, ele vai lá ou te esperaria? Isso fala um pouco de uma transferência institucional. Wagner: Nunca aconteceu, mas eu tenho a sensação que ela vai esperar que eu chegue ou vai me telefonar. Marcus: Tem um investimento no CAPS, mas apesar disso o investimento é pouco e é mais na pessoa do Wagner como vetor disso tudo. Então, a gente está vendo isso acompanhando e em relação à equipe, sei lá como vai colocar uma pulga na idéia de que ele é um menino bom que ficou isolado e que agora ele esta ótimo. Isso não serve para nada, já passou até para ele... Ana: Não sei, daqui a um tempo ele pode tropeçar numa pedrinha e querer se trancar no quarto de novo. Eu acho que para isso é melhor sustentar a suspensão de saber, acho que é isso que é o melhor da transmissão. Marcus: E isso é possível? Sei lá, vamos não saber... as pessoas não vivem com isso. Ana: Mas essa relação com o saber é muito na dobra, ninguém faz sermão, você vai dizer: ‘olha até agora é isso, mas pode não ser’. É marcar um estranhamento. Wagner: É, no caso dele como ele não circula muito entre outros da equipe, pode ser que se ele tenha alguma crise e precise do acolhimento noturno ou outra situação que ele precise ficar mais tempo no CAPS ... Ana: Aí o caso volta a tona e a equipe vai se retificar em relação ao caso. É o que se espera pelo menos, né? Daniela: É interessante porque quando você se reúne com os ACS, no que você localiza que tem algo que ‘não dá para saber’ que é da ordem de uma aposta, aparece uma contribuição de uma ACS, que nem acompanha o caso dele, que começa a traçar uma aposta de trabalho com a mãe. Dali, alguma coisa surge do tipo: “ta bom, mas a mãe dele ficou doente e ele melhorou, mas a mãe agora bate na Clinica da Família” Mas isso é interessante para pensar: na medida em que o Wagner deixa algo em suspenso, e transmite isso para a equipe da ESF, parece que imediatamente como efeito disso aparece: “ah, então ele está bem, as coisas estão acontecendo, mas a mãe precisa também ser tratada porque agora quem está doente é ela”. Então algo do esvaziamento de saber em relação ao paciente, que deu um novo sentido para a equipe que ate então tratava da mãe como se ela estivesse ‘velhinha’ com crise hipertensiva. Eles não conseguiam dar outro lugar para esse adoecimento, foi só quando o Wagner pôde falar disso que eles disseram: ‘ah, então é isso que vocês chamam de somatizar, a Dona Fulana está somatizando, sofrendo com a saída rápida do filho’. Tem um efeito lógico aí, né? Ana: É isso foi muito legal Wagner: Fala dos atendimentos individuais semanais... Marcus: É, o atendimento centrado em uma pessoa só é sempre mais complicado. Se ele hoje pudesse ter um encontro, pelo menos uma vez por mês com a psiquiatra já seria melhor, né? Nem que seja para dizer estou bem, mas vim aqui te contar isso. E ver se ele pode investir no CAPS de alguma maneira, em algum dispositivo com a psiquiatra ou com a assistente social uma vez por mês, sei lá. Wagner: voltar a falar das oficinas? Ana: Não sei porque ele também quer fazer coisas fora, né? Tem que tomar cuidado porque o CAPS é muito lugar de maluco, né? Marcus: Pode ser que na escola ele se entrincheire no Tubarão, porque como ele mentiu para todo mundo, ele não vai poder visitar as pessoas, fazer sei lá o que. Então ele vai se manter sempre a parte: contando para você, contando para os colegas na escola e por aí vai. Mas pode ser que não, pode ser que mais uma vez ele seja impressionante e comece a ter amigos, namoradas, tudo vai dar tudo certo, etc. Bem, mas se ele ficar meio entrincheirado ele vai ficar com você e com a mãe, e com vocês e com todo o mundo, o que não seria a melhor coisa. A melhor coisa seria que ele pudesse ‘pluralizar’ isso, agora como? Aí é ele, na medida dele. Ana: Mas eu acho que forçar um pouco o encontro mensal com a psiquiatra, ou alguma demanda que ele tenha para a assistente social, então ela vai se encontrar mais com ele e ela vai te acompanhar. Marcus: O que teria mais a ver com uma supervisão psicanalítica, sei lá, seria interessante tentar entender melhor, se possível, o que aconteceu com ele para ele conseguir fazer essa revolução e o que está acontecendo agora. Porque é uma investigação também querer saber se realmente ele está se entrincheirando no Tubarão ou o Tubarão está servindo de mediador? Ele está estabelecendo relações a partir do Tubarão ou está estabelecendo distâncias a partir do Tubarão? Wagner: É essa situação vai voltar e não vai demorar porque ele começa a estudar na próxima semana. Marcus: O tratamento dele é acompanhar essa construção de um semblante possível para que ele possa estar no mundo, porque ela ainda não está, acabou de chegar. Será que ele poderá estar no mundo? Wagner: É depois eu mandei para Dani uma fala dele sobre a escola em que ele diz: “pela primeira vez eu me senti pertencendo a um grupo”. Marcus: É, isso é mais atual, vamos acompanhar e descobrir depois.