Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Instituto de Psicologia
Programa de Pós-graduação em Psicanálise
Daniela Costa Bursztyn
A política do sintoma e a construção do caso clínico:
modos de transmissão da psicanálise na prática coletiva em saúde mental
Rio de Janeiro
2012
Daniela Costa Bursztyn
A política do sintoma e a construção do caso clínico:
modos de transmissão da psicanálise na prática coletiva em saúde mental
Tese de doutorado apresentada, como requisito parcial para
obtenção do Título de Doutor, ao Programa de PósGraduação em Psicanálise da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. Área de concentração: Pesquisa em
Psicanálise.
Orientadora: Profa. Dra. Ana Cristina da Costa Figueiredo
Rio de Janeiro
2012
Daniela Costa Bursztyn
A política do sintoma e a construção do caso clínico:
modos de transmissão da psicanálise na prática coletiva em saúde mental
Tese de doutorado apresentada, como requisito parcial para
obtenção do Título de Doutor, ao Programa de PósGraduação em Psicanálise da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. Área de concentração: Pesquisa em
Psicanálise.
Aprovado em: ____________________________________________________
Banca Examinadora:
____________________________________
Profa. Dra. Ana Cristina da Costa Figueiredo (Orientadora)
____________________________________
Prof. Dr. Antônio Márcio Ribeiro Teixeira
____________________________________
Prof. Dr. Luciano da Fonseca Elia
____________________________________
Prof. Dr. Marcus André Vieira
____________________________________
Profa. Dra. Nuria Malajovich Muñoz
Rio de Janeiro
2012
DEDICATÓRIA
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.
Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.
Memória, de Carlos Drummond de Andrade.
Ao mestre, parceiro e amigo Carlo Viganò,
minhas melhores e mais recentes memórias.
AGRADECIMENTOS
À Ana Cristina Figueiredo, por acompanhar os desafios e estimular as conquistas que
atravessaram o percurso desta pesquisa.
Ao Luciano Elia, pelas contribuições que marcaram minha trajetória desde o mestrado
e que enriquecem o debate clínico e político no campo da saúde mental.
Ao Marcus André Vieira, pela aposta no trabalho e pela parceria acolhedora que muito
fez avançar esta pesquisa.
Ao Antônio Teixeira, pela oportunidade de interlocução e pela gentil colaboração para
a continuidade de meus estudos.
À Nuria Malajovich, por ter acolhido carinhosamente o convite para a banca, pela
riqueza de suas observações e incentivos.
Ao amigo e parceiro na pesquisa Wagner Erlange, pela amizade e disponibilidade
generosa, sem a qual não poderia prosseguir nesta experiência.
À Patrícia Matos e à equipe do CAPS João Ferreira Filho, pela oportunidade de
desenvolvimento metodológico desta pesquisa.
À Waleska Floresta, gerente da Clínica da Família Rodrigo Yamawaki Aguilar Roig e aos
profissionais da equipe Itararé, pelas contribuições valiosas.
Ao querido Ivan, companheiro em todos os momentos, entre tantos desafios e
conquistas... viramos essa página juntos!
À Pilar Belmonte, pelo suporte fundamental neste percurso, pela seriedade e pelo
entusiasmo que contagiam o cotidiano do trabalho com sua equipe. Muito obrigada pela
confiança, sempre tão afetuosa!
À cara Estrella Bohadana pela beleza de suas contribuições no diálogo entre a filosofia
e a psicanálise, pelo carinho e pela generosidade de sua leitura atenciosa.
Às queridas amigas Cristina Frederico e Andréa Vilanova, por caminharem ao meu
lado em todas as etapas desta trajetória.
Ao Domenico Cosenza, por enriquecer o meu soggiorno in Italia e mantê-lo ainda
aberto para novas trocas de experiências.
Aos amigos de doutorado Ana Paola Frare, Joseane Garcia, Luciana Del Nero,
Richard Couto e Mariana Abreu, pelo apoio fundamental e pelos alegres momentos de
aprendizado e de diversão.
Ao amigo mineiro Alexandre Costa Val, pelas aventuras milanesas e pela interlocução
preciosa sobre o tema da pesquisa.
Aos meus colegas e parceiros da coordenação de saúde mental Alex Ramalho, Daniela
Albrecht, Luis Granato e Sandra Arôca, pelas delicadas e dedicadas contribuições, pelos
momentos de alegria e de esperança.
Às amigas Marisa Mello e Paula Gaudenzi, pelo apoio carinhoso nos momentos
difíceis desse processo, pelas risadas e pelo companheirismo na leitura da tese.
Aos amigos Bruna Americano, Edimilson Duarte, Renata Estrella, Flávio Bastos e
Pedro Moacyr, pela troca de idéias e experiências e por acompanharem a reta final desse
percurso, sempre na torcida pela comemoração de sua conclusão.
À minha família, por compreenderem minhas ausências, por acreditarem no meu
empenho e pelo apoio imprescindível em cada conquista.
RESUMO
Esta pesquisa apresenta o tema da transmissão da política analítica do sintoma e sua
relevância no atual cenário das pesquisas e métodos clínicos que se aplicam ao campo da
saúde mental. O tema é discutido com base na aplicação do método da Construção do Caso
Clínico explorado como um instrumento de avaliação da condução clínica de uma equipe que
inclui a singularidade do sintoma na leitura coletiva dos casos. A construção do caso é
apresentada como um método de pesquisa clínica em psicanálise que permite acompanhar e
avaliar um processo de tratamento a partir da formalização de elementos extraídos das
narrativas e dos registros de casos acompanhados nos serviços de saúde mental. A discussão
diagnóstica, a expressão singular dos sintomas, a relação transferencial, as demandas e os
diversos momentos de um tratamento são elementos metodológicos da construção do caso que
orientam o trabalho em equipe. A partir desses elementos é possível extrair uma lógica
singular do sintoma em cada caso, sendo este um modo de contribuição da psicanálise na
prática coletiva. Nessa perspectiva, o método da Construção do Caso Clínico favorece a
transmissão da política da psicanálise e seus princípios clínicos ao campo da saúde mental.
Palavras-chave: Psicanálise. Sintoma. Construção do Caso Clinico. Saúde Mental.
ABSTRACT
This research concerns the theme of transmission of psychoanalytic symptom policy
and its relevance to the current scenario of research and clinical methods that apply to mental
health services. Our discussion relies on the method of 'Clinical Case Construction', that we
use as a tool for assessing the clinical procedure of a team in such a way that the singularity of
the symptom in the collective reading of the cases is included. The Case Construction is
presented as a method of clinical research in psychoanalysis which allows one to conduct and
evaluate a treatment process based on the formalization of elements extracted from the
narratives and written records of cases followed in the institutional practice. The diagnostic
discussion, the singular expression of symptoms, the transference process, the demands and
the various moments of a treatment, are elements for the case construction which guide the
teamwork. From these elements it is possible to extract a singular logic of the symptom in
each case, thus showing how psychoanalysis may contribute to the collective work. In this
context the method of
Clinical Case Construction facilitates the transmission of
psychoanalytic policy and its clinical principles to mental health services.
Keywords: Psychoanalysis. Symptom. Case Construction. Mental Health.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 01
CAPÍTULO 1. A especificidade clínica e política da ação do psicanalista................... 09
1.1. A clínica do sintoma e a política da psicanálise ........................................................... 11
1.2. Construções em análise ................................................................................................ 38
CAPÍTULO 2. A metodologia da Construção do Caso Clínico .................................... 60
2.1. A construção do caso clínico como metodologia de avaliação e pesquisa clínica ....... 63
2.2. A construção do caso clínico e a transmissão da psicanálise ....................................... 87
2.3. A construção do caso clínico como metodologia de pesquisa na Saúde Mental ........ 104
CAPÍTULO 3. A metodologia da Construção do
Caso Clínico aplicada à prática coletiva em Saúde Mental ............... 122
3.1. As etapas de aplicação da metodologia da Construção do Caso Clínico ................... 123
3.2. As escrituras clínicas da construção do caso .............................................................. 133
3.3. Considerações sobre a aplicação metodológica da Construção do Caso Clínico ....... 146
CONCLUSÃO ................................................................................................................. 155
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 165
APÊNDICES ................................................................................................................... 172
INTRODUÇÃO
“Voltar quase sempre é partir para um outro lugar”.
Paulinho da Viola
Com a frase do sambista e poeta, introduzimos o relato desta experiência de pesquisa,
marcado por um movimento dialético, no qual um ponto de partida se reconstrói a cada ponto
de chegada, abrindo novas e constantes direções e possibilidades de encontros. Assim se
inicia o percurso acadêmico de doutorado, partindo do interesse em investigar a
especificidade da ação clínica e política de psicanalistas que atuam no campo da saúde
mental. Após concluir o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), com a defesa da dissertação sobre o
tratamento de sujeitos histéricos nas instituições psiquiátricas e nos novos serviços de saúde
mental, um novo caminho se abriu para o retorno à universidade.
As consequências extraídas da pesquisa de mestrado apontavam para a eficácia do
método e da ética psicanalítica para o tratamento de sujeitos histéricos, que hoje podem ser
apartados das discussões diagnósticas desenvolvidas nas instituições públicas de saúde. Foi,
então, a partir do ponto de chegada de um percurso realizado em torno da temática do
tratamento da histeria nos serviços de saúde mental que pude retornar ao mesmo Programa de
Pós-Graduação em Psicanálise, mas, desta vez, partindo para um outro lugar de investigação
teórico-clínica, onde os parâmetros e modos de ação do psicanalista poderiam estar mais
claramente identificados em sua especificidade na prática coletiva da atenção psicossocial.
A experiência obtida no mestrado indicava o engajamento de psicanalistas no campo
da saúde mental como fortalecedor de uma discussão contínua sobre uma prática clínica que
sustenta a concepção do sintoma como algo que detém um sentido vinculado à experiência de
cada caso, e não apenas aos signos classificatórios do saber médico. Nessa observação se
apoiava a consideração da especificidade da prática analítica nas instituições ao sustentar a
produção sintomática como expressão própria de cada sujeito, contribuindo, com efeito, com
os campos da psiquiatria e da saúde mental por meio da discussão dos fenômenos
psicopatológicos, da função dos diagnósticos no tratamento e das ofertas terapêuticas dos
dispositivos da atenção psicossocial.
1
Incluída na categoria das psicoterapias, a especificidade ética e metodológica da
psicanálise a diferencia de outras orientações clínicas empregadas nas instituições públicas. A
referência aos princípios da teoria freudiana sobre a formação dos sintomas e aos avanços da
teoria lacaniana sobre a relação que cada sujeito estabelece com seu sintoma deve, então, ser
considerada como uma orientação fundamental para nortear a prática dos psicanalistas no
trabalho que realizam junto aos outros profissionais nas instituições. Diferenciar a
especificidade do dispositivo analítico é, sobretudo, um modo de preservar a interlocução com
outros profissionais e de contribuir na condução dos casos assistidos no cotidiano das
instituições. No entanto, não é uma tarefa simples a de identificar como a clínica psicanalítica
opera com o sintoma na prática institucional.
Partindo dessas indagações, iniciei o curso de doutorado no ano de 2008, apresentando
como projeto de pesquisa o tema da clínica analítica do sintoma em sua especificidade na
prática institucional. Como proposta de trabalho, a investigação sobre tratamento do sintoma
foi privilegiada pela indicação do modo como a operação clínica da psicanálise, diferenciada
das demais abordagens terapêuticas, marca sua contribuição ao sustentar sua referência à
singularidade do sintoma. Entendia-se, com essa proposta, que a especificidade da ação do
psicanalista na prática institucional não se caracterizava apenas pela oferta de tratamento
psíquico capaz de acolher o sintoma como uma expressão subjetiva, mas, também, pela
transmissão dessa orientação clínica no trabalho com as equipes que se ocupam dos casos nos
serviços de saúde mental.
Nesse caminho, prossegui no estudo dos conceitos da teoria psicanalítica sobre o
estatuto do sintoma com o suporte das disciplinas do curso de doutorado, até encontrar, ainda
no primeiro ano de doutoramento, uma nova direção para abordar a temática pesquisada: a da
política da psicanálise. No segundo semestre de 2008, um reencontro com meus interesses de
pesquisa foi conduzido pela discussão apresentada por Marcus André Vieira, no Seminário A
política do sintoma, realizado na Escola Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro. Voltar ao
tema da especificidade da clínica analítica do sintoma exigia, nesse momento, partir para um
novo caminho guiado pela proposição política da psicanálise, cuja orientação clínica inclui a
dimensão do real do gozo na experiência clínica. Essa foi, então, a perspectiva traçada para
avançar no tema da clínica analítica do sintoma, retomada, a partir daí, em seu viés político de
transmissão da orientação da psicanálise frente à política do mundo globalizado, que exclui o
real em jogo no tratamento do sintoma para aprisioná-lo na universalização das classes e
comunidades identitárias que resultam dos manuais diagnósticos da psiquiatria.
2
No ano seguinte, essa proposta de pesquisa partiu para uma experiência de estágio de
doutoramento no exterior. Esse estudo passou a se desenvolver na cidade de Milão (Itália), no
período de março de 2009 a janeiro de 2010, sob a orientação da professora Ana Cristina
Figueiredo e a co-orientação do psiquiatra e psicanalista Carlo Viganò, por meio da
autorização de intercâmbio acadêmico entre a Universidade Estadual do Rio de Janeiro e a
Università degli Studi di Milano. O desenvolvimento dessa pesquisa, na Itália, trouxe
consequências decisivas para o seu seguimento, a começar pela observação in loco do modelo
italiano de assistência 1 , que marcou as políticas públicas de saúde mental do Brasil. Tomando
como referência a articulação da psicanálise com o panorama atual da assistência italiana,
pude observar, com maior regularidade, a dinâmica do serviço ambulatorial da Unità di
Psiquiatria Dinamica e Psicoterapia do Dipartimento di Salute Mentale do Ospedale
Niguarda Ca` Granda com participação em atividades de ensino e de pesquisa clínica,
vinculadas à Università degli Studi di Milano. Além dessas atividades acadêmicas, a
participação nos encontros mensais, no Cartel registrado com o título ‘Pesquisa Clínica e
Transmissão da Psicanálise’, no Istituto Freudiano di Milano, tornou-se um ponto de apoio
imprescindível para a construção de novos argumentos e articulações teóricas.
A oportunidade de aprofundamento dessa pesquisa no exterior possibilitou uma
investigação mais depurada de propostas e métodos clínicos, capazes de demonstrar como a
especificidade dos princípios da clínica psicanalítica pode contribuir para o trabalho
institucional. Para fundamentar essa investigação, o estudo sobre o método da Construção do
Caso Clínico passou a ser priorizado como uma proposta de trabalho e de pesquisa de
orientação psicanalítica, que visa a uma conduta em equipe, a partir da transmissão da lógica
única e particular do sintoma em cada caso. Viu-se, aí, uma nova abertura para investigar de
que modo a metodologia da construção do caso possibilitaria tratar o sintoma em sua
dimensão singular, produzindo, ao mesmo tempo, uma transmissão da política do sintoma no
trabalho coletivo em saúde mental.
O método da Construção do Caso Clínico desenvolvido por Carlo Viganò, na Escola
de Especialização em Psiquiatria e Psicoterapia da Universidade de Milão 2 , revelou-se,
1
No período de estágio de doutoramento na Itália, pude observar alguns serviços substitutivos como o Centro Psicossocial
(CPS) que corresponde ao formato de funcionamento do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) no Brasil, o Setor de Saúde
Mental - Curta Permanência - do Hospital Geral de Milão, o complexo de serviços do antigo Hospital Psiquiátrico da cidade
e algumas de suas Comunidades Terapêuticas. Entre elas, destaca-se a experiência de intercâmbio acadêmico realizada
durante quatro meses, a partir do contato com o psicanalista Domenico Cosenza, na Comunidade Terapêutica ‘La Vela’ di
Moncrivello cuja particularidade clínica entre os variados dispositivos dessa rede de serviços é caracterizada pela oferta de
acompanhamento de casos graves de anorexia e bulimia.
2
Referência ao curso de especialização da Unità di Psiquiatria Dinamica e Psicoterapia do Dipartimento di Salute Mentale
do Ospedale Niguarda Ca` Granda conveniada a Università degli Studi di Milano.
3
então, um importante instrumento de pesquisa clínica em psicanálise, que permite
acompanhar e avaliar um processo de tratamento, a partir da construção de elementos
extraídos das narrativas e registros de cada caso. Como demonstração de sua operação
metodológica, a construção do caso produz uma escritura clínica da qual se extraem as
passagens e escansões das transformações do sintoma na condução terapêutica que seja
transmissível na sua coerência clínica e subjetiva àqueles profissionais não referidos aos
fundamentos da psicanálise. Essas observações instauraram, enfim, o ponto de chegada do
plano de estudos desenvolvido na Itália como proposta para esta pesquisa. Assim, o método
da Construção do Caso Clínico passou a ser utilizado como um instrumento para abordar o
tema da política da psicanálise por favorecer a transmissão da operação analítica com o
sintoma no trabalho em equipe multidisciplinar, sendo, ao mesmo tempo, uma contribuição
para o campo das pesquisas que se ocupam da avaliação do acompanhamento clínico em
saúde mental.
Voltando ao Rio, abriu-se uma nova possibilidade de situar a temática desta pesquisa
no atual cenário da rede de serviços de saúde mental da cidade. No final do ano de 2010, ao
aceitar o convite para compor a Assessoria de Matriciamento da Coordenação Municipal de
Saúde Mental, pude observar a relevância dessa proposta de pesquisa aplicada ao campo da
atenção psicossocial. Nesse contexto, a política do ‘choque de ordem’, aplicada à clínica da
saúde pública, vinha se consolidando rapidamente pela difusão do ato autoritário da
internação compulsória para usuários de drogas e pela expansão galopante de equipes e
unidades de Saúde da Família monitoradas por ‘metas’ de avaliação da resolutividade e
agilidade dos atendimentos.
Com efeito, os recursos financeiros da máquina pública
escoavam para o investimento nas Clínicas de Família e para as intervenções higienistas do
recolhimento compulsório realizadas pela Secretaria de Desenvolvimento Social, encerrando
qualquer possibilidade de debate clínico sobre os casos assistidos. A rede de atenção
psicossocial, com isso, foi sendo cada vez mais desconsiderada em termos de investimento
público.
Como, então, preservar a dimensão da política analítica do sintoma no debate
democrático diante da imposição da política do choque de ordem? A aposta na ‘expansão’ da
lógica da clínica ampliada em saúde mental passou a nortear o trabalho na Coordenação de
Saúde Mental, em paralelo à proposta desta pesquisa de aplicação da metodologia da
Construção do Caso Clínico na prática do matriciamento 3 , desenvolvida entre profissionais
3
Modalidade de trabalho em equipe proposta para o acompanhamento de pacientes dos serviços de saúde mental junto às
equipes da Estratégia de Saúde da Família. No Rio de Janeiro, essa proposta de apoio matricial vem se desenvolvendo por
4
que atuam nas Clínicas de Família e nos serviços de saúde mental. Essa aposta esteve
articulada à hipótese de que este método de pesquisa permitiria preservar a dimensão da
clínica do caso a caso na avaliação do projeto terapêutico de uma equipe clínica, em contraste
a uma forte tendência sanitarista e imediatista de intervenções de supressão dos sintomas,
baseadas nas classificações diagnósticas.
A importância desta pesquisa consiste, portanto, na possibilidade de aplicação dos
princípios da psicanálise na clínica ampliada da atenção psicossocial pelo método da
construção dos casos. Para fundamentar esta discussão, será necessário analisar como os
elementos metodológicos da Construção do Caso Clínico possibilitam produzir uma
formalização lógica do sintoma em cada caso que seja transmissível aos profissionais que
atuam no campo da saúde mental. E, a partir desta análise, verificar como a transmissão da
operação analítica com o sintoma pode alcançar a condução dos casos no cotidiano do
trabalho em equipe.
O estudo desenvolvido nesta pesquisa apresenta uma revisão da literatura
psicanalítica, tendo como referência as passagens da obra freudiana e do ensino de Lacan, que
fundamentam o estatuto do sintoma para a psicanálise; explorando, ao mesmo tempo, uma
articulação dessa concepção com a proposta da política do sintoma.
A partir daí, a proposta
metodológica da construção do caso é abordada em seu viés político de intervenção na prática
institucional e de investigação avaliativa no contexto atual das pesquisas clínicas em saúde
mental. A pesquisa será enriquecida por referências extraídas do diário de campo, produzido
na experiência de intercâmbio acadêmico e da interlocução, mantida regularmente com Carlo
Viganò, proponente do método aplicado, até o início do ano vigente. Com base nessas
referências, apresentaremos as etapas da aplicação metodológica da Construção do Caso
Clínico realizada em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da cidade do Rio de Janeiro,
visando recolher dessa experiência os efeitos de transmissão da política analítica do sintoma
na avaliação das conduções e condutas do trabalho em equipe.
A pesquisa se inicia com uma reflexão teórica sobre o estatuto do sintoma na clinica
psicanalítica, no intuito de desenvolver uma fundamentação que possibilite identificar como a
clínica psicanalítica opera com o sintoma na prática institucional. No primeiro capítulo,
apresentamos uma discussão conceitual sobre a concepção de sintoma para a psicanálise,
tendo como eixo a teoria freudiana da formação dos sintomas, as formulações propostas por
Lacan na passagem dos conceitos de sintoma ao sinthoma e uma revisão da literatura
profissionais que atuam nos Núcleos de Apoio a Saúde da Família (NASF), nos CAPS e nos ambulatórios de saúde mental,
dependendo dos recursos da rede de serviços de saúde mental de cada território.
5
psicanalítica que situe as mudanças de perspectivas desses autores no que se refere à teoria do
sintoma.
Da obra freudiana, o texto ‘Construções em Análise’, de 1937, recebe destaque pela
articulação conceitual, promovida por esta pesquisa, a partir da concepção de sintoma como
uma construção de cada sujeito com o real do gozo que escapa ao sentido e à rememoração.
Sob essa perspectiva, propomos explorar a tarefa da construção analítica como diretamente
atrelada ao trabalho do analista com o real da experiência clínica, apreendida no nível das
construções produzidas pelo analisante para lidar com o irredutível da repetição do gozo do
sintoma. Será enfatizado, ainda, o caráter político dessa proposição freudiana no cenário
científico do início do século XX, quando o rigor da operação analítica da construção passou
a ser transmitido ao campo clínico de modo diferenciado dos métodos da ciência empírica e
da sugestão.
Dos seminários e escritos de Lacan, serão ressaltadas as considerações teóricas sobre o
sintoma e sua relação fundamental com a linguagem, definida, na década de 1950, a partir do
simbólico, e na década de 1970, a partir do real; momento em que essa definição passa a ser
associada a um modo de gozo do inconsciente. Essa concepção presente no final do ensino
lacaniano, em especial no Seminário 23, em que Lacan desenvolve sua teoria sobre o
sinthoma, nos permitirá explorar uma abordagem clínica do sintoma, tomado não somente em
sua dimensão de verdade e de sentido decifrável, mas em sua dimensão de gozo. Trata-se de
uma orientação para a clínica do sintoma, cuja direção visa localizar no sujeito o seu ponto de
incurável e uma nova solução frente ao manejo do gozo. Diante dessa concepção, a clínica
psicanalítica não opera com o sintoma como algo a ser abolido, atenuado ou até mesmo
curado; mas com um sintoma a ser assumido, inventado ou até mesmo construído. Essa seria,
então, uma nova orientação do ensino de Lacan, que condiciona a política da psicanálise,
concebida pela subversão que esta produz na apreensão do sintoma como categoria universal,
redirecionando-o para a particularidade de um funcionamento subjetivo, que se apreende pela
via do ‘sem sentido’ que o gozo introduz na experiência clínica, melhor dizendo, pelo
impossível de universalizar na clínica do sintoma.
Com esta discussão, pretendemos demarcar a especificidade clínica e política da ação
do analista na prática institucional pelo modo como a clínica psicanalítica lida com o
sintoma na prática coletiva em saúde mental. A operação analítica com o sintoma será
abordada, particularmente, em sua diferença frente às práticas dos campos da psiquiatria
contemporânea e das psicoterapias, não como movimento de militância ou de confronto
ideológico, mas como uma contribuição fundamental para clínica ampliada na rede pública de
6
saúde, que deve ser assegurada no trabalho interdisciplinar frente ao reducionismo das
classificações diagnósticas. Nessa perspectiva, apresentamos como uma proposta política da
psicanálise para o campo da saúde mental o trabalho em equipe orientado pela lógica
singular do sintoma, pela possibilidade de tornarmos legíveis as construções de cada sujeito
em torno do incurável do sintoma psíquico.
No segundo capítulo, será discutida a definição da proposta metodológica da
Construção do Caso Clínico e seu modo de avaliação e de pesquisa clínica em psicanálise
aplicada ao campo da saúde mental. A partir dessa apresentação, serão explorados alguns
elementos, princípios e proposições políticas que compõem o método de construção do caso,
visando localizar, nesse instrumento de pesquisa, a função do sintoma em cada caso. Com
isso, poderemos verificar de que modo a especificidade da operação analítica com o sintoma
pode ser transmitida no trabalho em equipe, com base na metodologia empregada nesta
pesquisa.
Para a fundamentação da Construção do Caso Clínico como método de pesquisa em
psicanálise, será assinalado o modo específico de investigação, que resulta da experiência da
construção dos casos na qual o valor sempre inédito do caso clínico acompanha a elaboração
do saber teórico. Sobre esse aspecto, discutiremos de que maneira a avaliação clínica,
produzida por essa metodologia, pode apoiar a pesquisa do analista desenvolvida na
universidade, no campo da saúde mental ou nas instituições psicanalíticas. Assinalamos a
perspectiva política dessa proposta inovadora, no contexto atual das pesquisas clínicas, por
assegurar o valor metodológico do caso único e a verificação das modificações do sintoma no
nível de uma axiomática avaliativa. Em contraposição aos protocolos estatísticos de validação
terapêutica, situamos a importância desse método de pesquisa como capaz de produzir uma
avaliação da lógica processual do tratamento do sintoma, incluindo a transferência no eixo de
uma investigação realizada por uma equipe clínica.
Apresentaremos, em seguida, o tema da política do sintoma em articulação com os
efeitos de transmissão da psicanálise propiciados pela metodologia da construção do caso. A
noção do testemunho articulada à transmissão da operação analítica será explorada pela
escritura clínica da construção como uma ferramenta de demonstração, que inclui o
testemunho de uma equipe em torno de um ato clínico que se constrói a posteriori a cada
intervenção. Em linha direta com essa discussão, demarcaremos uma relação entre a
transmissão e a aplicação dos princípios psicanalíticos na vida humana e na cultura como
uma estratégia clínica e política da pesquisa em psicanálise. Nessa direção, o método de
pesquisa da Construção do Caso Clínico será abordado a partir de pesquisas publicadas
7
recentemente, cujas análises apontam para os efeitos de transmissão da psicanálise aplicada à
clínica da atenção psicossocial.
O terceiro e último capítulo apresentará a aplicação da metodologia da construção do
caso na prática coletiva em saúde mental, desenvolvida nesta pesquisa por meio da
construção de um caso acompanhado por um profissional de formação psicanalítica que atua
em um dos CAPS da cidade do Rio de Janeiro. O método empregado será sistematizado em
quatro etapas de aplicação, tendo em vista os desdobramentos provocados pelo caso em
questão. Entre essas etapas de construção coletiva, indicaremos o desafio proposto
anteriormente de utilizar e ampliar a aplicação desse método de pesquisa clínica por meio da
prática de matriciamento em saúde mental, desenvolvida por este profissional do CAPS,
colaborador da pesquisa, junto à equipe de referência territorial da Estratégia de Saúde da
Família, que identificou a necessidade de acompanhamento do paciente. Esta experiência nos
permitirá analisar os resultados e alcances de transmissão da política psicanalítica do sintoma
a um campo mais variado de cuidados e intervenções no campo da saúde pública. Como
última etapa de aplicação metodológica, apresentaremos a proposta de composição do
Laboratório da Construção do Caso Clínico, caracterizado como um dispositivo de pesquisa
potente para a formação do analista e passível de ser aprimorado como uma proposta para o
estudo de caso, que recolhe da leitura coletiva de uma equipe clínica elementos fecundos para
fazer avançar a teoria e clínica psicanalítica no cenário clínico atual.
Sigamos, então, entre os pontos de partida e chegada deste percurso de pesquisa em
psicanálise...
8
CAPÍTULO 1
A especificidade clínica e política da ação do psicanalista
No atual cenário das pesquisas e métodos clínicos empregados nos campos da
psiquiatria e da saúde mental, situamos a especificidade clínica e política da ação do
psicanalista na prática institucional e sua tarefa de transmitir os princípios éticos e
metodológicos da psicanálise. A orientação da psiquiatria contemporânea, fundamentada no
modelo médico-científico, consiste em reduzir a formação dos sintomas aos diversos
transtornos que compõem os manuais de classificação diagnóstica. Na busca de uma
cientificidade, a psiquiatria, cada vez mais, exclui a particularidade de cada sintoma, já que o
discurso da ciência ejeta o sujeito sem levar em conta sua expressão singular e o real em jogo
em cada tratamento. Ao priorizar a pesquisa científica em detrimento da clínica, as pesquisas
em psiquiatria se inscrevem em um movimento amplo de objetivação dos fenômenos
observados no campo dos transtornos mentais, restando à discussão dos casos um lugar onde
subjetividade é esmagada pelo peso que a ciência deposita no debate clínico atual. E os
sintomas, que são significativos para identificar um diagnóstico, ficam retidos na objetividade
descrita nos manuais, desconsiderando a maneira singular de interrogar o sofrimento psíquico.
Cria-se, assim, uma lógica de intervenções que se afasta dos princípios da clínica psiquiátrica,
descartando o sujeito e suas particularidades.
O sintoma transformado em ‘transtorno mental’ caracteriza uma lógica de tratamento
que se resume às respostas positiva ou negativa à medicação, produzindo novas e constantes
‘evidências científicas’. Esta é a concepção de sintoma que orienta as diretrizes atuais das
políticas públicas que avaliam a eficácia das terapias psicológica e farmacológica,
considerando a economia de tempo e de custos para o tratamento dos transtornos mentais. Se
aplicarmos esse modelo clínico ao campo da saúde mental, perdemos completamente a
referência de uma prática clínica orientada pelo sintoma como correlato do sujeito para dar
lugar a uma prática estatística de verificação de intervenções e procedimentos. Orientar-se
pelo sintoma como marca de um sujeito é um modo de retomar a discussão clínica e
diagnóstica no campo da saúde mental, sem restringi-la a um conceito ou a um modelo
classificatório, mas transmitindo o que há de único em cada caso. Trata-se de sustentar a
9
política do sintoma no trabalho coletivo da atenção psicossocial, propondo uma prática clínica
mais adequada ao atual paradigma da saúde mental: o trabalho em equipe orientado pela
lógica singular do sintoma.
Entretanto, não é uma tarefa simples a de identificar como a clínica psicanalítica opera
com o sintoma na prática institucional. A concepção do sintoma para a psicanálise é marcada
por atravessamentos conceituais que, consequentemente, modificam sua abordagem na
direção de um tratamento. É necessário, então, introduzir essa pesquisa com algumas
pontuações sobre o estatuto do sintoma na clínica psicanalítica para, em seguida, apresentar a
metodologia da construção do caso clínico como uma proposta de trabalho e de pesquisa de
orientação psicanalítica que visa a uma conduta em equipe, com a transmissão da lógica única
e singular do sintoma em cada caso.
A proposta de uma política do sintoma implica o desafio de tornar transmissível à
prática coletiva o trabalho clínico com o sintoma, a partir de uma perspectiva clínica, cuja
expressão sintomática não é considerada em termos de um fenômeno ‘curável’ ou ‘incurável’
e, portanto, passível de uma observação clínica a ser comprovada e avaliada empiricamente.
A operação metodológica da psicanálise se sustenta na experiência de cada caso, produzindo,
ao mesmo tempo, uma formalização lógica capaz de explicar e de transmitir a relação que
cada sujeito estabelece com seu sintoma. E isso se reflete de outro modo, associado a uma
direção fundamental: a de uma política do sintoma fundamentada na última fase do ensino de
Lacan, cuja proposição considera um ‘saber-fazer’ com o sintoma, a partir de uma operação
que trata o gozo sintomático como solução inventada por cada sujeito, o que podemos
considerar como um modo de eficácia do método analítico. Nessa concepção, o sintoma não é
algo a se superar, pois, para o ser falante, não há outro modo de se relacionar com o gozo que
não seja pela via do sintoma, melhor dizendo, que não seja sintomatizando. É possível, então,
modificar, construir ou inventar um modo de lidar com o real do gozo do sintoma, diante da
impossibilidade de aboli-lo ou obliterá-lo.
Para abordar essa discussão teórica, apresentamos um recorte conceitual, extraído da
obra de Freud e do ensino de Lacan sobre o estatuto do sintoma, considerando suas
articulações e variações teóricas ao longo do percurso teórico-clínico desses autores. A
temática deste capítulo situa a investigação da concepção psicanalítica de sintoma para
desenvolver uma fundamentação teórica que permita definir o seu estatuto e o modo como a
clínica analítica opera com o sintoma no processo de um acompanhamento clínico, como uma
proposta política da psicanálise para o campo da saúde mental. Como ponto de partida para
desenvolver a temática desse capítulo, situamos a especificidade da ação clínica e política do
10
psicanalista diante do real em jogo na clínica do sintoma, não caracterizado por um
antagonismo com o real da ciência, mas pela sustentação de sua diferença em relação ao
campo científico e às psicoterapias do comportamento. Nessa perspectiva, apresentamos a
proposta de uma política da psicanálise, concebida pela subversão que esta produz na
apreensão do sintoma como categoria universal, redirecionando-o para a particularidade de
um funcionamento subjetivo, que se apreende pela via do ‘sem sentido’ que o gozo introduz a
cada experiência clínica.
A política da psicanálise não se orienta pelo conjunto de normas e deveres de
promoção de um ideal de saúde, bem-estar e felicidade predominantes nos tempos atuais. Esse
é um princípio clínico que subverte o mecanismo da política, propriamente dita, quando, por
exemplo, o sujeito é retirado das classificações identitárias que compõem os manuais
diagnósticos da psiquiatria contemporânea. A política do sintoma, a da clínica do caso único,
é a que deve nortear a construção de casos clínicos nas instituições. Ao considerar a dimensão
do real do sintoma desde o início do tratamento, a construção do caso na orientação analítica
permite recolher e transmitir os efeitos de real sobre o sujeito e o impossível de universalizar
de seus sintomas. E isto não somente influencia o tratamento dos sintomas no campo da saúde
mental, mas também nos adverte quanto à avaliação dos efeitos terapêuticos em psicanálise
que dá lugar ao sintoma como traço mais particular do caso clínico.
É, portanto, pelo viés da política de ações e de intervenções clínicas que a psicanálise
pode propor ao campo da saúde mental seu modo próprio de trabalho com o sintoma na
prática coletiva da atenção psicossocial. Torna-se necessário, então, discutir a inserção da
política psicanalítica do sintoma na rede pública de saúde, não como movimento de militância
ou de confronto ideológico, mas como uma contribuição fundamental para o
acompanhamento clínico e como proposta que deve ser assegurada no trabalho
interdisciplinar das instituições.
1.1. A clínica do sintoma e a política da psicanálise
Na conferência proferida na Itália em 2001 e, em seguida, publicada com o título
Intuições Milanesas, pela retomada do texto apresentado em seu Curso de Orientação
Lacaniana, Jacques-Alain Miller apresenta considerações importantes sobre o tema da política
da psicanálise. Entre elas, destacamos a mobilização política que se estende aos psicanalistas
no processo democrático, em relação ao modo como o sintoma é posto em cena pelas atuais
correntes terapêuticas.
11
Para introduzir sua conferência, Miller retoma a proposição de Lacan no seu
Seminário, Livro 14, intitulado A lógica da fantasia (LACAN, 1966-67), em que afirma que
"o inconsciente é a política". Nota-se, de saída, que Lacan não diz que a ‘política é o
inconsciente’, mas sim que o “inconsciente é a política”, apontando para a definição do
inconsciente pela política como um desdobramento da noção do “inconsciente como discurso
do Outro” (LACAN, 1998, p. 440) 4 , referente à relação do sujeito com o Outro da linguagem
que o constitui. Isto se desdobra, mais adiante, quando Lacan estabelece a concepção de que
“o inconsciente provém do laço social”, com a matemização do ciclo dos quatro discursos
(LACAN, 1982) 5 , momento em que assinala que todo discurso se define como uma forma de
laço social, concebendo laço social como tecido e estruturado pela linguagem. Do mesmo
modo, podemos retomar a proposição “o inconsciente é a política” pela definição do Witz
freudiano (FREUD, 1996) 6 , levando até as últimas consequências o que Freud descobre em
sua análise do chiste: de uma formação do inconsciente como processo social que tem seu
reconhecimento e sua satisfação no Outro no instante de rir. Ou ainda, em Psicologia das
massas e análise do eu (FREUD, 1996), em que Freud desenvolve a noção da política
remetida ao inconsciente, quando analisa as formações coletivas como formações do
inconsciente, pela incidência do mesmo significante identificatório em determinados modos
de expressão sintomática.
Ao diferenciar a sentença: “a política é o inconsciente”, que por si só representa uma
redução da política ao conceito de inconsciente, da proposição “o inconsciente é a política”,
Lacan abre uma via para a releitura de alguns textos de Freud, nos quais essa sentença é
tomada como uma ampliação do conceito de inconsciente, conduzido para além da esfera
individual e familiar para situá-lo na pólis, na cidade, e subordiná-lo à História de uma
civilização. De outro modo, a afirmativa que reduz ‘a política ao inconsciente’ encontra uma
série de objeções conceituais, na medida em que sabemos que “há mais na política do que o
que provém do inconsciente.” (MILLER, 2011a, p. 03).
Ao constatar que o que chamamos hoje de globalização é uma estrutura social
diferente daquela do tempo de Freud, essa conferência nos leva a situar a psicanálise nos
tempos atuais, diante do processo democrático e do desafio de sustentação da práxis analítica
frente à proliferação das psicoterapias do comportamento, apoiadas pelo discurso médicocientífico. Nessa direção, podemos retomar do ensino de Lacan, por exemplo, a subversão
4
Psicanálise e seu ensino [1957].
O Seminário, livro 20: Mais, Ainda [1972-1973].
6
Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente [1905].
5
12
produzida no ‘sujeito da ciência’ como efeito da análise freudiana da enfermidade psíquica,
remetida ao sujeito do inconsciente como sujeito da civilização. E isso nos alerta quanto à
percepção do modo como hoje o sujeito da civilização é trazido para a cena dos debates
clínicos e como isso também condiciona a experiência analítica.
O nascimento da psicanálise está relacionado com o contexto da sociedade
disciplinar 7 na passagem dos séculos XIX e XX e, consequentemente, com o mal-estar de
uma sociedade submetida a interditos e imposições potentes, em especial, em relação à
sexualidade. No entanto, Miller assinala que o totalitarismo foi uma ‘bela esperança’ que
encantou as massas do século XX como “uma esperança de suprimir a divisão da verdade e de
instaurar o reino do Um na política” (MILLER, 2011a, p. 05), conforme o modelo que pode
ser apreendido em Psicologia das massas e análise do eu (FREUD, 1996). Essa aspiração à
harmonia e à reconciliação postulada pelo totalitarismo também pode ser lida nos termos do
discurso do Presidente Schreber (FREUD, 1996) 8 . Segundo Miller (2011a), o triunfo da
democracia no pensamento contemporâneo não produz o mesmo entusiasmo da “bela
esperança” da sociedade disciplinar, na medida em que o processo democrático implica uma
aceitação da divisão da verdade. Se a verdade está destinada a ser dividida, podemos notar
que a sua aceitação ganha uma forma objetiva na contradição insolúvel dos partidos políticos,
podendo, ainda, ser avaliada pelo efeito depressivo que esse pensamento contemporâneo
produz.
Na época em que os ‘filtros de saber’ se desestruturam e que todos os aparelhos
sociais 9 , capazes de realizar uma formalização da realidade, estão abalados e pressionados
pela enxurrada de informações, característica do mundo globalizado, o autor extrai uma
observação da parte dos sociólogos que afirmam que a “globalização é acompanhada de
individuação” (MILLER, 2011b, p. 14). Desse modo, Miller assinala o impacto da era
globalizada nos modos de vida, indicando a configuração de um laço social, com base no
movimento de sujeitos desarticulados e dispersos que são, ao mesmo tempo, induzidos a um
dever social e a uma exigência subjetiva de invenção. E isso se expressa sob o mote
contemporâneo “living my own life” – “viver minha própria vida, vivê-la do meu jeito” – que
é enfatizado pelo autor como uma fórmula que comporta o declínio da organização coletiva
dos modelos e que situa o sujeito diante de uma demanda de invenção e de valorização do seu
7
Jacques-Alain Miller faz referência ao termo estabelecido por Michel Foucault em seu trabalho intitulado ‘Vigiar e Punir’
(FOUCAULT, 1987).
8
Notas Psicanalíticas sobre um Relato Autobiográfico de um Caso de Paranóia [1911].
9
O autor menciona o exemplo das instituições educacionais como um desses aparelhos sociais.
13
estilo de vida individual. Trata-se da época do “Outro que não existe”10 , conceituada em outro
momento por Miller, a partir desse mesmo ponto de vista.
Nesse panorama do processo democrático e da globalização, Miller inclui a inscrição
da famosa frase de Lacan – “a relação sexual não existe” – (LACAN, 1984) 11 como modo de
traduzir o apagamento definitivo da norma pela lógica do ‘não-todo’, que a descompleta, e o
abandono do que retinha a psicanálise na época disciplinar pela inclusão do gozo em sua
teoria. Com essa frase, Lacan dá um lugar destacado à invenção sexual como uma criação
“fora da norma” e, portanto, regida pela singularidade do gozo. Essa concepção acompanha a
teoria de Lacan até o final de seu ensino, quando introduz a escrita do sinthoma (LACAN,
2007) 12 como um novo nome que indica o sintoma como regime próprio ao gozo, o qual o
sujeito experimenta de forma inventiva e não mais condenado por sua manifestação.
A propósito do tema da psicanálise na época da globalização, Miller (2011b, p. 11),
demarca algumas modificações que se apresentam na clínica psicanalítica no contexto de um
mundo globalizado que se apoia na lógica do “não-todo”. Segundo esse autor, “o não-todo
não é um todo que comporta uma falta, mas uma série em desenvolvimento, sem limite e sem
totalização” (MILLER, 2011b, p. 11), o que permite uma articulação com o termo
‘globalização’ por se tratar de um processo civilizatório em que todos os equipamentos sociais
e ideológicos, que visam ao estabelecimento de limites ou da totalização de seus princípios,
encontram-se ameaçados ou tornam-se cada vez mais vacilantes. Assim, a globalização é
designada pelo autor como um processo de “destotalização” que se contrapõe, por exemplo, à
estrutura totalitária da sociedade disciplinar, na medida em que nenhum elemento contém um
atributo que lhe seja assegurado por muito tempo pelos seus princípios. Trata-se de uma época
de efemeridades do conhecimento, em que não se tem a segurança de um atributo, mas a sua
pluralização transportada aos bens de consumo. E para tornar esse ‘espetáculo do mundo’
algo decifrável, convém relacioná-lo à estrutura lógica do “não-todo”, conforme os
ensinamentos de Lacan. Com esse argumento, Miller (2011b) assinala que relacionar essa
estrutura com o processo de globalização nos reporta, necessariamente, à fórmula lacaniana
da sexuação feminina. Isso implica a possibilidade de articular essa teoria de Lacan com o que
observamos na ascensão dos valores ditos ‘femininos’ na sociedade contemporânea, que se
apresentam desde os valores compassivos da promoção da atitude de escuta e da política da
10
MILLER, 2003.
O Seminário, livro 20: Mais, Ainda [1972-1973].
12
O Seminário, livro 23: O sinthoma [1975a].
11
14
proximidade, até os demais valores que se desdobram nesse nível e que afetam os rumos da
política.
A partir dessa observação, o autor (MILLER, 2011b) situa, então, as modificações que
atingem a clínica psicanalítica nos tempos atuais pelos efeitos do mundo globalizado. Ainda
segundo o autor, a clínica clássica, cujos princípios aprendemos com Freud e com os
ensinamentos de Lacan, tinha como pivô o Nome-do-Pai e se configurava a partir da posição
que cada sujeito estabelecia em relação à metáfora paterna, que marca a relação do desejo
com a Lei e a falta. Consequentemente, as diferentes modalidades do desejo eram descritas na
clínica clássica por concepções distintas, como, por exemplo, o desejo insatisfeito da
histérica, o desejo impossível da neurose obsessiva e o desejo prevenido do analista, incluindo
nas diferentes estruturas clínicas modos distintos de defesa e de expressão sintomática. A
clínica clássica, portanto, “respondia essencialmente à estrutura da sexuação masculina, à
estrutura do todo e do elemento antinômico.” (MILLER, 2011b, p. 18), o que permitiu que a
classificação diagnóstica em psicanálise se difundisse entre várias gerações de analistas por
sua formalização mais estanque e rígida em termos teóricos.
Em relação à clínica contemporânea, Miller aponta para uma mudança de vertente,
cuja dimensão pode ser apreendida pela maior incidência de patologias descritas como
‘centradas na relação com a mãe’, em que se valoriza precisamente o sem-limite da série.
Entre elas, enquadram-se as patologias ligadas à dependência, como a toxicomania – ou casos
mais recentes de anorexia e bulimia. Nesse atual cenário da clínica, observa menor efetividade
da metáfora paterna e, ao invés disto, a pluralização dos S1 e, até mesmo, sua pulverização,
levada ao ponto em que podemos reconhecer essa mudança na crise das classificações
diagnósticas, em que os próprios termos e categorias da clínica clássica deixaram de ser
operatórios (MILLER, 2011b). Para abordar a clínica contemporânea como a clínica do ‘nãotodo’, Lacan nos indica a via do nó como uma direção possível para demonstrar a estrutura
lógica do ‘não-todo’, quando nos apresenta uma série infinita de arranjos montados a partir de
‘três rodinhas de barbante’, que representam o ternário RSI (LACAN, 1975).
Na “clínica do nó”, a articulação dos registros Real, Simbólico e Imaginário se
distingue de uma repartição estanque e descontínua entre as estruturas clínicas da neurose,
perversão e psicose. Essa mudança representa, então, um desenvolvimento dos princípios da
clínica clássica para a vertente do “não-todo” da clínica contemporânea e traz, como
resultado, uma nova concepção do sintoma, tomado como unidade elementar da clínica e, não
mais, como uma classe que corresponde a uma determinada estrutura clínica. No final do
ensino de Lacan, o sintoma se torna, então, a unidade elementar da clínica que permite enodar
15
o ternário RSI, recebendo a nova escritura de sinthoma. Com efeito, Miller (MILLER, 2011b,
p. 20) assinala certa correspondência entre essa nova versão lacaniana do sinthoma e a
fragmentação das entidades clínicas no DSM-IV, não pela via da fragmentação das categorias
diagnósticas, mas pelo movimento de desestruturação das entidades da clínica clássica .
No final do ensino de Lacan e sua clínica do nó, portanto, tem-se como pivô o
sintoma, e como substância, o gozo. Nesse momento, não se trata mais de decifrar o sentido
do sintoma em sua dimensão de verdade, como na clínica clássica, mas de recolher as
passagens de um regime de gozo a outro, de um regime de sofrimento a um regime de prazer,
como solução inventada por cada sujeito. É possível, então, discutir o que ocorre com o
sintoma na época da globalização se traduzimos o modo como ele é colocado em cena pelo
atual momento clínico, cuja estrutura lógica seria a do “não-todo”. Nesse contexto, é
necessário diferenciar a formulação lacaniana da operação analítica com o sintoma como uma
política que marca sua diferença diante de uma sociedade científica que impõe um ideal de
totalidade e unidade atrelado ao sentido do sintoma.
Ao observarmos a fragmentação das atuais categorias diagnósticas estabelecidas pelo
discurso médico-científico, notamos, ainda, a universalização de tais categorias e,
consequentemente, a redução do sujeito e de seu sintoma às nomenclaturas dos transtornos
mentais que o engessa nas classificações identitárias dos manuais diagnósticos. Isto implica o
aprisionamento do sentido do sintoma no conjunto de normas e deveres de promoção de um
ideal de saúde, bem-estar e felicidade predominantes no mundo globalizado. Eis o que
delineia a subversão da psicanálise situada fora de todo ideal a ser atingido e, portanto, fora da
própria problemática do ideal e da norma. Enquanto o campo da ciência condiciona o sentido
do sintoma a uma categoria universal, a psicanálise marca sua diferença ao redirecioná-lo à
particularidade de um funcionamento subjetivo pela via do ‘sem sentido’ que o gozo do
sintoma introduz a cada experiência clínica. Com efeito, a subversão que a psicanálise produz
no campo científico pode ser remetida à proposta de uma política do sintoma que dá lugar ao
sintoma como o traço mais particular do sujeito, como marca do seu estilo, em detrimento da
noção de um desfuncionamento em relação a um ideal de saúde e bem-estar.
1.1.1. O real na clínica do sintoma e a subversão da psicanálise
Atualmente, vem sendo cada vez mais frequente no mundo “psi” a promoção de
intervenções que visam abolir os sintomas a favor de um ‘bom funcionamento’ da saúde
mental, partindo de estratégias de tratamento que concebem o sintoma psíquico como
16
transtorno mental. Essa é a concepção de sintoma que orienta as diretrizes atuais das políticas
públicas que avaliam a eficácia das terapias psicológica e farmacológica, considerando a
economia de tempo e de custos para o tratamento dos transtornos mentais. Ao sustentar uma
relação com o sintoma como um ‘querer-dizer’ inconsciente, a oferta de tratamento analítico
dos sintomas implica, no entanto, uma perspectiva diferenciada de tempo e de custos que
problematiza a concepção da ‘utilidade imediata’ instaurada, por exemplo, no campo da saúde
pública. Podemos constatar, então, a necessidade de sustentação da práxis analítica no debate
social e clínico e de uma política psicanalítica do sintoma, a partir da transmissão de seus
princípios e métodos clínicos e da eficácia de suas intervenções no campo do cuidado em
saúde mental.
Até o final de sua obra, Freud conserva para a psicanálise a exigência de uma
transmissão sobre a lógica do sintoma em cada caso, tal como a operação do método
científico, mantendo a referência ao real dentro da sua teoria do sintoma, mas não sem
subverter a lógica científica de seu tempo ao considerar que o sentido de cada sintoma é
sempre particular. Nessa direção, Lacan avança teoricamente ao articular a verdade do
sintoma com o real do sexo: impossível de se representar simbolicamente. Assim, o sintoma
possui leis próprias, que funcionam seguindo uma lógica que inclui a repetição do gozo e o
modo singular como cada sujeito goza do seu inconsciente. Subverter a concepção de ‘doença
mental’ remetida a um significado único, generalizável, universal, fornecendo-lhe o estatuto
singular do sintoma foi, portanto, a consequência prática da descoberta freudiana do
inconsciente. Entretanto, deparamos hoje com os desdobramentos clínicos de uma política
sanitária nos serviços públicos que “foraclui” essa descoberta científica. É necessário, então,
reafirmar a inserção da política psicanalítica do sintoma na rede pública de saúde, tratando os
efeitos de retorno no real causados por essa foraclusão, não como num movimento de
militância ou de confronto ideológico, mas como uma consequência necessária que se impõe
à ação clínica e política do analista nos tempos atuais.
Mas, afinal, como apreender o registro do real na concepção lacaniana de sintoma?
Dos seminários e escritos de Lacan, podemos extrair um contínuo teórico desenvolvido,
tomando como base a obra freudiana sobre o estatuto do sintoma e sua relação fundamental
com a linguagem, estabelecido, na década de 1950, a partir do registro do Simbólico. Nesse
momento, o sintoma é designado como um significante que conecta o sujeito na cadeia
simbólica dos significantes e como uma metáfora que representa um sentido que atravessa a
barra do recalque. Da década de 1970 em diante, o registro do real ganha maior destaque na
teoria lacaniana, a partir do que Lacan já desenvolvera em sua tópica de três registros RSI:
17
Real, Simbólico e Imaginário. Ao real, cabe aquilo que resiste à simbolização, e, assim, Lacan
o define: "o real é o impossível", é o que "não cessa de não se inscrever" no simbólico
(LACAN, 1973) 13 . No segundo momento, Lacan afirma que é “do real que se trata no
sintoma” (LACAN, 1974-1975), associando esta definição à articulação entre o gozo e o
inconsciente. O Real toca naquilo que no sujeito é o resto inassimilável, sem sentido: o gozo,
designando o sintoma pelo modo como um sujeito goza de seu inconsciente. E na tentativa de
fazer a psicanálise operar com esse registro que escapa à simbolização, Lacan lança mão
da topologia pela via do nó borromeano, valorizando a escritura lógica que constrói na teoria
da sexuação feminina. Se a maior parte do ensino de Lacan é marcada por um retorno à obra
freudiana, notamos que sua transmissão deriva da noção do real na experiência clínica, como
um conceito inédito para o campo da psicanálise.
Ao situarmos a especificidade da ação clínica e política do psicanalista diante do real
em jogo na clínica do sintoma, localizamos aí sua diferença em relação ao campo científico
atual e às psicoterapias que nele se apoiam. Seguindo a direção da proposição lacaniana,
anteriormente apresentada, que remete à concepção de que ‘o inconsciente é político’, na
medida em que este responde e obedece à categoria de laço social, convém percorrer o
caminho deixado por Lacan para fundamentar uma proposta política da psicanálise diante do
discurso da ciência moderna. Para isso, apresentamos o rigor teórico de Lacan ao traduzir o
impacto da descoberta freudiana do inconsciente como uma subversão do sujeito da ciência,
do sujeito da civilização moderna. E, em seguida, sublinhamos os efeitos desse movimento
subversivo no campo da clínica contemporânea como uma proposta política da psicanálise
para a clínica do sintoma, marcado pelo modo como esta se diferencia das demais correntes
terapêuticas e, com isso, condiciona a prática analítica nos tempos atuais.
A ciência e o real na clínica do sintoma
A partir da descoberta do inconsciente, Freud propõe uma maneira de tratar o sintoma
neurótico no campo clínico, constituindo um novo paradigma para o tratamento dos sintomas.
Sustentando o rigor metodológico de sua experiência, Freud dirige suas recomendações
(FREUD, 1996) 14 para o lado oposto de uma lógica terapêutica de caráter universal,
salientando que o sentido de cada sintoma é sempre particular, sendo, por isso, necessário
construir um saber novo para dar conta daquele sintoma a cada encontro com o paciente.
Desse modo, reintroduz, a cada encontro clínico, a singularidade que cada sintoma revela,
13
14
Le Séminaire, livre XI: Lês quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse [1964].
Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise [1912].
18
subvertendo a lógica científica de seu tempo. Com o advento da psicanálise, podemos situar o
surgimento desse novo paradigma para a clínica do sintoma e, consequentemente, de uma
política da psicanálise na civilização moderna.
Ainda que nascida no seio da ciência, a psicanálise veio acrescentar-lhe uma teoria
transversal sobre a clínica do sintoma. E foi introduzindo o sujeito na ciência, ainda que esta
já o tivesse inventado e o excluído, que a clínica freudiana sustentou e tratou o sintoma como
marca do sujeito do inconsciente. Afastado da intenção de criar um sistema filosófico ou uma
filosofia setorial, Freud reconhecia que o “real implicado na experiência da análise exigia ser
tratado pelo simbólico de sua teoria” (ELIA, 2001, p. 42), em convergência com toda práxis
científica. As indagações freudianas começam por confrontar um determinado real de doença,
exatamente à maneira da ciência, fazendo algo inédito diante disto. A original operação
metodológica da clínica psicanalítica consistiu em captar, nesse real, o efeito do sujeito
excluído da ciência para situá-lo como referente real absoluto. Com efeito, o campo
psicanalítico torna-se um campo êxtimo 15 à ciência, justamente por ter sido criado a partir de
uma operação feita no próprio corpo científico.
Em sua primeira lição do Seminário, livro 13, intitulada “A ciência e a verdade” em
seus Escritos (LACAN, 1998, p. 855), Lacan demonstrou que a psicanálise constitui um saber
derivado; entretanto, não integrante do campo científico. Ao formular a equação “o sujeito
com o qual operamos em psicanálise só pode ser o sujeito da ciência” (LACAN, 1998, p.
873), Lacan questiona a noção da ciência, desenvolvendo uma teoria sobre o sujeito
cartesiano, que nos permite vincular a uma noção de constituição de sujeito. Não se tratando
de um sujeito empiricamente qualificável, sujeito das qualidades sensoriais ou psíquicas da
psicologia, mas de “algum qualquer sujeito, distinto de toda forma de individualidade
empírica” (MILNER, 1996, p. 33), a teoria lacaniana esclarece que o sujeito do inconsciente é
o sujeito da ciência. Entretanto, essa afirmativa não evidencia uma equivalência metodológica
nos campos psicanalítico e científico. A incidência subversiva operada pela psicanálise na
ciência implica o que Lacan indica como sendo uma subversão do sujeito (LACAN, 1998, p.
807). Se a psicanálise opera sobre o mesmo sujeito que é o sujeito da ciência, ela só o faz por
meio de uma subversão na qual o sujeito da ciência atinge a condição de sujeito do
inconsciente.
A fundação da ciência moderna, constituída com Galileu Galilei e formulada por
Descartes, produziu uma elaboração filosófica que consistiu no estabelecimento de uma
15
Termo empregado por Lacan em “A ciência e verdade”, em que designa topologicamente a noção de um movimento
externo e interno, exterior e íntimo, em um mesmo objeto.
19
correspondência entre a ciência – a física moderna, empírica e matematizada – e o
pensamento moderno. Ao inaugurar o Cogito, Descartes introduz a dúvida do sujeito
conflitado entre o saber e a verdade, abalados pelas evidências científicas. O discurso da
ciência moderna é constituído pela invenção do sujeito cartesiano – que toma o “pensamento
sem qualidades” (MILNER, 1996, p. 32) como modo de pensar – e, no entanto, deve ser
extraído de seu campo para que ela opere. Ou seja, a ciência estabelece condições de invenção
do sujeito, mas não opera com ele nem sobre ele, ao contrário, o exclui de seu campo no
mesmo ato em que o supõe para constituir este campo.
O discurso da ciência moderna, constituído pela invenção do sujeito cartesiano,
estabelece suas condições de domínio na relação com a verdade, por meio da demanda de
saber que se dirige ao campo científico. Diante disso, a psicanálise produz uma subversão no
corpo da ciência. Dando a palavra ao sujeito neurótico, concebido “como representante da
verdade”, como “a verdade que fala” (LACAN, aula 6 de 12/01/1966) 16 , Freud inaugura um
novo paradigma para a clínica do sintoma.
Na sexta lição do Seminário, livro 13, Lacan relaciona a emergência do sujeito
neurótico moderno com o momento histórico do cogito cartesiano ao produzir uma mudança
do modo da razão na apreensão da incerteza, ressaltando que “este momento é inseparável
também desta outra emergência que se chama a fundação da ciência.” (LACAN, aula 6,
12/01/1966). Nesse contexto, em que a fundação da ciência moderna passa a obter um
domínio sobre a “relação com a verdade” , o sujeito neurótico é introduzido nesta relação com
a verdade “na medida em que seu estatuto clínico e terapêutico lhe é dado pela psicanálise”.
Lacan afirma que “o sujeito neurótico só existe completado pela instância da clínica e da
terapêutica psicanalítica”, intervindo sob a verdade que é desvelada no sintoma. Desse modo,
o autor descreve a práxis psicanalítica como sendo “literalmente o complemento do sintoma”,
diante da apreensão freudiana sobre a maneira singular de interrogar o sofrimento psíquico,
revelado por meio dos sintomas neuróticos. E, em seguida, assinala que “a essência do
sintoma é um ser de verdade” (LACAN, aula 6 de 12/01/1966), sustentando a proposição de
Freud de que a verdade se faz representar por meio do sintoma. Enfatiza, com isso, sua
apreensão da verdade como causa, como um ser sem substância que representa a falta
inerente à verdade, tal como sua apreensão do sintoma compreendido como efeito de uma
estrutura faltante, reafirmada por meio da lógica significante. A função de primazia do
16
O seminário, livro 13: O objeto da psicanálise [1965-1966]
20
significante sobre o significado faz a significação sempre recuar, constituindo a equivocidade
estrutural da linguagem e a irredutibilidade da verdade a um sentido unívoco.
A leitura desse seminário de Lacan permite retomar a operação analítica com o
sintoma, a partir da descoberta da verdade que está em jogo também nos sonhos, nos lapsos e
nos atos falhos, embora permaneça parcialmente encoberta. Ao considerar o sintoma
freudiano como “o significante de um significado recalcado da consciência do sujeito”
(LACAN, 1998, p. 282) 17 , Lacan o trata como metáfora, até o final da década de 1960, e
demonstra que este apresenta um efeito de sentido que atravessa a barra do recalque. O
sentido do sintoma, afirma Lacan (1988, p. 470), em 1956, é “o sentido do significante que
conta a relação do sujeito com o significante”, o que indica a concepção do sujeito como
conectado na cadeia significante, por meio do sentido particular que o sintoma representa por
ser, ele mesmo, um significante. Diante disso, Lacan (1998) esclarece dois aspectos em
relação ao sentido do sintoma que nos permitem articular com o estatuto freudiano da verdade
do sintoma. O primeiro aspecto é o de que o sintoma tem um sentido que não é dado a priori,
mas é o “sentido emergente que ele toma em uma análise” em momentos diversos e com
variados sentidos. O segundo é o de que o sentido do sintoma, tomado em termos libidinais, é
um sentido de gozo (joui-sens), ou seja, é um sentido que sempre escapa por não haver
sentido final, sendo possível atribuir sempre novos sentidos ao sintoma por concentrar em si a
marca do real como “furo no saber”. O sentido do sintoma é o real na medida em que
comporta o impossível de se escrever: a relação sexual. Dito de outro modo, o sentido do
sintoma é o real do gozo como aquilo que não pode ser escrito e que, por isso, se repete.
A partir dessa concepção de Lacan sobre o sintoma freudiano, retornamos a discussão
desenvolvida em seu Seminário, livro 13, quando designa a essência do sintoma como sendo
um ser de verdade. Quando há sintoma, a verdade fala e pode ser tocada pelo método
analítico, embora algo permaneça na ordem do não dito, pois a verdade do sintoma guarda um
sentido impossível de se dizer todo. Nessa perspectiva, Lacan (1998) situa uma distinção entre
os campos da ciência e da psicanálise pela relação que estabelecem com a verdade e pelo
modo como operam metodologicamente com a função do objeto como falta, tomado aí na
dimensão de um real que não cessa de não se inscrever. Ao advertir que a “verdade nos abre
sobre o furo”, sobre o “objeto como faltante”, Lacan localiza a fecundidade característica do
objeto da ciência que pode ser sempre quantificado pela operação lógica do método científico
com seu objeto, com base na empiricidade e na experimentação do verdadeiro e falso que, no
17
Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise [1953].
21
entanto, exclui o sujeito e suas contingentes formulações. De outro modo, Freud estabelece a
operação do método clínico da psicanálise como capaz de recolher a produção da verdade de
cada sujeito pela via do sintoma, cuja estrutura faltante é reafirmada pela lógica significante.
Entretanto, no atual contexto em que acompanhamos o desenvolvimento da medicina,
as “evidências científicas” se propagam e são, cada vez mais, baseadas na concepção de
sintoma remetido a um significado único, generalizável, universal, do qual se ambiciona
extrair a fórmula: a fórmula do real do corpo. Esse é o movimento que confere cientificidade à
medicina contemporânea na qual encontramos o real da ciência relacionado ao sintoma, desde
as comprovações da anatomia patológica até as fórmulas medicamentosas. Por outro lado,
sabemos que, no campo da medicina, nem sempre é possível encontrar tais evidências, o que
demonstra que o real do corpo não corresponde ao real da ciência. Isto se constata, em
especial, nos campos da psiquiatria e da saúde mental, cujo tratamento dos sintomas evidencia
que há algo no corpo que resiste a ser totalmente apreendido pelo discurso médico-científico,
já que o corpo não se desvincula do inconsciente e da satisfação pulsional.
O sintoma na medicina se relaciona com a estatística desde o nascimento de sua
clínica, quando se investigava uma doença através de autópsias e descobria-se uma lesão
corporal. Desde então, a relação entre sintoma e doença se estabelece por meio de registros de
casos que se incluem na estatística de determinadas classificações de doenças. A psicanálise,
ao subverter a prática estatística, considera que nenhum caso é igual ao outro e, por isso, não
serve de modelo para o outro, pois o significado de cada sintoma é sempre particular, sendo
necessário construir um saber novo para dar conta de cada sintoma. No entanto, o fato do
método estatístico ser alheio à psicanálise faz com que, cada vez mais, se questione o método
clínico da psicanálise a partir do modelo cientifico: como não se tem nenhum método
científico para comprovar a veracidade e eficácia da ação do psicanalista, como transmitir
sua operação metodológica?
Desde Freud, a operação metodológica da psicanálise implica o fato de que a verdade
do sintoma pode ser desvelada, embora jamais inteiramente apreendida. E isto resulta na
importância da formalização de um saber para apreendê-la, que não é um saber espontâneo,
intuitivo e nem mesmo ‘esotérico’. Diferente do conhecimento científico que exclui o real de
sua experiência e que implica, consequentemente, o desconhecimento ou o não
reconhecimento da verdade singular do sintoma, o saber que orienta a operação analítica
articula os conceitos, os matemas e a topologia como formalização lógica diante do real em
jogo em sua experiência; o que se afasta absolutamente do conhecimento intuitivo, perceptivo
ou imaginário. Desse modo, a psicanálise demonstra seu modo próprio de ‘evidenciar’ a
22
particularidade do sintoma em cada caso, não o reduzindo à mensuração estatística das
‘evidências científicas’. Enquanto a ciência foraclui o sujeito, a psicanálise faz valer o sujeito
no sintoma, considerando-o uma manifestação subjetiva.
Com a descoberta freudiana do inconsciente, a distinção entre os campos da ciência e
da psicanálise passa a ser designada, portanto, pela relação que estabelecem com a verdade do
sintoma e pelo modo como operam metodologicamente com a função da falta, com o “nãotodo” universalizado do sentido do sintoma inerente ao gozo. Por isso, seguimos com Lacan,
na trilha deixada por Freud, de conservar para a psicanálise a exigência de uma transmissão
sobre a lógica do sintoma em cada caso, mantendo a referência ao real como uma orientação
política própria da psicanálise.
As psicoterapias e a exclusão do real no tratamento do sintoma
Ao fundar o campo clínico da psicanálise, Freud sustenta sua relação de extimidade
com o campo da ciência, de modo diferente da ruptura que produz em relação ao campo das
psicoterapias. Essa diferença merece ser retomada no mundo globalizado e dominado pelo
discurso da ciência que se associa ao mercado de consumo, na medida em que essa lógica
ameaça degradar a ação da psicanálise com as psicoterapias de massa que se proliferam. Entre
elas, situamos as psicoterapias do comportamento e as técnicas pré-psicanalíticas da hipnose e
da regressão, legitimadas pelo discurso da neurociência 18 . Ou ainda, as psicoterapias
esotéricas e as ‘terapias evangélicas’, cuja versão bizarra temos acompanhado com o aumento
do número de pastores evangélicos que se apresentam como psicanalistas.
No artigo “Psicanálise, psicoterapias, ainda...”, Marie-Jean Sauret (2006) apresenta a
inovação do método freudiano, situando-a frente às psicoterapias propagadas no século XIX.
Esse autor indica o nascimento da psicoterapia moderna, marcado pelo enobrecimento da ação
terapêutica pela sugestão, em detrimento do desuso da hipnose como método principal de
tratamento daquele contexto histórico. Ao constituir o método analítico, Freud renuncia não
somente à hipnose, mas também ao tratamento por sugestão, propondo-se de maneira original
a escutar aquele que sofre. Podemos entender, então, que Freud não rompe com essa
concepção da psicoterapia moderna, “mas com a psicoterapia ela mesma” (SAURET, 2006, p.
27), já que promove uma passagem da utilização da sugestão para a escuta do saber que cada
sujeito produz sobre seus sintomas no terreno da transferência analítica.
18
Referência às práticas da hipnose e regressão, atualmente reeditadas com base na Programação Neurolingüística (PNL).
Fonte: http://www.hipnoseeregressao.org, acessado em 02/02/2012.
23
O autor (SAURET, 2006) indica a figura do psicoterapeuta como aquele que tomou,
no cenário do século XIX, o lugar das antigas crenças nas quais se apoiavam as religiões.
Psicanálise e psicoterapia dividiram, desse modo, o espaço entre o íntimo e o social no
contexto das sociedades totalitárias nas quais a ciência ou as religiões pretendiam regular a
vida política. Desde então, os princípios norteadores das técnicas de psicoterapia basearam-se,
em regra geral, na capacidade do indivíduo de se instrumentalizar dos conselhos do terapeuta,
na tentativa de limitar o peso de seus sofrimentos. A propósito dessa abordagem clínica,
Sauret (2006, p. 26) assinala que “a psicoterapia coloca a transferência a serviço da sugestão”
uma vez que fortalece o assujeitamento do paciente ao olhar do terapeuta que conduz um
tratamento.
Na tentativa de corresponder ao método da associação livre, regra fundamental da
psicanálise, Freud formulou a teoria etiológica dos sintomas para fundamentar o que sua
experiência clínica lhe trazia. A investigação sobre a etiologia da neurose originou-se com a
interrogação de Freud sobre os sintomas histéricos no encontro com Charcot, levando-o a
postular uma causalidade psíquica e indicar o papel da representação mental no inconsciente
atuando no corpo. O avanço nessa teoria constituiu um rompimento com os estudos da
psiquiatria clássica e possibilitou que Freud descobrisse a origem psíquica dos sintomas,
sustentando a determinação simbólica e sexual figurada na fantasia inconsciente.
No início de sua obra, Freud considerava o desencadeamento de um sintoma como
provocado por um evento traumático real na história do paciente. Na passagem dos anos de
1905-1906, em Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das neuroses
(FREUD, 1996), Freud reformou sua teoria sobre o trauma sexual designado não mais por um
evento externo, mas como um acontecimento psíquico carregado de afeto, como uma ficção
de uma cena traumática, nomeada de fantasia na obra freudiana. As fantasias inconscientes,
constituídas por fatores de constituição sexual, designam as tentativas de satisfação de desejos
originários de privações, sendo inicialmente fantasias conscientes, denominadas por Freud de
devaneios e tornadas deliberadamente esquecidas e inconscientes com o processo de recalque.
Com base nessa formulação teórica, as fantasias inconscientes, expressas por meio dos
sintomas, puderam ser tratadas pelo método analítico, cuja direção clínica possibilitava ao
sujeito apreender tal fantasia de modo consciente a partir do método da associação livre. A
teoria sobre a etiologia do sintoma histérico, portanto, conduziu Freud a indicar o papel da
fantasia na formação dos sintomas, dando destaque ao saber inconsciente que o sintoma
enuncia no terreno da transferência analítica. E isto demarca a originalidade do tratamento
24
freudiano dos sintomas como uma operação clínica que assume a função de fazer o sujeito
falar a palavra que foi recalcada, decifrando, assim, o enigma de seu sintoma.
A inovação freudiana do tratamento dos sintomas traçou a especificidade da escuta
analítica diante dos métodos psicoterapêuticos e científicos e, nessa perspectiva, “é impossível
avançar na psicanálise se não assumirmos essa descoberta do sintoma” (SAURET, 2006, p.
28). Retomando suas considerações a propósito da distinção da psicanálise frente às
psicoterapias, Sauret considera que “a psicanálise não se coloca a serviço da fantasia”
(SAURET, 2006, p. 27), ou seja, ela não se volta para essa ‘teoria íntima’ assumida pelo
sujeito, no intuito de normalizar sua relação com o Outro; o que é característico da terapêutica
da sugestão. Enquanto “a psicoterapia se coloca a serviço de uma fantasia” (SAURET, 2006,
p. 28) fortalecida pela falência das crenças que o discurso científico inaugura, a psicanálise
opera a partir do sintoma, convocando cada sujeito a extrair a sua verdade do estado
sintomático que o acomete. Na medida em que Freud funda o tratamento analítico, ele
descobre, ao lado da fantasia, o sintoma como uma expressão singular de um sujeito para
alojar seu mal-estar no laço social. Diante disto, o método da psicanálise promove uma
operação que incide sobre a fantasia até o ponto em que o sujeito do inconsciente “descobre o
estofo do qual é fabricada a sua singularidade, quer dizer, o que ele é como objeção ao saber –
antídoto da sugestão: nenhum Outro e nenhum si mesmo permitem ao sujeito orientar-se para
uma solução (...) - somente o sintoma.” (SAURET, 2006, p. 27).
Lacan apresenta a psicanálise como “uma nova abordagem para tratar a economia da
linguagem” (LACAN, 2002, p. 186) 19 , em contraposição às demais abordagens clínicas que
se ocupam do tratamento do sintoma. Estabelecendo uma relação “de ego a ego” 20 , as práticas
psicológicas dirigem suas intervenções para o reforço do eu e, consequentemente, para o
sentido oposto ao da dissolução dos sintomas, conforme a relação que Freud estabelece entre
a formação dos sintomas e as fantasias inconscientes. E sobre a teoria freudiana do eu em seu
caráter fantasmático, Lacan comenta: “o eu está como uma “miragem” (ideal do eu) e sua
função de ilusão é fundamentalmente narcísica, a partir dela o sujeito dá a nota da realidade”
(LACAN, 2002, p. 199). Com essa afirmativa, observamos o risco de tomar o relato do
sintoma pela rasa análise do eu e, com isso, acentuar a relação fantasmática correlativa do eu
com o “imaginário do sintoma” (LACAN, 2002, p. 187). Tomando a referência das
psicoterapias que “se colocam a serviço da fantasia”, situamos o exemplo das ‘terapias do
stress pós-traumático e do pânico’, como práticas que se servem dos fenômenos imaginários
19
20
O Seminário, livro 3: as psicoses [1955-1956].
Nesse texto, Lacan faz referência à ‘Psicologia do Ego’ como prática difundida pelos pós-freudianos.
25
que resultam das identidades diagnósticas. E isto nos remete às correntes terapêuticas que
estão a serviço do caráter imaginário da fantasia, as quais Lacan (2002, p. 187) nos alerta que
“não foi nesse nível que a psicanálise produziu a sua descoberta essencial”.
Ao formular a articulação da linguagem com o saber inconsciente enunciado no
sintoma histérico, Lacan lança mão do caso Dora, no qual Freud demonstra que o analista não
deve se deixar apreender pelo saber ligado pelos significantes que se articulam coerentemente.
Ao invés disso, o analista deve estar atento à duplicidade revelada na relação do sujeito com o
sintoma como significante que o conecta na cadeia simbólica. Em Intervenções sobre a
transferência Lacan (1998, p. 214) caracteriza a operação freudiana com o sintoma como uma
“experiência dialética”, por ser marcada por um encontro que, ao privilegiar a verdade do
analisante, se inicia com a fala do sujeito e o silêncio do analista. Esse encontro deve ser
apreendido de uma dinâmica não dogmática e, portanto, ocorrendo de maneira dialética 21 com
o discurso do analisante. Caracterizando a psicanálise freudiana como uma experiência
dialética, Lacan (1998) afirma que o tratamento analítico deve permitir o reconhecimento do
lugar que o sujeito ocupa na queixa de seu sintoma por meio de uma retificação subjetiva. E
sem dar importância ao que a incoerência ou as convenções de regra venham instaurar no
discurso, esse movimento dialético deve permitir a formulação da verdade do sujeito na
transferência.
Com essa leitura do caso Dora, é possível depreender que a verdade do sujeito vai se
desvelando no transcorrer da associação livre, na qual se apresentam modulações de verdade
correlatas às elaborações dos sentidos variados que o sintoma assume para o analisante.
Assim, é possível compreender a relação que Lacan estabelece entre a dialética e
transferência, que “não é nada de real no sujeito senão o aparecimento, num momento de
estagnação da dialética analítica, dos modos permanentes pelos quais ele constitui seus
objetos” (LACAN, 1998, p. 224, grifo nosso). Com isso, Lacan indica a incidência do real na
clínica pelo momento em que certo elemento de verdade do sujeito ainda não cedeu o seu
lugar à construção de uma nova verdade, de um novo sentido do sintoma. Em seguida lança a
pergunta: “o que é, então, interpretar a transferência?” a qual responde: é “nada além de
preencher com um engodo vazio desse ponto morto” (LACAN, 1998, p. 225). Como “ponto
morto”, entendemos os momentos “não dialéticos”, em que o sentido do sintoma escapa à
21
Cabe lembrar que, os elementos básicos da dialética hegeliana são a tese, a antítese e a síntese. A tese é uma afirmação ou
situação inicialmente dada. A antítese é uma oposição à tese. Do conflito entre tese e antítese surge a síntese, que é uma
situação nova que carrega dentro de si elementos resultantes desse embate. A síntese, então, torna-se uma nova tese, que
contrasta com uma nova antítese, gerando uma nova síntese, em um processo em cadeia. Nessa perspectiva, todo movimento,
transformação ou desenvolvimento, opera-se por meio de contradições ou mediante a negação. A dialética é a negação da
negação, ou seja, uma nova afirmação.
26
significação, que não é outra coisa senão incidência do real na própria transferência. A
interpretação da transferência, ao propiciar uma retificação subjetiva ou uma nova associação
de sentido ao sintoma, possibilita preencher, com um engodo, o vazio desse ponto morto,
“mas esse engodo é útil, pois mesmo enganador, reativa o processo” (LACAN, 1998, p. 225).
A partir do movimento dialético instaurado por Freud na experiência analítica, é
possível demonstrar a especificidade de suas intervenções como modo de reativar o processo
de elaboração do sujeito analisante, considerando o real em jogo, no tratamento dos sintomas.
Isto se diferencia, absolutamente, da prática das psicoterapias, em que o sintoma é tomado a
partir da redução a uma hermenêutica 22 , como portador de sentido que nada tem de real.
Tomar a interpretação do dizer dos sintomas pelo viés filosófico da hermenêutica implica,
portanto, sair do caminho percorrido por Freud de ruptura com as práticas psicológicas que
mais se aproximam da consistência hermenêutica em sua análise exaustiva da linguagem, em
busca de uma explicação coerente que corresponda aos ideais de uma cultura.
A descoberta freudiana vai muito mais além do exercício da fala, do qual a medicina,
as religiões ou as psicoterapias sempre se apropriaram para o estabelecimento de condutas e
de aconselhamentos normativos. Cabe, então, ressaltar a especificidade clínica e política da
operação analítica com os sintomas ao marcar, de fato, o fim da crença num “outro” que
responda com um saber prévio sobre o que é o sujeito, ditando-lhe o que deve saber sobre seu
estado sintomático. Considerando esta uma questão fundamental para nortear a proposta de
uma política psicanalítica do sintoma, é necessário que os psicanalistas estejam advertidos
quanto a sua não submissão ao saber constituído pelos serviços de tratamento ou pelos
poderes públicos que os gerenciam, para que o reconhecimento de que “o saber não se
encontra no sujeito e sim no sintoma que o sustenta” (SAURET, 2006, p. 29) oriente seu
trabalho.
Se o gênio de Freud foi o de descobrir nos fenômenos dos sintomas o mecanismo das
formações do inconsciente, com Lacan avançamos nessa teoria com uma elaboração teórica
precisa, que distingue o sintoma “patológico” do qual se queixa o sujeito neurótico e o
sinthoma como solução. Ao dirigir a queixa de seu sintoma ao Outro, o sujeito se confronta
com o fracasso de sua teoria mais íntima – a fantasia – e, por isso, demanda ao Outro que o
22
Hermenêutica é um ramo da filosofia e estuda a teoria da interpretação, que pode se referir tanto à arte da interpretação ou
à teoria e treino de interpretação. A hermenêutica tradicional – que inclui hermenêutica Bíblica – se refere ao estudo da
interpretação de textos escritos, especialmente nas áreas de literatura, religião e direito. A hermenêutica moderna, ou
contemporânea, engloba não somente textos escritos, mas também tudo que há no processo interpretativo. Isso inclui formas
verbais e não verbais de comunicação, assim como aspectos que afetam a comunicação, como preposições, pressupostos, o
significado e a filosofia da linguagem e a semiótica. A consistência hermenêutica refere-se à análise de textos para explicação
coerente. Uma hermenêutica (singular) refere-se a um método ou vertente de interpretação. Fonte: www.conpedi.org.br ,
acessado em 02/02/2012.
27
cure, já que dele espera receber as respostas para aplacar seu sofrimento. A concepção do
sinthoma designa, por sua vez, uma solução inventada pelo próprio sujeito, ainda que uma
análise não aconteça, por permitir não somente amarrar e enodar as dimensões da linguagem,
do corpo e do gozo que constituem o sujeito, mas também articulá-las ao laço social. Dessa
concepção empregada no final do ensino de Lacan, extraímos uma nova orientação para
clínica e para a política psicanalítica que se sustenta com o sintoma, concebido como real do
gozo, o que implica uma operação com o sintoma apreendida no nível de um sentido que
concerne ao real. Trata-se de uma nova proposta para a clínica do sintoma, cuja direção visa
localizar no sujeito o seu ponto incurável e uma nova solução frente ao manejo do gozo.
Orientar-se pelo sintoma seria, então, um modo de lidar com o sintoma; não tentando dele se
desembaraçar, mas o identificando em sua maneira de gozar. E isto implica a possibilidade de
transmissão da lógica do sintoma em cada caso como uma orientação para o trabalho em
equipe, que se difere das demais abordagens terapêuticas que compõem hoje o campo da
saúde mental.
1.1.2. A política lacaniana do sintoma
No artigo O que funda a nossa política do sintoma
23
, Maurizio Mazzott (2007)
comenta a leitura das duas conferências de Freud sobre o sintoma apresentada por JacquesAlain Miller, partir do ensino de Lacan. Nessa apresentação, Miller ressalta a articulação dos
três registros que configuram o estatuto do sintoma para a psicanálise, sendo estes os registros
do saber, do sentido e do real. Com base nessa idéia, apresentamos um recorte teórico da obra
de Freud e do ensino de Lacan sobre a concepção de sintoma, considerando suas articulações
com esses três registros como o que estabelece e diferencia a práxis e a política analítica nos
tempos atuais.
Na clínica lacaniana, o sintoma é concebido pela repetição do gozo que se impõe ao
sujeito, o que nos faz considerar o sintoma um saber que não cessa de se escrever no real. O
sintoma, já advertia Lacan (LACAN apud MAZZOTTI, 2007, p. 73), é do ponto de vista da
psicanálise correspondente ao que para a ciência é o real. No entanto, a política psicanalítica
do sintoma não coincide com a corrente da medicina científica que reedita a decifração do
sintoma em seus laboratórios, por meio do cálculo das novas tecnologias, em que o sintoma é
tratado como saber sobre o real. A política da psicanálise, ao contrário, assume o lugar
23
Tradução do título do artigo Ciò que fonda la nostra política del sintomo. Nesse artigo, o autor comenta uma conferência
de Jacques-Alain Miller proferida na Espanha sem, no entanto, apresentar sua referência bibliográfica.
28
deixado vazio pela medicina que, apesar de seus avanços, jamais apreenderá definitivamente a
verdade do sintoma.
Se excluirmos o registro do sentido da conjugação entre os registros do saber e do real,
não teremos clareza do estatuto do sintoma para a psicanálise e estaremos aprisionados na
percepção dolorosa da manifestação sintomática, no sofrimento causado por sua repetição e
no lamento de uma fatalidade que incide sobre o corpo. É necessário, então, explorar a crença
do sujeito no “querer-dizer” do sintoma (MAZZOTTI, 2007, p. 74) para que a operação
analítica se instaure, a partir do sentido do sintoma, apreendido como a verdade que o
inconsciente enuncia. Sob essa perspectiva, privilegiamos a articulação do sentido do
sintoma com o saber inconsciente e o real, tomado em sua dimensão simbólica de verdade e
em sua dimensão de real do gozo, como o que marca a ‘nossa política do sintoma’ ao se
diferenciar das correntes da medicina científica, que trata o sintoma como “distúrbio real”,
conferindo-lhe objetividade de sentido.
Para avançar nessa discussão, Antonio Di Ciaccia nos leva a reconhecer o sentido do
sintoma remetido, ainda, à proposta de uma política do sintoma quando afirma uma
articulação entre as seguintes proposições: “Existe uma política do sintoma. Somente uma. E
existem duas políticas do sintoma. Somente duas” (DI CIACCIA, 2007, p. 85). Ao explicar
tais sentenças, aparentemente contraditórias, o autor se utiliza da idéia de que existe somente
uma política do sintoma, afirmando que o complemento ‘do sintoma’ deve ser entendido no
sentido subjetivo, pois o sintoma possui igualmente somente uma política. Em termos
freudianos, o autor assinala que “o sintoma tem como política, que ele seja satisfação
pulsional”, ou mesmo utilizando a terminologia lacaniana, “que ele seja gozo” (DI CIACCIA,
2007, p. 85). A afirmativa “o sintoma tem uma política” consiste em designar o sintoma
conforme o estatuto que a psicanálise freudiana lhe confere, ou seja, o de ser uma formação
do inconsciente que se inclui na pólis e se subordina à civilização, ainda que através de um
mal estar. Na orientação lacaniana, o sintoma funciona para o gozo, seguindo uma lógica
articulada ao “inconsciente como um saber que o sujeito não sabe que sabe”. Assim, o
sintoma possui leis próprias que funcionam seguindo uma lógica que inclui a repetição do
gozo e o modo singular como cada sujeito goza do seu inconsciente.
Na segunda afirmação “existem duas políticas do sintoma. E somente duas” (DI
CIACCIA, 2007, p. 86), esse autor esclarece o complemento “do sintoma” concebido no
sentido objetivo, acrescentando que “sobre o sintoma podem existir algumas políticas” que
podem ser reduzidas a apenas duas delas. Uma é a política de Lacan e a outra é a política “de
todos os outros”, cuja orientação clínica se desenvolve em múltiplas perspectivas. Caracteriza
29
esta segunda política como sendo ‘uma’ política do sintoma que orienta a prática clínica ‘de
todos os outros’, a partir da exclusão do real em jogo no sintoma e de sua relação com o
sujeito que o habita. Em seguida, acrescenta que esta é também ‘uma política multiplicável’,
na medida em que todas essas orientações tendem a adaptar o sintoma ao discurso do mestre
(DI CIACCIA, 2007, p. 86). Como exemplo, tomamos os métodos clínicos que consideram o
sintoma como um déficit ou um desfuncionamento, compreendendo-o por meio de uma
formalização de saber que o reduz à unificação da classificação diagnóstica e de comunidades
identitárias que se constituem por intermédio de variados diagnósticos.
Qual seria, afinal, a política do sintoma de orientação lacaniana? A política lacaniana
retoma o legado clínico e político de Freud em continuidade com os seus fundamentos
teóricos. Segundo o autor (2007), Lacan é mais redutivo do que Freud no primeiro momento
de seu ensino, pois privilegia a concepção de satisfação pulsional e sua possível
operacionalidade no manejo do tratamento do sintoma. Essa operação com o sintoma se
relaciona diretamente à proposição lacaniana do ‘inconsciente estruturado como uma
linguagem’, que trata o sintoma como metáfora, como verdade do sujeito passível de
decifração, produzida pela interpretação analítica. Em um segundo momento, entretanto,
Lacan privilegia a relação estabelecida entre sintoma e gozo, considerando que a operação
analítica se produz concebendo o sintoma como “nó de signo”, como “um saber que se trata
somente de decifrar, já que consiste num ciframento” (LACAN, 2003, p. 552) 24 apreendido
pelo equívoco e pela cifra repetitiva do gozo sem sentido. O inconsciente, então, trabalha sem
pensar e sem calcular e desse “trabalho de ciframento, ou seja, daquilo que desfaz o
deciframento” (LACAN, 2003, p. 551) se extrai algo que é da ordem do gozo.
O sintoma definido como ‘nó de signo’ designa o estatuto lacaniano do sintoma como
sendo a particularidade do sujeito, já que o signo instaura a relação do sujeito como falasser
diante do real. Com essa particularidade, estabelecida através do universal, Lacan considera
que “é pela via do particular, daquele particular que eu faço equivaler ao termo sintoma”
(LACAN apud DI CIACCIA, 2007, p. 87) que é possível cernir o estilo singular de um
sujeito. A singularidade do sintoma, portanto, não corresponde à sua particularidade, mas ao
que Lacan nomeia, no final de seu ensino, como sinthoma. Entretanto, para conduzir a
discussão sobre a teoria do sinthoma empregada por Lacan (2007), em seu Seminário 23, é
necessário indicar algumas modificações propostas em seus últimos seminários, como meio
24
Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos [1973].
30
de localizar uma passagem da concepção do sintoma como verdade à abordagem do gozo do
sintoma.
A orientação do real do sinthoma
No ensino de Lacan, encontramos um deslocamento da teoria do sintoma que
comporta mudanças acentuadas em sua abordagem, ainda que marcada por um contínuo
teórico tanto de seus seminários como da obra freudiana. Desse modo, vemos a mudança na
abordagem do sintoma como verdade à variedade do sintoma, do sintoma metáfora ao real do
gozo do sintoma, do sintoma parasita ao sintoma como o modo como cada um goza de seu
inconsciente, até chegar ao sinthoma como quarto nó que amarra os três registros real,
simbólico e imaginário.
Os escritos lacanianos expõem, na década de 1950, uma definição do sintoma
fundamentada no simbólico e apoiada em Freud, passando a ser designada, na década de
1970, a partir do real. Neste segundo momento, como apresentado na primeira aula do
seminário denominado RSI, Lacan (1974-1975, inédito) afirma que é “do real que se trata no
sintoma”, associando essa definição à articulação entre o gozo e o inconsciente. Na
conferência 25 intitulada A terceira, Lacan (1975) trata a abordagem psicanalítica do sintoma
pelo real, apresentando como proposição três faces do real, situando o sintoma na terceira
dessas faces; o que dá título à sua conferência. Lacan define o sintoma em sua vertente real
como particularidade, na medida em que faz objeção ao mestre. O sentido do sintoma, afirma
Lacan (1975):
(...) não é aquele com o qual nutrimos para sua proliferação ou extinção; o sentido do sintoma
é o real, o real na medida em que se coloca em cruz para impedir que as coisas funcionem, no
sentido em que elas dão conta por si mesmas de maneira satisfatória – satisfatória pelo menos
para o mestre/senhor.
A vertente real do sintoma, para Lacan, é aquilo que, no sintoma, resiste à
interpretação, melhor dizendo, não é aquilo que é do campo da significação, mas o que resta
do sintoma, quando os efeitos da interpretação não são suficientes. Em suma, trata-se de uma
vertente do gozo do sintoma, conforme afirma Lacan no seminário RSI: “... defino o sintoma
pela maneira como cada um goza do inconsciente na medida em que o inconsciente o
determina” (1974-1975, inédito). O sintoma, então, passa a ser designado como o que localiza
o gozo do inconsciente e como marca singular do sujeito. Com essa definição do sintoma a
partir do real do gozo pulsional, Lacan assinala, ainda, que o sintoma é o que não cessa de se
25
Referência ao VII Congresso da École Freudienne de Paris, realizado em Roma no ano de 1974.
31
escrever, tomando, assim, a função de letra por estar isolado da cadeia de significantes e por
fixar um gozo no inconsciente.
Segundo a concepção de Lacan (2007), no final de seu ensino, no sinthoma não
encontramos propriamente a verdade (la verité), mas a vari(e)dade (la varité). Essa passagem
resulta da variação da concepção do sintoma como verdade à variedade do sinthoma inventado
pelo sujeito como modo de sustentar sua singularidade. Assim, o inconsciente é menos um
saber que não se sabe e é mais um savoir y faire.
No artigo intitulado Peças Avulsas, Jacques-Alain Miller (2005) sugere uma série de
substituições propostas por Lacan em seus últimos seminários, salientando a substituição da
verdade pelo gozo como modo de conceber a modificação do nome 26 para designar o sintoma;
precisamente quando Lacan faz uma disjunção entre sintoma e verdade, dando nessa
disjunção um lugar ao gozo. Ao apresentar a diferenciação estabelecida por Lacan entre os
conceitos de sintoma e de sinthoma, Miller comenta a substituição da concepção do sintoma
da verdade ao gozo que repercute o que Lacan apresenta em seu Seminário, livro 20, quando
introduz um redirecionamento da concepção de linguagem através do conceito de lalíngua
(LACAN,1985).
No final de seu vigésimo seminário, intitulado Mais, ainda, Lacan interroga a
definição do inconsciente estruturado como uma linguagem, pois se o inconsciente é
decifrável e, por isso, só pode se estruturar como uma linguagem, a linguagem, por sua vez, é
sempre hipotética, tomada como uma ficção e uma construção. Desse questionamento, Lacan
introduz a diferença entre a linguagem e a lalíngua 27 , considerando que, a partir de lalíngua,
se faz surgir a linguagem. A linguagem, então, deixa de ser prévia e passa a ser designada
como “uma elucubração de saber sobre a lalíngua” (LACAN, 1985, p. 190). Se apreendemos
com Lacan que a linguagem não passa de elucubração sobre o uso primário de a lalíngua,
isto nos leva a considerar que o uso da linguagem é o de servir à comunicação, tal como
designado pelo inconsciente freudiano, que desvela seu sentido no nível de uma comunicação
cifrada, que demanda ser decifrada em uma análise. É, portanto, do Seminário 20 que
podemos entender a linguagem como “o que se inventa a partir da lalíngua” (MILLER, 2005,
p. 13), melhor dizendo, como o que se deixa entrever na linguagem e que serve a algo diverso
da comunicação. Como sistema linguístico e como articulação significante produtora de
sentido, a linguagem torna-se secundária à lalíngua, que se apresenta por meio de
26
Referência à mudança ortográfica empregada por Lacan em seu Seminário, livro 23: Sinthome, ao diferenciar o conceito de
sinthoma (sinthome) do conceito de sintoma (symptôme).
27
Tradução do termo Lalangue elaborado por Lacan em 1972 em O Seminário, livro 20: Mais, Ainda (1985).
32
significantes desconexos e ligados ao gozo. Nessa perspectiva, o conceito de lalíngua implica
tomar o significante a serviço do gozo. Tal diferenciação, traçada por Lacan em 1972, se
revela como um avanço fundamental para chegarmos ao estatuto do sinthoma, postulado do
Seminário 23.
O sinthoma, aquele que Lacan inventa após o Seminário Mais Ainda, se ancora na
literatura de Finnegans Wake, obra especial de James Joyce pelo seu caráter enigmático e não
analisável. Para Lacan, o sintoma de Joyce se apresenta em Finnegans Wake pelos ecos e
jogos de palavras de inúmeras línguas, melhor dizendo, como um sintoma concernente à
linguagem da qual Joyce soube fazer arte, inventando-lhe a função de sinthoma. Nessa
perspectiva, Lacan sustenta “a maneira plena e especialmente artística” (LACAN, 2007, p.
122) de James Joyce com sua literatura pelo seu “savoir-faire nisso”, identificando-o como
“o sinthoma tal que não há nada a fazer para analisá-lo” (LACAN, 2007). Em Finnegans
Wake, Joyce “tira proveitos de equívocos” (LACAN, p. 128) inerentes à sua própria língua,
porém não para frisar o que é da ordem do sentido, mas para “liberar algo do sinthoma”
elevado à potência de gozo da linguagem, àquilo que não se pode analisar.
Ao modificar a língua inglesa, pulverizando-a entre restos, ecos e jogos de palavras,
Joyce demonstra, em Finnegans Wake, como a linguagem é desfeita pelo impulso da lalíngua.
A propósito dessa última obra de Joyce, Lacan chega a evocar o diagnóstico psiquiátrico da
mania, assemelhando-a à escrita de Joyce na qual vemos a linguagem sendo trabalhada na via
de decomposição e de dissolução. Trata-se não de considerar um fenômeno de linguagem
categorizado pela psiquiatria, mas de assinalar na literatura de Joyce algo da ordem da
linguagem que se mostra “decomposta, desfeita, recheada de ecos que ele faz fermentar,
homofonicamente, entre outras línguas” (MILLER, 2005, p. 21). Assim, James Joyce avança
como um “mestre do significante”, não fazendo deslizar o significante em sua articulação com
o significado, mas contrastando “essa boa rotina que faz com que o significado mantenha
sempre o mesmo sentido” (LACAN, 2003, p. 58) 28 . É, então, da leitura lacaniana de
Finnegans Wake e da operação joyceana com a linguagem submetida à lalíngua, que
podemos conceber deslocamento da concepção do sintoma da verdade ao gozo.
Ao definir a operação freudiana como sendo “a operação característica do sintoma”
(LACAN, 1998, p. 235) 29 , Lacan nos apresenta, com a sua releitura da obra de Freud, a
operação do sintoma como atrelada à articulação entre o sentido do significante, tomado como
verdade, e o sintoma. Da leitura lacaniana, podemos considerar o sintoma freudiano como
28
29
Prefácio à edição inglesa do Seminário 11 [1976].
Do sujeito enfim em questão [1966].
33
verdade uma vez que é aquilo que se interpreta na ordem do significante. Se o significante é
solidário a uma ordem simbólica, que se conforma na sequência expressa pela relação entre
S1-S2, apreendemos nessa ordem a condição para o sentido, pois o significante só tem sentido
em sua relação com outro significante. Desse modo, Miller (2005, p. 20) comenta que, por
intermédio de Freud, “damos a essa verdade um outro nome, a chamamos de sintoma. O
sintoma é o nome clínico da verdade”.
Ao se ancorar na obra de James Joyce, Lacan nos mostra que há um além da
decifração de uma verdade presente na escrita desse artista. Na conferência Joyce, o sintoma,
pronunciada em 1975, na abertura do V Simpósio Internacional James Joyce, Lacan utiliza-se
do exemplo da universidade que vem se ocupando do texto de Joyce e “dos problemas
totalmente cativantes, fascinantes para o universitário mastigar” (LACAN, 2007: 159) na
tentativa de decifrar sua obra. A posição de Lacan de reserva e de abstenção em relação à
interpretação de Joyce contrasta, portanto, com a dos universitários diante da escrita
enigmática desse autor. Do ponto de vista dessa conferência lacaniana, a única coisa que se
pode apreender do texto de Joyce, pelo menos em Finnegans Wake, é o “gozo daquele que
escreveu isso” (LACAN, 2007, p. 163), o que equivale dizer que “a única coisa que se pode
apreender é o gozo, não a comunicação, não uma verdade decifrada” (MILLER, 2005, p. 21).
A leitura de Finnegans Wake conduz Lacan a considerar que a escrita de Joyce desvela
“uma relação com joy, o gozo [jouissance], tal como ele é escrito na lalíngua que é a inglesa,
por ser essa gozação, por ser gozo a única coisa que, do texto podemos pegar. Aí está o
sintoma.” (LACAN, 2007). Desse modo, o significante passa a ser considerado por Lacan
como causa de gozo e o sintoma, desnudado e reduzido como apontado na literatura de Joyce,
não se caracteriza mais pelo viés da verdade a ser decifrada ou interpretada, mas pelo gozo.
Assim, Lacan (2007, p. 162) ressalta que:
É isso que se constata no que faz de Joyce o sintoma, o sintoma puro do que concerne a
relação com a linguagem, na medida em que ela é reduzida ao sintoma – a saber, ao que ela
tem como efeito, quando não analisamos tal efeito –, eu direi mais, quando nos furtamos de
jogar com quaisquer equívocos que abalariam o inconsciente de qualquer um.
A partir dessa conferência, Lacan apresenta uma nova orientação para clínica analítica,
cuja direção é menos decifrar o sintoma do que fazer uso dele. Nessa perspectiva, Miller
(2005) apresenta uma abordagem do sintoma pela linguagem não somente pela via da
interpretação, mas pela redução, ou seja, pela apropriação da associação livre para servir à
redução do gozo do sintoma.
34
Na concepção que Lacan inaugura a partir da obra “estimulante” (LACAN, 2007, p.
116)
30
de Joyce, o sinthoma não se decifra nem tampouco se cura; trata-se, então, de saber
que função encontrar para ele. Por conceber que “deve haver um Joyce manejável” que o
psicanalista não deve recusar-se em considerar, Lacan (2007) introduz um uso lógico que
deve ser aplicado ao sinthoma que se afasta de uma lógica do sentido. Isto implica reconhecer
que o estatuto do sinthoma não se aproxima de uma formação do inconsciente como
designado por Freud, mas que deve ser usado “logicamente até atingir seu real, ate se fartar.”
(LACAN, 2007, p. 16).
O uso lógico do sinthoma, o qual Lacan nos convida a não recusar clinicamente, se
contrapõe ao uso da decifração que, como vimos, se remete à noção de verdade do sintoma,
para nos conduzir à “orientação do real do sinthoma que foraclui o sentido.” (LACAN,
2007, p. 117, grifo nosso). A partir da década de 1970, encontramos em Lacan a idéia de que
visar à verdade do sintoma é alimentá-lo. Assim, quando a interpretação visa enunciar uma
verdade, ela alimenta o sintoma como postulado por Lacan em uma das conferências
pronunciadas no mesmo ano: “A interpretação não deve ser teórica, sugestiva, ou seja,
imperativa”, o que implica considerar que ela não é “feita para ser compreendida, ela é feita
para produzir ondas” (LACAN, 1976, p. 16) 31 . O uso clínico da interpretação analítica,
portanto, não deve ser o de alimentar o sintoma, não deve ser o “alimento da mentira
verdadeira, do mentir verdadeiro do sintoma” (MILLER, 2005, p. 16). Nessa direção, o ponto
de partida do Seminário 23 é o de empregar o uso lógico do sinthoma, se opondo à decifração
do sintoma, a partir da interpretação para introduzir a nova orientação clínica da redução de
um elemento, ou mesmo, a um significante.
O importante a assinalar na concepção lacaniana do sinthoma, portanto, é a nova
orientação para a clínica do sintoma, resultante dessa teoria, cuja operação é apreendida no
nível de um sentido que concerne ao real. Lacan demonstra que a única possibilidade da
operação analítica alcançar o real do sintoma seria o de manejar o equívoco do significante,
melhor dizendo, o gozo do sentido [jouis-sens] que permeia a lógica significante. De outro
modo, a operação metodológica com o equívoco significante seria algo que provocaria o
‘nutrir de sentido o sintoma’, reduzindo o sentido do sintoma a uma adaptação aos ideais que
orientam as psicoterapias. Esse é, portanto, um aspecto fundamental da operação analítica
com o sintoma, pois ao sustentar um manejo pela via do equívoco significante, a proposição
30
31
O Seminário 23: o sinthoma [1975, 1976].
Conférences et entretiens dans des universités nord-americaines [1975].
35
lacaniana permite nos orientarmos pelo sintoma, sem que o real não exclua a operação com o
sentido do sintoma. Eis o que nos possibilita sustentar uma direção essencial e irrenunciável
da política analítica do sintoma que se diferencia da ciência e da hermenêutica.
No entanto, notamos que alguns impasses atravessam a práxis analítica diante dessa
orientação do real para a clínica do sintoma. O primeiro deles concerne à operação analítica
com o sintoma concebido como real do gozo, cuja via do sentido comporta em si um
obstáculo para a decifração. Entretanto, se por um lado o real é sem sentido, e isso nos impede
de esgotar a decifração do sentido do sintoma, por outro, esta é a via pela qual é possível tocar
o real do gozo do sintoma que não cessa de se escrever no corpo. E sobre esse segundo
impasse, Lacan situa a possibilidade do uso da interpretação analítica, não pela via da
compreensão do sentido do sintoma, mas pelas ressonâncias que a interpretação produz na
fala do analisante, sendo esta uma intervenção apreendida no nível de um sentido que
concerne ao real do gozo do sintoma. Nessa perspectiva clínica, Miller (1998) propõe o novo
conceito da ‘operação-redução’ (MILLER, 1998, p. 29-48) como uma formalização lógica do
método analítico diante dos obstáculos que se apresentam na clínica, a partir da repetição do
gozo do sintoma. Ao avesso do movimento da amplificação do sentido que se opera na
linguagem pelo deslizamento significante, Miller apresenta a operação da redução como
aquela capaz de condensar, na associação livre, os elementos do relato do analisante, de suas
palavras, de seus pensamentos e lamentos, visando limitar a proliferação de sentido. Marcada,
ainda, pela contingência do ‘não programado’ do gozo do sintoma, essa operação se apresenta
no nível de uma redução ao real em jogo na experiência analítica.
Para concluir o tema desenvolvido da transmissão da política lacaniana do sintoma,
convém indicar em que sentido o sintoma se remete à civilização. Ao localizarmos a
especificidade da orientação da psicanálise pelo real do sintoma, notamos que a incidência do
real na clínica se instaura sempre de modo parcial, como fragmentos do real que
correspondem ao indecifrável da repetição do gozo. Trata-se de situar na experiência clínica a
contingência do gozo capaz de demonstrar o real como impossível, como lógica própria ao
inconsciente ‘não-todo’ decifrável. O fato da contingência permear a posição do psicanalista,
entretanto, não o impede de transmitir a outros clínicos o modo do acesso ao real que lhe é
próprio.
Por um lado, o sintoma é o ponto impossível de ser incorporado à civilização em que
o sujeito habita por se apresentar, inicialmente, por uma contingência que dá origem ao
singular de cada sintoma. Transmitir o encontro com esse real demonstrado pela contingência
irredutível do trauma, que constitui as diferentes maneiras de encontro com o gozo, “é o que
36
Lacan chamou de fazer o sujeito crer em seu sintoma.”, como modo de “indicar a via pela
qual se pode viver o que não pode ser vivido do ‘não-todo” (LAURENT, 2007, p. 175). Por
outro lado, a prova da existência do inconsciente está no sintoma pelo modo como cada um
goza de seu inconsciente. E se o inconsciente é político, isto nos leva a considerar que o
insuportável do sintoma pode se transformar em ponto de apoio para que o sujeito reinvente
seu lugar no Outro, no laço social. Essa invenção, no entanto, não supõe fazer existir o Um
desse Outro, o que se comprova na distribuição dos variados tipos de sintoma em séries
díspares e estanques sem, com isso, constituir ‘mundos e civilizações unas’, por ser o sintoma
uma expressão própria do mal-estar na cultura. Nesse sentido, “o sintoma depende da
civilização” (LACAN, 2007, p. 175) e isto se evidencia quando novos sintomas aparecem
sempre que os significantes mestres se deslocam no Outro.
O exemplo da rápida evolução da clínica diagnóstica e da prática estatística dos
transtornos mentais, disseminada pelos atuais manuais da psiquiatria, evidencia um processo
mais complexo de ser balizado em relação às categorias diagnósticas que fizeram tradição na
clínica clássica. No contexto atual da sociedade de consumo, não há como negar o modo
globalizado em que são diagnosticados, por exemplo, os sintomas depressivos que, ao
liderarem as vendas no mercado de psicofármacos, se apresentam constantemente na clínica
contemporânea, partindo do lamento, ‘da dor, e não da delícia inventiva de ser o que é’ 32 .
Nossa civilização comporta tanto as novas quanto as clássicas categorias diagnósticas da
neurose, da psicose e da perversão, tanto a crise de autoridade quanto a herança dogmática da
crença religiosa, enfim, uma série de contrastes entre os antigos e novos registros de malestar. O final do ensino de Lacan permite, portanto, conservar o repertório das estruturas
diagnósticas da clínica clássica, enriquecendo-as com a concepção de sinthoma, que se
estende tanto para as neuroses quanto para as psicoses, na medida em que parte de uma
orientação em direção ao real.
O discurso analítico como o avesso do discurso do mestre que incorpora os ideais de
uma cultura, encontra, assim, sua função na civilização contemporânea: a de fazer o sujeito
crer em seu sintoma frente às inconsistentes interpretações dadas aos sintomas, seja nos
tratamentos individuais, seja nas instituições. Eis aí o modo como o psicanalista marca sua
diferença e a transmite entre diferentes discursos. Ao defendermos a política da psicanálise no
campo da saúde mental pela proposta do trabalho em equipe orientado pela lógica singular
do sintoma, situamos, ainda, a possibilidade de tornarmos legíveis os sintomas que se
32
Parafraseando a letra de uma canção de Caetano Veloso “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”.
37
proliferam em nossa civilização, graças ao uso subversivo que o discurso analítico faz do
significante mestre. Nessa direção, essa pesquisa aborda o método da construção do caso
clínico como um importante instrumento para o trabalho coletivo em saúde mental, que
permite localizar as escansões e as transformações das organizações subjetivas do gozo,
demonstrando as passagens em que o sujeito passa a utilizar o sintoma como suplência, com a
construção de novos arranjos sintomáticos. Localizar o sintoma e questionar o destino dado a
este na construção coletiva de cada caso é, portanto, um desafio lançado ao psicanalista, que,
ao fazer valer o sujeito no sintoma, recolhe, ainda, os efeitos de sua prática no trabalho com
os demais dispositivos clínicos presentes no campo da saúde mental.
1.2. Construções em Análise
A referência ao termo ‘construção’, empregado na obra freudiana, é essencial para o
desenvolvimento dessa pesquisa, pois nos permite abordar os desdobramentos teóricos e
clínicos que esse termo traz ao campo clínico da psicanálise. Como principal referencial
teórico para essa discussão, apresentamos o texto freudiano Construções em análise, de 1937,
tomando como condutoras para essa leitura, algumas pontuações empregadas por JacquesAlain Miller no artigo intitulado Marginália de Construções em Análise (MILLER, 1996) e
alguns comentários registrados por Carlo Viganò.
Escrito por Freud em 1937, Construções em análise (FREUD, 1996) é um texto
particularmente importante, pois, como nos últimos textos da obra freudiana, extraímos as
considerações de Freud em relação à descoberta do inconsciente e ao advento da psicanálise.
Esse texto se inscreve na série de intervenções de Freud em resposta aos opositores da
psicanálise, como realizado, por exemplo, em seu texto sobre a Análise Leiga (FREUD, 1996)
no qual defende a possibilidade de ‘não médicos’ praticarem a psicanálise ou, ainda, em
Análise Terminável e Interminável (FREUD, 1996) em que responde a certa ‘exigência’ de
que a análise fosse concluída rapidamente. Nesse contexto de suas últimas intervenções
teóricas, é possível considerar que “a psicanálise começa a ser modificada pela psicanálise”
(MILLER, 1996, p. 92), na medida em que esta já ocupava seu lugar no cenário clínico do
século XX e, com efeito, começava a se estender como uma prática inventada por Freud que
pôde se difundir no mundo.
Ao abordarmos os diversos elementos que compõem as Construções em Análise de
Freud, partiremos de uma perspectiva específica da teoria psicanalítica, mantendo o rigor de
uma continuidade teórica em relação à descoberta do inconsciente. Trata-se de situar, nos
38
últimos textos da obra de Freud (1996, p. 93), a “descoberta da implicação do analista na
análise”, concebida pelo modo em que os próprios psicanalistas colocam em prática e
transmitem a invenção freudiana ao campo clínico de sua época. Essa perspectiva, por que
não dizer ‘política’ da psicanálise, já se apresenta no início do texto freudiano, quando o autor
emprega o termo ‘construção’, advertindo, no debate do texto que “o analista militante nada
aprenderá que já não saiba” (FREUD, 1996, p. 275).
As primeiras referências estabelecidas no texto a respeito do termo ‘construções em
análise’ implicam uma discussão sobre o manejo clínico do analista diante do material
inconsciente e, em especial, sobre os momentos em que o analista se depara com um ‘ponto
perdido’ que não reaparece na fala do analisante. Construção é, portanto, a palavra empregada
por Freud para designar a relação do analista com o que permanece recalcado, ou seja, com
aquilo que o trabalho analítico não consegue restituir pela via do sentido. Na estrutura do
texto freudiano, podemos situar três momentos em que a palavra ‘construção’ recebe
concepções diferentes. No primeiro momento, o termo ‘construção’ é designado pela analogia
do ‘método arqueológico’ com o trabalho do analista, concebendo a construção como
trabalho do analista. No segundo momento do texto, o termo designa a comunicação da
construção e as respostas produzidas pelo paciente às construções do analista. E, no terceiro
momento, Freud retoma o termo ‘construção’ sob uma perspectiva mais ampla que constitui
uma clínica do retorno do recalcado, relançando o termo construção pela via de uma
investigação clínica em que o recalcado retorna não apenas na lembrança, mas também nos
fenômenos da alucinação e do delírio. Caberia, então, a leitura da terceira parte do texto sob a
perspectiva do delírio como construção do paciente.
1.2.1. O método arqueológico e a construção do trabalho do analista
A primeira parte de Construções em Análise se remete ao trabalho do analista no
aspecto em que se difere do trabalho do analisante, sendo esse aspecto abordado por Freud,
com sua sutileza peculiar, diante de argumentos de seus opositores. A intervenção de Freud na
abertura desse artigo se remete, então, a sua própria posição de sustentar o método e a ética da
psicanálise no contexto científico de sua época.
Ao introduzir sua intervenção, Freud se dirige a um dos ‘opositores da análise’33
(FREUD, 1996, p. 275) que, em determinada ocasião, expressaram uma opinião sobre a
33
Em diversas ocasiões de discussão com Carlo Viganò sobre o texto “Construções em Análise”, Viganò indica a
similaridade do termo empregado por Freud como ‘verdadeiro e falso, que o fez deduzir ser Karl Popper o ‘opositor’ a quem
39
interpretação analítica de modo depreciativo, tratando-a segundo o famoso princípio ‘Heads I
win, tails you lose‘ 34 . Dessa expressão resulta o argumento de que se o paciente concorda com
uma interpretação do analista, então, a interpretação está correta, mas, se há uma contradição
da parte do paciente, “isto constitui apenas sinal de sua resistência, o que novamente
demonstra que o analista estava certo” (FREUD, 1996, p. 275). Diante desse argumento
provocativo de um de seus opositores, Freud parte de uma descrição que designa o modo
como o analista pode “chegar a uma avaliação do sim ou do não” de seus pacientes no curso
de uma análise, não tomando essa avaliação pelo viés da expressão de concordância ou de
negação de um analisante diante de uma intervenção do analista.
Freud assinala, então, a direção do trabalho de uma análise como sendo a de conduzir
o paciente a abandonar as experiências recalcadas, levando-os “a recordar certas experiências
e os impulsos afetivos por ela invocados, os quais, presentemente, ele esqueceu” (FREUD,
1996, p. 276). Nessa direção, o autor descreve o que é a ‘matéria prima’ do trabalho do
analista, indicando aí os fragmentos de sonhos e de lembranças dos sonhos, as associações
enunciadas livremente pelo paciente, os sintomas e as inibições, entre outros fenômenos
produzidos pelas experiências recalcadas que habitam o paciente. Freud defende a presença de
fragmentos, restos, pequenos pedaços que se revelam na fala do analisante como retorno do
recalcado, o que implica a consideração de que “o recalcamento quer dizer que o inconsciente
não surge senão em pedaços, através de fragmentos” (MILLER, 1996, p. 94).
O termo construção é, então, empregado por Freud como uma tarefa do analista diante
deste ‘fragmentário do inconsciente’, caracterizando a experiência analítica como
essencialmente fragmentária e, portanto, diferenciada de “uma narração que visa à
completude” (MILLER, 1996, p. 94). A partir desse ponto de vista, situamos no texto
freudiano um deslocamento da questão levantada por um de seus opositores para a discussão
do trabalho do analista de ‘construção ou reconstrução’ diante de sua matéria-prima.
Assim, encontramos em Freud (1996, 276-277, grifo nosso):
Todos nós sabemos que a pessoa que está sendo analisada tem de ser conduzida a recordar
algo que foi por ela experimentado e recalcado, e os determinantes dinâmicos desse processo
são tão interessantes que a outra parte do trabalho, a tarefa desempenhada pelo analista, foi
empurrada para o segundo plano. O analista não experimentou nem reprimiu nada do material
em consideração; sua tarefa não pode ser recordar algo. Qual é, então, sua tarefa? Sua tarefa
é a de completar aquilo que foi esquecido a partir dos traços que deixou atrás de si ou,
mais corretamente, construí-lo. A ocasião e o modo como transmite suas construções
àquele que está sendo analisado, bem como as explicações com que as faz acompanhar,
constituem o vínculo entre as duas partes do trabalho de análise, entre o seu próprio papel e o
do paciente. Seu trabalho de construção ou, se preferir, de reconstrução, assemelha-se
Freud se dirige nesse debate. Contemporâneo ao texto ‘Construções em Análise’ de 1937, Popper publica, em 1935, o
clássico Lógica da Pesquisa Científica, que consagra sua teoria sobre o ‘falsificacionismo’ como crítica ao conceito de
‘indução’ do empirismo lógico.
34
Expressão que se traduz na língua portuguesa como: ‘Cara eu ganho, coroa você perde’.
40
muito à escavação, feita por um arqueólogo, de alguma morada que foi destruída e soterrada,
ou de algum antigo edifício.
A construção é apresentada como uma tarefa do trabalho do analista comparada ao
método arqueológico, já que cabe tanto ao analista quanto ao arqueólogo a reconstrução a
partir de restos, de fragmentos perdidos. Entretanto, dessa analogia, Freud assinala que o
analista trabalha em ‘condições mais favoráveis’ do que o arqueólogo, pois dispõe de um
material que não é correspondente ao do terreno das escavações. Trata-se de reconstruir no
terreno da transferência analítica as repetições que resultam desses fragmentos de lembranças
que são falados pelo analisante e que, portanto, se mantém vivos, de modo diferente da
reconstrução de um objeto arqueológico destruído. O objeto psíquico, por sua vez, apreende a
preservação de fragmentos inconscientes essenciais que se apresentam no curso de uma
análise e, ainda que pareçam completamente esquecidos, “é possível duvidar de que alguma
estrutura psíquica possa realmente ser vítima de destruição total” (FREUD, 1996, p. 277).
Desse modo, Freud (1996, p. 278) diferencia o objeto psíquico do objeto material da
arqueologia, demarcando como principal diferença “o fato de que, para o arqueólogo, a
reconstrução é o objetivo final de seus esforços, ao passo que, para o analista, a construção
constitui apenas um trabalho preliminar”.
A construção, então, não é outra coisa senão um trabalho preliminar do analista. Sob
essa perspectiva, o analista constrói para ele próprio, como um trabalho preliminar de
construção da estrutura de um caso que é constantemente modificada pelos novos elementos
que surgem a cada vez, a cada sessão. Podemos também localizar aí, a função da supervisão
analítica como um dispositivo fundamental na formação dos analistas por se tratar da
supervisão das construções preliminares do analista na condução de cada caso. Ao concluir
essa primeira parte do texto, Freud introduz uma questão prática absolutamente relevante, e
sempre atual, em relação a esse trabalho de construção preliminar do analista: em que medida
é preciso comunicar as construções ao paciente?
1.2.2. A transmissão das construções em análise
Na segunda parte do texto, Freud introduz a transmissão da construção ao analisante,
acrescentado novas idéias à primeira parte em que se dedicou, em especial, à tarefa ‘solitária’
do analista, caracterizada pela ausência do paciente na cena inicial desse debate. Nesse
segundo momento, o paciente se apresenta no eixo dessa articulação entre a construção
preliminar do analista e a comunicação dos efeitos dessas construções em análise. Nessa
41
discussão, cabe acentuar, ainda, o uso do termo ‘transmissão’ (FREUD, 1996, p. 276),
empregado por Freud para destacar ‘o modo como o analista transmite suas construções’ aos
seus pacientes, tomado aí pelo viés clínico da implicação do analista na direção do tratamento.
Contudo, damos acento também ao viés político do uso desse termo no texto freudiano,
caracterizado pela transmissão do método e dos princípios da práxis analítica ao campo
científico. Caberia, então, questionar em que medida já encontramos na obra freudiana a
proposição de uma política da psicanálise, ao marcar sua diferença em relação aos métodos da
ciência e da sugestão.
De saída, Freud retoma a tarefa de construção como um trabalho preliminar do
analista, porém, advertindo não se tratar de “um trabalho preliminar no sentido de que a
totalidade da construção deve ser completada antes que o trabalho seguinte possa começar”
(FREUD, 1996, p. 279), como no caso da construção de uma casa em que, inicialmente, se
erguem as paredes para posteriormente decorá-las. Na conclusão da primeira parte do texto, a
propósito da analogia com o método arqueológico, extraímos a idéia de uma “construção
sincrônica” (MILLER, 1996, p. 95), designada a partir de vestígios que poderiam ser
empregados na construção de um objeto que seria ‘reconstruído’ pela ligação dos elementos
fragmentários do material, de modo a ‘voltar a ser o que foi no princípio’. Dito de outro
modo, podemos entender que a construção se completaria e que, nesse momento, o analista
comunicaria a construção ao paciente. No entanto, dessa frase que introduz a segunda parte do
texto, extraímos a idéia de uma “construção diacrônica” uma vez que indica uma alternância
em que o analista comunica os fragmentos de construção, recolhe o material produzido pelo
paciente para, a posteriori, comunicar-lhe novamente o fragmento do material inconsciente da
construção. Assim, Freud (FREUD, 1996, p. 279) assinala que a própria construção é
comunicada por fragmentos e não em sua totalidade em uma única vez:
O analista completa um fragmento da construção e o comunica ao sujeito da análise, de
maneira a que possa agir sobre ele; constrói então um outro fragmento a partir do novo
material que sobre ele se derrama, lida com este da mesma maneira e prossegue, desse modo
alternado, até o fim.
Em seguida, o autor apresenta uma breve articulação entre a construção e a
interpretação, preservando uma distinção entre esses dois modos de intervenção ao afirmar
que a interpretação “aplica-se a algo que se faz a algum elemento isolado do material”,
enquanto a construção se aplicaria para o sujeito em análise a “um fragmento de sua história
primitiva, que ele esqueceu” (FREUD, 1996, p. 279). Em termos freudianos, a interpretação é,
então, concebida por incidir sob um fragmento de construção, enquanto a construção incide
42
sob o que não pode ser rememorado; embora ambas guardem em si uma simetria em relação
ao trabalho de elaboração que está a cargo do paciente.
A atenção do autor se volta, então, para o trabalho preliminar das construções no qual
situa “a questão de saber que garantia temos, enquanto trabalhamos nessas construções, de
que não estamos cometendo equívocos e arriscando o êxito do tratamento pela apresentação
de alguma construção incorreta” (FREUD, 1996, p. 279, grifo nosso). Freud reencontra o
problema lançado por seu opositor, analisando os diferentes tipos de respostas do paciente
dirigidas ao analista quando lhe é comunicado uma construção. Da parte dos pacientes, há o
‘sim ou não’, enquanto que de seus opositores o ‘verdadeiro ou falso’ como possíveis
respostas para os efeitos das intervenções analíticas. Ao examinar a verdade ou a falsidade da
construção pelo viés da ‘garantia’, por exemplo, Freud aborda a ‘verdade’ da construção,
como se interrogasse: o que nos garante que a construção que fazemos é verdadeira ou falsa?
Diante da aparente “impossibilidade de responder a essa questão”, Freud lança mão de uma
citação da personagem Polônio, da obra Hamlet, de William Shakespeare: “a carpa da verdade
foi fisgada graças à isca da mentira”, o que nos permite uma releitura lacaniana dessa citação
empregada por Freud nos seguintes termos: “não podemos agarrar a verdade senão pela
equivocação” (MILLER, 1996, p. 103). A questão da ‘garantia da verdade’ do trabalho do
analista pode, então, nos redirecionar ao debate freudiano sobre a verdade que o inconsciente
enuncia, deslocada da questão do verdadeiro ou falso que mais caberia a uma crítica ao
método da sugestão. Nessa perspectiva, Freud sustenta em seus argumentos: “posso garantir
que o abuso de ‘sugestão’ jamais ocorreu em minha clínica” (FREUD, 1996, p. 280),
discutindo, em seguida, ‘o sim e o não’ como respostas do analisante à construção do analista.
Ao descrever detalhadamente ‘o sim e o não’ entre uma série de respostas do paciente
que “produzam novas lembranças que completem e ampliem a construção” (FREUD, 1996, p.
281), o autor aponta para o aspecto parcial e ‘incompleto’ de uma construção analítica, já que
esta “abrange apenas um pequeno fragmento dos eventos esquecidos” (FREUD, 1996, p.
280). Trata-se dos modos de ‘confirmação indireta’ quando não é pelo sim ou pelo não que se
dá a resposta, mas quando o sujeito testemunha sua surpresa, quando ele comete um lapso e se
trai, confessando o contrário do que gostaria de dizer. Para exemplificar essa passagem, Freud
apresenta algumas situações clínicas e, entre elas, ressalta a palavra de um de seus pacientes
que, por considerar determinados honorários muito altos, lhe diz: ‘Dez dólares não são nada
para mim’, mas, em vez de dólares, inseriu uma moeda de menor valor e disse ‘dez xelins’
(FREUD, 1996, p. 283). Com esse exemplo, o autor aborda a verdade da construção pelo
modo como a experiência analítica opera com a verdade como resposta do inconsciente: há o
43
sim, há o não e entre essas, tantas outras respostas. O que se extrai dessa resposta, então, é o
que surge ‘indiretamente’ do material inconsciente, o que Lacan nomeará mais adiante como
‘semidizer’, a partir do que já demonstrava Freud sobre o estatuto da verdade. Se a verdade do
inconsciente não se pode dizer ‘toda’, ela apenas pode ser semidita, isso implica no fato de
que o analisante está sempre equivocado na sua relação com o inconsciente, porque essa
relação é, em si mesma, distorcida.
Aos opositores da psicanálise, portanto, Freud adverte quanto ao trabalho ‘preliminar’
da construção analítica, diferindo-a da sugestão: “só o curso ulterior da análise nos capacita a
decidir se nossas construções são corretas ou inúteis. (...) não exigimos uma concordância
direta do paciente, não discutimos com ele, caso a princípio a negue” (FREUD, 1996, p. 283).
Essa passagem nos permite situar novamente o deslocamento produzido por Freud em relação
a seu ponto de partida em que o analista propõe a construção para, em seguida, o paciente
responder ‘sim ou não’ a esse enunciado. Nesse segundo momento, ‘o sim e o não’ fazem
parte do material inconsciente, o paciente não responde somente a um enunciado do analista,
mas a comunicação da construção diante do aparecimento de um material que resulta em certo
número de ‘reações’ do analisante. Não se trata de ‘saber quem tem razão’, trata-se de estar
no rastro de uma verdade inconsciente que se revela ao escapar, uma verdade que não exige
exame ou aprovação. A operação analítica com a verdade de cada sujeito permite extrair e
verificar a posteriori uma lógica em cada caso, segundo um princípio indicado por Freud com
base na frase de Nestroy “de que no curso dos acontecimentos, tudo se esclarecerá” (FREUD,
1996, p. 283).
1.2.3. O delírio como construção
A terceira e última parte de ‘Construções em Análise’ é introduzida com um novo
questionamento de Freud sobre a comunicação das construções: de que modo a construção do
analista se transforma em convicção para o paciente? Esse questionamento ‘familiar a todo
analista’, em sua experiência clínica, leva Freud a situar um ponto de investigação e de
exposição mais detalhada sobre o alcance dos efeitos da construção do analista quando ela
não conduz à recordação do paciente.
Na comparação empregada entre o trabalho do analista diante do ‘objeto psíquico’ e
do arqueólogo diante de seu objeto material, notamos uma contradição da parte de Freud
(1996, p. 277), que justifica o movimento dialético de suas intervenções ao longo do texto. Se,
no primeiro momento, o autor insiste no fato de que “todos os elementos essenciais estão
44
preservados”, nessa parte conclusiva do texto, Freud (1996, p. 284) indicará que “com
bastante frequência não conseguimos fazer o paciente recordar o que foi reprimido” ao
introduzir a noção do recalque originário. Com essa indicação, Freud (1996, p. 284) apresenta
uma formulação surpreendente: “se a análise é corretamente conduzida, produzimos nele uma
convicção segura da verdade da construção, a qual alcança o mesmo resultado terapêutico que
uma lembrança recapturada”.
De acordo com a primeira parte do texto, no qual Freud situa a direção do tratamento
analítico, como sendo a de conduzir o paciente a recuperar as lembranças que foram
recalcadas, se insere, então, um novo princípio: a convicção da verdade da construção tem o
mesmo efeito que uma lembrança reencontrada. A leitura desse princípio freudiano poderia
ser escrita, segundo Jacques-Alain Miller, com o matema E=UWk com a formulação
freudiana: Uberzeugumg von der Wahrheit der Konstruktion, a convicção da verdade da
construção, é equivalente à lembrança, Erinnerung. Nessa perspectiva, Miller eleva essa
passagem do texto freudiano ao estatuto de um princípio da teoria psicanalítica que pode ser
matemizado. Seguindo a referência da fórmula einsteiniana E=MC2, que identifica energia e
matéria, o matema E=UWk é concebido como um “princípio freudiano que identifica
lembrança e construção” (MILLER, 1996, p. 96, grifo nosso).
Retomando a conclusão do texto, Freud indica suas últimas considerações a respeito
do tema das ‘construções em análise’ sob uma perspectiva mais ampla do termo, ao se
surpreender com o fato da comunicação da construção do analista ser capaz de provocar no
paciente, lembranças de uma precisão quase alucinatória. Esse aspecto é assinalado pelo autor
por meio de exemplos de pacientes que “tiveram evocadas recordações vivas, mas o que eles
recordaram não foi o evento que era o tema da construção, mas pormenores relativos a esse
tema” (FREUD, 1996, p. 284). Nesses casos, o autor assinala a incidência de lembranças, cujo
conteúdo fora evocado com ‘anormal nitidez’ em relação ao tema da construção, ao passo
que, no mesmo relato, se apresentavam novos elementos sob os quais a construção não teve
qualquer alcance e, portanto, não conduziram os pacientes a nenhuma elaboração. Isto ocorreu
tanto nos relatos dos sonhos quanto em momentos posteriores à comunicação de uma
construção, levando Freud a considerar que “essas recordações poderiam ser descritas como
alucinações, se uma crença em sua presença concreta se tivesse somado à sua clareza”
(FREUD, 1996, p. 285). A importância dessa observação é ressaltada pelo autor uma vez que
ocasionalmente constatava a incidência de fenômenos alucinatórios no relato de pacientes,
que, ‘certamente, não eram psicóticos’. Com isso, Freud (1996, p. 285) avança em suas
formulações indicando que:
45
(...) talvez seja uma característica geral das alucinações — à qual uma atenção suficiente não
foi até agora prestada — que, nelas, algo que foi experimentado na infância e depois
esquecido retorne — algo que a criança viu ou ouviu numa época em que ainda mal podia
falar e que agora força o seu caminho à consciência, provavelmente deformado e deslocado,
devido à operação de forças que se opõem a esse retorno.
A partir dessa passagem, Freud (1996, p. 285) passa a situar a estreita relação entre as
alucinações e os fenômenos típicos da psicose, considerando que “os próprios delírios em que
essas alucinações são constantemente incorporadas sejam menos independentes do retorno do
recalcado do que geralmente presumimos”. E sobre o mecanismo de um delírio psicótico, o
autor acrescenta dois fatores importantes que se relacionam com o retorno do recalcado,
indicados por um lado, pelo afastamento da realidade e, por outro, pela influência exercida
pela realização de um desejo no conteúdo do delírio cuja deformação e o deslocamento das
recordações mais se assemelhariam ao mecanismo dos sonhos e dos sintomas neuróticos.
O importante a assinalar nessa passagem do texto freudiano é, portanto, a equivalência
empregada entre os fenômenos da alucinação e do delírio com o retorno do recalque. Isto
implica a consideração de que a lembrança recalcada não pode surgir senão sob forma
alucinatória e delirante e que “talvez a verdade, quando ela ressurge, comporte sempre certo
coeficiente de delírio” (MILLER, 1996, p. 96). A partir dessa concepção empregada por
Freud, podemos situar a idéia de que a verdade da lembrança recalcada não tem um caráter de
exatidão, ao contrário, a verdade tem uma estrutura de delírio, de ficção, porque ela se
manifesta sob forma de delírio.
Esse é o ponto de vista de Freud indicado para a clínica das psicoses quando enfatiza
“que há não apenas método na loucura como o poeta 35 já percebera, mas também um
fragmento de verdade histórica” (FREUD, 1996, p. 285, grifo nosso) ao supor que a ‘certeza’,
característica dos delírios, seja derivada de fontes infantis recalcadas. Como direção para o
tratamento da psicose, o autor aponta para o abandono do “vão esforço de convencer o
paciente do erro de seu delírio e de sua contradição da realidade” (FREUD, 1996, p. 285 para,
ao invés disto, conduzi-lo ao reconhecimento de seu ‘núcleo de verdade’ como uma operação
produzida pela experiência analítica, seja no campo da psicose seja no da neurose. O trabalho
do analista consistiria, então, em libertar “o fragmento de verdade histórica de suas
deformações e ligações com o presente, e em conduzi-lo de volta para o ponto do passado a
que pertence” (FREUD, 1996, p. 286). Desse modo, Freud indica sua aposta na ‘pesquisa
clínica’ com casos de psicose, ainda que não vislumbrasse um ‘sucesso terapêutico’ para o
tratamento analítico das psicoses.
35
Nessa frase, Freud faz novamente alusão à fala de Polônio, em Hamlet, de William Shakespeare.
46
Sem avançar nessa investigação clínica dos fenômenos da psicose, Freud demarca
apenas uma analogia que nos parece paradigmática no que tange à articulação entre os temas
da psicanálise e da psicose:
Os delírios dos pacientes parecem-me ser os equivalentes das construções que erguemos no
decurso de um tratamento analítico — tentativas de explicação e de cura, embora seja verdade
que estas, sob as condições de uma psicose, não podem fazer mais do que substituir o
fragmento de realidade que está sendo rejeitado no passado remoto. Será tarefa de cada
investigação individual revelar as conexões íntimas existentes entre o material da repressão
atual e o do recalque original. Tal como nossa construção só é eficaz porque recupera um
fragmento de experiência perdida, assim também o delírio deve seu poder convincente ao
elemento de verdade histórica que ele insere no lugar da realidade recalcada.” (FREUD, 1996,
p. 286, grifo nosso).
Nesse parágrafo, Freud dá indicações sobre o tratamento da psicose, mas
especialmente para ressaltar uma equivalência entre o delírio e a construção. A construção
que ele nos apresentou no início do texto como um método equivalente ao método científico
da arqueologia se revela, então, em sua familiaridade com o delírio psicótico. Podemos notar,
portanto, mais uma variação do movimento dialético no texto de Freud quando o termo
‘construção’ designa uma analogia entre psicanálise e arqueologia, passando a designar uma
analogia entre psicanálise e psicose.
Ao concluir essa discussão, Freud nos convida a refletir criticamente sobre ‘os delírios
da humanidade’, que exercem um impacto marcante sobre os homens por meio de ideologias
políticas e religiosas, que configuram a ‘verdade histórica’ de uma civilização.
Se, apesar disso, esses delírios são capazes de exercer um poder extraordinário sobre os
homens, a investigação nos conduz à mesma explicação que no caso do indivíduo isolado.
Eles devem seu poder ao elemento de verdade histórica que trouxeram à tona a partir da
repressão do passado esquecido e primevo. (FREUD, 1996, p. 287).
Esse argumento, exemplificado pelas crenças e acontecimentos históricos inacessíveis
a uma crítica científica, permite traçar, por um lado, uma leitura política da psicanálise na
qual o inconsciente e o sintoma se remetem à História e, por outro, uma afinidade entre a
estrutura do delírio com a verdade recalcada. Caberia, enfim, a leitura dessa terceira parte do
texto sob a perspectiva do delírio como construção do paciente. Mas isto pode ser lido ao
seu avesso, que é a construção como delírio do analista: “o delírio é uma construção
patológica, talvez a construção analítica seja um delírio metódico” (MILLER, 1996, p. 94), o
que nos permite retomar alguns pontos do texto freudiano que fundamentam o rigor
metodológico da construção analítica.
Assinalemos, então, a inovação do método clínico de Freud no cenário científico de
sua época, partindo da observação de Carlo Viganò de que o ‘opositor’ a quem Freud remete
o debate provocado por suas “Construções em Análise” seria Karl Popper. Nesse contexto,
47
Popper é consagrado por sua teoria sobre o ‘falsificacionismo’, publicada em 1935, no livro A
Lógica da Pesquisa Científica (POPPER, 1972). Com o método da ‘falseabilidade/refutação’,
Popper considera ‘científica’ apenas a teoria que seja passível de ser corroborada ou
falsificada por uma experiência anterior e, com isso, uma verificação só pode ser alcançada se
for refutada, criticada, anteriormente por outra teoria. Dito de outro modo, para Popper se
uma teoria é certa, é necessário estabelecer uma linha de diferença ou de semelhança com
outra teoria que não foi corroborada.
A discussão de Freud sobre o ‘sim e não’, o ‘verdadeiro e falso’ das respostas de seus
pacientes parece, então, se dirigir ao método popperiano do ‘erro e acerto’ como critério para
a validação de um método científico. Apesar de reconhecermos a originalidade metodológica
de Popper, em especial, por estabelecer um outro critério para a “verdade científica”, com o
falsificacionismo, notamos, nas respostas de Freud, o seu esforço para esclarecer que os
princípios do método de investigação analítica se diferem do método da sugestão, o qual
Popper parecia questionar. Para isso, Freud inclui o paciente na cena do debate e parte do
método da associação livre para demonstrar que a verdade inconsciente sempre escapa ao
sentido normativo, na medida em que preserva uma estrutura de delírio que não exige
aprovação ou falsificação. No entanto, Freud não recua da tarefa de transmitir o rigor da
operação analítica e, para isso, propõe a construção dos casos como uma investigação que
permite extrair e verificar, a posteriori, a lógica das respostas de cada paciente, caso a caso.
Sob esse ponto de vista, podemos considerar a ‘construção analítica como um delírio
metódico’ pela formalização metodológica que esta estabelece com a verdade fragmentada do
inconsciente e com o saber que se constrói no ‘après-coup’ de cada sessão.
1.2.4. Construção e sintoma
O tema da política da psicanálise, concebida pelo modo como esta sustenta a operação
com o real, em sua experiência clínica, nos faz retomar algumas considerações de Freud em
Construções em Análise, quando discute os momentos em que o analista se depara com um
‘ponto perdido’ que não reaparece na fala do analisante. Construção é, portanto, o termo
empregado por Freud para designar a relação do analista com o que permanece recalcado,
com o pedaço faltante na cadeia significante, ou seja, com aquilo que o trabalho analítico não
consegue restituir pela via do sentido; o que, em termos lacanianos, podemos nomear como o
real do gozo do sintoma. Como metáfora, Freud indica a tarefa do arqueólogo de reconstruir
as “partes do mundo perdido”, assemelhando a tarefa do analista de reconstrução do ‘objeto
48
psíquico’ com a extração de repetições que resultam de fragmentos, restos, pequenos pedaços
de lembranças que se apresentam no curso de uma análise, ainda que os significantes se
percam ou que sejam esquecidos. E isso nos dá a dimensão da dinâmica do inconsciente
freudiano “não-todo” decifrável e do estatuto do sintoma como uma formação do
inconsciente, que corresponde a essa mesma lógica. Como, então, fazer a psicanálise operar
com esse ‘resto’ que escapa ao sentido?
Freud diferencia, assim, a interpretação da construção, concebendo a interpretação
como intervenção que incide sob um fragmento de construção, enquanto a construção incide
sob o que não pode ser rememorado. Em suma, a interpretação designa uma operação
simbólica que visa extrair o real do gozo pela via dos significantes, diferindo da construção
que, ao invés de reintegrar os significantes perdidos, consiste em “restaurar a topologia de um
furo, de um furo originário, não de um furo da perda do significante, mais exatamente do furo
da falta que causa o desejo.” (VIGANÒ, 1999, p. 55). É, portanto, nessa perspectiva que
retomamos a proposição freudiana da construção como tarefa do analista para definir o
trabalho de construção do caso clínico como uma proposição metodológica que opera diante
de um ‘furo’, de um ‘ponto cego’ que aponta para a ‘falta de saber’ que constitui o sujeito e
seu sintoma e que causa o desejo do analista. Sobre esse aspecto, situamos uma possível
correspondência entre a operação analítica da construção e a concepção do sintoma para a
psicanálise, marcado pelo real que incide no gozo como ‘furo no saber’.
Nessa direção, convém indicar a consideração destacada por Freud na última parte do
texto “Construções em Análise”, quando relança o termo ‘construção’ pelo viés de uma
investigação clínica, na qual o recalcado retorna não apenas na lembrança, mas por meio de
sintomas como os fenômenos da alucinação e do delírio. Esse é ponto em que Freud parece
considerar, por intermédio da expressão dos sintomas psicóticos, os obstáculos para a
decifração do sentido dos sintomas, indicado pela idéia de que a verdade se manifesta sob
forma de delírio, restando algo que não se pode analisar senão pela via da construção
analítica. Caberia, então, a leitura dessa passagem freudiana sob a perspectiva do sintoma
como construção do paciente, concepção que nos permite uma aproximação com o estatuto
do real do sinthoma, definido no final do ensino de Lacan como solução inventada pelo
sujeito para lidar com o irredutível do real do sintoma, ou seja, como uma construção singular
de cada sujeito com o que resta do gozo do sintoma. Diante dessa concepção, a clínica
psicanalítica não opera com o sintoma como algo a ser abolido, atenuado ou até mesmo
curado; entretanto, com um sintoma a ser assumido, inventado ou até mesmo construído.
49
Articular o tema da construção analítica com o estatuto do sintoma para a psicanálise
nos leva, necessariamente, a refazer o caminho de retorno à concepção do sintoma na obra de
Freud e no ensino de Lacan. Para abordar essa articulação, retornamos na leitura das
Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (FREUD, 1996), pontuando as passagens
conceituais em que Freud aponta para um ‘ponto cego’ que se estabelece na relação do
sintoma com a sexualidade e que se constitui a partir da construção de variadas significações
remetidas ao sintoma ao longo de uma análise. Com Lacan, retomamos essa concepção
freudiana, partindo da articulação da verdade do sintoma com o real do sexo: impossível de se
representar simbolicamente, o que marca um ‘furo’ no sentido do sintoma como um saber que
sempre escapa e que, por isso, se repete. Assim, o sintoma possui leis próprias que funcionam
seguindo uma lógica que inclui a repetição do gozo e o modo singular como cada sujeito goza
do seu inconsciente. Essa perspectiva nos indica, então, a possibilidade de situarmos como a
operação analítica da construção serve ao manejo clínico do sintoma e à transmissão de sua
lógica singular em cada caso, na medida em que tanto o método da construção como a
concepção do sintoma são marcados pelo real como ‘furo no saber’.
Sintoma e significação sexual
Nas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, Freud avança em suas formulações
teóricas sobre a causalidade psíquica na formação dos sintomas, abordando O sentido dos
sintomas (FREUD, 1996, p. 265) em sua estreita relação com as fantasias inconscientes.
O sentido de um sintoma possui uma íntima conexão com as experiências do paciente. Quanto
mais individual for a forma dos sintomas, mais motivos teremos para esperar que seremos
capazes de estabelecer essa conexão. A tarefa, então, consiste simplesmente em descobrir,
com relação a uma idéia sem sentido e uma ação despropositada, a situação passada em que a
idéia justificou e a ação serviu a um propósito (FREUD, 1996, p. 277).
A originalidade dessa conferência baseia-se no relato de dois casos, cujos sintomas
obsessivos e ritualizados indicam a concepção do sentido dos sintomas como algo que não se
esgota na via de uma única significação. Destaca-se a construção do primeiro caso, que
consiste na exposição do ritual obsessivo de uma paciente que corria de um cômodo da casa
para o outro sem cessar. Freud se surpreende com o sentido atribuído pela própria paciente ao
remontar com esse ritual uma cena anterior ao desencadeamento dos sintomas: a cena da noite
de núpcias em que a paciente, casada com um homem de muito mais idade do que ela,
observa que seu marido ficara impotente e, por isso, deambulava entre os cômodos da casa
durante toda a noite. Esse é o primeiro sentido desvelado pela paciente. A seguir, a paciente
acrescenta uma nova cena, conectando-a a um outro sentido: o marido havia manchado o
lençol com tinta vermelha para provar aos empregados sua virilidade na noite de núpcias, por
50
isso, a paciente agora ia e vinha do quarto para a cozinha no intuito de demonstrar que a
mancha não poderia ser colocada em dúvida pelos empregados. Nesse segundo sentido
atribuído ao sintoma, Freud considera que a repetição do ato obsessivo de sua paciente
“representava um desejo, à maneira de um sonho, como sendo satisfeito numa ação da época
atual; servia ao propósito de fazer seu marido superar a desventura passada” (FREUD, 1996,
p. 270).
A partir do relato detalhado desse caso, Freud traça suas conexões de sentido
articulados com o dizer de sua paciente, construindo uma série de significações para tais
sintomas até o ponto em que se questiona: “Foi por acaso e sem maior significação que
chegamos justamente à intimidade da vida sexual?” (FREUD, 1996, p. 271). Desse modo,
Freud depara com o fato de que o sentido dos sintomas não se esgota a partir da produção de
variadas significações; o que o fez retornar à sua teoria sobre as fantasias inconscientes e a
retomar a sexualidade como principal significação. Os rituais de sua paciente correspondiam à
fantasia inconsciente revelada pela interpretação analítica; no entanto, Freud atribui maior
importância para esse caso ao notar, primeiramente, que tal fantasia “não pertencia a um
período esquecido da infância, mas que ocorre na vida adulta da paciente” (FREUD, 1996, p.
271), permanecendo vivo em sua memória; e considera, mais adiante, que “no ritual, o que se
verificou não foi o resultado de uma única fantasia, mas de diversas, embora tivessem um
ponto nodal em alguma parte” (FREUD, 1996, p. 276, grifo nosso) que reproduziam os
desejos sexuais da paciente através da manifestação de sintomas.
O importante a assinalar nessa conferência freudiana, portanto, é o estabelecimento de
uma relação do sintoma com a ‘realidade sexual’ do inconsciente (LACAN, 1998, p. 20) 36
que constitui esse ‘ponto nodal’, ou seja, um ‘ponto cego’, formado pelo emaranhado de
significações em jogo no relato dos sintomas. Diante do que nos ensina Freud, podemos
considerar que essa variedade de significações não esgota o sentido do sintoma e, por isso, a
interpretação analítica não se dirige ao infinito das significações em busca de um sentido
único. Para Freud, as significações se remetem sempre a algo da sexualidade infantil, o que
nesse texto esclarece não se tratar apenas de eventos ocorridos na infância que foram
recalcados. Com Lacan, retomamos essa concepção freudiana, partindo da idéia do sexual
como sendo sempre um furo na significação – um ponto cego – que melhor fundamenta a
concepção de que algo da sexualidade sempre se encontra na raiz do sintoma.
36
Conferência de Genebra sobre o sintoma [1975c].
51
Em outra Conferência Introdutória sobre Psicanálise, intitulada Os caminhos para a
formação dos sintomas (FREUD, 1996, p. 361), Freud adverte que “devemos lembrar que os
mesmos processos pertencentes ao inconsciente têm seu desempenho na formação dos
sintomas, tal qual o fazem na formação dos sonhos” (FREUD, 1996, p. 361). Essa referência
freudiana nos possibilita situar a montagem de significações representadas pelo sintoma, a
partir de uma equivalência com os mecanismos psíquicos que constituem os sonhos.
A análise dos sonhos desenvolvida por Freud em A interpretação dos sonhos
(FREUD, 1996) aborda as diversas cadeias associativas que se entrecruzam em um ponto em
que “cada um dos elementos do conteúdo manifesto do sonho é sobredeterminado,
representado diversas vezes nos pensamentos latentes do sonho” (FREUD, 1996, p. 289).
Freud, assim, conceitua a sobredeterminação como efeito do trabalho da condensação que
não se traduz apenas ao nível dos elementos isolados do sonho, mas que possibilita a análise
do conteúdo manifesto do sonho a partir de duas séries de idéias latentes diferenciadas
(LAPLANCHE; PONTALIS, 1998, p. 488). O conceito de sobredeterminação, portanto, não
implica a independência ou o paralelismo de diversas significações de um mesmo fenômeno;
por isso, aprimora a concepção de que não haverá para os fenômenos dos sonhos e dos
sintomas uma significação única a percorrer exaustivamente. Como exemplo, Freud compara
o sonho a certas linguagens arcaicas, em que uma palavra ou frase comportam aparentemente
numerosas interpretações. Tal como o sonho, o relato do sintoma é caracterizado por
deslizamentos e sobreposições de sentidos e nunca é um sinal unívoco de um conteúdo
inconsciente.
Dos estudos sobre A interpretação dos sonhos, extraímos outra referência importante
para essa discussão, com o que Freud nomeia e conceitua como o ‘umbigo do sonho’:
Mesmo no sonho mais minuciosamente interpretado, é frequente haver um trecho que tem de ser
deixado na obscuridade; é que, durante o trabalho de interpretação, apercebemo-nos de que há
nesse ponto um emaranhado de pensamentos oníricos que não se deixa desenredar e que, além
disso, nada acrescenta ao nosso conteúdo do sonho. Esse é o umbigo do sonho, o ponto onde ele
mergulha no desconhecido (FREUD, 1996, p. 556, grifo nosso).
Com essa passagem, consideramos o umbigo do sonho como um ‘ponto obscuro’,
circunscrito pela interpretação dos sonhos, em que todas as associações se concentram,
limitando a possibilidade de novas associações. Os variados sentidos produzidos no relato de
um sonho chegam a um ponto limite, a um impossível de decifrar, cuja ausência de
significação indicaria o que Freud define como sendo de causalidade sexual. Dessa
concepção, entende-se que a interpretação dos sonhos ou dos sintomas nunca esgotará a causa
desses fenômenos psíquicos. Nessa perspectiva, retornaremos com Lacan ao sintoma
52
freudiano discutindo a concepção de sintoma como um ‘nó de signo’ composto de
significações que constituem um ponto cego, um ponto ilegível, opaco e vazio de significação
que caracteriza a ‘realidade sexual do inconsciente’ (LACAN, 1998, p. 20) 37 . Essa referência
nos permite retomar o que Freud conceitua como sobredeterminação (Überdeterminierung),
aproximando-a da propor-sição lacaniana de que o sintoma guarda algo da verdade de um
sujeito que jamais poderá ser totalmente revelada.
O mais importante a concluir com a apresentação das Conferências Introdutórias
consiste na passagem da concepção freudiana do sintoma como um enigma decifrável pela
operação analítica ao estatuto do sintoma como verdade, como uma rede de significações em
torno de um ponto cego que assinala um impossível de decifrar. Nesse sentido, Lacan afirma
que “a verdade não tem outra forma além do sintoma” (LACAN, aula 18, 10/05/67) 38 ,
enfatizando a concepção do sintoma como forma cujo conteúdo pode ser preenchido de modo
variado, tal como define a verdade, designados mais propriamente no nível de sua operação
do que de seu conteúdo. É, portanto, tomando o sintoma em sua dimensão de verdade que
apreendemos a operação analítica com o sintoma como sendo capaz de produzir uma
descoberta, em torno desse ‘emaranhado’ 39 de significações, que conduza a um saber fazer
com o sintoma, sem acabar com seu ponto de obscuridade.
O real do sintoma e a construção analítica
Ainda na conferência Os caminhos para a formação dos sintomas (FREUD, 1996, p.
361), encontramos importantes referências sobre o estatuto freudiano do sintoma, tomado em
sua relação com os mecanismos de repetição e satisfação pulsional. Freud afirma que “os
sintomas neuróticos são resultados de um conflito, e que este surge em virtude de um novo
mecanismo de satisfação da libido” (FREUD, 1996), demonstrando que, apesar do sofrimento
psíquico causado pelo sintoma, este também encontra uma forma de satisfação que justifica a
resistência em eliminá-lo. No entanto, Freud já alertava que eliminar um sintoma não
significava curar a doença, pois “a única coisa tangível que resta da doença, depois de
eliminados os sintomas, é a capacidade de formar novos sintomas” (FREUD, 1996, p. 361).
A partir de sua experiência, Freud se questiona sobre o caráter irredutível do sintoma
que faz obstáculo ao tratamento e, com isso, avança em sua teoria, abordando a expressão
37
Conferência de Genebra sobre o sintoma [1975c].
O seminário, livro 14: A lógica do fantasma (inédito) [1966-1967].
39
A discussão abordada nesse item sobre sintoma e significação sexual, tal como o termo assinalado acima, são referentes às
articulações conceituais apresentada por Marcus André Vieira, no seminário “A política do sintoma”, realizado ao longo do
ano de 2008 na Escola Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro. Disponível em
http://www.litura.com.br/curso_repositorio/a_politica_do_sintoma_ii_pdf_1.pdf, acessado em 03/05/2012.
38
53
singular dos sintomas até o final de sua obra. Em Inibição, Sintoma e Angústia, o autor
considera que o sintoma é “o substituto de uma satisfação pulsional que não teve lugar, é o
resultado da moção pulsional tocada pelo recalcamento” (FREUD, 1996, p. 95), assinalando a
impossibilidade de sua eliminação ou cura por atuar como substituto de uma satisfação
pulsional recalcada, que na teoria freudiana sempre se manifestará em busca de prazer. Nessa
direção, convém indicar as referências estabelecidas por Lacan, na obra de Freud, para o
desenvolvimento da concepção original do gozo. Freud empregou o termo em alemão Lust
para designar a satisfação, mas ao se referir a uma satisfação excedente utilizava o termo
Genuss, o qual etimologicamente pode ser também traduzido por satisfação ou prazer.
Partindo dessa última terminologia, Lacan propõe como desdobramento conceitual a
introdução do termo gozo [jouissance] como uma definição que apontará para algo que
excede à satisfação pulsional. Essa foi, portanto, a passagem teórica que permitiu
problematizar a cura em psicanálise, diante do caráter incurável do gozo sintoma.
No artigo Análise Terminável e Interminável (FREUD, 1996, p. 223) notamos as
últimas indagações de Freud, a respeito dos obstáculos encontrados ao longo de uma análise,
que se relacionam aos caminhos percorridos pela pulsão em busca de satisfação, que
caracteriza o aspecto incurável do sintoma. Ao relacionar o mecanismo da repetição com uma
vertente do sintoma que faz resistência à decifração, Freud pôde observar a expressão
particular de satisfação pulsional de cada sujeito, tomando a concepção do sintoma não como
algo a ser curado, mas como detentor de algo incurável. E, logo em seguida desse artigo,
Freud escreve Construções em Análise, o que nos leva a supor que seus esforços nesse
trabalho se concentravam não somente na transmissão dos princípios da práxis analítica a não
analistas, mas também no desenvolvimento da intervenção clínica da construção como uma
tarefa do psicanalista para enfrentar os obstáculos que atravessam a experiência de uma
análise.
Com Lacan, avançamos no caminho percorrido em Análise Terminável e Interminável,
a partir do que introduz em sua teoria sobre o real do gozo que se inscreve no corpo através do
sintoma. O obstáculo encontrado por Freud diante da vertente do sintoma irredutível ao
sentido e que, portanto, o torna incurável, possibilitou Lacan a apontar para a vertente real do
sintoma, como aquilo que resta do sintoma, quando os efeitos da interpretação não são
suficientes. Nessa perspectiva, retomamos a indicação de Freud da construção como a tarefa
do analista que se articula à interpretação, por demarcar os impasses, as repetições do gozo e
as transformações subjetivas que se apresentam no tratamento analítico.
54
Ao afirmarmos que o específico da nossa clínica e política de orientação lacaniana é a
orientação ao real, podemos aplicar também a mesma idéia para a construção de um caso
clínico. Mas o que quer dizer construir um caso, levando em conta a orientação pelo real? Que
consequências podemos retirar da proposição freudiana das ‘construções em análise’ como
uma intervenção orientada pelo real? Ou, ainda, como articular as premissas da construção
indicadas por Freud com a operação clínica com o real do sintoma?
O primeiro passo, em direção a esses questionamentos, é o de considerar o sintoma
como um tipo de construção muito específica que adquire um valor privilegiado como ponto
de referência no final do ensino de Lacan. Sabemos que uma constante na obra de Freud é a
de pensar o sintoma pelo viés da satisfação pulsional, vinculado, ainda, à noção de uma
formação defensiva contra o desprazer, contra o que excede da satisfação: o gozo. Isto implica
considerar o sintoma como uma formação do inconsciente que inclui, em si mesmo, um real
como modalidade de gozo. Sobre esse aspecto, situamos uma saída para pensar que “entre as
construções 40 produzidas pelo sujeito, o sintoma é aquela que constitui uma referência mais
segura” para a orientação lacaniana por incluir necessariamente o gozo do corpo como um
elemento real (BERENGUER, 2009a, p. 21). E essa orientação se torna mais clara e precisa
quando Lacan adverte que “o sintoma é o que de mais real tem alguns sujeitos” (LACAN
apud BERENGUER, 2009a, p. 22), passando a designá-lo com a nova escritura do sinthoma
como uma construção singular que cada sujeito produz, capaz de articular as dimensões da
linguagem, do corpo e do gozo ao laço social.
Trata-se, então, de aproximar a construção da operação clínica com o real do sintoma,
indicando, nesse primeiro momento, a construção do lado do sujeito pela possibilidade de
invenção com o gozo do sintoma induzido ao uso estratégico da transferência analítica. Ou,
apenas, pelas diferentes possibilidades de construção para cada sujeito, apreendida quando
algo da dimensão do gozo, da satisfação pulsional, se modifica ao longo de uma análise.
Assim, podemos observar que o sujeito constrói um ‘saber fazer’ com seu sintoma quando
reveladas as modificações que se produzem no registro de seu modo de gozo.
40
No Seminário, livro 5, Lacan define, com base em Freud, a fantasia como uma construção. Nessa perspectiva, a fantasia
manifesta a relação do sujeito com o significante, concebida pelo mecanismo da rememoração na análise (LACAN, 1999, p.
244) como uma reconstrução de elementos inconscientes recalcados que não reaparecem na lembrança. Essa noção da
fantasia implica considerar as modificações do tempo passado no presente, dado que ela se constrói, transforma os eventos
antecedentes de uma história, embora algo permaneça constante. Nossa proposta é a de aproximar essa noção de construção
da fantasia à construção das modalidades de gozo do sujeito que se remetem às transformações do sintoma ao longo de uma
análise.
55
Sabemos que a transformação do sintoma, ao longo do tratamento, constitui os
momentos cruciais da experiência analítica. E se o sintoma se modifica sob transferência, isto
corresponde ao fato de ser ele mesmo uma construção que se dirige ao Outro. No entanto, não
se trata de conceber o sintoma como uma construção inerte, mas como uma construção que se
produz sob transferência como resultado da presença real do analista que introduz, a cada
sessão, a dimensão do novo pelo efeito de seu ato diante da repetição. Daí a importância de
estarmos atentos a essas modificações caleidoscópicas do sintoma, desde o primeiro momento
em que é introduzido em um dispositivo clínico até os momentos em que suas modificações
se articulam ao discurso do sujeito, como efeito de uma transferência em curso. Podemos
concluir, com isso, que o mais significativo para o tratamento do sintoma não se remete ao
seu diagnóstico nosográfico-classificatório, mas ao modo como este se modifica em um
dispositivo. E isto quer dizer que, a cada momento em que se evidencia a mudança de uma
determinada posição discursiva, estaremos diante de uma transformação que nos remete a
algo de novo, a um real em jogo.
Esta perspectiva nos leva, então, ao segundo passo que nos permite situar a
construção do lado do analista e seus efeitos de transmissão e que, portanto, se articula a
direção indicada por Freud da construção dos casos como tarefa do analista. Desse modo,
podemos retirar consequências importantes da proposição freudiana das ‘construções em
análise’, tomando-a como um instrumento que se orienta pelo real em jogo na clínica do
sintoma. Para isso, é necessário partir de uma sequência lógica, capaz de localizar os
momentos em que o sintoma se modifica em uma análise, conjugados às dimensões real,
simbólica e imaginária que este representa.
Com Freud e Lacan, vimos que o sintoma se apresenta revestido de sentidos variados,
que tentam traduzir as dificuldades mais genéricas da vida do paciente, o que podemos
designar como sendo a dimensão imaginária do sintoma. No ato de dirigir-se a um Outro, o
sintoma é incluído pela demanda do analisante e é apresentado em sua dimensão simbólica
quando se constrói a suposição de sentidos variados para sua manifestação. Entretanto, para
que o sintoma possa se dirigir ao analista, é importante produzir uma operação de suspensão
desses sentidos até que o sintoma adquira para o sujeito o valor de um real que atravessa sua
experiência de análise. Eis aí o momento em que podemos reconhecer o sintoma em sua
dimensão de real, em seu ponto de obscuridade, que adquire a forma de uma contingência
para o sujeito. E isso implica percorrer, já no início do tratamento, uma direção específica
para buscar, nas transformações do sintoma, aquilo que o sintoma tem de mais real.
56
No livro intitulado Como se constrói um caso? (BERENGUER, 2009a), Enric
Berenguer indica dois tipos de sequência que interessam à construção do caso: aquelas que
concernem ao início do tratamento e as que correspondem ao seu final, já que “o real em jogo
no princípio e o real ao final não são da mesma ordem” (BERENGUER, 2009a, p. 29). O
autor parte, então, do momento em que o sintoma tem um valor imaginário e é interpretado no
âmbito de uma coerência que atesta a função da realidade para o paciente. Em seguida, o
autor assinala a construção de uma demanda de análise a partir do momento em que o sintoma
se apresenta como um real que resiste ao sentido. Entretanto, a construção dessa demanda
inicial é atravessada pela emergência do estatuto simbólico do sintoma, embora sua dimensão
real tenha se manifestado como um disparador da demanda de tratamento. Sob esse ponto de
vista, podemos destacar as construções que concernem ao sintoma no início do tratamento,
como aquelas que se situam na passagem do estatuto do sintoma, como impossível de
significar ao seu estatuto simbólico que inaugura uma demanda de análise. De outro modo, as
construções que correspondem ao sintoma no momento de concluir uma análise “se produzem
com efeito inverso” (BERENGUER, 2009a, p. 29), quando o sintoma, como o resto de gozo
inassimilável, passa a ser reduzido à sua dimensão de ‘sem sentido’, que resiste à significação
e que, portanto, marca o estilo singular de um sujeito. Encontramos esse segundo tipo de
sequência nos testemunhos do passe, em que a emergência de um novo real designa um
estatuto distinto do início da análise.
O importante a assinalar, com essas passagens lógicas do sintoma na construção dos
casos, é a relevância de uma formalização que demonstre o movimento de elaboração de cada
sujeito, diante de um real impossível de simbolizar. Essa formalização, entretanto, não está
necessariamente referida à duração (longa ou curta) do tratamento, mas com os momentos em
que se verifica, de modo evidente, uma mudança na posição discursiva de um sujeito, desde o
início do tratamento. Trata-se dos efeitos possíveis de recolher do encontro com um analista,
quando algo se transforma em uma posição discursiva, ainda que uma análise não chegue ao
fim. A partir do que se testemunha na construção de cada caso, é possível recolher a
passagem, o reviramento ou o movimento em que o gozo sintomático é recolocado em
circulação no discurso. E quando algo se coloca ao avesso nesse ponto, podemos demonstrar a
eficácia e a especificidade da operação analítica com o sintoma, orientada pelo real em jogo
na clínica. Isso nos faz concluir, então, a proposta da construção do caso clínico apoiada pelo
tema da política psicanalítica do sintoma, quando observamos, por exemplo, o modo distinto
de construção produzida pelas psicoterapias e pela medicina.
57
Na direção de uma psicoterapia ou das discussões da clínica médica, encontramos a
idéia de que essa passagem da dimensão real do sintoma para seu estatuto simbólico visa a
uma completude na atribuição de sentidos, sem que disto resulte um resto. Os tipos de
construções fomentadas por essas correntes terapêuticas excluem a dimensão do sintoma, que
resiste à significação para que se obtenha um sintoma equivalente a uma determinada
significação identitária. Freud, entretanto, parte de uma perspectiva inversa para as
construções em análise, quando situa de saída as idéias ‘sem sentido’ que se apresentam na
fala do analisante como algo a ser construído pelo analista. Desse modo, Freud sustenta a
construção dos casos fora de uma ambição terapêutica que aprisiona seus efeitos nos termos
do dizer ‘verdadeiro ou falso’ de seus pacientes. E nos leva a analisar o sentido do sintoma
que escapa à significação como passível de uma construção que demonstre a verdade
‘semidita’, que o inconsciente enuncia, mantendo o saber que condiciona uma análise do lado
do analisante.
É possível, ainda, designar a proposta original da psicanálise para a construção do caso
pelo modo como a suposição de saber do analista favorece a emergência do real no
tratamento. No caso das psicoterapias, o terapeuta crê no ‘final feliz’ da relação do paciente
com seu sintoma, já que este se dissolve na forma de um sentido unívoco, o que denota uma
posição de intérprete, de um ‘saber sabido’ sobre o sintoma. Com isso, podemos considerar
que há, pelo menos, duas formas distintas de construção no campo clínico que se conjugam,
ou na perspectiva de uma “diluição do sujeito suposto saber para a emergência da dimensão
de um real”, ou na perspectiva de uma “conversão do sujeito suposto saber em uma referência
ideal” (BERENGUER, 2009a, p. 30), que se dirige àquele que teria resposta para tudo. Do
ponto de vista da psicanálise, a construção dos casos deve preservar a dimensão do saber
como suposto, uma vez que o que o analista deve saber é ignorar o que sabe para que uma
análise avance. E isto implica no fato de ele não ser identificado imaginariamente com um
saber prévio sobre o sintoma, mas de marcar a sua presença no dispositivo como o suporte de
uma função que faz emergir um saber do inconsciente. De outro modo, encontramos nas
entrevistas clínicas que se realizam nas instituições a idéia de introduzir, na fala do paciente,
uma série de recursos de sentido para que este possa ‘reconstruir a sua história’, na direção do
que seria uma sugestão para a ‘recuperação’ do seu adoecimento.
A construção do caso na orientação analítica, portanto, deve levar em conta a
dimensão do real do sintoma, desde o início do tratamento na via aberta de um saber suposto
ao sujeito do inconsciente, como norteador para a formalização da lógica do caso único. E isto
se transmite não somente na forma de apresentação dos casos, mas também na forma de se
58
CAPÍTULO 2
A metodologia da Construção do Caso Clínico
Uma das consequências que o capitalismo globalizado produziu como transformação
social consiste no imperativo dos cálculos quantitativos que norteiam a aplicação da exatidão
científica ao campo da saúde como política do sintoma. Educar, clinicar e governar 41 são
tarefas de organizações sociais complexas que seguem seu princípio democrático até o ponto
em que suas competências distintas são absorvidas por uma determinada tendência da
economia de mercado. Nesse contexto, as universidades apoiam o desenvolvimento de
pesquisas em saúde que estão, cada vez mais, comprometidas com determinados modos de
desencadeamento de um novo distúrbio em relação ao diagnóstico inicial ou como resposta ao
uso de psicofármacos.
A metodologia da Construção do Caso Clínico, que será aqui apresentada, inclui
diretamente a proposta da política analítica do sintoma como uma contribuição para o campo
da pesquisa clínica. Retomando a proposição lacaniana do ‘inconsciente como político’, nos
parece fundamental situar o caminho aberto para a pesquisa do psicanalista como uma tarefa
de transmissão da política da psicanálise ao campo da saúde pública. Como não é habitual a
participação de analistas na política de governo, sabemos que estes podem e devem se
autorizar a informar o que há de política em sua práxis, com base nas consequências que se
extrai no âmbito da clínica e, portanto, da vida humana. A posição ética do analista, em
relação ao particular de cada sintoma, deve ser marcada no campo da clínica, ainda que as
instituições de tratamento orientadas pelo modelo médico-científico destituam sua ação
clínica e política. A condição preliminar para essa implicação direta do psicanalista no social
é a de que “o seu desejo de saber chegue a se interessar pela pesquisa clínica” (VIGANÒ,
2008, p. 02), mas não sem que esteja advertido da relação que a experiência analítica
estabelece com a cientificidade. E essa relação de extimidade entre psicanálise e ciência,
Lacan foi incansável ao demonstrar, em seus seminários e escritos, a possibilidade da
formalização do objeto psíquico, passando a nomeá-lo como objeto a e a inventar a nova
categoria do real psíquico.
Entretanto, a foraclusão da função subjetiva e da causalidade psíquica, isoladas por
Freud com a descoberta do inconsciente, constitui progressivamente o estudo dos novos
fenômenos clínicos, dos quais se ocupa atualmente a ciência médica em seu campo de
pesquisa. A psiquiatria, por sua vez, vem assumindo uma direção paradoxal em relação à sua
doutrina fenomenológica ao utilizar o formalismo científico para salvaguardar a dimensão do
sentido matematizado. Diante dessa referência empírica que determina as pesquisas no campo
da psiquiatria e da saúde mental, poderíamos dizer que, desde Freud e seu cientificismo
militante, não se encontrou uma clínica capaz de acolher e elaborar novas tarefas em termos
de pesquisa, considerando a particularidade dos sintomas em sua natureza ética e
metodológica no estudo de casos. Anos após a descoberta do inconsciente, Lacan retoma o
legado freudiano, propondo aos psicanalistas um modo de desenvolver e de transmitir o
crédito da psicanálise articulada à operação do método científico. O efeito de subversão que o
sujeito do inconsciente produz no campo da pesquisa clínica não deixa de ser uma descoberta
de interesse científico, que marca uma relação de ‘suplementariedade’ (FREUD, 1996, p.
61
262) 42 entre os campos da psiquiatria e da psicanálise. No entanto, no cenário atual das
pesquisas em psiquiatria, notamos uma radical exclusão dos avanços que o estatuto do
inconsciente traz ao campo da ciência, para que o reducionismo do sofrimento psíquico ao
cálculo estatístico vigore, alimentando a economia pelos lucros do mercado farmacêutico.
Essa forma de reducionismo nos parece convergir com o ideal de uma política
universal que dá lugar, por exemplo, à terapia cognitivo-comportamental como uma estratégia
de eliminação da responsabilidade subjetiva a favor do monitoramento do comportamento. E
isto desvela a dimensão de uma determinada política do sintoma na nossa civilização, que
obedece a um consenso político, norteado por um ideal de saúde que se associa ao “direito de
evitar a experiência da patologia” (VIGANÒ, 2008, p. 03). Se na história da medicina a
redução do sintoma ao modelo epidemiológico trouxe resultados úteis e, por isso, representam
uma ‘evidência científica’, os efeitos dessa validação por êxito deve ser demarcado apenas em
alguns casos, como, por exemplo, o das doenças infecciosas. Em relação ao fenômeno
psicopatológico e ao aspecto ‘incurável’ do sintoma psíquico, não é possível fundamentar a
mesma justificativa clínica para aplicação da mesma lógica avaliativa, a não ser que estejam
incluídos nessa avaliação quantitativa os interesses do mercado de consumo. Ora, não temos
nada contra os avanços da medicina contemporânea em seu dever social de tratamento e de
prevenção das doenças, desde que esteja preservada a condição ‘científica’ de uma operação
clínica com o real do incurável do sintoma.
A psicanálise lacaniana assume, então, um desafio ‘antirreducionista’ para reafirmar
sua política do sintoma, retomando o legado freudiano da clínica do sofrimento psíquico e das
vicissitudes da ‘escolha’ subjetiva que constituem a formação do sintoma. Nesse aspecto,
Lacan foi ‘mais além’ de Freud, estendendo essa noção da formação dos sintomas neuróticos
para cada versão singular do sintoma, tomado não apenas como uma ‘formação do
inconsciente’ mas, ainda, como uma ‘construção e invenção’ de cada sujeito diante do
incurável do gozo, a qual se pode demonstrar clinicamente. A demonstração possível para
esse ‘impossível de curar’ é abordada pela prática da Construção do Caso Clínico, em
especial, quando se evidencia que cada caso é passível de ser avaliado em sua singularidade e
contingência, a partir das modificações subjetivas que se extraem da narrativa e da leitura de
cada caso. Seguindo essa perspectiva clínica e política da psicanálise, apresentamos a
Construção do Caso Clínico 43 e sua proposta metodológica de avaliação e de pesquisa clínica
42
Psicanálise e Psiquiatria [1916-1917]
Convém assinalar que existem práticas diversas de Construção do Caso Clínico realizadas nas instituições e, portanto,
exploradas a partir de diferentes arranjos metodológicos do método freudiano de investigação. Dentre eles destacamos as
Conversações Clínicas empregadas na publicação de Metodologia em Ato (TEIXEIRA, 2010) e a metodologia de trabalho em
43
62
em psicanálise aplicada ao campo da saúde mental, cuja formalização permite localizar a
função do sintoma e seu estatuto no caso como modo de transmissão da operação analítica
com a dimensão real da clínica.
2.1. A construção do caso clínico como metodologia de avaliação e pesquisa clínica
O método da construção do caso clínico, desenvolvido na Escola de Especialização
em Psiquiatria e Psicoterapia da Universidade de Milão 44 , é um importante instrumento de
pesquisa clínica em psicanálise, que permite acompanhar e avaliar um processo de tratamento,
partindo da construção de elementos extraídos das narrativas e registros de cada caso. A
prática de apresentar e discutir os casos é um meio de avaliar a qualidade de uma equipe e de
estimular a melhoria do serviço, sendo, ainda, um instrumento capaz de demonstrar que é
possível uma avaliação que inclua a singularidade do sintoma e a transferência como eixo da
clínica. A discussão diagnóstica, a expressão singular dos sintomas, a relação transferencial,
as demandas e os diversos momentos de um tratamento são elementos da construção do caso
que orientam o trabalho em equipe, a partir de um ‘saber fazer’ com a lógica do sintoma em
cada caso e não apenas do saber dedutivo das classificações diagnósticas.
A construção do caso clínico “é uma construção democrática na qual cada um dos
protagonistas do caso (os técnicos, os familiares e as instituições envolvidas) traz a sua
contribuição” (VIGANÒ, 2010a, p. 2). Trata-se de reunir as narrativas dessa rede social que
acompanha um caso para encontrar o seu “ponto cego” (VIGANÒ, 2010a, p. 2), ou seja, o
ponto comum extraído dessas narrativas que aponta para a “falta de saber”, que constitui o
lugar do sujeito e do sintoma que o sustenta. A construção do caso instaura, então, um
movimento dialético no trabalho em equipe, em que as partes se invertem: “a rede social
coloca-se em posição discente e o paciente na posição de docente” (VIGANÒ, 2010a, p. 2). O
que o paciente ensina não é apreendido por uma fala que se articula coerentemente, mas pela
escuta de uma equipe clínica das particularidades, das variáveis e transformações que foram
escandidas de sua história, do enigma de seus sintomas, dos atos falhos, entre outros
elementos investigados sob transferência.
equipe da Prática entre Vários (DI CIACCIA, 1999). Apresentamos aqui um novo arranjo metodológico de pesquisa em
psicanálise aplicável ao campo de saúde mental como mais uma contribuição aos métodos clínicos que se desenvolvem no
campo da assistência pública.
44
Referência ao curso de especialização da Unità di Psiquiatria Dinamica e Psicoterapia -Dipartimento di Salute Mentale do
Ospedale Niguarda Ca` Granda conveniado à Università degli Studi di Milano.
63
O método consiste em discutir um caso apresentado a cada vez com um registro
escrito pelo clínico que acompanha o caso. A construção deve compreender três etapas: a
narrativa (do sujeito, da família, da instituição); as escansões do tratamento e o cotejamento
entre o diagnóstico do DSM IV e CID 10 e o psicanalítico. Desse modo, é possível realizar
uma avaliação do acompanhamento de uma equipe após a discussão de cada caso. Essa
avaliação é produzida, por sua vez, com base na compilação de dois elementos: a sinopse da
história concreta do sujeito (escansões da posição discursiva, acontecimentos cotidianos,
recursos financeiros, etc.) e o prognóstico dos possíveis projetos de vida, com as hipóteses
correspondentes aos mesmos itens. O princípio é o de cotejar as posições subjetivas nas
passagens de discurso realizadas na história do paciente com os acontecimentos ocorridos no
período de tratamento sob transferência, de onde se extraem as inferências que orientam as
intervenções de uma equipe.
Nesse capítulo, privilegiamos a apresentação desse método de pesquisa, considerando
a relevância da extensão da psicanálise no cenário universitário e dos serviços de saúde
mental 45 , na qual o analista é convocado a transmitir sua orientação na leitura dos casos que
são levados ao debate clínico. Diante das exigências que o discurso da ciência médica impõe
ao campo das pesquisas clínicas, tal como a reprodução experimental dos dados do caso para
a mensuração estatística, torna-se necessário interrogar a lógica processual de um tratamento,
tomada em sua dimensão clínica e subjetiva. Embora tenhamos clareza de que o papel da
investigação em psicanálise na universidade não é o de transpor suas descobertas para o
campo da ciência empírica, é possível demonstrá-las a partir de um ordenamento discursivo
que, ao se contrapor ao discurso médico-científico, permite preservar a dimensão singular de
cada caso em uma pesquisa. E essa nos parece ser uma tarefa fundamental da pesquisa em
psicanálise no cenário atual dos métodos clínicos, em que até mesmo a discussão dos quadros
clínicos vem sendo degradada pelo critério estatístico da incidência dos fenômenos. Torna-se
necessário, então, retomar o valor metodológico do caso clínico para a psicanálise, expondo a
um público mais amplo a especificidade da orientação lacaniana na condução de um
tratamento e sua eficácia terapêutica.
A metodologia proposta para a Construção do Caso Clínico permite estabelecer de que
modo uma pesquisa pode incluir a clínica do caso a caso, considerando alguns parâmetros que
45
Considerando que o desenvolvimento metodológico da Construção do Caso Clínico pode acompanhar a pesquisa do
analista sobre a prática clínica em Saúde Mental seja no âmbito das instituições universitárias ou psicanalíticas, daremos
ênfase à sua proposta de pesquisa clínica sob o viés da psicanálise em extensão. Embora se reconheça a distinção entre a
pesquisa realizada pelo psicanalista na universidade e nas Escolas de Psicanálise, optamos por não definir essa diferença para
demarcar o alcance mais amplo da aplicação do método da construção do caso, privilegiando uma discussão clínica e política
que fundamente sua relevância no atual contexto de avaliação das condutas e eficácia terapêutica.
64
orientam uma pesquisa no campo da psicanálise, em contraponto com os parâmetros
científicos que avaliam hoje a eficácia terapêutica. No que tange ao campo de pesquisa em
psicanálise, partimos da constatação de que existe uma relação intrínseca explorada pelo
método freudiano, em que a investigação e o tratamento coincidem. Freud define a psicanálise
como um método de investigação dos processos psíquicos e um método terapêutico apoiado
nessa investigação (FREUD, 1996, p. 207) 46 , o que quer dizer que a investigação que percorre
o processo de uma análise é, ela mesma, o tratamento. Assim, a teoria decorre da experiência,
enquanto a concepção teórica determina o modo como se pratica a psicanálise.
No artigo “Pesquisa e Psicanálise: Algumas Referências Lacanianas”, Bernardes
(2010) aborda a perspectiva de indissociação da pesquisa em psicanálise com a prática clínica
pelo viés da proximidade entre o trabalho investigativo e o trabalho do analisante na
experiência analítica. Situemos dessa discussão, então, alguns princípios 47 da clínica
psicanalítica que fundamentam o rigor da investigação da construção dos casos como uma
metodologia de pesquisa em psicanálise. O primeiro princípio advém do valor da
singularidade do caso, conforme ressaltado por Freud ao indicar que cada caso deve ser
escutado como se fosse o primeiro, colocando em reserva o saber teórico. Essa é uma
condição metodológica para toda pesquisa em psicanálise, na medida em que o saber sobre a
clínica se elabora a partir da lógica de cada caso, como um “saber que é sempre parcial”
(BERNARDES, 2010, p. 36). A extensão dessa primeira premissa pode ser avaliada pela
proposta metodológica da psicanálise, que inclui a construção do caso como sendo sempre
singular e parcial. Por parcialidade, entendemos a parte que cada analista toma de sua
construção para uma elaboração conceitual não totalizante e que, por isso, acompanha o
valor sempre ‘inédito’ da experiência clínica. Com efeito, toda e qualquer tentativa de
classificação só pode ser feita a posteriori, no intuito de situar, ainda, o analista na
transferência. Eis aí o terceiro princípio indispensável para a pesquisa clínica em psicanálise,
que se contrapõe a um ideal de neutralidade científica, em especial, em relação à apresentação
de seus resultados.
A articulação desses três princípios mínimos que devem nortear uma pesquisa de
orientação psicanalítica nos servirá como ponto de partida para fundamentar a metodologia da
construção do caso, situada nessa tangente entre o trabalho investigativo e o trabalho do
46
O Interesse Científico da Psicanálise [1913].
A autora situa os princípios metodológicos do ‘caso’ e do ‘corte’ (parcialidade), articulados com a proposição lacaniana
para a pesquisa clínica, a partir da frase de Picasso: “Eu não procuro, eu acho”. Os princípios da ‘singularidade do caso’, da
‘parcialidade da construção’ e da ‘transferência’ estão indicados como considerações próprias desta pesquisa sobre a
metodologia da Construção do Caso Clínico.
47
65
analisante no processo de uma análise. Sabemos que uma das formas de investigação no
campo da psicanálise consiste na própria experiência da construção dos casos. Isso se constata
no escrito freudiano sobre as Construções em Análise (FREUD, 1996) como uma tarefa do
analista que deve seguir a lógica singular de cada caso, sem dissociar a prática clínica da
construção do saber teórico. Mas em relação ao caso clínico, o saber que se constrói é algo da
ordem do não saber, de uma verdade “semidita” do inconsciente que deve se alojar de forma
operante na experiência clínica, o que implica o modo específico de investigação da prática
analítica. Com isso, retomamos a imbricação entre pesquisa e tratamento, considerando, no
entanto, que na experiência analítica é o analisante quem está em posição de investigação em
busca de um saber sobre a sua verdade. É necessário, então, que a construção do caso instaure
nessa experiência a posição de investigação do analista como aprendiz da clínica.
Na clínica freudiana, a suposição de um saber latente ao que é dito no curso da
associação livre é representada como o pivô essencial da transferência que se instaura ao
incluir o analista nesse saber não sabido. Podemos assinalar, então, o modo de investigação
clínica característico da construção analítica pela sua referência, num primeiro momento, ao
saber inconsciente que o sujeito supõe em análise, sendo este o material passível de ser
investigado e construído a posteriori pelo analista sob a base da transferência. Num segundo
momento, a “estrutura da suposição de saber deve orientar a investigação em psicanálise”,
quando o pesquisador analista, na universidade ou fora dela, passa a ocupar “um lugar mais
próximo da posição de analisante” (BERNARDES, 2010, p. 37) do que a de analista, ao
deslocar algo de sua construção para a formalização de um saber teórico-clínico. Localiza-se,
nesse momento, a parte que cada analista extrai de sua construção para uma elaboração
conceitual ou para a verificação do efeito de seu ato na condução do tratamento.
Mas como se dá, afinal, o encontro do analista com essa ‘parte’ a ser construída na
direção de um tratamento ou de uma pesquisa clínica? Ao iniciar seu seminário sobre Os
quatro conceitos fundamentais da psicanálise (LACAN, 1973), proferido no auditório da
École Normale Supérieure, Lacan indica sua reserva com relação ao termo pesquisa
(recherche). Em oposição à démarche hermenêutica que busca (cherche) sempre outro
sentido a ser compreendido, Lacan cita a famosa frase de Picasso: “Eu não procuro,
encontro.” 48 (LACAN, 1973, p. 12); a qual podemos retomar como uma orientação
interessante para abordar o lugar do psicanalista como pesquisador (chercheur). Mais adiante,
com base nas demonstrações topológicas do nó borromeano, em seu seminário RSI (LACAN,
48
Tradução do francês “Je ne cherche pas, je trouve.” (LACAN, 1973, p. 12).
66
1974-1975), Lacan volta a se referir à etimologia do verbo chercher (procurar), que provém
do latim circare: circundar, fazer o círculo. O círculo demonstrado não como uma superfície
plana de um disco, mas em sua forma vazada, é o que cerca um furo, um buraco. Uma vez
encontrado um furo, um círculo deve ser traçado como um contorno e uma circunscrição
desse vazio. Nesse momento, então, Lacan observa: “encontro o suficiente para ter que
circular” (LACAN, aula de 13 de maio de 1975), o que nos serve de direção para refletir sobre
a relação entre a pesquisa e o encontro do analista com esse ponto vazado, com esse vazio de
saber que causa o desejo do analista.
No campo clínico da psicanálise, a pesquisa segue “a mesma lógica do tratamento em
relação a esse ponto: trata-se sempre do contorno, da circunscrição, de algo que se deu como
um encontro num primeiro tempo para cada um” (BERNARDES, 2010, p. 37). Seguindo essa
lógica, a construção do caso corresponde a um trabalho de investigação pontual e parcial, cujo
valor metodológico se sustenta na pesquisa de um analista que, ao se deparar com o ‘furo’ no
saber, avança na elaboração de conceitos ou de considerações sobre sua clínica como modo de
circunscrever o real da sua prática. É, portanto, nessa perspectiva que já havíamos situado a
proposição freudiana da construção como tarefa do analista para definir o trabalho de
construção do caso clínico como uma proposta metodológica que opera diante de um ‘furo’,
de um ‘ponto cego’ que aponta para a ‘falta de saber’, que constitui o sujeito e seu sintoma.
Dito de outro modo, a metodologia da construção do caso demonstra de que modo uma
pesquisa clínica pode ser orientada por esse encontro com algo inassimilável pela via do
sentido, preservando, em seus resultados, a transmissão do real em jogo no tratamento.
Diferindo do método estatístico predominante nas pesquisas médicas, a metodologia
da construção do caso permite interrogar a condução do trabalho clínico, expondo o
testemunho do encontro de um analista com esse ponto inassimilável que se instaura em uma
análise para, em seguida, recolher os resultados obtidos como efeito de suas intervenções. Se
a intervenção do analista se dá no que é dito pelo paciente, o que se coloca em ato é, então,
retomado por um método específico de investigação que interroga o tratamento: a construção
do caso. A partir desse ponto de vista, podemos aproximar o método freudiano de
investigação, fundamentado na associação livre, com a proposição de ‘Construções em
Análise’, que dá lugar à pesquisa clínica por meio da verificação produzida a posteriori pelo
analista, a partir da enunciação de cada analisante. Ao responder às indagações metodológicas
supostamente dirigidas por Karl Popper, Freud propõe a construção dos casos como um modo
possível de formalização lógica do saber inconsciente que se enuncia em uma análise sem,
com isso, abandonar o debate sobre as pesquisas científicas.
67
O método da associação livre explorado por Freud com a descoberta do inconsciente,
já designa uma metodologia específica estabelecida pela psicanálise, cujo rigor se efetua no
valor sempre inédito da experiência clínica. Consequentemente, esse método original da
psicanálise se afasta do empirismo lógico da pesquisa científica e da validação ‘falsa ou
verdadeira’ de resultados analisados por intermédio de inferências sugestionáveis,
introduzidas a priori em uma determinada experiência. Assim, Freud parece responder a
Popper, indicando a construção como um seguimento metodológico da associação livre como
‘regra fundamental’ da psicanálise (FREUD, 1996, p. 118)
49
; entretanto, dessa vez, dando
ênfase ao modo de ‘avaliar’ um caso em psicanálise e de ‘verificar’ os efeitos das
intervenções analíticas. Essa inovação metodológica de Freud talvez tenha maior proximidade
com o pragmatismo americano de Charles Sanders Peirce 50 e sua proposição metodológica da
lógica abdutiva como inferência hipotética e probabilística ‘do que pôde ser’ formalizado na
teoria freudiana, partindo da elaboração de seus pacientes na base da transferência analítica.
Do mesmo modo, podemos articular o rigor do método de investigação da construção
analítica com a tese da ‘incomensurabilidade’ e com o princípio de ‘fecundidade’, explorados
por Thomas Kuhn 51 como essenciais para o progresso das pesquisas científicas. Ainda que
não aprofundemos a discussão sobre essas duas correntes filosóficas da ciência, convém
apenas observar de que modo a proposta de Freud em ‘Construções em Análise’ acompanha
os avanços do conhecimento científico, com a sua descoberta do inconsciente. Em
49
A Dinâmica da Transferência [1912].
Charles Sanders Peirce (1839-1914) filósofo, cientista e matemático norte-americano, consagrado como um dos fundadores
do pragmatismo americano pelas importantes contribuições de sua obra à lógica, à matemática, à filosofia e, principalmente,
à semiótica. A semiótica se caracteriza pelo estudo de três aspectos: gramática (sintaxe), lógica (semântica) e retórica
(pragmática). Para Peirce, a lógica se denomina como o âmbito da semântica em que se concebe, pela relação ou conexão dos
signos com os objetos, uma lógica aplicada a qualquer objeto, a partir da unidade do diverso, que compreende a teoria
unificada da dedução, indução e abdução (inferência hipotética). O pragmatismo, como uma questão de lógica abdutiva, tem
como fundamento o juízo perceptivo como fonte de conhecimento. Os juízos perceptivos, por sua vez, possibilitam a dedução
de proposições gerais, por serem concebidos como um ‘juízo particular’, suficiente para responder à indagação de como se
passa dos juízos perceptivos para os juízos universais. É pela lógica abdutiva que a generalidade é introduzida aos juízos
perceptivos, ou seja, na criação das premissas como fundamento para a dedução (como uma inferência necessária que extrai
uma conclusão já contida nas premissas) e para indução (como uma inferência experimental que não consiste em descobrir ou
criar algo de novo, mas, sim, de confirmar uma teoria com a experimentação). Peirce apresenta a lógica abdutiva como uma
inferência hipotética (um lampejo, uma idéia, um ato de insight) e como um método que cria novas hipóteses explicativas
tomada por uma lógica da descoberta, da invenção ou da criação. A abdução "simplesmente" prova que alguma coisa pode
ser. Fonte: http://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=765, acessado em 10/02/2012.
51
Thomas Kuhn (1922-1996), físico norte-americano é um autor da filosofia da ciência, consagrado por suas teorias críticas
sobre o paradigma científico objetivista. Em seu livro "Estruturas da Revolução Científica”, de 1962, revisado em 1970 pelo
próprio autor, Kuhn defende a tese da incomensurabilidade dos fatores subjetivos como condição necessária para o progresso
da ciência, indicando, com isso, que a ciência não dispõe de um método universalmente válido como pensava a filosofia da
ciência tradicional. Kuhn define sua tese sobre a incomensurabilidade com a idéia de que a disputa entre paradigmas não
pode ser decidida apenas por critérios lógico-empíricos e apresenta cinco fatores essenciais que devem constituir uma teoria
científica: exatidão, consistência, simplicidade, alcance e fecundidade. Por principio de fecundidade, entende-se a proposição
de novas sentenças e algoritmos que tornam inventivos e fecundos os elementos que orientam as pesquisas no campo da
ciência. (MENDONÇA & VIEIRA, 2007, p. 169-183) Fonte: http://www.scielo.br/pdf/ss/v5n2/a02v5n2.pdf, acessado em
10/02/2012.
50
68
contrapartida, essa observação nos permite retomar os princípios teóricos da psicanálise, que
fundamentam o método de pesquisa da Construção do Caso Clínico, contrastado com o
modelo empírico de avaliação das pesquisas científicas.
Ao situar o valor metodológico do caso clínico na singularidade que ele representa, a
construção de cada caso permite explorar uma lógica processual no acompanhamento clínico
que não se universaliza, contrapondo-se, com isso, à lógica de avaliação empírica do método
científico. E isso nos faz retomar, de saída, a suposição de saber, própria da posição de
analisante do pesquisador, que interroga a condução do tratamento, contrastada com a posição
da neutralidade científica nas pesquisas clínicas. Se na base da transferência analítica, a
manifestação do inconsciente não se dissocia da presença do analista, isto implica considerar
a eficácia do efeito de seu ato na transferência como um resultado que se extrai a posteriori, a
partir dos momentos em que se recolhe uma transformação subjetiva na construção de um
caso. Notamos, no entanto, que no campo das pesquisas clínicas atuais um caso pode ser
avaliado de modo empírico e estatístico, constando como resultado a validação do êxito de
uma determinada intervenção calculada a priori. Aí incluímos, por exemplo, as pesquisas em
psiquiatria que, ao estabelecerem os sintomas como já alojados nas categorias diagnósticas,
tomam o estudo dos casos pela avaliação dos resultados da ação química de determinados
psicotrópicos na incidência desses fenômenos. Ora, se são pré-estabelecidos os critérios de
avaliação pela validação dos êxitos de certas intervenções, como, então, situar o princípio de
neutralidade nas pesquisas clínicas atuais? Deixamos em aberto essa questão para nos dedicar,
em especial, ao modo como uma pesquisa em psicanálise recolhe seus resultados ao interrogar
a direção de um tratamento.
Para explorar a construção do caso em seu aspecto de avaliação da lógica processual
de um tratamento, fundamentada nos princípios da psicanálise, partimos, contudo, de uma
perspectiva diferente da ‘ciência da construção’ 52 . Enquanto para a ciência da construção a
teoria e o cálculo são requisitos para se construir um caso, a construção do caso designa uma
perspectiva inversa. Como analogia, poderíamos pensar que a construção do caso seria como
se antes se construísse uma casa para depois verificar como ela permanece erguida ou
sustentada por um determinado modo de funcionamento. E isso implica um modo específico
de avaliar a condução do tratamento, realizado sempre a posteriori ao encontro do analista
com esse ‘ponto obscuro’ em relação ao caso que constrói, ou seja, com essa parte que toma
52
Utilizamos esse termo para designar tanto as ‘ciências exatas’ da Engenharia da Construção Civil, por exemplo, como as
‘ciências médicas’ que, ao empregarem um método quantitativo de pesquisa sobre os casos clínicos, nos permite uma
aproximação metodológica do que chamamos de ‘ciência da construção’.
69
do caso para sua construção. Daí a importância de demarcar três tempos fundamentais para
essa metodologia da construção dos casos: o primeiro refere-se à construção analítica; o
segundo, à avaliação que resulta dessa construção, realizada não a partir de um modelo préconcebido de verificação do êxito do processo, mas como uma verificação do próprio
processo. Colocando em foco a contingência do caso como o que acontece em cada sessão 53 e
a construção do caso como tarefa do analista, situamos, como terceiro tempo, o momento em
que essa avaliação proporciona a pesquisa do analista, sempre realizada no ‘après-coup’
do trabalho de construção. Eis aí um modo de incluir a dimensão do ‘não programado’ no
trabalho de investigação e de avaliação de toda pesquisa em psicanálise, quando não procuro,
encontro, verifico algo no ‘après-coup’ da construção de cada caso.
Outro aspecto fundamental da construção do caso, como método de pesquisa clínica, é
marcado pela possibilidade de transmissão da lógica do caso único, abordada não a partir de
uma determinada teoria, mas da discussão de uma equipe em torno do caso. O principal
instrumento dessa metodologia de pesquisa é a construção do texto do caso clínico, como
consequência do trabalho das ‘construções em análise’, recomendadas por Freud, que se
produzem no momento do tratamento. O termo ‘construção’ empregado nesse método de
pesquisa implica, ainda, a apresentação de um texto elaborado e finalizado pelo analista, que
lhe servirá para comunicar a uma equipe de profissionais, ou ao campo clínico de um modo
geral, o que se testemunha da singularidade de cada caso no curso do tratamento. A dimensão
do testemunho da experiência clínica, portanto, é essencial para a metodologia da construção
dos casos, pois ao favorecer uma transmissão de lógica do caso único pela apresentação da
narrativa do caso, faz avançar o debate clínico, não pelo viés de uma exposição teórica, mas
pela via da transmissão de algo de eficaz que se extrai dessa experiência. A construção de um
texto que testemunhe a lógica de um tratamento torna-se, então, um instrumento metodológico
fundamental para o pesquisador, na medida em que este poderá partir da produção desse
material sobre o caso para conduzir sua pesquisa clínica.
Demarcamos, então, duas etapas para o uso metodológico do texto da construção do
caso: na primeira etapa essa escritura conduz a uma leitura do caso capaz de produzir uma
avaliação da lógica processual de um tratamento. Na segunda etapa, essa avaliação,
apreendida pela lógica clínica da contingência, do caso a caso, pode fornecer elementos
fecundos para a formalização de uma discussão teórica, conduzida por uma pesquisa clínica.
53
Referências de Carlo Viganò mencionadas nos encontros realizados ao longo do ano de 2009-2010 do Cartel “Pesquisa
clínica e Transmissão da Psicanálise”, registrado no Instituto Freudiano de Milão. Outras considerações sobre a metodologia
da Construção do Caso Clínico que foram transcritas dos encontros desse Cartel estão presentes nesse primeiro item do
segundo capítulo.
70
Disso resulta um modo de transmissão da operação analítica com a dimensão do real na
clínica pela passagem da avaliação do processo clínico, onde algo que ‘não cessa de não se
inscrever’ se enuncia no tratamento, para o processo da pesquisa clínica onde o que é
enunciado sob transferência se inscreve, se transmite, a partir do texto do caso. Assim, a
verificação que se produz no estudo de casos faz avançar a teoria pelos novos elementos e
conceitos que são pesquisados a partir da construção de cada caso.
Se a psicanálise dá lugar a uma pesquisa, a pesquisa que se conduz na clínica de
orientação analítica é aquela na qual a teoria produz uma pesquisa no nível da prática. Na
medida em que a prática analítica se estende ao campo da saúde mental, isso nos leva a pensar
de que maneira a orientação analítica pode alcançar e avançar no debate clínico atual,
dialogando com outras práticas. Convém esclarecer, portanto, três modos possíveis de
conexão entre a teoria e a prática clínica, promovidos pelo método de pesquisa clínica da
construção dos casos, que podem estar entre si articulados:
1. O primeiro modo corresponde à formalização de escrituras clínicas realizadas,
partindo da narrativa do caso (1ª escritura) levada ao debate clínico (2ª escritura), sem
entrar nos meandros da teoria psicanalítica. Essa segunda escritura expõe não somente
o modo como o analista avalia com a equipe a condução do tratamento, mas os efeitos
da transmissão do seu testemunho pelas contribuições que extrai da leitura
compartilhada de outros profissionais em relação ao caso apresentado. Esse é um
modo de aplicação da metodologia da construção de casos mais adequado aos serviços
de saúde mental.
2. O segundo modo de aplicação da metodologia da construção dos casos corresponde a
um dispositivo de formação do analista, a ser desenvolvido nas Escolas de Psicanálise
Lacaniana. Partindo do texto do caso levado ao debate nas instituições de saúde
mental, o praticante endereça a leitura dessa escritura a dois psicanalistas da Escola,
que comentarão o texto, seguindo a lógica clínica das escansões que se extraem do
texto da construção do caso. Essa proposta da Construção do Caso Clínico se
aproxima da proposição lacaniana do Cartel do Passe para a demonstração da
incidência lógica de um dizer na experiência analítica de onde se extrai um ‘não dito’,
que revela a íntima relação do sujeito com o gozo, testemunhada nesse dispositivo.
3. O terceiro modo de aplicação da metodologia da construção dos casos corresponde à
publicação da construção do texto do caso, já atravessada pela discussão da equipe
clínica (2ª escritura) e, se possível, também pelos comentários da leitura realizada por
outros analistas (3ª escritura), como material que propicia uma pesquisa clínica,
71
desenvolvida a partir de uma concepção teórica que determina a prática analítica. Esse
modo de aplicação do método da construção é mais adequado ao contexto
universitário e, por isso, a elegemos como metodologia de base para essa pesquisa de
orientação lacaniana.
Trata-se, portanto, de tomar uma pesquisa nesses três modos de aplicação, pelo viés da
psicanálise aplicada ao campo da saúde mental, termo que será discutido mais adiante neste
capítulo. O importante a assinalar nessa proposta metodológica é a maneira como se emprega
o valor metodológico do caso através da especificidade da investigação psicanalítica: o caso
ensina e é a partir desse ensinamento que nos colocamos na posição de ‘aprendizes da clínica’
(ZENONI, 2000) como pesquisadores. Com efeito, entendemos a clínica pela lógica relativa
ao acompanhamento de um sujeito de onde se produz um caso. O caso clínico, por sua vez,
inclui a dimensão da contingência, do real na clínica e, portanto, o ‘não programado’ na
formalização de um saber que somente poderá ser construído a posteriori. E isto resulta no
modo de transmissão da psicanálise de um saber que se constrói, a partir do caso clínico que
não obedece ao saber teórico das práticas psicológicas e, tampouco, das práticas científicas.
É nessa perspectiva de uma pesquisa que inclua a clínica que Viganò (2008) apresenta
seu argumento no artigo Avaliação e Pesquisa Clínica 54 , no qual podemos encontrar, ainda,
uma proposição política para os avanços da pesquisa em psicanálise no campo clínico atual.
Nesse artigo, Viganò (2008, p. 3) indica a importância da aplicação da metodologia da
construção do caso no contexto universitário 55 para que se mantenha “aberta a pesquisa dos
instrumentos lógicos capazes de capturar a objetualidade que a experiência clínica demonstra
como criação própria do caso clínico, sempre particular e nova”. Nessa direção, situamos os
avanços da teoria lacaniana ao utilizar seus instrumentos lógicos que permitem circunscrever
com a lógica do real psíquico, diferindo do método cientifico ou, ainda, das psicoterapias e do
nicho filosófico da fenomenologia.
Como exemplo, o autor assinala o modo como a leitura fenomenológica dos casos
concebe a prática clínica, se afastando, no entanto, do valor do caso clínico ao produzir “as
grandes narrações da loucura heróica” como uma práxis de interesse social comparado ao
estilo da “redução de danos” (VIGANÒ 2008, p. 3), inserido em um determinado contexto
civilizatório. Viganò analisa, com isso, o afastamento do rigor do método freudiano nas
pesquisas clínicas, promovido inicialmente pelo campo das ciências humanas que contagiava,
54
Tradução do título do artigo: Valutazione e Ricerca Clinica.
O autor faz referência ao método da Construção do Caso Clínico desenvolvido em uma pesquisa clínica sobre ‘Distúrbios
Alimentares’, realizada na Unità di Psiquiatria Dinamica e Psicoterapia do Dipartimento di Salute Mentale do Ospedale
Niguarda Ca` Granda, conveniado à Università degli Studi di Milano.
55
72
ainda, os clínicos psicodinâmicos do ‘setting privado’, chegando a abrir o caminho para a
forma contemporânea de relação do tratamento com a cientificidade. Essa forma
“hipermoderna” da cientificidade se apresenta, atualmente, para o autor como “imposta no
campo da saúde mental através do horizonte avaliativo” (VIGANÒ, 2008, p. 03) dos grupos
homogêneos das pesquisas sociológicas ou do controle estatístico dos estudos de ‘duplo
cego’ 56 . No entanto, esse modo atual de cientificidade, além de se tornar conflituoso com a
lógica da clínica, faz com que esta deixe de ser reconhecida por desaparecer no horizonte de
uma cientificidade que se efetua somente no nível do semblante – do uso do número – para
não dar mais lugar à verdade do sujeito. Com efeito, as demonstrações da dimensão do real da
clínica são exploradas no campo das pesquisas clínicas somente para torná-las conciliáveis
com a observação dos protocolos científicos e com seu modo de validação da eficácia
terapêutica.
Viganò (2008, p. 4) retoma, então, o desafio que se coloca no campo clínico atual de
“reencontrar a clínica e, portanto, a via para a pesquisa”, através de um reencontro com a
ciência que não seja apenas pela via de uma retórica com o que determina o cientificismo ou
as correntes das ciências humanas. Para isso, o autor propõe a discussão de “uma pesquisa que
compreenda a clínica” frente à redução da probabilidade calculável, que resulta na redução ao
‘uno’ da subjetividade que atrai a civilização contemporânea. A propósito desse
reducionismo, o autor aborda as ‘classificações nosográficas’ como sendo a única
hereditariedade deixada ao longo de dois séculos de psiquiatria como meio possível de
“reportar os fenômenos psíquicos a uma unidade fechada”, ainda que estas constituíssem
“sempre o ponto de fragilidade e de obstáculo para uma pesquisa clínica” (VIGANÒ, 2008, p.
4). E situa, na passagem dos séculos, o deslizamento da causa natural na psiquiatria do século
XVIII para a objetivação da psicopatologia no século XIX até chegarmos, enfim, à
homogeneidade do comportamento, característica dos tempos atuais, postulada pelo
Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM). Entre essas passagens, indica
56
Estudo Duplo Cego é uma técnica realizada em seres humanos na qual nem o examinado (objeto de estudo) nem o
examinador sabem o que está sendo utilizado como variável em um dado momento. É comumente usado como critério de
validação de práticas experimentais quantitativas em ciência. Como exemplo, queremos testar a eficácia de um medicamento
em uma determinada doença: o pesquisador contrata médicos examinadores que irão entregar uma cápsula, que pode ou não
conter medicamento, a pacientes voluntários que apresentam uma determinada doença. Este medicamento foi feito por
manipulação em dois tipos idênticos de cápsulas: uma com o pó do medicamento estudado e outro com farinha de trigo. O
médico anota o número do medicamento sem saber se esta cápsula é o medicamento ou se é a farinha. Tampouco o paciente
sabe a composição real da cápsula. Após o período que em que se espera que o medicamento faça efeito, o mesmo médico
examina o paciente e anota quantitativamente a melhora ou não das alterações esperadas na doença. Esta ficha é devolvida ao
examinador, que tabula os resultados, sabendo qual tipo de cápsula foi ingerida pelo paciente. Assim, o pesquisador consegue
excluir o efeito placebo existente em um medicamento inerte e validar um medicamento que realmente faça efeito. Fonte:
http://www.psiqweb.med.br, acessado em 02/02/2012.
73
que sempre se manteve viva e presente uma crença fundamental: “a da doença psíquica sob a
qual o saber científico pode agir segundo o modelo epidemiológico” (VIGANÒ, 2008, p. 4).
A partir dessa idéia, o autor apresenta o paradigma científico atual como ‘o ponto mais
avançado’ do reducionismo introduzido pela medicina, sustentada por um modelo que torna o
sofrimento humano um objeto científico.
De outro modo, a inovação clínica de Freud, como assinala Viganò (2008), foi a de
colher na raiz do sintoma neurótico a possibilidade de separar do corpo um rens cogintas,
“encorajando o sujeito a fundar-se sob o pensamento e, portanto, sob o saber” (VIGANÒ,
2008, p. 4). Esse autor retoma, então, o ‘mal-estar da civilização e do neurótico’, pelo viés de
um ‘seguimento impossível’ do saber com a verdade subjetiva que, por ser excluída como
causa material, faz retorno ao lugar vazio deixado no sujeito pela ciência. Com efeito, a
descoberta do inconsciente que opera na clínica da neurose permitiu à Freud, ainda segundo
Viganò (2008, p. 4), a não designá-la como um objeto definido cientificamente, já que a
relação do sujeito com os objetos definidos pela ciência “é fruto de uma combinatória do
formalismo científico que agrega um grau elevado de probabilidade por meio do cálculo e da
exatidão”. Nessa discussão, é incluída a originalidade de Lacan, único analista entre os
seguidores de Freud, de pensar o inconsciente de modo topológico, precisamente colocado na
relação subjetiva com os objetos da ciência 57 . Se no campo da ciência a verdade opera como
causa formal, entre a ação de significação do significante, no campo da psicanálise e “da
clínica que inclui o inconsciente”, a verdade subjetiva opera como causa material,
representando o sujeito para um outro significante. Essa é, portanto, a perspectiva apontada
por Carlo Viganò para que a “clínica possa reingressar no campo da pesquisa”, preservando o
seu grau de probabilidade a partir de uma “certeza do tipo conjectural”, não ligada ao cálculo
estatístico. Trata-se de reconhecer o valor da pesquisa clínica em psicanálise não designada
como “científica no sentido da objetividade”, mas situada “na realidade transformada pela
ciência como objetualidade”, a partir do que Lacan relacionou com o objeto a, um objeto
particular que condensa em si a marca do incomensurável (VIGANÒ, 2008, p. 4).
57
No Seminário, livro 13: O objeto da psicanálise, Lacan apresenta a distinção entre os campos da ciência e da psicanálise
pela relação que estabelecem com a verdade e pelo modo como operam metodologicamente com a função da falta. Tal
distinção é demonstrada com a faixa de uma banda de Moebius que indica a verdade no buraco da banda, como objeto
excluído do saber e interno ao sujeito do inconsciente. Seguindo o pensamento aristotélico, Lacan relaciona a causa natural
com a causa formal pela operação do método científico com seu objeto a partir da empiricidade e da experimentação do
verdadeiro e falso que, consequentemente, exclui o sujeito de suas formulações. A causa material, por sua vez, é relacionada
com a operação do método clínico da psicanálise por recolher a produção da verdade de cada sujeito pela via do sintoma, cuja
estrutura faltante é reafirmada pela lógica significante.
74
isto, Viganò (2008) propõe os seguintes princípios para uma pesquisa orientada pela
psicanálise 58 :
1.
A pesquisa clínica, conduzida por um psicanalista, não concerne à psicoterapia, mas a
clínica sob transferência, a clínica do sujeito.
2.
A psicanálise de orientação lacaniana constitui um paradigma científico de uma
‘ciência que inclui a psicanálise’. É, por isto, um complexo de teorias (o que é e como)
que organizam uma clínica compartilhada por uma comunidade (AMP) 59 . Esse
paradigma é centrado na topologia do sujeito da ciência, ou seja, daquele sujeito
contemporâneo que sofre do ‘real médico’ não assimilável pela ciência, que faz disso
o resto e a escória.
3.
A pesquisa não é empírica, mas usa alguns matemas tratados pela lógica da clínica.
Que o uso destes exija uma formação específica não deve surpreender, na medida em
que esta é a tradição de cada pesquisa científica. Na pesquisa, o paradigma ocupa o
lugar de S1, e o pesquisador é quem tenta contestá-lo, para substituí-lo por um
paradigma mais útil e eficaz. Hoje o capitalismo não tolera que se tenham diversos
paradigmas em competição entre eles, pois se pretende substituir com um saber
universal – um S2 sem S1 – o que cada um pode consumar ao seu próprio gosto.
4.
Os matemas do paradigma analítico foram elaborados por Lacan em seu ensino, no
qual Jacques-Alain Miller deu uma continuação e uma orientação. Isso responde ao ‘o
quê’ da teoria, que deve também prever o ‘como’, o método. Esse último se atualiza
no passe e na verificação do tratamento pela intensão e na pesquisa clínica pela
extensão. Entre intensão e extensão há uma passagem de discurso que se realiza em
um plano projetivo, no qual o interno está em continuidade com o externo.
5.
O objeto da pesquisa não é a cura do paciente, mas o estudo do sintoma, das suas
variáveis e das transformações das organizações subjetiva do gozo, estrategicamente
induzidas ao uso tático da transferência. Os algoritmos destinados a colherem essas
transformações retomam a relação do sujeito com o objeto no campo do Outro e são,
por isso, topológicos.
6.
A base ‘cientifica’ (confrontabilidade do caso particular) da pesquisa é o Audit 60 e,
portanto, a formação em equipe. Isto implica a construção (escritura do texto do
58
Os itens citados abaixo correspondem à tradução literal, realizada pela doutoranda, dos princípios apresentados pelo autor
no artigo citado (VIGANÒ, 2008, p.04-05).
59
Abreviatura de Associação Mundial de Psicanálise que indica a referência do autor à comunidade de psicanalistas a qual
pertencia como membro integrante da comissão de saúde mental.
60
Carlo Viganò utiliza frequentemente, em seus artigos, o termo médico de língua inglesa Audit, que designa a exposição e a
discussão de casos clínicos.
76
tratamento) e desconstrução (leitura dos significantes do caso). Nesse trabalho, a causa
eficiente faz interseção com o objeto a como causa. A pesquisa, portanto, participa da
formação do analista.
7.
Não há avaliação que não se fundamente sobre uma pesquisa, organizando o saber na
relação ao seu S1. Consequentemente, não se pode aspirar a um saber acima das
partes. Concerne à política levar em conta os dados de pesquisa, verificando se na sua
metodologia o sujeito é incluído no lugar da verdade e não no lugar de comando.
8.
A pesquisa assim delineada, como critério de validade, substitui uma ‘cientificidade’
que seria de puro semblante por uma ética que é a da clínica. Com isso, a pesquisa
pode dialogar com as exigências de mercado (custos econômicos), mas não com as de
marketing (persuasão). De fato, o saber que dá forma à evidência clínica não é
totalmente exposto (medido), mas é suposto pelo sujeito (incomensurável do objeto).
Por isso, a utilização política dos resultados da pesquisa não será a de programar e
financiar os patrocinadores, mas servirá somente para os projetos clinicamente
fundamentados.
9.
Os resultados da pesquisa devem usar a linguagem do outro para contribuir na
retificação do discurso do mestre, dialetizando o S1 da política. Para obter esse
resultado não é necessário ‘standarizar’ os procedimentos terapêuticos como única
forma de garantir a formação dos clínicos. Na clínica do sujeito, a confrontabilidade se
dá no nível da estrutura do sintoma e não entre grupos de pacientes. É possível
reagrupar os pacientes, para fins estatísticos, somente no ‘après-coup’ do tratamento
(follow-up).
10. Para superar a censura da clínica, operada pelos falsos semblantes de ciência, não há
outra política, senão aquela de ‘clinicar’ o furo no real operado pela ciência no corpo
do falasser, como efeito da aliança entre a medicina e psicologia cognitivocomportamental. Para que a pesquisa clínica de orientação lacaniana possa se
confrontar com outros paradigmas clínicos, é necessário que a universidade se
abstenha da subordinação do modelo sanitário de governo. Se a pesquisa não é livre,
torna-se um instrumento da segregação social do sintoma.
A partir da apresentação desses dez princípios propostos para a direção de uma
pesquisa clínica, podemos considerar a metodologia da construção dos casos como sustentada
pelo rigor freudiano da investigação analítica e, ainda, pelas exigências éticas e metodológicas
postuladas por Lacan para o avanço da pesquisa em psicanálise. Esses princípios nos servem,
ainda, para situar o modo como a política lacaniana do sintoma se inclui nessa metodologia de
77
pesquisa, levando em conta que esta política não se reconhece nos critérios estatísticos e
experimentais do discurso da ciência. Em contraposição às exigências das pesquisas
científicas atuais, destacamos dois aspectos específicos do método de investigação e de
avaliação da construção do caso clínico: o valor metodológico da singularidade do caso, que
preserva a lógica clínica da pesquisa em detrimento da utilização do estudo de casos para fins
de comprovação teórica, e a relação entre a verificação das transformações do sintoma no
tratamento e a transmissão da política da psicanálise ao campo clínico atual.
Uma via para abordar o valor metodológico do caso clínico no âmbito da pesquisa em
psicanálise parte da investigação da condução de um tratamento, dos impasses e obstáculos
que atravessam a experiência clínica, e segue em direção à construção da lógica do sintoma
em cada caso. O resultado dessa construção, por sua vez, é avaliado pela leitura lacaniana do
caso levada ao debate clínico, sem entrar nos meandros do ensino teórico. Isso se torna
possível quando, por exemplo, introduzimos nas discussões clínicas o modo lacaniano de
propor o relato dos casos, utilizando alguns algoritmos capazes de traduzir como o sintoma é
colocado em evidência na nossa orientação clínica. Como resultado, o efeito de transmissão
da orientação lacaniana é recolhido a cada momento em que se verifica que um caso foi
entendido e compartilhado por uma equipe clínica, ainda que uma determinada concepção
teórica não fosse explorada. Essa é a contribuição metodológica da construção do caso clínico
para o campo da pesquisa clínica que permite explorar, ainda, os temas da avaliação e da
evidência clínica, conforme os princípios acima apresentados.
2.1.1. A avaliação e a evidência clínica na saúde mental
A experiência de Construção de Casos Clínicos foi iniciada por Carlo Viganò na
Escola de Especialização em Psiquiatria da Universidade de Milão, com uma proposição
metodológica que pôde ser aplicada, ainda, em diversas instituições psiquiátricas italianas 61 .
Nesse cenário, a prática de apresentar e discutir os casos se revelou um potente instrumento
de formação e de avaliação da qualidade clínica do trabalho institucional e, por isso, passou a
ser adaptada também à prática em saúde mental. O método da construção do caso adotado,
tanto na universidade quanto nos serviços de saúde mental, tornou-se, então, um instrumento
61
Referência à experiência iniciada em 1998 por Carlo Viganò, com a participação de psicanalistas lacanianos, na
composição de um laboratório de pesquisa na Escola de Especialização em Psiquiatria da Universidade de Milão. Em
seguida, com a participação dos estudantes e de profissionais que atuam nos serviços públicos de saúde mental, o método de
Construção do Caso Clínico desenvolvido nessa instituição universitária passa a ser aplicado também nas instituições de
saúde mental.
78
capaz de tratar o tema da evidência clínica com o propósito de demonstrar que é possível uma
avaliação que compreenda a transferência como eixo da clínica.
Para apresentar essa discussão, partimos de dois artigos de Carlo Viganò, traduzidos e
publicados recentemente, que apresentam a metodologia da Construção do Caso Clínico em
articulação com a atual temática da avaliação e evidência clínica na saúde mental 62 . Convém
indicar que o detalhamento metodológico proposto pelo autor para a construção coletiva dos
casos será retomado no próximo capítulo para que seja explorada, por enquanto, a
fundamentação da proposição clínica e política dessa contribuição para o campo das pesquisas
clínicas que se desenvolvem nos serviços de saúde mental. No primeiro artigo, o autor
apresenta a relevância da proposta metodológica da Construção do Caso Clínico (VIGANÒ,
2010a) aplicada ao campo da saúde mental como estratégia para inserir o discurso analítico no
debate clínico atual, fortemente influenciado pelo ‘ideal de cura’ promovido pela política
contemporânea, centrada na redução de custos. Nessa direção, Viganò indica o modo como
atualmente vem sendo formulada a demanda social de avaliação dos serviços de saúde em que
“o que está em jogo não são mais a duração e a eficácia do tratamento, mas seus semblantes
culturais” (VIGANÒ, 2010a, p. 3), definidos pela utilidade imediata dos protocolos de
avaliação. A hipótese levantada pelo autor é a de que a forma contemporânea da avaliação
vem sendo sustentada “pela intenção de neutralizar a variável transferência” (VIGANÒ,
2010a, p. 3) com corretivos do tipo ‘duplo cego’, tornando não influenciáveis os fatores
subjetivos. Com isso, as terapias passam a ser avaliadas tal como o uso de um fármaco e, na
ausência de uma avaliação que compreenda a transferência como eixo da clínica, os casos
privilegiados são aqueles em que a transferência é desconsiderada e, portanto, deixada
funcionar de modo selvagem.
O autor apresenta, então, um breve relato da construção de um caso acompanhado por
um profissional de formação lacaniana em uma Comunidade Terapêutica italiana, durante um
período de quatro meses. A construção desse caso expõe não somente como os efeitos
terapêuticos da psicanálise podem ser colhidos em curto tempo, mas também como seu modo
de eficácia marca uma diferença notável em relação aos resultados que foram obtidos
anteriormente com os tratamentos cognitivistas e farmacológicos. Em outros termos, o caso
apresentado avalia a eficácia do ato analítico, quando inserido entre os tratamentos cognitivo62
Priorizaremos, portanto, a discussão estabelecida por esse autor sobre o tema apresentado, por duas razões: primeiro, por
ser este o propositor da metodologia aplicada nessa pesquisa, sendo, por isso, pertinente assinalar os argumentos clínicos e
políticos que norteiam o método da Construção do Caso Clínico. E em segundo lugar, para explorar as contribuições deixadas
pelo autor no intuito de homenageá-lo com essa pesquisa de doutorado, acompanhada continuamente pelo mesmo até o mês
de seu falecimento.
79
comportamentais que produziam uma história de cronicização, demonstrando que o efeito
terapêutico de uma escuta analítica é rápido (VIGANÒ, 2010a, p. 7). No entanto, é
importante demarcar a exigência de um projeto de estabilização que dê prosseguimento à
clínica sob transferência e não à rigidez de um ideal de cura. Sobre esse aspecto, Viganò
assinala que o ato analítico se opõe à cura rápida obtida com as internações psiquiátricas e às
intervenções cognitivistas, que se revelam de duração sempre mais breve. E, com isso, o
autor conclui que para inserir a transferência como fator da terapia, é necessário remover da
perspectiva da avaliação a referência a qualquer ideal de cura que considere, unicamente, o
dado concreto do custo financeiro de um acompanhamento clínico.
No segundo artigo, Viganò apresenta o tema da Avaliação e evidência clínica na
saúde mental (VIGANÒ, 2010b, p. 469) em continuidade com o argumento anterior, em que
contrapõe o modo de avaliação do método da construção de casos em relação aos métodos de
verificação empírica ou de avaliação de eficácia que, atualmente, condicionam também as
psicoterapias. Esse argumento é sustentado pelo autor, considerando que atualmente “o
psicanalista tornou-se sensível ao tema da avaliação” (VIGANÒ, 2010b, p. 471), já que a
exigência social de calcular o custo econômico das terapias começa a atingir também a sua
prática. Com essa dificuldade, estão sendo confrontados os projetos de reforma da saúde
mental, em diversos países 63 , como na França e na Itália, chegando ao Brasil por meio das
mais recentes propostas de reforma sanitária. Esses projetos estão centrados na idéia de pedir
à “ciência médica” a definição inicial da doença para, em seguida, proceder segundo a lógica
da avaliação estatística que estabelece a exatidão dos custos e gastos dos procedimentos
terapêuticos. Para o autor, a transposição desse modelo empírico para a avaliação da prática
analítica nas instituições parece responder a uma exigência de ocultar a real contribuição da
psicanálise, que é a de “dar contribuições essenciais a cada axioma 64 de avaliação clínica”
(VIGANÒ, 2010b, p. 470), na medida em que cada avaliação produz, por si mesma, um
quadro axiomático.
63
Em relação ao cenário italiano de assistência em saúde mental, o autor indica o projeto de lei proposto por Maria Burani
Procaccini, em 2001, que, entre vários retrocessos em relação à Lei 180 da Reforma Psiquiátrica Italiana, prevê o Tratamento
Sanitário Obrigatório com tempo determinado para o acompanhamento de casos de saúde mental. Na França, indicamos a
resolução do HAS (traduzido como Autoridade Máxima em Saúde francesa), que recomenda técnicas comportamentais e
educacionais para o tratamento do autismo, em detrimento da prática clínica da psicanálise. No Brasil, além das ‘metas’ de
produtividade, que estimula o tempo cada vez mais breve de intervenções clínicas, damos ênfase ao projeto de lei 111/10, que
prevê a Internação Compulsória de usuários de drogas lícitas (álcool) e ilícitas, sob o mote da ‘Justiça Terapêutica’, apoiado
pela psiquiatra contemporânea e pela esfera judicial, que pode ‘condenar’ um usuário de drogas a uma ‘pena’ de seis meses e
um ano de ‘tratamento obrigatório’.
64
Definição de axioma: proposição que se admite como evidente porque dela se podem deduzir as proposições de uma teoria
ou de um sistema lógico ou matemático. Fonte: Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 1ª edição, 1975: p. 168.
80
Da parte do campo médico, Viganò situa as exigências da corrente de avaliação da
EBM (Evidence Based Medicine) que vem promovendo a idéia de verificar as intervenções a
partir de uma objetivação instrumental do quadro clínico, considerando a evidência como
critério de leitura dos êxitos do mesmo quadro. O autor observa que, de um modo geral, esse
modelo de avaliação foi importado acriticamente de algumas disciplinas particulares, “dandolhe um valor universal inapropriado e qualificado como científico” (op. cit, 2010b, p. 475).
Diferentes quadros axiomáticos, como os de tipo sociológico – estudo por classes
homogêneas – se misturam com os modelos de farmacologia clínica – estudo de duplo cego –
e, com isso, o processo dedutivo, que deveria conduzir a axiomática avaliativa, é substituído
pelo cálculo estatístico. Consequentemente, os elementos heterogêneos e, portanto,
incomensuráveis, como o efeito do uso de psicotrópicos, das psicoterapias e da psicanálise
aplicada passam a receber arbitrariamente a atribuição de um índice numérico que, ao se
reportar ao cálculo estatístico, “elimina cada referência ao real, tornando-se uma anticiência”
(VIGANÒ, 2010b, p. 476). Convém ressaltar que essa corrente de avaliação, presente no
campo da saúde pública, segue uma lógica que se afasta do modo como vem sendo avaliada a
condução dos casos por meio das discussões e supervisões clínicas realizadas com as equipes
multidisciplinares que atuam, hoje, nos serviços de saúde mental.
Instaura-se, então, um conflito entre o modo de avaliação da lógica processual da
condução de um tratamento e o modo como as instituições devem programar suas ‘metas’ de
intervenções clínicas, estabelecidas pela atribuição dos custos, conforme “a lógica
desenvolvida historicamente na organização dos tratamentos hospitalares” (VIGANÒ, 2010b,
p. 471). Na base dessa lógica estatística e avaliativa, Viganò inclui o Diagnostic Rating
Group (DRG), no qual os diagnósticos são reagrupados em classes, correspondendo a uma
tarifa para o reembolso. Segundo Viganò (2010b, p. 472), o pressuposto para este cálculo é o
de que um determinado diagnóstico corresponda a um protocolo de tratamento homogêneo e
previsível. Como efeito da aplicação dessa lógica nos serviços de saúde, a clínica é
considerada somente para produzir o resultado da ‘cura do sintoma’ ou de sua contenção com
o menor dispêndio de dinheiro e de tempo. Assinala que esse modelo de avaliação de um
tratamento “perde o valor preditivo real quando a definição do sintoma e da sua modificação
ou estabilização entram na competência clínica do caso a caso” (VIGANÒ, 2010b, p. 472).
Diante disto, o autor problematiza a inclusão desse modelo no campo da saúde mental, pois
“se omitido o tempo lógico da transformação do problema psicológico como uma evidência
clínica, essa transformação deixa de ser um dado determinante para o cálculo”, tornando-o
“ideológico ou, ainda, conflituoso” (VIGANÒ, 2010b, p. 472). E, com isso, localiza a
81
contribuição de métodos clínicos que desenvolvam uma operação inversa ao método
científico, recolhendo as evidências que as várias disciplinas clínicas produzem no
estabelecimento de um quadro axiomático que sirva ao cálculo avaliativo.
O autor aponta, então, para a evidência clínica como um critério ‘mais manejável e
aderente’ (VIGANÒ, 2010b, p. 471) à operação do tratamento que se quer avaliar, e não
como um procedimento ‘científico’ em que o valor de diagnóstico e, sobretudo, de cura –
operações de sentido não quantificáveis – são tomados de modo arbitrário, tendo como única
mensuração a estatística. Diferindo da mais avançada corrente da EBM, Viganò propõe a
indicação da evidência clínica, com uma axiomática avaliativa que se fundamenta na
orientação lógico-estrutural da psicanálise lacaniana. Essa proposição é considerada pelo
autor como capaz de fornecer um importante suporte metodológico para as diferenças técnicooperativas que configuram o trabalho em equipe. Para isto, Viganò agrupa em ‘três tempos
lógicos’ os elementos do processo de acompanhamento na saúde mental, aplicando uma
formalização da clínica lacaniana, com base nos três tempos da clínica clássica: a anamnese, o
diagnóstico e a terapia. E ressalta que esses três grupos de operações clínicas, não
necessariamente, devem ser ordenados em um único protocolo operativo65 , mas servem para a
elaboração de um projeto terapêutico que deve considerar a articulação dessa temporalidade
lógica, ainda que sejam contemplados em modos e tempos particulares em cada caso.
1. Um instante de ver é designado como uma operação que isola o ‘olhar clínico’ como
“o filtro que estabelece a ‘evidência’ e que coincide, cada vez menos, com o clássico
diagnóstico categorial” (VIGANÒ, 2010b, p. 473). A evidência clínica que inclui o
tratamento e, portanto, a contingência clínica é diferenciada da exigência do
diagnóstico categorial que privilegia a categoria sociológica de ‘distúrbio’ para
alimentar a quantificação epidemiológica na lógica da avaliação. O autor assinala,
então, que este “não é um tempo de mensurações, mas de avaliação” (VIGANÒ,
2010b, p. 473) da evidência que permanece ancorada ao caso e que permite avaliar,
posteriormente, quais seriam os dados adequados a sobrepor no tempo da mensuração.
2. Um tempo para compreender concerne ao tempo “da avaliação da transferência e da
formulação de um projeto de tratamento que coincide com o critério diagnóstico”
(VIGANÒ, 2010b, p.473). Entretanto, o autor aponta para o modo como essa operação
clínica “vem sendo hoje comprimida e aspirada pelo tempo lógico sucessivo” do
65
Embora o autor considere que esses ‘três tempos lógicos’ não necessariamente estejam ordenados em um único protocolo
operativo, podemos situá-los na axiomática avaliativa que conduz o ‘Roteiro da Apresentação dos Casos’ (ver anexo I) como
instrumento metodológico para Construção do Caso Clínico.
82
momento de concluir, como uma ‘perversão lógica’, que tende a negligenciar o tempo
de compreender para dar precedência ao tratamento da urgência. Sob esse ponto de
vista, Viganò situa também a ‘perversão da política’ de negligenciar a manutenção do
tratamento para se ocupar, unicamente, da redução dos custos, endossada pela idéia de
que cada distúrbio deve corresponder a um determinado custo financeiro. Nesse tempo
lógico, a mensuração pode desempenhar uma função importante para o
estabelecimento de medidas políticas que considerem o processo clínico e não
somente sua mensuração financeira.
3. O momento de concluir designa o momento “capaz de criar o espaço para o analítico
ou terapêutico” (VIGANÒ, 2010b, p. 474) após o tempo da elaboração de um projeto
de tratamento. Se um critério terapêutico não for estabelecido no tempo anterior,
caberá à ‘utilidade imediata’ a decisão do ‘tratamento mais adequado e rápido’ para
um determinado distúrbio, baseada nas evidências científicas. Viganò situa nesse
tempo lógico o momento em que, frequentemente, o valor de eficácia do ato analítico
é descartado e degradado. No entanto, o autor adverte que “devemos encontrar todos
os aliados possíveis no propósito de construir a dignidade ética e cultural do ato
analítico”. (VIGANÒ, 2010b, p. 474), ressaltando, assim, a importância de preservar a
transmissão da eficácia da psicanálise, evitando o confronto ideológico com outras
concepções clínicas.
O estabelecimento dessa axiomática avaliativa de orientação lacaniana nos permite
problematizar o modo como a dimensão subjetiva torna-se hoje irreconhecível no tema da
avaliação, o que nos leva a interrogar o uso do cálculo no âmbito da saúde mental. Esse é um
problema que se coloca para a saúde mental “quando não é mais a homeostase natural e
biológica do vivente a definir o estado de saúde, mas uma quota de gozo do corpo que é
própria de cada sujeito; não mais o silêncio dos órgãos, mas a sua palavra” (VIGANÒ, 2010b,
p. 474). Trata-se do desafio de não tornar eliminável nas avaliações clínicas o resíduo de
incurável do sintoma psíquico, reconhecendo seu caráter ‘não mensurável’ e não reduzível a
um bom funcionamento. Entretanto, o autor situa nesse ponto o surgimento da hostilidade
pela psicanálise no campo científico, na medida em que na experiência analítica “este
elemento incomensurável é algo do que se pode falar” (VIGANÒ, 2010b, p. 477). Enquanto
as ciências médicas partem ‘do que não se pode falar’ para reduzir o sintoma a uma disfunção
ou a um distúrbio, a presença do analista incide no nível do equívoco da palavra para impedir
que esta seja substituída pelo ideal da utilidade imediata subordinada ao mote dominante do
“direito à saúde”.
83
Uma importante tarefa para a psicanálise é, então, a de escutar algo no relato do
sintoma que trabalha contra o ideal enunciado “da exigência unívoca da mensuração que leva
ao silêncio.” (op. cit.). E isto implica tornar legível algo que não é mensurável e que se extrai
do sintoma pela ressonância da palavra que nos faz encontrar no mensurável de seus sinais o
não mensurável de seu sentido. Tornar o incurável do sintoma um elemento fecundo para
avaliar a condução de um tratamento é uma direção possível para introduzir novas propostas e
métodos clínicos no campo da saúde mental que se diferenciem da operação do cálculo
estatístico. Nessa direção, a prática lacaniana marca a sua diferença na avaliação de um
acompanhamento clínico, já que “não visa ao funcionamento de cada caso, mas assume a
falha no seu centro e transforma a noção de êxito” (VIGANÒ, 2010b, p. 477). Esse é,
portanto, um modo específico de estabelecer uma relação com o real do gozo do sintoma, com
a insistência do impossível de curar, no nível de uma axiomática de avaliação do tratamento
no qual “o fracasso torna-se somente um modo não subjetivado do sucesso” (VIGANÒ,
2010b, p. 477). Para incluir na lógica avaliativa os princípios da prática psicanalítica de
tratamento do sintoma, Viganò indica “alguns dados que podem se tornar patrimônio comum
da saúde mental” (VIGANÒ, 2010b, p. 478), se preservada a idéia da utilidade ancorada no
real da experiência clínica. Entre esse dados, sintetiza três princípios da política lacaniana do
sintoma que são entre si correlatos:
A normalidade não é outra coisa senão o sintoma uma vez elaborado pelo sujeito como
medida da sua saúde. O tratamento é transformação do sintoma que o reduz a agente do
desejo: é o sujeito que trata de si mesmo. Desta “desconstrução” é possível fazer uma
construção transmissível (VIGANÒ, 2010b, p. 478).
A apresentação desses princípios, estendidos à prática da saúde mental, se articula com
a exigência da evidência clínica instaurada na prática médica, no intuito de dispor da teoria e
dos protocolos que dela derivam para a avaliação da clínica e, mais precisamente, do caso
particular. Se abolida a disciplina clínica do estudo contínuo do caso clínico e das
modificações do sintoma em cada caso, o autor adverte que qualquer uma das duas práticas
tende a “transformar-se em uma ideologia em que o quadro nosográfico funciona como véu
fantasmático do doente real, contingente” (VIGANÒ, 2010b, p. 478). Nessa perspectiva, a
medicina baseada em evidências responde a uma axiomática científica, na qual a evidência é
atribuída com base na leitura da mensuração instrumental dos quadros nosográficos aplicada
ao texto do caso. De modo diferente, a axiomática mais adequada à avaliação da prática da
saúde mental concerne à leitura do caso único, a partir do texto que se produz na construção
do caso clínico.
84
A proposta da construção do caso aplicada ao campo da saúde mental parte da
concepção do tratamento como um processo criativo, no qual cada sujeito introduz a
dimensão do novo e do real na clínica ao criar suas soluções para lidar com o gozo de seu
sintoma. E isso implica a tarefa de se construir um discurso nas instituições que transmita, de
maneira clara, a uma equipe clínica ‘o que é o sintoma’ e ‘como se trata um sintoma’,
seguindo a orientação da psicanálise lacaniana. Trata-se, então, da ação política do analista de
tornar legível o que se apreende dos princípios teórico-clínicos de Freud e Lacan como
determinantes para a sua prática no âmbito da saúde mental. Nessa direção, Viganò interroga:
“por que, no campo da saúde mental, não utilizar a lógica e a topologia como instrumento
para construir a evidência clínica de um tratamento?” (op. cit, 2010b, p. 470). Com esse
questionamento, o autor propõe a metodologia da construção dos casos como uma
contribuição da psicanálise para a avaliação da experiência clínica, pela extensão da proposta
do passe 66 de produção de uma escritura que testemunhe o final de uma experiência analítica.
Seguindo essa proposta, o crédito dado à escritura do caso como construção do objeto
psíquico 67 concerne a algo que é relançado pelo analista com seu ato e que, portanto, vai além
do dito do analisante. Do mesmo modo, o texto da construção do caso produzido pelo clínico,
que conduz um tratamento, permite “construir a conexão, a passagem exata do que se
compreende no tratamento ao que disto se pode ler na avaliação” e, com efeito, “a evidência
vem da resposta do paciente” (VIGANÒ, 2010b, p. 471).
É notável, nas discussões de uma equipe clínica, como os diversos momentos de
transformação da posição discursiva de um sujeito, testemunhados no tratamento, podem
atravessar a apresentação e a avaliação clínica do caso. No entanto, para fomentar esses
espaços de discussão clínica, a prática da construção coletiva dos casos não deve entrar em
competição com outras leituras teóricas, mas deve recolher na leitura do texto da construção
as estruturas reais do caso clínico e a lógica de suas respostas. A contingência dessas
estruturas “é ligada ao caso clínico e não à teoria”, enquanto que o valor metodológico do
testemunho na construção dos casos “é garantido pela escritura e pela discussão dos casos”
(VIGANÒ, 2010b, p. 471). A leitura coletiva do texto da construção, por sua vez, propicia
uma desconstrução que evidencia a relação singular e contingente que cada sujeito estabelece
com seu sintoma.
66
Dispositivo proposto por Jacques Lacan (1967) na ‘Proposição de 9 de outubro de 1967’ (LACAN, 2003), na intenção de
verificar como no final de sua análise, o analista praticante torna-se Analista da Escola (AE), a partir do testemunho de sua
própria experiência de análise.
67
Referência ao termo empregado no texto freudiano “Construções em Análise”, de 1937.
85
O texto da construção do caso apresenta os pontos de descontinuidade e de escansões
das transformações do sintoma no curso de um tratamento que podem ser lidos como uma
evidência clínica, a partir dos ‘furos e saltos lógicos’ que a leitura do caso permite localizar
como produções subjetivas de cada sujeito. Nesses pontos descontínuos da leitura do caso
clínico, Viganò considera que “a evidência intervém no sentido etimológico, como reforço
para ver” (VIGANÒ, 2010b, p. 478), afastada da dimensão de uma interpretação do clínico
que assumiria o valor de ‘supervisão’ do trabalho de discussão dos casos. Para explorar essa
idéia, o autor indica a homofonia oferecida pela língua francesa à palavra evider [perfurar]
como um modo interessante para designar a operação da evidência de “furar a imagem
produzida na narração do caso em um ponto de indício onde se apresenta a transferência”
(VIGANÒ, 2010b, p. 478) como eixo da clínica. Dito de outro modo, trata-se de recolher no
plano do texto da construção as ‘perfurações’, as escansões produzidas por um significante
que age no après-coup de um ato clínico, como o que evidencia a resposta do paciente no
processo terapêutico.
O método da construção do caso permite, portanto, tratar o tema da evidência na saúde
mental, preservando o valor metodológico do caso clínico e a importância da prática de
apresentação dos casos para a avaliação coletiva da condução clínica de uma equipe. Isto
decorre da proposição do algoritmo 68 psicanalítico, utilizado não somente para evidenciar o
modo mais adequado de leitura do texto do caso no âmbito da saúde mental, mas também para
transmitir o modo como a prática analítica coloca em evidência as modificações do sintoma
no curso do tratamento. Com isso, concluímos que “a evidência clínica vale para qualquer
prática de tratamento com a condição de não tornar absoluta uma técnica, dando-lhe o seu
valor de axioma” (VIGANÒ, 2010b, p. 479). Essa é uma via aberta pela metodologia de
pesquisa da construção do caso que, ao aplicar o valor axiomático das estruturas subjetivas
descobertas por Freud e Lacan, marca a sua contribuição para o tema da avaliação e da
evidência clínica na saúde mental.
Seguir o caminho inverso ao da ciência, tanto no tratamento quanto na sua avaliação,
implica sustentar a política lacaniana do sintoma de “renunciar a atribuição imaginária dos
números, e sua ilusão de tornar tudo possível, para circunscrever o real” (VIGANÒ, 2010b, p.
476), o impossível de mensurar das variáveis subjetivas do gozo. Enquanto a ciência
contemporânea constrói suas evidências, atribuindo-lhes o valor de certeza e de
68
Definição de algoritmo: processo de cálculo ou de resolução de um grupo de problemas semelhantes em que se estipulam,
como generalidade e sem restrições, regras formais para a obtenção do resultado ou da resolução do problema. Fonte:
Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 1975, p. 68.
86
universalidade, Lacan nos ensina que é suficiente dar um estatuto rigoroso e transmissível à
estrutura subjetiva e à operação analítica, sem que seja necessário encobrir com um valor
universal os algoritmos que acrescenta ao estudo dos casos. Nesse caminho, prosseguiremos
com algumas considerações sobre a prática psicanalítica da apresentação de casos e da
verificação da experiência clínica que concernem à formação do psicanalista e à transmissão
da política psicanálise.
2.2. A construção do caso clínico e a transmissão da psicanálise
Como referência para explorar a proposta da construção de casos pelo viés da
transmissão da psicanálise, apresentamos a temática proposta na XXX Jornadas da École de
la Cause freudienne, realizada em Paris, no ano de 2001. O tema indicado para esse evento,
‘Como analisamos [os casos] hoje’, implicou muitos analistas de orientação lacaniana na
importante tarefa de aprofundar e refletir sobre sua prática clínica nos tempos atuais. Nesse
contexto do movimento psicanalítico na França, notava-se uma tensão existente entre a
perpetuação da tradição clínica da psicanálise e a prática do ato analítico tal como foi
transmitido por Jacques Lacan. A temática dese
2.2.1. O relato e a narrativa do caso
O trabalho intitulado O relato de caso, crise e solução, apresentado por Eric Laurent
nessas Jornadas, em Paris, tornou-se referência para a discussão levantada ao longo do evento
em relação ao método empregado para apresentação e construção de casos clínicos. Ao
introduzir o tema, Laurent assinala que “O método é de tradição na disciplina e ele não é sem
críticas” uma vez que “o prestígio da ciência e da série estatística arruína, nas ciências
humanas, o brilho do caso único” (LAURENT, 2001, p. 19). Convergindo com a discussão
apresentada sobre a metodologia clínica da construção do caso, Laurent considera a existência
de uma crise na tradição do relato do caso que não se limita ao campo da psicanálise, mas que
também alcança o campo das ciências humanas, muitas vezes, fascinado pela série estatística
em detrimento do caso singular. O desafio que se coloca, então, é o de “escrever a
contingência do caso na necessidade” (LAURENT, 2001, p. 19) das descrições seriadas e
classificatórias.
Laurent (2001, p. 19) aborda a “crise do relato do caso em Psicanálise” a partir do fato
“de não se saber mais muito bem como redigi
epistemológica das classificações, que nos faz perceber a função de toda classificação como
uma nominação de uma ‘individuação’.
Do ponto de vista da psicanálise, ‘nomear o caso’ é um dos nomes da lógica da
experiência analítica e de sua ética do bem-dizer, que orienta na transferência o dizer do
analisante e o dizer interpretativo do analista. ‘Um caso’, por sua vez, é designado como tal
quando se testemunha a incidência lógica de um dizer no dispositivo clínico como uma
orientação na direção do tratamento de um problema real, de um problema de gozo. Se
observarmos essa gravitação da lógica significante no campo do gozo, então, poderemos falar
de caso, no sentido em que encontramos a palavra “casus”, em latim, como ‘isso que cai’ da
regulação simbólica e que é contingência “infeliz”, encontro direto com o real. A questão que
se coloca, então, seria a de como inscrever a particularidade da lógica do sintoma em cada
caso nos tipos de classificações dos atuais manuais diagnósticos. Para abordar esse
questionamento, Éric Laurent apresenta um breve histórico sobre a crise da tradição da
apresentação de caso e as soluções possíveis a serem traçadas como proposta para o
estabelecimento de um método clínico que considere a transferência e o sintoma em sua
singularidade.
Ao abordar a crise do relato do caso, com base no ‘modelo freudiano’, Laurent
caracteriza o início da narrativa do caso freudiano, a partir do modelo do romance goethiano,
ao observar que a narração dos sofrimentos de Dora (FREUD, 1996)69 se assemelham, em sua
forma de expressão, aos sofrimentos do jovem Werther que atravessaram o idealismo alemão.
Entretanto, esses relatos inauguraram um modelo baseado no relato do sonho e suas
associações partindo da forma original desenvolvida por Freud em sua Interpretação dos
Sonhos [Traumdeutung] (FREUD, 1996), na tentativa de apreender e transmitir a experiência
de uma análise. Freud foi capaz de formular um modo de narrativa, conseguindo integrar a
sessão analítica em um mesmo relato contínuo do diálogo do sujeito com seu inconsciente.
Com efeito, Freud pôde transmitir a Abraham e a Ferenczi seu modo próprio de narração,
marcado pelo estilo romântico que continuou a ser empregado na direção dos prolongamentos
do romance histórico alemão e dos sonhos apresentados, de certo modo, como uma ficção.
Laurent (2001) ressalta que o desdobramento do romancista e de sua ficção está presente na
obra freudiana, conforme observado na leitura de ‘Gradiva’ de Jensen (FREUD, 1996)70 e dos
romances biográficos de heróis culturais, como o Leonardo da Vinci (FREUD, 1996) 71 . A
69
Fragmento da Análise de um Caso de Histeria [1905].
Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen [1907].
71
Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância [1910].
70
89
partir da Primeira Guerra Mundial e do estudo sobre “O homem dos lobos” (FREUD, 1996) 72
- ultimo ‘caso’ freudiano a tomar essa forma clássica de “relato do caso” – podemos, então,
notar a ruptura freudiana com esse formato de narrativa.
Na virada do ano 1920, a “crise da interpretação” instaura um impasse no formato do
‘relato do caso’, na medida em que os psicanalistas começam a lidar com o sintoma como o
que resiste ao desvelamento inconsciente, ao invés de tomá-lo, a partir da associação
triunfante que vem à tona no sonho, conforme o modelo freudiano. O relato do caso passa,
então, a ter que dar conta das dificuldades de cada analista diante da extensão da psicanálise à
clínica das psicoses em que, por exemplo, o sonho não traça seu curso. A unidade da sessão
de análise se torna conteúdo de relatório dos analistas, no intuito de fazer coincidir tais relatos
com a experiência de uma análise, não considerando mais o destino de um sujeito, mas a
apresentação do fato memorável extraído de uma sessão. Desse modo, a forma curta da
apresentação dos casos passa a prevalecer, com a extração de momentos cruciais de uma
sessão.
Anos depois, Melanie Klein (1991) inventa uma nova narrativa, partindo da
modalidade do ‘bloco de notas’ de sua experiência, na qual relatava seus casos sessão por
sessão. O ‘material’, imediatamente traduzido em termos ‘inconscientes’ pela analista, se
diferencia da ordenação dos relatos freudianos. Segundo Laurent, o interesse de Klein estava
centrado no que o autor denomina como sendo a “epifania 73 própria de cada sessão”
(LAURENT, 2001, p. 23) pelo modo como descrevia a manifestação do inconsciente na sua
materialidade e a demonstração do ‘saber-fazer’ do psicanalista. Laurent assinala, ainda, a
dificuldade da analista em tornar público o relato de seus casos como um problema que
consegue desviar somente após a sua morte, nos anos 1960, quando a ‘análise de uma criança
de dez anos’, conduzida em 1940, pôde ser publicada no formato de uma monografia. Esse
formato monográfico de apresentação de casos foi o último trabalho a ser publicado. Em
seguida, as narrativas passaram a assumir o formato de vinheta clínica, como uma forma
breve de apresentação da prática analítica, com base na ‘ilustração’ de um aspecto parcial
dessa experiência.
No contexto da ‘crise do relato do caso’, Éric Laurent (2001) situa a evolução do
método escolhido por Jacques Lacan com a sua tese de psiquiatria, desenvolvida em torno do
72
História de uma Neurose Infantil [1914-1918].
Epifania é uma súbita sensação de realização ou compreensão da essência ou do significado de algo. O termo é usado nos
sentidos filosófico e literal para indicar que alguém "encontrou finalmente a última peça do quebra-cabeças e agora consegue
ver a imagem completa" do problema. Fonte: http://pt.wikipedia.org/, acessado em 12/02/2012.
73
90
conceito de ‘personalidade’ (LACAN, 1987) 74 , partindo do método jaspersiano em direção à
concepção francesa da ‘psicologia concreta’. Com esse trabalho, Lacan almeja a publicação
de monografias exaustivas sobre o estudo do caso, no intuito de testemunhar a verdade do
sujeito em questão. Trata-se, segundo Laurent, de um “verdadeiro ‘single case experiment’,
apoiado sobre a unidade da ‘personalidade’” (LAURENT, 2001, p. 24), cuja perspectiva
Lacan manterá parcialmente ao longo de seu ensino. É, então, na passagem de sua tese para o
início de seu percurso na psicanálise que Lacan abandona o método exaustivo de relato de
caso, substituindo a exaustão pela coerência do nível formal do estabelecimento do sintoma.
Na medida em que torna lógico o inconsciente, Lacan direciona o relato do caso psicanalítico
para a concepção do ‘envelope formal do sintoma’ (LACAN, 1976, p.40) como um tipo de
matriz lógica. Do mesmo modo, a estrutura lógica e topológica dos casos freudianos começa a
ser apresentada por Lacan com uma nitidez incomparável na literatura psicanalítica.
Na leitura comentada dos casos de Freud, Lacan eleva alguns desses casos ao estatuto
de paradigma, por ser capaz de demonstrar as propriedades formais das manifestações do
inconsciente freudiano. Ao apresentar os casos paradigmáticos de Freud, Lacan demonstra o
que diz respeito à estrutura lógica dos casos, concebendo o sintoma como pertencente a uma
classe diagnóstica e, ainda, a partir de elementos singulares que se repetem e que se permutam
na vida de um sujeito. Nessa perspectiva, podemos abordar a leitura dos comentários
lacanianos a respeito dos trajetos do caso Pequeno Hans, em torno do vazio da fobia, do
esquema R, em que demonstra as arestas da psicose do caso Schreber, com os significantes
isolados por Freud, do quarteto de Dora articulado ao caso da Jovem Homossexual para
indicar os modos de transformações da sexualidade feminina em torno do significante do
desejo, ou ainda, do caso do Homem dos ratos, em que Lacan apresenta a ‘combinatória
geral’ das formas do labirinto obsessivo.
A ênfase dada por Lacan para a combinatória inconsciente, em cada um desses casos
paradigmáticos, redefine os ‘falsos dilemas’ apresentados pelo movimento psicanalítico
americano. Laurent (2001, p. 26) cita, então, alguns desses dilemas: “é preciso ou não ler os
textos de Freud como os de um fundador? Uma verdadeira ciência tem fundadores? Será que
não perdemos nosso tempo lendo os textos princeps?”. O autor comenta tais questionamentos
como distorções retóricas, as quais a crítica norte-americana considera que Freud se enganou,
falsificou seus resultados e apresentou desvios injustificáveis entre suas anotações de sessão e
publicação. Desse modo, Laurent (2001, p. 27) retoma a discussão a respeito de uma suposta
74
Da Psicose Paranóica em sua relações com a Personalidade [1932].
91
‘cientificidade da psicanálise’, afirmando que “se ela fosse uma ciência exata, e não um
discurso, nós não teríamos mais nada a aprender de Freud, tudo seria transmitido
integralmente”, ressaltando a importância de ‘ir mais além de Freud’ para repensar a
psicanálise e colocar à luz os novos conceitos para pensar seu objeto, como demonstra o
‘retorno a Freud’, de Lacan.
Como, então, inscrever a particularidade da construção lógica de cada sintoma nos
tipos de classificações empregados pelo método científico? Em primeiro lugar, Laurent
assinala que o caráter de coerência lógica do sintoma apresentado por Lacan, ao mesmo
tempo em que afirma a existência de ‘classes de sintomas’, efetua a desconstrução dessas, já
que a nominação do sintoma remete, necessariamente, a um impossível: ao que da pulsão se
recusa ao significante. Em segundo lugar, o autor acrescenta que enfocar o ‘envelope formal
do sintoma’ não implica abordar ‘o todo do caso’, pois “é preciso que o sujeito ‘reconheça o
lugar que ele ocupou’ nessa partida jogada logicamente, como todos os grandes jogos”
(LAURENT, 2001, p. 28). Essa parte ocupada é, segundo Laurent, a via pela qual um sujeito
poderá apreender algo da verdade que lhe é revelada no curso de sua análise. Enquanto que o
lugar dessa parte ocupada seria o que inicialmente Lacan definiu como o lugar do desejo e, no
momento seguinte, em que modifica sua teoria do sintoma, como o lugar do gozo. Assim, a
construção formal da lógica de cada sintoma gira em torno de um impossível que inscreve um
‘lugar vazio’, que deve ser reconhecido pela comunidade psicanalítica como crucial para
considerar o real em jogo em um tratamento.
Esse aspecto se desdobra, contudo, no âmbito da transmissão da psicanálise diante do
questionamento sobre o modo como o discurso analítico constitui sua comunidade expositores
dos relatos clínicos, na medida em que reconhecem a evidência que lhes é conferida pela
narrativa dos casos. É no avesso de uma via discursiva que estabelece uma língua comum
sobre o que seria um caso ou uma ‘análise ideal’, com resultado previsível que o discurso
analítico procede. Convém considerar que o relato do caso comporta diferentes formas
pautadas nas diversas comunidades psicanalíticas, sendo a distância estabelecida entre esses
diversos modelos o lugar onde o rigor do trabalho de cada analista e sua presença se faz
escutar. Nesse sentido, o caso clínico produz, ao mesmo tempo, uma inscrição e um
afastamento pertinente, conforme indicado por Lacan através da experiência do passe. Esse
dispositivo, no qual cada analisante relata seu próprio caso no final de sua análise,
sustentando, assim, a demonstração e o testemunho de sua experiência de análise, é o modelo
da transmissão da psicanálise, proposto por Lacan, do qual podemos nos apropriar para a
construção dos casos.
92
Ao finalizar a discussão sobre a diversidade de formatos do relato psicanalítico dos
casos, Laurent aponta para a via do discurso psicanalítico, localizando-o no contraste que se
produz entre uma linguagem heterogênea e uma linguagem universal presentes no campo
clínico. Desse modo, o autor afirma que “é preciso atualizar uma clínica dos sintomas,
estabelecida por cada sujeito” (LAURENT, 2001, p. 31), considerando o que é nomeável e o
que é inominável no uso que se faz da língua empregada e estabelecida por cada comunidade,
seja a psicanalítica ou a científica. Tal consideração implica a tarefa de manter vazio o lugar
ocupado pelo prêt-à-porter das classificações diagnósticas segregativas, dando lugar às
distinções traçadas ‘caso a caso’. Laurent aposta, assim, na solução da crise do relato do caso
no contexto da diversidade do campo de saber clínico, dando acento à demonstração da
particularidade dos casos, como uma direção comum para que cada um exponha o modo
como responde ao caso que acompanha e o modo como se defronta com o real em jogo em
cada caso.
Notas sobre a construção do caso
Avançando na discussão desenvolvida por Éric Laurent (2001), indicamos o trabalho
de Pierre Malengreau, intitulado Notas sobre a construção do caso (MALENGREAU, 2001),
também apresentado na XXX Jornadas da ECF, em 2001, em mesa de debate sobre a
construção do caso clínico. A importância dessa apresentação consiste na discussão sobre a
possibilidade de especificar um modo de apresentação clínica que favoreça a elaboração de
um impasse que se instaura no processo analítico. Questão que comporta para Malengreau
uma dupla abordagem, que diz respeito tanto ao material clínico apresentado quanto ao uso
que fazemos desse material para os mais variados fins, seja o de ensino, o de transmissão seja
o de demonstração da experiência analítica. Essa questão se desdobra, ainda, no âmbito da
pesquisa em psicanálise uma vez que certo uso da clínica e, portanto, do caso pode,
ocasionalmente, incidir sobre a própria clínica de onde o extraímos. Torna-se necessário,
portanto, questionarmos o uso que fazemos dos casos nas discussões clínicas e para fins de
ensinamento psicanalítico, indagando, ainda, se existe uma maneira própria da psicanálise
expor os seus casos.
A clínica psicanalítica exige uma elaboração dos casos, seguindo uma perspectiva que
supõe uma abordagem do caso, que inclui a orientação de sua experiência em direção ao real.
Malengreau apresenta as duas dimensões do real que se conjugam na experiência clínica que,
para a psicanálise, é “a experiência de um encontro com um real que se esquiva.”
(MALENGREAU, 2001, p. 45). Desse modo, o autor assinala uma dimensão concernente ao
93
real como um encontro, enquanto que a outra concerne ao real como fora do sentido. Uma
abordagem do caso coerente com essa orientação da psicanálise, em direção ao real, supõe,
portanto, a inclusão da contingência na sua própria construção. Assim, a clínica psicanalítica
interroga os próprios psicanalistas para que possam considerar o que sua prática contém de
‘inusitado’, ou seja, de um ‘acaso’ que atravessa a experiência analítica e que, na orientação
lacaniana, podemos transmitir em sua especificidade.
Que lugar damos, afinal, ao real da clínica no modo de relatar nossos casos? Pierre
Malengreau indica uma observação de Jacques-Alain Miller, extraída da ‘Conversação de
Arcachon’, (MILLER, 1997) para desdobrar essa questão, situando do relato dos casos os
seus processos simbólicos. Malengreau faz referência a uma nota extraída dessa conversação
que deflagra e opõe duas abordagens do caso, também consideradas como duas concepções da
clínica. A primeira abordagem concerne a uma concepção de clínica, que o autor nomeia
como objetiva. A clínica objetiva se apóia sobre o que se observa a partir de um ponto de
vista que pode ser ‘inocente ou advertido’ no uso do significante-mestre para fins de
identificação. Nessa concepção, a noção do gozo do sintoma se transforma em instrumento de
observação, perdendo, com efeito, seu rigor conceitual por não ser designado a partir do real
da experiência. A segunda abordagem clínica destacada por Malengreau como
demonstrativa, apoia-se sob um modo de construção do caso que considera a
impossibilidade de se dizer tudo. Essa concepção clínica, fundada sobre a temporalidade
freudiana do après-coup, necessita de instrumentos que não dependem dos métodos da
observação, mas de instrumentos de lógica. Para desenvolver essa concepção, o autor discute
a articulação entre a noção intuitiva da série e a teoria das sequências a partir de outra
referência de Jacques-Alain Miller, em seu texto “Homologue de Malaga” (MILLER, 1993).
A experiência analítica é uma experiência de seriação de significantes que direciona
um sujeito a apreender os diferentes traços, lembranças e identificações que marcaram a sua
história. É desse ponto de partida que Malengreau situa a seriação significante no processo de
uma análise como o “passo a passo de uma colocação em série daquilo que importa para o
analisante” (MALENGREAU, 2001, p. 47) tal como localizado na construção do caso.
Entretanto, ressalta que essa localização das identificações e dos significantes em série não
são especificamente referentes ao método psicanalítico e, por isso, podem levar ao que Lacan
denomina como o “engano comum da compreensão” (LACAN, 1998) 75 . Descrever a ordem
simbólica na qual um sujeito está enredado não é específico de uma prática orientada em
75
A direção do tratamento e os princípios de seu poder [1958].
94
direção ao real. Para precisar a especificidade da experiência analítica seria necessário, então,
que nas construções de caso, a falta de um significante fosse introduzida na cadeia dos
significantes que determinam o sujeito, considerando essa falta como ‘não acidental’. Este
seria, portanto, um modo preciso do método analítico indicar a ‘falta’ abordada em sua
experiência e, consequentemente, o real em jogo em sua práxis.
Sobre esse aspecto, o autor indica dois tipos de sequência, extraídos da teoria das
sequências apresentada por Miller (1993), que podem nos servir para conceber uma
construção do caso que convenha à psicanálise. A primeira sequência, a dita ‘normal’, é
aquela que se extrai de ‘um todo’ e que é uma sequência sem surpresa, pois se apresenta de
um modo inteiramente determinado. Malengreau assinala que, frequentemente, as construções
de caso se apoiam nessa sequência convincente em sua forma. E indica um outro tipo de
sequência, apresentada por Jacques-Alain Miller, que representa uma aproximação entre a
lógica do tratamento e a posição feminina. Essa sequência se distingue da anterior ao se
apoiar sobre ‘a falta’, designada por Lacan nos termos do ‘não-todo’ e que, por isso comporta
‘a falta’ como um buraco na própria série. Para exemplificar essa operação lógica com a
sequência indicada, o autor se utiliza dos elementos de um ‘Jogo de Batalha’, que permite
introduzir na sequência um elemento aleatório, uma incógnita capaz de fornecer ao jogo uma
estrutura de encontro que implica o desejo do jogador.
A construção do caso em psicanálise pode encontrar sua perspectiva lógica nesse
segundo tipo de seriação. Trata-se, então, de construir uma sequência que possibilite o
aparecimento, na própria sequência, não da falta de um termo, mas da parte que confere a
incógnita que ela comporta e, que consiste, concretamente, em fazer aparecer na sequência a
incidência do ‘não programado’. Nesse sentido, Malengreau conclui que “a única sequência
que conviria à construção do caso para a psicanálise seria, então, uma sequência que incluiria
a parte inusitada da experiência” (MALENGREAU, 2001, p. 47), como demonstrado em
certos testemunhos de passe que podem servir de exemplos para as nossas construções. No
entanto, o autor adverte quanto à possibilidade de uma objeção a essa concepção, cuja
sequência, depois de construída, se torna uma descrição do caso; o que seria subestimar a
proposição de Lacan de considerar o que da experiência analítica concerne ao real do
encontro.
Nessa perspectiva, Malengreau (2001) afirma que a inclusão do ‘como que por acaso’
na construção do caso não vale somente para a sequência construída, mas também para o uso
que fazemos dessa sequência para a transmissão da lógica extraída de cada caso. A clínica
demonstrativa se mostra, por isso, indissociável da formação do analista e em oposição à
95
proposta da clínica objetiva “que espera de seu parceiro amor e reconhecimento”
(MALENGREAU, 2001, p. 47) pela definição de uma língua comum empregada na exposição
de casos clínicos, que, com efeito, encobre o real da contingência clínica com resultados
previsíveis e ilustrativos de uma determinada teoria. Em contraposição, a clínica
demonstrativa
se
oferece
como
“um
parceiro
que
tem
chance
de
responder”
(MALENGREAU, 2001, p. 47) ao convite da formalização lógica de um material sequencial
que torna possível a construção coletiva dos casos, a partir de uma discussão que se inscreve
em torno do ‘não programado’ da experiência clínica, que deve ser reconhecido em uma
transferência de trabalho. Essa construção formal da lógica de cada caso se demonstra pelo
testemunho da experiência analítica que será apresentado, em seguida, como modo
privilegiado de transmissão da psicanálise empregado pela metodologia da Construção do
Caso Clínico.
2.2.2. Testemunho e transmissão da psicanálise
Tentemos penetrar um pouco na noção de testemunho. Será que o testemunho também é, pura
e simplesmente, comunicação? Certamente que não. É claro, no entanto, que tudo aquilo a
que damos um valor enquanto comunicação é da ordem do testemunho. A comunicação
desinteressada é, no limite, apenas um testemunho mal- sucedido, ou seja, alguma coisa sobre
a qual todo mundo está de acordo. Cada um sabe que é o ideal da transmissão do
conhecimento. Todo o pensamento da comunidade científica está fundado na possibilidade de
uma comunicação cujo termo se decide numa experiência a respeito da qual todo o mundo
pode estar de acordo. A própria instauração da experiência é função do testemunho. Nós
lidamos aqui com outro tipo de alteridade. (LACAN, 2002, p. 49-50, grifo nosso) 76 .
A partir dessas primeiras referências à noção de ‘testemunho’, empregadas no início
do ensino de Lacan, discutiremos o ‘ato de testemunhar de uma experiência clínica’ na prática
da construção dos casos, conforme a indicação de alguns autores (VIGANÒ, 2010b, p. 471;
LAURENT, 2001, p. 31; MALENGRAU 2001, p. 47). Como ponto de partida, vale retomar o
fio condutor do texto Construções em Análise (FREUD, 1996, p. 276-278), na passagem em
que Freud sustenta a tarefa da construção preliminar dos casos e, com isso, se questiona sobre
‘o modo como o analista comunica, transmite suas construções’ aos seus pacientes, incluindo
aí a função do testemunho. Nessa passagem, demarcamos os esforços de Freud na transmissão
do método e dos princípios da práxis analítica, marcada em sua radical diferença em relação
aos métodos da sugestão e do empirismo lógico científico. Essas considerações nos levam a
destacar as primeiras referências lacanianas sobre a dimensão do testemunho na experiência
analítica, uma vez que estas já apontam para uma perspectiva de transmissão da psicanálise,
que se afasta da comunicação e da compreensão consensual de seus princípios clínicos e
76
O Seminário, livro 3: as psicoses [1955-1956].
96
teóricos. Trata-se de uma perspectiva que inclui a função do ‘testemunho de um encontro com
um real’, não apenas na instauração da experiência clínica, mas também na demonstração do
modo como operação analítica recolhe seus resultados em cada caso.
Esse é, então, o ponto de onde partiremos para abordar a função do testemunho na
‘clínica demonstrativa’, apoiada pelo texto da construção do caso clínico. Uma primeira
hipótese nos direciona para uma breve reflexão sobre a dimensão do testemunho articulada à
escritura clínica, que se produz na construção dos casos como um instrumento lógico que se
oferece à pesquisa do analista tanto no âmbito de sua formação, quanto no âmbito da
transmissão de sua ação clínica e política a um público mais amplo e de formações diversas.
Para seguir com essa reflexão, convém retomar algumas referências que elucidam a
concepção do testemunho ao longo do ensino de Lacan, designado como modo privilegiado
de transmissão, ainda que essa concepção acompanhe algumas variações, no que tange à
invenção do dispositivo do passe.
No final dos anos 1960, Lacan constitui ao dispositivo do passe, deixando-o à
disposição daqueles que, no final de sua análise, se arriscam a testemunhar sobre a “verdade
mentirosa” (LACAN, 2003, p. 569) 77 de uma enunciação que se recolhe na experiência
analítica. A dimensão do testemunho é introduzida nesse dispositivo para que se transmitam
os momentos cruciais de um percurso de análise, no ponto em que o mais singular da
experiência de uma análise se enlaça ao epistêmico do ensino da psicanálise e ao político de
ensino sem testemunho” (BERENGUER, 2009, p. 73). E isto implica considerar que toda e
qualquer proposição designada por Lacan, sob a rubrica do ensino e transmissão em
psicanálise, se relaciona fundamentalmente com a dimensão do testemunho. A partir desse
ponto de vista, Macedo dá prosseguimento aos comentários de Berenguer e recolhe os
numerosos usos da noção de testemunho, estabelecidos por Lacan ao longo de seu ensino,
observando, nas versões brasileiras, a tradução do termo testemunhar por atestar, demonstrar,
verificar ou evidenciar. A autora considera que essas traduções são dignas de nota já que o
estatuto do testemunho no ensino de Lacan “não parece monolítico, apresentando-se sob uma
diversidade de modalidades e perspectivas” (MACEDO, 2010, p. 02), atravessadas pela
posição de analisante, seja no ato de testemunhar o próprio inconsciente na experiência
analítica, seja no de testemunhar os impasses na direção do tratamento no dispositivo da
supervisão analítica.
Se podemos situar o testemunho mais além do dispositivo do passe e, portanto,
incluído nos demais dispositivos que compõem a formação do analista, como aproximá-lo da
proposição metodológica da construção dos casos em seu viés de pesquisa clínica em
psicanálise? Para abordar essa interrogação, retornamos ao nosso ponto de partida, que aponta
para a escritura clínica como um instrumento metodológico da construção do caso,
fundamentada sob a égide de um testemunho, ainda que esta não corresponda diretamente ao
dispositivo do passe, ou seja, ao ato de testemunhar a própria experiência de uma análise,
quando esta chega ao seu percurso final. É necessário, então, prosseguir nesse argumento,
dando um próximo passo em direção à dimensão do testemunho como correspondente à
posição de analisante, que assume um analista na formalização de uma pesquisa clínica ou de
um relato sobre a condução do tratamento diante dos limites do saber em circunscrever o real
em jogo em cada caso. Nessa direção, acompanharemos os caminhos trilhados por Lacan que
conduzem a variadas acepções da noção de testemunho para demarcar aquela que fundamenta
o texto da construção do caso clínico como instrumento de demonstração, de verificação de
uma lógica do caso que evidencia, ao mesmo tempo, o limite do discurso e da formalização de
um saber “onde o discurso não diz, testemunha” (BERENGUER, 2009, p. 70).
Em seus seminários, Lacan faz um uso bastante livre e heterogêneo do termo
testemunho, tomando-o tanto em seu aspecto alusivo em que “nem sempre o que se pretende
testemunhar é o que efetivamente se testemunha”, quanto declarativo, quando se “recolhe
aportes de seu auditório e fragmentos de sua prática enquanto demonstração do que diz e
ensina” (MACEDO, 2010, p. 04). Nota-se, ainda, nos seminários de Lacan, o uso do termo
testemunho, designado como um traço de estilo como idéia relacionada ao real da experiência
98
analítica, na qual “um estilo testemunha” (MACEDO, 2010). Ao discorrer sobre essas
diferentes acepções do testemunho no ensino de Lacan, a autora nos adverte quanto ao ‘fio’
deixado por Freud, como sendo aquele do qual Lacan fez uso em seu próprio ensino,
mantendo-se na posição de analisante. A autora estende esse trabalho de tessitura feito por
Lacan em torno do real da experiência clínica à produção de uma enunciação-escrituradiscurso, como resultado obtido de sua posição de analisante que o levou a tecer cada uma
dessas produções, seguindo a recomendação de Freud de exigir para cada descoberta um novo
conceito.
Servindo-se do fio tênue da obra freudiana, Lacan testemunha em sua posição de
analisante, a cada vez e sempre de modo inédito, os limites do saber em circunscrever o real,
“esse ponto de opacidade que descompleta os conjuntos pretensamente universais, apontando
inconsistências que desestabilizam o estabelecido” (MACEDO, 2010, p. 05) pela teoria. Essa
observação nos permite retomar a incidência da dimensão do testemunho na posição de
analisante para demarcar uma correspondência com a posição assumida pelo analista na
construção dos casos e na elaboração de uma pesquisa clínica, na qual algo que se testemunha
no ‘après-coup’ da experiência analítica conduz a novas formulações teóricas, fazendo
avançar o ensino e a transmissão da psicanálise.
Voltemos, então, para as passagens nas quais Lacan se serve da noção do testemunho,
ao longo de seus seminários, para chegar até aquelas que poderiam nos remeter à
demonstração ou à verificação da experiência clínica que se produz através da escritura do
caso clínico. No Seminário, livro 3 (LACAN, 2002, p. 49-54), encontramos pela primeira vez
a concepção de testemunho, designada a partir do testemunho aberto e “verdadeiro” do
psicótico que, como mártir, testemunha do inconsciente de modo diferente do testemunho do
neurótico, que requer uma decifração. Ao recolher essa passagem, Macedo (2010) destaca
que, do lado do neurótico, a noção do testemunho encontra-se intimamente articulada à
herança freudiana da interpretação como ‘decifração da mensagem cifrada do inconsciente’,
enquanto que, do lado do psicótico, essa concepção se remete ao modo como se testemunha o
inconsciente ‘a céu aberto’. Na leitura do Seminário, livro 7 (LACAN, 1997), a autora
assinala no uso do termo ‘testemunhar’ partindo de uma primeira reviravolta, anunciada por
Lacan ao interrogar o mal a partir do gozo, e não do Bem ou da Lei simbólica: “[...] estou
testemunhando perante vocês de que não há lei do bem, senão no mal e pelo mal, devo eu
prestar esse testemunho?” (LACAN, 1997, p. 232). Em seguida, Lacan aponta para a questão
da sublimação, na obra de Marquês de Sade: “Essa obra é um testemunho?” (LACAN, 1997,
p. 243). No Seminário, livro 10 (LACAN, 2005), Macedo observa que Lacan retoma a
99
testemunhar algo que concerne ao indizível do “gozo opaco do sintoma, que exclui o sentido”
(LACAN, 2003, p. 566) 79 . A escritura topológica formalizada por Lacan evidencia, através do
uso lógico-clínico dos nós, não somente os limites do simbólico em representar o real, mas,
ainda, os efeitos da inércia significante inerente à tentativa de ‘significantização’ do real que
resiste ao sentido.
O percurso realizado em torno da concepção de testemunho nos leva a considerar que
o ensino de Lacan, proferido em seus seminários, seria “ele mesmo um testemunho”
(MACEDO, 2010, p. 7). Entretanto, Macedo toma o testemunho de Lacan não exatamente
pela via mártir, daquele que viveu até o fundo uma experiência e que, portanto, pode dar o
seu testemunho disso que foi vivido, mas pela via do que Lacan pôde testemunhar da
experiência analítica “no ponto em que esta toca os confins do saber em seu litoral com o
real” (MACEDO, 2010). Essa autora aproxima, então, o testemunho de Lacan a uma vertente
que designa o ato imperfeito de autor de “dar existência” a uma narrativa que porta, em si
mesma, uma insuficiência. Eis aí uma via a ser retomada no âmbito da escritura clínica, que
atesta a função do testemunho da experiência analítica no ponto em que um analista assume
uma posição de analisante em relação à insuficiência do saber em representar o real da clínica,
sendo necessário, com isso, construí-lo a partir da narrativa de cada caso para que não caia no
saber estabelecido.
A perspectiva do testemunho como ‘mártir’ é comentada pela autora a partir de
literária e social, seguiremos a via da narrativa clínica como aquela que mais se aproxima da
noção da escritura como testemunho do real em jogo na experiência analítica.
No final de seu ensino, Lacan considera que “o inconsciente é alguma coisa no real”
(LACAN apud MACEDO, 2010, p. 03) e evoca a escritura como o “apoio” no qual concentra
seus esforços de interrogar o saber inconsciente como impossível de se ‘saber todo’. Com essa
passagem, incluímos na perspectiva traçada por Macedo, os momentos em que o testemunho
de Lacan se apoia na escritura clínica dos matemas, dos discursos e da topologia diante do
real que incide na experiência da psicanálise. Essa é, então, uma via possível para abordamos
a função do testemunho apoiado na escritura clínica 80 , que se produz na metodologia de
pesquisa da construção do caso clínico, seja pela produção de matemas ou pela leitura das
escansões extraídas do texto da construção que demonstram a lógica de um caso. Para avançar
nesse argumento, convém retomar algumas considerações sobre o instrumento lógico do texto
da construção do caso, que emprega a narrativa clínica como ‘ato de testemunhar’ a condução
de um tratamento.
Ao indicarmos a escritura clínica como um instrumento lógico da metodologia da
Construção do Caso Clínico, que propicia uma demonstração dos momentos cruciais de um
acompanhamento clínico, é importante demarcar algumas condições para que um testemunho
se desenvolva. Para se chegar a uma ‘demonstração’ por intermédio do texto da construção de
casos, é necessário situá-lo entre dois extremos que devemos evitar: o da apresentação do caso
como demonstração da teoria, geralmente, reduzida ao diagnóstico diferencial do paciente, e
o da condução do tratamento reduzida à exposição de uma sorte de significantes da qual se
subtrai o real do ato, como no formato das narrativas exaustivas ou vinhetas clínicas
comentadas anteriormente por Eric Laurent (2001). O que se trata de demonstrar, portanto,
consiste em algo a ser apreendido em torno de um ato clínico que se constrói a posteriori, a
partir do que testemunha uma equipe clínica da fala de um sujeito em sua expressão pontual e
evanescente.
A escritura clínica como instrumento lógico da construção do caso inclui o testemunho
do encontro com o ‘não programado’ da experiência clínica e com o ‘indizível’ do gozo de
um sujeito que, ao ser recolhido por um analista, o leva a construir coletivamente as
80
Consideramos ser mais apropriado para designar o instrumento metodológico do texto da construção do caso o uso do
termo escritura, em detrimento do termo escrita clínica. Partimos de um raciocínio muito simples: enquanto a escrita requer
um ‘ato de autor’ de fazer existir uma narrativa, a escritura é um ‘ato que prescinde de autoria’, por produzir a formalização
de elementos lógicos (ou até mesmo jurídicos, como nos casos da escrituras públicas) por meio do que se pode testemunhar
de uma experiência. Nesse argumento, acrescentaríamos a questão de quem seria o autor do texto da construção do caso: o
paciente, o analista, a equipe clínica?. Do mesmo modo, nos perguntaríamos: ‘quem seria o autor das escrituras públicas de
bens imobiliários? Deixamos em aberto essas questões, pois seus desdobramentos ultrapassam os limites dessa pesquisa.
102
passagens, os reviramentos de uma lógica discursiva “até que algo se possa ler de real através
de escansões que extraem a letra subjetiva de gozo.” (VIGANÒ, 2009, p. 200). Considerando
que essas passagens não podem ser provocadas, estas poderão ser explicitadas somente a
posteriori, se estivermos atentos ao texto da construção do caso. A primeira escritura do caso
é levada ao debate como hipótese de construção, abolindo as citações do texto teórico para dar
lugar ao texto do caso, cuja sequência lógica da narrativa inclui um ‘ponto obscuro’, que faz
obstáculo na condução do tratamento. O debate clínico realizado em torno desse impasse
corresponde à construção coletiva do caso que, por sua vez, é retomada a partir de uma
segunda escritura, que inclui o testemunho de uma equipe como verificação da condução do
caso no trabalho clínico-institucional, podendo servir de material para a pesquisa de uma nova
teoria em torno do ato demonstrado no après-coup dessa construção coletiva. Convém
assinalar que esse instrumento metodológico permite realizar uma construção do caso como
verificação do trabalho em equipe através da demonstração do ato, desde que essa
demonstração não seja fornecida apenas por aquele que apresenta o caso.
A construção do caso, portanto, não se limita aos impasses, resistências ou obstáculos
que se colocam ao longo de um acompanhamento clínico, mas é a tentativa de introduzir uma
lógica às escansões do tratamento e, com isso, demonstrá-las logicamente. Essencialmente, o
método da construção do caso corresponde ao da verificação tal como aquela que se produz
na supervisão de casos, sendo, por isso, capaz de demonstrar o real em jogo no tratamento.
Entretanto, considerando que o real não se pode dizer e nem sequer representar, a lógica
torna-se a do testemunho, da descoberta ‘après-coup’ de uma escansão que surpreende no
momento em que se constrói, no silêncio da cadeia significante (VIGANÒ, 2009, p. 202). E
isso se reflete no trabalho clínico-institucional, na medida em que essa dimensão do
testemunho instaura o trabalho preliminar da construção dos casos como uma prática
vivenciada pela equipe na posição de aprendizes da clínica.
Ao pesquisar o tema do testemunho, concluímos que um de seus fundamentos designa
que “o saber se acumula no lugar do analisante” (MACEDO, 2010, p. 11) e é desse lugar que
devemos sempre partir para que se transmita e se inscreva cotidianamente, no trabalho
institucional, um ‘saber fazer’ com o real da experiência clínica. Essa concepção do
testemunho corresponde ao que Carlo Viganò indica como a função do terceiro (VIGANÒ,
2009, p. 203), que produz uma leitura do caso entre os relatos do analisante e do analista na
prática da construção dos casos tal como é desenvolvida nos dispositivos da supervisão ou do
cartel do passe, que concernem à formação do analista.
103
No âmbito da construção do caso realizada nos serviços de saúde mental, Viganò
retoma a função do terceiro, mas dessa vez, estabelecida pelo grupo, por uma equipe clínica
que, na posição de analisante, se envolve no trabalho de re-escritura do caso a partir do que
testemunha na leitura do texto da construção. Isto de diferencia, por exemplo, da prática da
apresentação de pacientes, desenvolvida nas instituições de formação em saúde mental, ao
incluir na função do ‘terceiro’ não uma platéia que assiste a entrevista preliminar de um
paciente, mas a leitura do texto da construção. Viganò (2009) relaciona, então, a escritura do
caso com a função do terceiro, como um instrumento para a demonstração lógica das
escansões que direcionam um tratamento, capaz de fomentar, ainda, a ‘autoridade clínica’ que
orienta o trabalho em equipe, como uma autoridade que não pode ser pré-constituída, mas
somente reconhecida a posteriori à construção de cada caso. Dessa observação, destacamos,
ainda, a diferença entre uma prática de estudo de caso, que poderá simplesmente narrar,
‘historicizar’ uma determinada teoria, sem testemunhar a contingência de cada encontro
clínico; e uma prática de construção, que testemunha, no plano da enunciação e da escritura
clínica, o ‘ponto cego’ da narrativa de um caso, sem engessar o impossível em jogo na
experiência.
Para concluir, convém pontuar algumas considerações que concernem ao estatuto do
testemunho no ensino e transmissão da psicanálise, não apenas relacionadas à experiência do
passe, mas ao que se transmite de sua política ao campo clínico atual. Se consideramos que as
questões levantadas por Lacan, em sua Proposição de 9 de outubro de 1967 (LACAN, 2003,
p. 251) fazem ressoar a dimensão do testemunho mais além do dispositivo do passe, isto
implica produzir alguns deslocamentos dessa experiência para demarcar, no âmbito da
formação do analista, seu constante trabalho na posição de analisante, seja em sua própria
análise seja na construção dos casos. Assim, a função do testemunho, configurada na
proposição lacaniana do passe, encontra maior alcance “via uma política da enunciação e,
porque não, de uma política do testemunho” (MACEDO, 2010, p. 10) de favorecer a
contingência do caso a caso com a construção de narrativas clínicas que apontam para o ‘furo
no saber’ como uma orientação que se transmite no campo heterogêneo de saberes sobre
clínica.
2.3. A Construção do Caso Clínico como metodologia de pesquisa na Saúde Mental
Em continuidade com a apresentação dos princípios e fundamentos que orientam a
metodologia de pesquisa clínica da Construção do Caso Clínico, concluiremos esse capítulo
104
indicando o desenvolvimento dessa proposta de pesquisa e de avaliação do trabalho clínicoinstitucional aplicada ao campo da saúde mental. Convém assinalar que essa proposta,
introduzida por Carlo Viganò, vem se difundindo, cada vez mais, entre analistas que
pesquisam, na universidade ou nas Escolas de Psicanálise, a prática psicanalítica aplicada aos
serviços substitutivos da rede de atenção psicossocial.
A discussão sobre a prática da construção de casos no campo da saúde mental recebe
destaque a partir da conferência de Carlo Viganò, proferida em 1997, no Seminário de Saúde
Mental, Psiquiatria e Psicanálise, no estado de Minas Gerais, sendo esta a ocasião em que a
proposta da Construção do Caso Clínico é apresentada pela primeira vez no Brasil como uma
contribuição da psicanálise para o trabalho em equipe. A publicação dessa conferência, que
resultou no artigo intitulado A construção do caso clínico em Saúde Mental (VIGANÒ, 1999,
p. 50), fomentou, ainda, o debate sobre o acompanhamento clínico dos casos entre estudantes
e profissionais de formações diversas que atuam nos serviços de atenção psicossocial,
inaugurados pelo movimento da reforma psiquiátrica. Com efeito, essa metodologia de
pesquisa clínica passou a ser discutida e empregada no esteio da aplicação e da transmissão da
psicanálise à clínica ampliada na saúde mental.
Como referência para explorar essa discussão, indicaremos duas importantes
publicações de psicanalistas que pesquisaram a contribuição da Construção do Caso à
psicopatologia e à saúde mental (FIGUEIREDO, 2004) e os desdobramentos dessa
Metodologia em Ato (TEIXEIRA, 2010) aplicada ao campo das pesquisas clínicas que se
desenvolvem nos serviços de saúde mental. Observaremos, portanto, diferentes modos de
aplicação da metodologia psicanalítica da construção dos casos. Mas, antes disto, é relevante
introduzir algumas pontuações sobre o tema da psicanálise aplicada, conforme as propostas
apresentadas por Freud e Lacan. A partir dessas pontuações, nos interessará refletir, então,
sobre os efeitos de transmissão que podem ser extraídos da aplicação dos princípios
psicanalíticos na prática coletiva em saúde mental, a partir da metodologia da construção do
caso clínico. O que equivale questionar de que maneira a aplicação da metodologia da
construção do caso, nesse campo, pode alcançar o desafio da transmissão da política
psicanalítica do sintoma pelo viés da pesquisa em psicanálise.
2.3.1. A pesquisa clínica entre a aplicação e a transmissão da psicanálise
Na Conferência 34, intitulada Explicações, aplicações e orientações, Freud (1996)
indica uma única vez a possibilidade da aplicação dos princípios da psicanálise em diversos
105
campos de saber. Freud se ocupa especialmente da aplicação do saber psicanalítico à
terapêutica médica, mantendo a contraposição metodológica da psicanálise frente ao
empirismo do campo científico, da medicina e da psiquiatria. Convém observar que a primeira
incursão freudiana no campo das aplicações da psicanálise aparece no texto O interesse
científico da Psicanálise (FREUD, 1996, p. 199-229), em que Freud trata, no primeiro
momento, do interesse psicológico da psicanálise e, no segundo, do interesse da psicanálise
para as ciências não psicológicas. Tanto nesse texto quanto na Conferência 34, notamos o
movimento de uma diferenciação entre os campos de saber da psicanálise e os demais, no
intuito de se chegar à possibilidade de sua aplicação.
Ao introduzir sua conferência, por exemplo, Freud assinala a importância de se
dissolver os ‘mal-entendidos’ sobre o método clínico da psicanálise, que ressoam nos campos
da ciência e da cultura de um modo geral. Logo em seguida, Freud começa a tratar do tema
das ‘aplicações’ da psicanálise, demonstrando, a princípio, sua maior preocupação com a
autonomia disciplinar dos princípios psicanalíticos do que propriamente com a sua aplicação.
No primeiro campo das aplicações, Freud reúne a compreensão da hostilidade que o
mundo contemporâneo move contra aqueles que exercem a psicanálise. No segundo campo,
aponta para a possibilidade de aplicação da psicanálise nas mais variadas áreas do
conhecimento, como as da mitologia, da história da civilização, da etnologia, da ciência da
religião, entre outras (FREUD, 1996, p. 178); na medida em que os estudiosos desses campos
já buscavam o estudo da psicanálise para aplicá-la aos seus conhecimentos. Nesse campo de
aplicação ‘não médica’, Freud defende que as aplicações da psicanálise assumem um valor de
confirmação de alguns dos fundamentos psicanalíticos que foram explorados criticamente, a
partir dessas áreas do saber. No terceiro campo, Freud situa a aplicação da psicanálise à
educação, detendo-se especialmente nele sob duas maneiras: a educação infantil e a
psicanálise de crianças, por considerá-lo de maior importância para as novas gerações pela
“riqueza de promessas para o futuro” (FREUD, 1996, p. 179). No quarto, aborda as
investigações quanto à origem e prevenção da delinquência e da criminalidade. Por fim, no
quinto e último campo de aplicação, recorre ao método da psicanálise, propriamente dito,
destacando que a validação da psicanálise não se faz por meio de dados estatísticos de sucesso
terapêutico, mas, sobretudo, com a verificação da própria experiência do analisante. Com isso,
Freud destaca um esclarecimento importante quanto ao método de investigação psicanalítico,
delimitando, além da eficácia da psicanálise, seus limites de aplicação e seus obstáculos.
O primeiro obstáculo é reconhecido pela impossibilidade de se reviver totalmente
antigas experiências, uma vez que o estatuto do inconsciente implica a consideração de que
106
nem tudo pode ser rememorado. E o segundo obstáculo se refere ao aspecto incurável da
doença psíquica, pela particularidade de sua economia pulsional e constituição etiológica. É
importante observar o modo como Freud finaliza sua conferência, afirmando que a psicanálise
“é um método entre muitos, embora seja, para dizer a verdade, “primus inter pares” (FREUD,
1996, p. 191), o que nos leva a considerar que seu valor terapêutico constitui um campo de
saber autônomo e original que pode, então, se conectar com outros saberes. A especificidade
desse campo de saber é inaugurada por uma descoberta que estabelece ‘um saber que
concerne à verdade’ do sujeito do inconsciente, exigindo de Freud um rigor metodológico
elevado às ‘explicações, aplicações e orientações’ sobre o modo de como o saber inconsciente
é aplicável à terapêutica ou à interpretação de outras disciplinas ‘não terapêuticas’.
Em seu Ato de Fundação (LACAN, 2003, p. 235), Lacan trata pela primeira vez do
tema da psicanálise aplicada ao fundar sua escola, em 1964. Nesse escrito, Lacan retoma o
rigor da proposta de Freud, instituindo, sob o nome de ‘psicanálise pura e aplicada’, o dever
que compete à psicanálise em nosso mundo. Para Lacan, a questão da psicanálise pura e da
aplicada é eminentemente uma questão vinculada à formação do psicanalista. Por isso,
emprega a palavra Escola para atestar o ato, que estava implícito na descoberta freudiana, de
se passar da conservação e transmissão dogmática da doutrina analítica para a preocupação
em se produzir um psicanalista nessa Escola. Na ata de fundação de sua Escola, Lacan
propõe, então, três seções para seu funcionamento: 1) Seção de Psicanálise Pura; 2) Seção de
Psicanálise Aplicada e 3) Seção de recenseamento do campo freudiano.
A Seção de Psicanálise Pura contempla a “práxis e doutrina da psicanálise
propriamente dita, que não é nada além – o que será estabelecido no devido lugar – da
psicanálise didática” (LACAN, 2003, p. 236), e possui três subseções: a) doutrina da
psicanálise pura; b) crítica interna de sua práxis como formação; e c) supervisão dos
psicanalistas em formação. Na Seção de Psicanálise Aplicada, se concentram os ‘grupos
médicos’ ou se preferirmos, as ‘equipes clínicas’, sejam estes compostos ou não por sujeitos
psicanalisados. A condição que se inclui nessa seção é a de contribuição dessas equipes ou
grupos para a experiência psicanalítica, tanto “pela crítica de suas indicações em seus
resultados”, como “pela experimentação dos termos categóricos e das estruturas”, as quais
Lacan (2003, p. 237) introduz como sustentada “pela linha direta da práxis freudiana no
exame clínico, nas definições nosográficas e na própria formulação dos projetos terapêuticos.”
Esta seção possui, ainda, três subseções: a) doutrina do tratamento e de suas variações; b)
casuística; e c) informação psiquiátrica e prospecção médica. A Seção de recenseamento do
campo freudiano assegura o levantamento e a avaliação crítica das publicações endereçadas a
107
esse campo que, por sua vez, “fará a atualização dos princípios dos quais a práxis analítica
deve receber, na ciência, seu estatuto.” (LACAN, 2003, p. 238) de uma experiência que não
se reconhece como ‘esotérica’ ou inefável. Essa seção, portanto, convoca para o debate
aquelas pesquisas ‘desenhadas pelas ciências que chamamos conjecturais’, que podem tanto
instruir, quanto comunicar a experiência analítica, sem que fique “a mercê da deriva política
que se alça da ilusão de um condicionamento universal.” (LACAN, 2003, p. 238). Nela se
incluem também três subseções: a) comentário contínuo do movimento psicanalítico; b)
articulação com as ciências afins; e c) ética da psicanálise, que é a práxis de sua teoria.
A propósito da formação do analista e a função de uma Escola, Lacan escreve, em
continuidade com seu ‘Ato de fundação’, a Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o
psicanalista da Escola (LACAN, 2003, p. 248-264). Esse escrito revela uma idéia diferencial
entre ‘psicanálise pura e aplicada’, dessa vez concebida por Lacan, a partir da estrutura
topológica de um plano projetivo que demonstra uma junção da psicanálise em intensão e
extensão que, mesmo em momentos diferentes, se manteriam unidas mutuamente. Ao
estabelecer uma crítica sobre as distorções do ensino em psicanálise, Lacan propõe uma
retomada da psicanálise didática para recobrir a ‘falha’ que imperava na formação do
psicanalista por certo ‘status’ de imponência entre aqueles que se tornavam analistas, por
meio de um formalismo prático e teórico pré-concebido para sua formação. Não sem
consequências, essa ‘falha’ distanciava os analistas de uma formação que não nega o real em
jogo como responsabilidade do psicanalista com sua própria formação. Reconhecida essa
falha, Lacan retoma, então, a idéia da psicanálise pura, passando a designá-la com o termo de
Psicanálise em Intensão, que inclui, na formação do analista, a experiência do passe de
produzir, ao final de uma análise, um analista da Escola. Essa proposta redefine os ‘moldes’
do ensino em psicanálise de um saber que poderia servir apenas para a formalização de
conceitos para o ensino e transmissão de um saber que poderá ser apreendido e testemunhado,
somente no ponto em que o sujeito que o escuta ou lê está em relação ao que lhe causa e,
portanto, atravessado pela sua própria ‘experiência com o inconsciente’.
É, então, na perspectiva de convocar o psicanalista a responder por sua própria
formação que Lacan propõe aos adeptos de sua Escola a junção de dois momentos que
denomina, respectivamente, “psicanálise em extensão, ou seja, tudo o que resume a função de
nossa Escola como presentificadora da psicanálise no mundo, e psicanálise em intensão, ou
seja, a didática, como não fazendo mais do que preparar operadores para ela” (LACAN, 2003,
p. 251). Essa passagem nos conduz, novamente, à possibilidade da psicanálise em extensão
funcionar como uma experiência que renova o próprio campo da psicanálise; seja no âmbito
108
da formação do analista, seja no da transmissão de uma prática fiel aos princípios freudianos
e, portanto, diferente das demais terapêuticas. Cabe destacar a originalidade da experiência
analítica diferenciada por Lacan (2003, p. 251) da terapêutica, cuja definição de
“reestabelecimento de um estado primário” seria “impossível de enunciar na psicanálise.”.
Dessas observações que conferem a proposta de Freud e Lacan de aplicação da
psicanálise em um campo mais amplo de intervenções clínicas, demarcamos algumas
consequências que podem ser extraídas no nível da pesquisa em psicanálise em sua tarefa de
transmissão dos princípios psicanalíticos ao campo da saúde mental.
a. A primeira consequência é delimitada pela autonomia disciplinar da psicanálise que,
ao se conectar com outros campos de saber, possibilita a utilização do saber analítico
em práticas que se ocupam da subjetividade, ainda que não tenham um alcance
terapêutico. Trata-se de um saber que não se limita a uma técnica terapêutica, na
medida em que concerne a um ‘saber fazer’ com determinadas estruturas do sujeito,
antes desconhecidas, que o implicam em seu ser, em particular, e em suas relações
com a realidade e com o social. A ênfase marcada por Freud e Lacan, no entanto, é
aquela em que o saber que o inconsciente enuncia – e que a psicanálise sustenta em
sua práxis – é um saber aplicável à terapêutica e, portanto, transmissível ao campo da
clínica.
b. A segunda consequência é extraída da concepção lacaniana da psicanálise aplicada à
terapêutica da medicina e ao campo de saber psiquiátrico. Em linha direta com a
práxis freudiana, Lacan inclui, na formação do analista, a contribuição do saber
médico, ainda que este se configure como um saber prático e objetivo e, portanto, de
natureza diferente daquele que a experiência analítica permite elaborar. Essa proposta
parece convergir, ainda, com o receio de Freud em relação ao risco do
experimentalismo de alguns psicanalistas que ambicionavam curar todo o tipo de
enfermidade com a análise, sem levar em conta os fatores que limitam sua eficácia. Ao
isolar a experiência analítica da terapêutica, Lacan confirma a autonomia disciplinar e
original que fundamenta a operação da psicanálise, preservando sua aplicação nos
demais campos de intervenção clínica como uma orientação pertinente para a
formação do analista.
c. A terceira consequência se delineia a partir da Seção de recenseamento do campo
freudiano, em continuidade com a orientação deixada por Lacan aos analistas de sua
Escola na Seção de Psicanálise Aplicada. Trata-se de recolher, no âmbito das
pesquisas clínicas, o levantamento e a avaliação crítica de propostas e, por que não
109
dizer, de metodologias clínicas que atualizem os princípios da psicanálise aplicada ao
saber conjectural de um campo abrangente de procedimentos clínicos. Essa seção
indica a dimensão política que atravessa a transmissão da ética da psicanálise aos ‘de
fora’ da Escola; diante do ‘condicionamento universal’, que reduz as pesquisas
clínicas a um ‘empirismo aplicado à terapêutica’. Com isso, situamos a importante
tarefa da pesquisa clínica em psicanálise entre a aplicação e a transmissão dos
princípios psicanalíticos na vida e na cultura, como uma estratégia clínica e política da
psicanálise em extensão.
d. A quarta consequência é concebida, enfim, no ponto de junção entre a ‘psicanálise em
intensão e extensão’, que define o lugar da pesquisa em psicanálise, tanto no nível
da formação do analista, quanto da transmissão de sua práxis para não analistas, como
presentificadora da psicanálise no mundo.
A metodologia da Construção do Caso Clínico recolhe essas consequências extraídas,
mais especificamente, da proposta da psicanálise em extensão 81 por meio da aplicação da
prática analítica da construção coletiva dos casos, formalizada a posteriori, no nível de uma
pesquisa clínica em psicanálise. De saída, seu aporte metodológico concentra a autonomia e o
rigor dos princípios psicanalíticos como fundamentação para uma pesquisa clínica.
Entretanto, tais princípios se colocam em desenvolvimento não como uma resposta ou
solução pré-concebida para a pesquisa, mas como possibilidade de contribuição da leitura
analítica dos casos que se realiza primus inter pares, ou seja, junto às demais leituras das
equipes que se ocupam do acompanhamento clínico nos serviços de saúde mental. Trata-se,
portanto, da transmissão de um saber que a experiência psicanalítica permite construir, caso a
caso, que é aplicável à terapêutica da atenção psicossocial, na qual o trabalho em equipe e as
práticas coletivas se efetuam. Nesse cenário, o testemunho do analista, tomado em sua
dimensão de aprendiz da clínica, se dissolve entre tantas outras leituras que testemunham um
savoir y faire com o sintoma em cada caso, conservando a transmissão da política analítica do
sintoma a um campo clínico amplo e heterogêneo de saberes.
A partir dessas pontuações, apresentamos a aplicação metodológica da construção do
caso clínico explorada por psicanalistas que pesquisaram os desdobramentos clínicos e
81
Referência ao quarto princípio da Pesquisa em Psicanálise, apresentado por Carlo Viganò na página 76 deste capítulo.
Acentuamos aqui a construção do caso como uma metodologia de pesquisa clínica em psicanálise que pode ser desenvolvida
em variados contextos: na universidade, nas instituições de formação psicanalítica e nos serviços de saúde mental, ainda que
sigam propósitos distintos em relação à transmissão da psicanálise. Não definimos, no entanto, a distinção entre a prática de
pesquisa em psicanálise realizada na universidade ou nas Escolas de Psicanálise, por tentarmos apenas localizá-la sob o viés
da proposição lacaniana da ‘psicanálise em extensão’.
110
institucionais dessa contribuição para o trabalho em equipe nos serviços de atenção
psicossocial.
2.3.2. Contribuições da construção do caso clínico à Saúde Mental
O artigo A Construção do Caso Clínico: uma contribuição da psicanálise à
psicopatologia e à saúde mental (FIGUEIREDO, 2004) é a primeira publicação de pesquisa
em psicanálise que utilizaremos como referência para a discussão da aplicação do método da
construção de casos no trabalho multidisciplinar. Dessa discussão, destacamos os elementos
metodológicos, explorados no âmbito da pesquisa clínica, que configuram a construção
coletiva dos casos nos dispositivos da atenção psicossocial. Entre tais elementos, destacam-se:
a articulação entre as práticas diagnósticas da psiquiatria e da psicanálise como balizadores da
discussão dos casos; o estabelecimento de distinções conceituais, que fundamentam a
construção analítica do caso clínico; e a possibilidade de aplicação desses elementos como
ferramenta de transmissão da política do sintoma no trabalho em equipe, constituído por
profissionais de formações diversas.
O campo da saúde mental caracterizado por sua heterogeneidade, tanto no que diz
respeito às referências teórico-práticas, quanto ao conjunto de serviços de atenção e cuidado
psicossocial da rede pública, comporta em si uma variedade de saberes que problematiza uma
direção comum para o acompanhamento dos casos. Incluindo nesse campo a psiquiatria,
Figueiredo (2004) salienta a importância dos conceitos psicopatológicos, implicados nessa
metodologia de pesquisa, que se oferecem na direção do diagnóstico, e na localização do
pathos do sujeito, como balizadores do tratamento, recusando certa oposição entre psiquiatria
e saúde mental instaurada nesse campo.
A metodologia da construção do caso introduz no campo da atenção psicossocial a
concepção de diagnóstico e tratamento herdados da psiquiatria, criando novas exigências para
ambos e abrindo uma nova porta para a psicopatologia. Nessa perspectiva, Figueiredo (2004)
assinala a importância da prática diagnóstica como modo de localizar uma contribuição
específica da psicanálise para a psicopatologia e para a saúde mental, incluindo aí o sujeito do
inconsciente como a herança da própria psicopatologia. Torna-se necessário, então, inserir
uma proposta de trabalho no campo da saúde mental com os casos que contemple a prática
clínica de diferentes formações profissionais e, consequentemente, de diferentes referências
teóricas, “de modo a não reduzir os instrumentos clínicos da psicanálise a uma banalização de
seu uso ou a uma supervalorização de seus conceitos” (FIGUEIREDO, 2004, p. 4).
111
Como constituir, então, um solo comum de trabalho para diferentes profissionais que
não teriam qualquer compromisso com uma formação em psicanálise, mas poderiam se valer
de sua contribuição? Partindo desse questionamento, a autora ressalta a contribuição da
psicanálise ao introduzir, nesse campo multidisciplinar, uma concepção que avança do
particular – o diagnóstico – para o singular, retomando o geral – as diretrizes de cuidados da
saúde mental –, a partir dos efeitos colhidos em cada situação clínica. Desse modo, a ação
clínica do psicanalista atua sobre o ‘geral’, indicado por determinadas diretrizes do campo da
saúde mental, como a reabilitação, a cidadania, a autonomia e a contratualidade, no intuito de
ampliar as relações sociais dos usuários e fazer proliferar suas possibilidades. O ‘singular’,
por sua vez, designa a articulação do ‘particular’ de uma referência das classes diagnósticas
com o movimento do sujeito do inconsciente. Entre a singularidade de cada caso e a
particularidade das categorias diagnósticas, Figueiredo (2004) destaca uma primeira diferença
marcada pela psicanálise na condução dos casos através da operação analítica com o sintoma,
quando o analista encontra meios de transmitir, no trabalho institucional com os casos, que “o
sintoma não vai sem o sujeito, nem o sujeito pode ser pensado sem o seu sintoma. Um
constitui o outro, melhor dizendo, um se constitui no outro, o sujeito através do sintoma e
vice-versa.” (FIGUEIREDO, 2004, p. 5)
Com essa especificidade, a psicanálise propõe implicar o diagnóstico e o tratamento
como elementos indissociáveis e intercambiáveis, e a noção de tratamento, como um processo
em que se estabelece o diagnóstico e não apenas o contrário. Segundo a autora, essa relação
estreita do sujeito com o sintoma – o sintoma neurótico, ou as produções psicóticas – demarca
uma diferença radical no que se refere à concepção funcionalista-organicista da psiquiatria
atual, que se propõe a separar esses dois termos e, portanto, a distinguir ao máximo o
diagnóstico do tratamento, tanto no método, quanto na dinâmica. Se na orientação
psicanalítica o sintoma não vai sem o sujeito, e esse sujeito é o do inconsciente, o sintoma é,
então, concebido como uma formação (neurose) ou uma exposição (psicose) do inconsciente
‘a céu aberto’ 82 . Diante disso, Figueiredo considera que um estudo de caso não pode se
restringir a um relato compilado de acontecimentos e procedimentos dispostos em uma
sequência com critérios pré-estabelecidos a serem preenchidos, como no caso da anamnese,
que resulta na súmula psicopatológica padronizada. A diferença marcada pela ação clínica da
psicanálise é configurada, portanto, pelo esforço diagnóstico, deslocado desse modo de
82
Expressão designada por Jacques Lacan em O Seminário, livro 3: as psicoses (2002).
112
‘assepsia’, para trazer à cena o sujeito e suas produções pela via do discurso, em que podemos
localizar seu sintoma ou seu delírio.
A contribuição da psicanálise para a psicopatologia e para a saúde mental é
apresentada por Figueiredo (2004) por meio do trabalho da ‘construção do caso’. Retomando
os termos indicados anteriormente por Carlo Viganò (1999), a autora discute o termo
construção e sua diferença em relação à interpretação: “a construção é um arranjo dos
elementos do discurso, visando a uma conduta; a interpretação é pontual visando a um
sentido” (FIGUEIREDO, 2004, p. 07). Aponta a finalidade da construção como sendo a de
partilhar determinados elementos de cada caso em um trabalho conjunto, o que seria inviável
na via da interpretação e, por isso, considera “a construção como um método clínico de maior
alcance” (FIGUEIREDO, 2004, p. 7) para o trabalho institucional. A propósito da definição
dos termos ‘construção do caso clínico’ 83 , a autora assinala sua concepção sobre esse método
clínico como sendo capaz de produzir “o (re)arranjo dos elementos do discurso do sujeito que
‘caem’ e que se depositam a partir de nossa inclinação para colhê-los, não ao pé do leito, mas
ao pé da letra” (FIGUEIREDO, 2004, p. 7). Nessa concepção, estão incluídas as ações do
sujeito, concebidas por uma determinada posição no discurso, que resulta do deslocamento
das dimensões do enunciado (os ditos) ao da enunciação (o dizer), onde se localiza a ‘posição
discursiva’ de um sujeito. No entanto, convém lembrar que o caso não é o sujeito, mas uma
construção realizada a partir dos elementos que são recolhidos de seu discurso e que, com
efeito, permitem inferir sua posição subjetiva através do que pode ser recolhido, do dito ao
dizer. A autora apresenta, então, a possibilidade de desenvolver um método aplicável a
diferentes contextos clínicos.
A partir do desenvolvimento de seu trabalho com uma equipe de pesquisa clínica em
psicanálise, realizada no Instituto de Psiquiatria IPUB/UFRJ, Figueiredo (2001) e
colaboradores apresentam considerações sobre um método de pesquisa que permite recolher
da experiência clínica seus elementos de base, a fim de reter dessa experiência algo
transmissível e avaliável de cada caso (FIGUEIREDO, et alii, 2001; VIEIRA e NOBRE,
2001). Esses autores indicam um modo de desenvolvimento para a construção de um caso,
retomando as premissas necessárias para sua aplicação, com um recorte produzido pelo que
83
No artigo A construção do caso clínico em Saúde Mental’ (VIGANÒ, 1999), Carlo Viganò apresenta o termo ‘caso
clínico’, designado a partir da epistemologia das palavras ‘caso’ – oriunda do latim cadere, cujo significado ‘cair, sair para
baixo’, implica a noção de ‘algo que cai de uma regulação simbólica’, sendo, portanto, um encontro direto com o real, com
aquilo que é indizível e impossível de ser suportado. A palavra ‘clínica’ é designada, por sua vez, a partir do grego Kline, que
significa ‘leito’, implica ‘o ensinamento que se faz no leito, diante do corpo do paciente, com a presença do sujeito’
113
denomina ‘binômios da construção do caso’ (FIGUEIREDO, 2004, p. 7), que seriam
balizadores para indicar o caminho dessa construção metodológica.
O primeiro binômio é designado pela distinção dos termos História « Caso,
entendendo a história como uma apresentação do relato clínico, enriquecido por detalhes,
cenas e conteúdos; e o caso, como produto do que se extrai das intervenções do analista na
condução do tratamento e do que é decantado de seu relato. A história, portanto, pode ser
fatigante, se muito detalhada, podendo eliminar o caso se o reduz apenas a uma fórmula. O
estabelecimento desse binômio retoma, então, a idéia de uma formalização necessária do
relato, que não se reduz a uma teorização formal nem a uma elaboração de saber sobre os
problemas do paciente. Ao contrário, trata-se de colocar em jogo os significantes do sujeito,
suas produções, a partir da elaboração em análise, tal como a resposta do analista em seu ato e
os efeitos que surgem daí para cernir certos significantes numa composição mais esquemática,
visando decantar a história e traçar o caso a partir do discurso. Desse modo, a autora afirma
que “uma história deve se fazer caso para que se possa trabalhar em psicanálise”
(FIGUEIREDO, 2004, p. 8), diante da possibilidade de recolher, dos infindáveis detalhes de
uma história, a direção de um caso.
O segundo binômio é apresentado por meio da distinção dos termos Supervisão «
Construção, considerando que as discussões realizadas em equipe de pesquisa remetem mais
a um trabalho de construção do que ao de supervisão, ainda que no seu desenrolar tangenciem
a experiência de supervisão. No entanto, ao contrário da supervisão, a discussão do caso não
se encerra ao término da sessão, pois ela continua e se remete ao pesquisador/analista que
apresentou o caso. Para formalizar o emprego desse binômio na construção dos casos, é
necessário observar que, num primeiro tempo, ocorre um retorno sobre o pesquisador em sua
condição de sujeito, o que não difere exatamente da supervisão. Num segundo tempo, trata-se
da reapropriação do saber pelo analista na condição de pesquisador; momento em que,
finalmente, este saber, que é depositado, torna-se um produto. Esse produto, por sua vez, é o
ponto de basta, feito pelo pesquisador na condição de analista/praticante. Assim, o
entrelaçamento das funções de sujeito, pesquisador, analista permite romper qualquer fixidez
de posição diante do saber, permitindo sustentar o trabalho de construção, a partir do manejo
dos impasses que atravessam o cotidiano de prática clínica e de uma aposta na formalização
possível dos princípios psicanalíticos.
No terceiro e último binômio assinalado pela autora, os termos Conceitos «
Distinções são apresentados, concebendo os conceitos fundamentais da psicanálise que são
colocados em questão a cada passo da construção. Entretanto, não é necessário definir
114
exatamente o que esses conceitos significam nem a que evento correspondem em cada caso
para que se obtenha o resultado esperado. Por outro lado, nota-se que é fundamental
estabelecer algumas distinções conceituais sem as quais não há condução possível do caso.
Nesse sentido, a psicanálise concerne não ao efeito de um saber do Outro sobre uma história,
mas ao feliz encontro entre as ferramentas conceituais do analista e as contingências de uma
história, produzindo um caso e, no melhor dos casos, um novo sujeito. Ao formalizar esse
binômio, busca-se uma aproximação da possibilidade de constituir enunciados sobre esse
saber propriamente psicanalítico, singular e inventado a cada nova situação.
Ao retomar a discussão sobre a construção do caso clínico como proposta para o
trabalho em equipe, Figueiredo se volta, novamente, para o trabalho em equipe nas
instituições de saúde mental, acentuando a complexidade desse trabalho e o modo como as
equipes se estruturam como um aspecto decisivo para o destino da clínica. Destacam-se,
então, duas lógicas ou modalidades de organização das equipes que podem melhor situar tal
problemática: a formação hierárquica e a formação igualitária. Se as equipes são formadas
mais na lógica hierárquica de funções e saberes, tendem a burocratizar a clínica, a verticalizar
o poder e o saber e a cristalizar as práticas. Se são mais igualitárias, tendem a horizontalizar o
poder, a misturar as funções, escapando das especialidades, mas caindo na falta de
especificidade e confundindo as funções, a ponto de perder a referência da clínica e imobilizar
o trabalho conjunto (FIGUEIREDO, 1997). Nessa direção, a autora retoma o termo lacaniano
que define a relação de trabalho nos cartéis, a ‘transferência de trabalho’, como referência
valiosa para orientar o trabalho com as equipes de saúde mental. Esse termo designa a
possibilidade de dissolver os efeitos narcísicos imaginários que inevitavelmente ocorrem, seja
na confusão de papéis (modelo igualitário), seja na fixação de papéis (modelo hierárquico).
No que se refere ao trabalho coletivo com cada sujeito, a autora assinala a importância
de ‘seguir seu estilo para, a partir daí, lhe indagar o que é pertinente a seu sintoma’
(FIGUEIREDO, 2004, p. 11), fazendo-o tomar minimamente a responsabilidade por seus
atos, ainda que não tenha responsabilidade ‘plena’, conforme o sentido jurídico. É preciso,
portanto, separar esse campo de responsabilidades, pois, na maioria das vezes, os sujeitos se
apresentam tutelados e desresponsabilizados, o que os leva à imobilidade, à falta de solução e
à confirmação da doença. Outra orientação importante para conduzir o trabalho das equipes,
no campo da saúde mental, é indicada pela autora com base no termo ‘aprendizes da clínica’
(ZENONI, 2000). Essa expressão, empregada pelo psicanalista Alfredo Zenoni, sintetiza a
posição da equipe em formular as boas questões, verificar os efeitos de suas intervenções,
tomar novas decisões ou dar novo rumo a cada caso, com as indicações do sujeito que,
115
convém lembrar, não são tão óbvias ou intencionais, mas estão dadas de algum modo no seu
sintoma, em suas diferentes manifestações.
Partindo desse ponto, a autora retoma o objeto central de seu artigo: a contribuição da
construção do caso clínico, como proposta aplicável ao campo saúde mental, na medida em
que permite recolher da experiência do sujeito, de seu discurso, os elementos com os quais se
fará a construção do caso, entendendo que esta é sempre parcial, visa dar direções para
determinada intervenção ou ação da equipe, sendo passível de revisão na medida dos
acontecimentos. Assim, a construção do caso pode conter elementos discursivos de familiares,
de outros envolvidos, mas não pode perder seu fio condutor, que é a referência ao sujeito em
questão.
O estabelecimento dos ‘binômios’ apresentados serve, portanto, como ferramenta da
construção para serem aplicados no trabalho em equipe; diferindo de um trabalho de análise,
mas contendo os elementos metodológicos aplicáveis à condução terapêutica, com base nas
referências de cada sujeito. Desse modo, a autora conclui que o que caracteriza a construção
do caso na equipe de saúde mental – e diverge do trabalho mais específico do psicanalista – é
exatamente o fato de a equipe ser heterogênea em sua composição – diferentes profissionais e
referências teórico-técnicas, diferentes níveis de formação. A ação do psicanalista, nesse
trabalho coletivo, direciona a discussão do caso a partir da posição assumida por uma equipe
como ‘aprendizes da clínica’, possibilitando colher, das produções do sujeito, os balizadores
clínicos para seu tratamento, em detrimento de uma posição técnica que impõe o modelo da
reabilitação em sua dimensão moral e pedagógica.
2.3.3. A metodologia em ato da construção do caso clínico
A segunda publicação de referência sobre a aplicação dos princípios psicanalíticos no
campo da atenção psicossocial apresenta a Metodologia em Ato da Construção do Caso
Clínico como proposta de pesquisa orientada pela abordagem psicanalítica no campo da saúde
mental. Nessa publicação, se concentram os relatos do projeto de pesquisa “Investigação dos
efeitos discursivos da capsização da atenção em saúde mental: avaliação qualitativa dos
processos de institucionalização do modelo CAPS”
84
, cujos resultados são apresentados no
84
Pesquisa vinculada ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), seguindo a proposta dos
‘Estudos de avaliação dos Serviços em Saúde Mental com ênfase nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)’ para o
desenvolvimento e avanço da aplicação de novas tecnologias: novos métodos e técnicas de investigação. Com essa proposta,
esse projeto de pesquisa buscou analisar, sistematizar e avaliar qualitativamente os processos de institucionalização do
modelo CAPS, a partir da construção do caso clínico e da formação dos profissionais da rede de saúde mental. Os autores
esclarecem que o termo ‘Capscização’ não designa uma crítica ao serviço de atenção psicossocial, mas um interesse de
116
livro intitulado “Metodologia em Ato” (TEIXEIRA, 2010). Essa pesquisa, desenvolvida
durante quatro anos, por psicanalistas que atuam nos serviços de saúde mental e em diferentes
instituições universitárias, produziu uma investigação da prática da Construção do Caso
Clínico como operação da psicanálise aplicada ao trabalho em equipe dos Centros de Atenção
Psicossocial (CAPS). Com base na apresentação dessa proposta de pesquisa, daremos ênfase
ao modo de aplicação do método da construção do caso clínico e ao estabelecimento do termo
‘Metodologia em Ato’, que designa o modo específico de investigação de uma pesquisa em
psicanálise.
O desenvolvimento dessa pesquisa parte da indissociável relação entre a investigação
e o tratamento que marca o rigor do método psicanalítico. Nessa perspectiva, a proposta
metodológica da construção do caso clínico foi empregada como instrumento de análise, de
intervenção e de transmissão, capaz de “a um só tempo, avaliar qualitativamente a efetividade
da resposta clínica dos serviços de saúde mental, assim como orientar a equipe na direção do
tratamento, fazendo avançar a clínica a partir dos impasses encontrados em cada caso.”
(TEIXEIRA, 2010, p. 27). A escolha de uma nova terminologia, para fundamentar o método
de pesquisa e de trabalho em equipe da construção dos casos, se deu, então, com a
consideração de que o saber que determina a pesquisa em psicanálise “emerge como efeito de
sua colocação em ato” (TEIXEIRA, 2010, p. 28). E isto implica superar, de certo modo, o
problema da metodologia a ser aplicada em uma pesquisa clínica de orientação analítica, cuja
formalização metodológica não dispõe de regras previamente codificadas sobre o seu
procedimento clínico. A originalidade do termo ‘metodologia em ato’ se refere diretamente à
prática coletiva da construção do caso clínico como um instrumento de pesquisa que faz valer
“o saber do caso no momento pontual de sua colocação em ato” (TEIXEIRA, 2010, p. 28)
como um operador que produz mudanças, tanto em relação às intervenções clínicas de uma
equipe, quanto ao que tange à verificação do trabalho clínico-institucional.
A metodologia da construção do caso clínico foi aplicada em onze serviços de saúde
mental do Estado de Minas Gerais apoiada na proposta introduzida pelos pesquisadores, de
que cada equipe deveria escolher um caso para a construção realizada conjuntamente com os
profissionais do serviço e com a equipe da pesquisa. A intervenção do grupo de pesquisadores
se realizou a partir de dois encontros em cada serviço: o primeiro encontro para a construção
do caso e o segundo para o retorno da equipe clínica em relação ao caso construído. Essa
proposta foi demarcada, ainda, pela solicitação dos pesquisadores de escolha de ‘casos
estudo em relação à operacionalidade clínica do modelo CAPS. No centro dessa pesquisa, a construção do caso foi
investigada como um método clínico orientador do trabalho em equipe.
117
problemáticos’, cujos impasses do tratamento poderiam dar maior visibilidade às dificuldades
do serviço e da equipe na condução dos casos. Desse modo, além dos impasses avaliados no
acompanhamento clínico dos pacientes, como dificuldades diagnósticas, de manejo,
encaminhamentos, circulação do caso na rede, etc., foi possível também avaliar algumas
dificuldades institucionais, como, por exemplo, o funcionamento da equipe e sua inserção na
rede intersetorial de serviços públicos.
Para operacionalizar a aplicação do método da Construção do Caso Clínico no
trabalho em equipe, os pesquisadores incluíram, nessa proposição metodológica, o dispositivo
da Conversação Clínica. Esse dispositivo foi, então, privilegiado para a aplicação da
construção do caso por possibilitar a ‘circulação da palavra’ entre os profissionais de cada
equipe, apoiada “numa aposta de que algo inédito, até então não pensado, pudesse surgir a
partir do convite à fala” (TEIXEIRA, 2010, p. 29). Com esse modo de aplicação da
construção do caso, a verificação possível de se extrair, a partir dos relatos de uma equipe,
passou a ser atravessada pelo dispositivo da conversação.
Diferindo do modo proposto, nesta pesquisa de doutorado, de aplicação da construção
do caso clínico no trabalho em equipe por meio do instrumento metodológico do texto da
construção, a ‘metodologia em ato’ da construção dos casos emprega a conversação clínica
como um dispositivo metodológico “em que a fala livre de cada um pode ‘tocar’ no outro, o
que possibilita a concordância, o acréscimo, um complemento, a réplica, do momento em que
a fala desencadeia no outro uma idéia, uma lembrança ou uma observação” (TEIXEIRA,
2010, p. 29). Em outros termos, trata-se de colher na incidência lógica de uma “livre
associação coletiva” um elemento de surpresa como um ponto de sustentação “que implica
todos os envolvidos em uma mesma situação de trabalho, na qual a responsabilidade de cada
um dos que estão nela envolvidos encontra-se engajada.” (TEIXEIRA, 2010, p. 30). Com essa
proposta, todos os membros da equipe foram convidados a se debruçar sobre a construção de
cada caso, buscando, durante a conversação clínica, construir um ‘saber fazer’ em cada caso
diante dos seus pontos de impasse. Como efeito, novas possibilidades de intervenção e
condução do tratamento foram encontradas e compartilhadas como orientação para o
acompanhamento de cada caso.
A experiência de Construção dos Casos, desenvolvida através das Conversações
Clínicas, permitiu que a equipe de pesquisadores pudesse recolher, após as reuniões
sistemáticas do grupo de pesquisa e ao trabalho de transcrição desses encontros, alguns
elementos essenciais que delimitam esta metodologia de pesquisa. Dentre eles, o
‘esvaziamento do saber prévio’ recebe destaque como um princípio articulador da
118
Construção do Caso Clínico. O primeiro aspecto observado nos relatos das equipes sobre as
dificuldades na condução do caso aponta para a modificação da percepção dessas dificuldades
em relação ao caso, anteriormente, considerado como ‘problemático’. A partir dos encontros
de construção dos casos, as equipes se depararam com os momentos em que o próprio sujeito
oferecia uma resposta diferente daquela caracterizada como um impasse na condução do
tratamento. Notou-se, portanto, a potencialidade do método da construção dos casos de
“desestabilizar o conjunto de saberes prévios” (TEIXEIRA, 2010, p. 32), ao relativizar o saber
da equipe sobre o caso e produzir, ao mesmo tempo, a construção de um saber inédito, que
permitiu operar uma mudança na condução clínica das equipes.
O segundo princípio destacado como articulador da ‘Metodologia em Ato’ da
construção dos casos refere-se à ‘circulação de saberes’ como efeito do esvaziamento do
saber prévio da equipe em relação ao caso clínico. Tal efeito era favorecido pelo dispositivo
da conversação que permitia a ‘livre circulação da palavra’ (TEIXEIRA, 2010, p. 33) entre
profissionais de formações diversas. Esse aspecto foi avaliado pelas equipes dos serviços
como um dos principais meios de intervenção da pesquisa, por permitir que os profissionais
envolvidos expressassem suas percepções em relação ao caso, sem que nenhum saber fosse
hierarquicamente estabelecido como o ‘mais importante’. Apesar da psicanálise deter um
saber que se aplica à construção dos casos na saúde mental, cabe considerar que esse não se
estabelece de modo hegemônico em relação às demais formas de saber, mas pela transmissão
de seu modo próprio de operação clínica, por meio da articulação de diferentes saberes que
compõem o trabalho coletivo.
Da ‘circulação de saberes’ promovida por essa metodologia de pesquisa, destaca-se,
ainda, o terceiro princípio da ‘autoridade clínica’ designada como “conceito fundamental da
metodologia em ato” (TEIXEIRA, 2010, p. 34). Esse termo proposto por Carlo Viganò,
durante o Seminário de Saúde Mental, Psiquiatria e Psicanálise, realizado em 1997, introduz
uma nova lógica para a condução clínica no âmbito dos novos serviços de atenção
psicossocial, inaugurados com o movimento da reforma psiquiátrica. Enquanto o manicômio
se organizava em torno da soberania do saber médico, como autoridade máxima para o
‘tratamento da loucura’, o processo da reforma psiquiátrica exigiu a pluralização da
autoridade clínica expandida ao debate democrático. Desse modo, a autoridade clínica passa a
ser estabelecida em meio a um debate entre vários atores e profissionais do campo da saúde
mental, mas, não por isso, deve ser confundida com um ‘consenso democrático’, no qual a
opinião da maioria rege a condução do caso no trabalho em equipe. O que se destaca nesse
modo de operação ou de ‘autorização’ de uma equipe clínica concerne à extração
119
compartilhada “de um diagnóstico referido à posição discursiva em jogo, na dinâmica da
parceria que o sujeito estabelece com o Outro, representado pela família, pela comunidade ou
pela equipe de tratamento” (TEIXEIRA, 2010, p. 34). A validação do ‘diagnóstico de
discurso’ é, portanto, o que deve ser tomado como autoridade clínica na condução dos casos,
podendo ser verificado por meios das mudanças de posicionamento, produzidas sobre a
equipe e pelos efeitos que essas mudanças geram na evolução clínica do paciente.
O quarto e último princípio, que configura essa ‘metodologia em ato’, é demarcado
pela ‘exterioridade’ do grupo de pesquisadores em relação às equipes e aos serviços
investigados. Essa exterioridade, considerada como um “fator primordial na abertura das
equipes à Construção do Caso Clínico” (TEIXEIRA, 2010, p. 35) possibilitou a instauração
de um ‘novo olhar sobre os casos’ e, portanto, a composição de uma ‘outra forma de saber’
sobre cada caso apresentado.
Os desdobramentos desta pesquisa alcançaram, contudo, um modo de intervenção
mais ampla, conduzindo os pesquisadores à observação de que a incidência de seu trabalho
tangenciava, ainda, uma investigação sobre a própria instituição reconhecida como sendo, ela
mesma, ‘o nosso caso clinico’ (TEIXEIRA, 2010, p. 31). Ao utilizar a construção do caso
clínico como metodologia de pesquisa e de avaliação do trabalho clínico institucional, tornouse notável nos relatos dos pesquisadores o modo como os efeitos de suas intervenções
puderam ser recolhidos, caso a caso, e no âmbito do trabalho das equipes nos serviços. Tais
intervenções puderam contribuir não somente para a prática clínica coletivizada, mas também
para desfazer alguns impasses burocráticos, administrativos ou teóricos que incidiam no
trabalho com cada caso. Nota-se, mais uma vez, a potencialidade do método clínico de
verificação da construção do caso, capaz de favorecer a invenção de novas soluções clínicas
em detrimento de normas e regras prescritivas que podem atravessar o cotidiano das
instituições.
Concluindo esta discussão, convém assinalar a utilização do termo ‘Metodologia em
Ato’ que, como balizador teórico da pesquisa apresentada, expressa claramente a “dimensão
em ato do saber que não se sabe sem o movimento em que se realiza” (TEIXEIRA, 2011, p.
3) como uma fundamentação essencial para toda e qualquer pesquisa em psicanálise. Vimos
aqui, o rigor do método analítico aplicado à pesquisa clínica e seus efeitos de transmissão de
um saber que concerne à experiência clínica e que, portanto, só pode ser apreendido no
próprio momento em que essa experiência se apresenta. Em contraste com os parâmetros
metodológicos pré-codificados dos atuais protocolos científicos e “de uma experimentação
controlada da abordagem do padecimento mental” (TEIXEIRA, 2011, p. 3) situamos a
120
pertinência de uma metodologia articulada ao ato clínico, sempre inédito e imprevisível, mas
ao mesmo tempo, passível de demonstração, a partir do que testemunha uma equipe clínica na
construção de cada caso. A transmissão que resulta desta pesquisa alcança, ainda, uma
dimensão política da psicanálise, ao demonstrar ‘em ato’ a eficácia do método analítico e o
valor axiomático da operação analítica no campo clínico de saúde mental.
Neste caminho, prosseguiremos com a apresentação da aplicação da metodologia de
pesquisa da construção do caso clínico explorada, no capitulo seguinte, em seu viés de
transmissão da política analítica do sintoma.
121
CAPÍTULO 3
A metodologia da Construção do Caso Clínico aplicada à prática
coletiva em Saúde Mental
A apresentação da aplicação do método clínico de pesquisa da construção do caso
clínico no campo da saúde mental é apoiada na experiência de intercâmbio acadêmico,
realizado no ano de 2009, entre o Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro e o Curso de Especialização em Psiquiatria e
Psicoterapia da Universidade de Milão 85 . A proposta de aplicação desse método clínico foi
observada nos encontros de pesquisa, em especial, com a utilização de instrumentos
metodológicos para a construção dos casos acompanhados na referida instituição italiana de
ensino e de assistência em saúde mental. A formalização metodológica desta pesquisa de
doutorado parte, então, dos registros do diário de campo produzido nessa experiência de
intercâmbio acadêmico e de instrumentos, como esquemas e roteiros de narrativas clínicas,
que apoiam a aplicação da Construção do Caso Clínico como metodologia de pesquisa em
psicanálise e de verificação da condução clínica dos casos, no trabalho em equipe dos serviços
de saúde mental.
Com base nessas referências e instrumentos, apresentamos a construção coletiva de
um caso acompanhado, inicialmente, por um profissional de formação psicanalítica, que atua
em um dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) da cidade do Rio de Janeiro. Com a
colaboração desse profissional e da autorização prévia86 da direção do serviço de saúde
mental escolhido para a aplicação do método da Construção do Caso Clínico, empregamos
essa metodologia de pesquisa, a fim de discutir e avaliar as conduções e condutas clínicas do
trabalho em equipe no acompanhamento desse caso.
A construção do caso realizada com a equipe clínica do CAPS contou com dois
desdobramentos interessantes nessa etapa de investigação. Um primeiro desdobramento foi
produzido pela oportunidade de utilizar e ampliar a aplicação do método de pesquisa clínica
85
Referência ao intercâmbio acadêmico certificado pela Università degli Studi di Milano/Unità di Psichiatria Dinamica e
Psicoterapia del Dipartimento di Salute Mentale dell Ospedale Niguarda Ca´Granda, realizado com o suporte de tutoria do
psiquiatra e psicanalista Carlo Viganò.
86
O estudo desenvolvido nesta pesquisa de aplicação da metodologia da construção do caso clínico ao campo da saúde
mental foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil da Cidade do Rio de
Janeiro.
122
por meio da prática de matriciamento 87 em saúde mental, desenvolvida pelo profissional do
CAPS, praticante da psicanálise e colaborador desta pesquisa, junto à equipe de referência
territorial da Estratégia de Saúde da Família, que identificou a necessidade de
acompanhamento do paciente em questão. Com efeito, a prática coletiva da construção do
caso atravessou diferentes serviços e equipes que compõem a rede intersetorial da atenção
psicossocial, ampliando o alcance de transmissão da política psicanalítica do sintoma a um
campo mais variado de cuidados e intervenções.
O segundo desdobramento de investigação desta pesquisa clínica instaurou a última
etapa da construção realizada pela composição do Laboratório da Construção do Caso
Clínico, caracterizado como um dispositivo de pesquisa que se aproxima do formato de um
cartel. Dessa etapa final, recolhemos considerações importantes sobre a composição de um
dispositivo interessante para a formação do analista e passível de ser aprimorado como
proposta para as instituições psicanalíticas. Vejamos, então, como essas experiências se
desenvolveram com o método de pesquisa em psicanálise utilizado.
3.1. As etapas de aplicação da metodologia da Construção do Caso Clínico
A metodologia da Construção do Caso Clínico foi explorada nessa pesquisa de
doutorado em quatro tempos isolados, embora articulados entre si. A articulação entre essas
etapas está diretamente relacionada com os instrumentos metodológicos que servem de apoio
para a produção das escrituras e re-escrituras do texto do caso clínico. Tais instrumentos
foram traduzidos dos modelos originalmente empregados na Universidade de Milão: o
Roteiro de Apresentação do Caso 88 foi traduzido integralmente, enquanto o Esquema
História/Tratamento/Intervenções 89 obteve pequenas adaptações, passando a ser designado
como Quadro Registro/Intervenções/História. Optamos pela adaptação dos termos para
tornarem mais claras a tradução dos tópicos e a acomodação destes nos instrumentos
empregados.
A construção do caso apresentado se apoia nos registros correspondentes aos onze
primeiros meses de tratamento do paciente no CAPS, sendo este o corte temporal estabelecido
para a construção e exposto nos instrumentos metodológicos. Iniciaremos pela apresentação
87
Prática de trabalho proposta para o acompanhamento de usuários dos serviços de saúde mental realizado conjuntamente
com a Estratégia de Saúde da Família. Tal proposta vai ao encontro da Portaria nº. 154, de 24 de janeiro de 2008, que
fundamenta o trabalho dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF).
88
Ver apêndice I.
89
Ver apêndice II.
123
sistematizada dos encontros clínicos de construção para, em seguida, detalhar os instrumentos
metodológicos empregados.
Primeira etapa: a construção do caso na supervisão analítica
No primeiro momento, o praticante levou o caso para a supervisão analítica 90 e pôde
construir certo número de sessões com o paciente que acompanhava em modalidade de
atendimento individual e semanal no CAPS. O caso foi construído na supervisão analítica do
praticante
com
base
nos
primeiros
registros
escritos
no
Quadro
Registro/Intervenções/História 91 . Em seguida, o praticante iniciou a escritura da construção
do caso no Roteiro de Apresentação do Caso, com as elaborações produzidas nos encontros
de supervisão. O roteiro começou a ser preenchido antes da apresentação do caso à equipe
clínica do CAPS, mas recebeu novos registros e elaborações após as etapas seguintes da
construção coletiva do caso.
Segunda etapa: a construção do caso na reunião de equipe do CAPS
Na segunda etapa, o caso acompanhado pelo profissional de formação lacaniana foi
discutido pela primeira vez com a equipe do CAPS durante o encontro semanal de reunião da
equipe e supervisão clínico-institucional 92 do serviço. A apresentação do caso junto à equipe
do serviço trazia como ‘pontos de impasse’ para o praticante e, portanto, como elementos
balizadores para a construção do caso, a dúvida diagnóstica, o manejo da transferência com o
analista e com a própria instituição e os efeitos terapêuticos rapidamente observados no curso
do tratamento.
A exposição dos registros e elaborações sobre o caso, inscritos no Roteiro de
Apresentação do Caso, foi realizada pelo praticante de modo mais informal, conforme a
dinâmica das reuniões de equipe, sem se prender à leitura propriamente dita do texto da
construção do caso. Após a discussão com a equipe, foi possível incluir, na escritura do
roteiro, as reformulações do projeto terapêutico e a verificação/avaliação do trabalho da
equipe na condução do caso. Convém observar que a utilização desse instrumento
90
Referência ao dispositivo proposto para a formação do analista. Esta difere da ‘supervisão clínico-insitucional’ do CAPS,
apresentada em seguida, pois designa a escolha individual do praticante em ter um supervisor ligado à Escola de Psicanálise,
na qual vincula sua formação, a quem remete a construção dos casos que acompanha.
91
Ver apêndice III.
92
A supervisão clínico-institicional é um dispositivo que fomenta a prática do trabalho em equipe com os usuários
acompanhados nos CAPS. Nos CAPS do Rio de Janeiro, os encontros das equipes com os supervisores costumam ocorrer
uma vez por semana, no horário que o serviço disponibiliza para a reunião de equipe. Convém assinalar a importância da
inserção de psicanalistas nessa função da supervisão como forma de situar a transmissão da orientação psicanalítica sobre a
leitura dos casos e sua contribuição na avaliação de um acompanhamento clínico.
124
metodológico permitiu introduzir uma lógica de escansão e de redução das associações e dos
deslizamentos significantes no relato do praticante sobre o caso, favorecendo uma
demonstração no nível formal do estabelecimento do sintoma, em detrimento de certa
tendência de exaustão de detalhamentos no relato do caso.
Nesse momento, optou-se pela ausência do pesquisador na construção do caso,
realizado na reunião de equipe do CAPS, para comprovar a viabilidade de aplicação do
método empregado pelo próprio praticante e, portanto, por qualquer profissional referido aos
princípios clínicos da psicanálise que atue nos serviços de saúde mental. Cabe, ainda,
esclarecer que a metodologia da Construção do Caso Clínico foi possível de ser aplicada
nesse encontro de supervisão clínico-institucional, uma vez que se tratava, pela primeira vez,
da discussão do caso em questão, preservando, com isso, o caráter pontual dessa metodologia
de pesquisa. Caso contrário, não poderíamos reduzir a discussão dos casos, realizada
frequentemente nos encontros de supervisão clínico-institicional dos CAPS, ao rigor
metodológico dessa proposta de Construção do Caso Clínico, cuja premissa é a de que o caso
seja apresentado e construído, pontualmente, uma única vez. Tal premissa esclarece uma sutil
diferença entre a discussão desenvolvida regularmente a partir da complexidade dos casos e a
construção do caso que concerne a um momento preciso de avaliação da condução clínica de
uma equipe; embora ambos os termos estejam articulados na metodologia apresentada.
Terceira etapa: a construção do caso na prática do apoio matricial
Nessa etapa, a construção do caso foi aplicada à prática de matriciamento em saúde
mental, desenvolvida pelo profissional do CAPS com a equipe que acompanha o paciente e
sua mãe na Clínica da Família de referência territorial do serviço de atenção psicossocial. A
função do matriciador de saúde mental se caracteriza pelo suporte técnico e clínico às equipes
da Estratégia de Saúde da Família na condução de casos em sofrimento psíquico,
contribuindo, ainda, com a complexa tarefa de ordenamento do fluxo dos casos encaminhados
aos serviços de saúde mental.
A proposta do apoio matricial às equipes da Estratégia de Saúde da Família (ESF) vem
sendo desenvolvida na cidade do Rio de Janeiro com o suporte de profissionais que atuam nos
serviços de atenção psicossocial (CAPS), nos ambulatórios de saúde mental e, em especial,
nos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). A integração desses profissionais com as
equipes da ESF é apoiada pela prática de matriciamento realizada por meio de interconsultas,
de visitas domiciliares, de encontros para a discussão dos casos, entre outras intervenções
desenvolvidas territorialmente, como ações de compartilhamento do cuidado em saúde mental
125
que seguem uma lógica de corresponsabilização pelos casos acompanhados nas Clínicas da
Família. Trata-se de uma prática de trabalho em rede que favorece a ampliação de
procedimentos clínicos e de cuidados em saúde mental pela condução compartilhada dos
casos, conforme preconizado pelas diretrizes da Reforma Psiquiátrica.
Nessa etapa da construção do caso, a presença do pesquisador no encontro realizado
com equipe de saúde da família foi essencial para atestar a viabilidade de aplicação dessa
metodologia de pesquisa e de trabalho em equipe nas reuniões de matriciamento em saúde
mental. Nesse encontro de discussão clínica, o praticante apresentou novamente seu registro
inscrito no Roteiro de Apresentação do Caso, mas, dessa vez, já atravessado pela
reformulação do projeto terapêutico do paciente, como efeito da construção coletiva do caso
realizada anteriormente com a equipe do CAPS. A exposição desses registros à equipe da
Estratégia de Saúde da Família seguiu o mesmo formato, mais informal, empregado na
reunião de equipe do CAPS.
A construção tornou-se operativa, nesse terceiro momento, ao recolher dos relatos dos
agentes comunitários de saúde 93 (ACS), da enfermeira e da médica de família as hipóteses e
dificuldades que envolviam, especialmente, alguns acontecimentos com a mãe do paciente. A
partir dessa etapa, a avaliação da equipe da ESF sobre a condução do caso foi incluída no
roteiro, atestando a importância da construção
desse
trabalho, em rede,
pelo
compartilhamento de uma leitura clínica sobre o caso.
Quarta etapa: a proposta do Laboratório da Construção do Caso Clínico
A última etapa da construção do caso desenvolveu-se com um desdobramento
investigativo, proposto especificamente para essa pesquisa de doutorado. Trata-se da proposta
de constituição de um encontro para a construção do caso clínico que se aproximou do
formato de um ‘cartel pontual’, realizado entre os psicanalistas envolvidos nessa pesquisa e na
condução do caso escolhido para a tese: os pesquisadores (a doutoranda, a orientadora da
pesquisa e proponente do método), o praticante e o supervisor clínico 94 . Cabe assinalar que o
93
Os Agentes Comunitários de Saúde costumam ser moradores do bairro em que realizam a assistência comunitária em saúde
e, frequentemente, trazem informações precisas sobre o histórico dos pacientes na comunidade onde residem.
94
Citados respectivamente: Daniela Bursztyn, Ana Cristina Figueiredo, Carlo Viganò, Wagner Erlange e Marcus André
Vieira. A rigor, como mencionado no segundo modo de aplicação da metodologia da Construção do Caso Clínico, conforme
o primeiro item do segundo capítulo, esse ‘Cartel da Construção do Caso’ corresponderia a um dispositivo de formação do
analista, que poderia ser inscrito na Escola Brasileira de Psicanálise (EBP-Rio). Nesse formato, os analistas que comentariam
a leitura do texto do caso estariam, preferencialmente, ‘de fora’ da condução clínica do caso e não haveria, portanto, a
presença do supervisor do caso. Entretanto, optamos pela ‘adaptação’ para o formato acima descrito, por considerarmos ser
esse um dispositivo criado a partir do caso clínico e como apoio para a metodologia proposta nesta pesquisa de doutorado e,
por isso, foi interessante envolver os analistas pesquisadores e o supervisor clínico que, por sua vez, trouxe contribuições
fundamentais para o desenvolvimento metodológico desta pesquisa.
126
formato proposto para esses encontros favorece o caráter pontual da prática de construção dos
casos, uma vez que sua configuração visa a uma intervenção específica por meio de encontros
que se compõem e se dissolvem pontualmente entre seus participantes.
A princípio, a proposta de formação de um Cartel da Construção do Caso estava
relacionada à sua composição naturalmente constituída pela implicação de cinco analistas,
envolvidos na leitura do caso e no desenvolvimento metodológico desta pesquisa de
doutorado. Com a composição de cinco participantes, seria viável retomar a proposição de
Lacan para a constituição de um Cartel 95 , na qual entre esses analistas, um seria escolhido
pelos demais para assumir a função do ‘mais um’, configurando, assim, a composição de 4+1
participantes. Nossa proposta inicial tentou aproximar a posição do pesquisador analista à
função do ‘mais um’ do Cartel da Construção do Caso, já que este ocupa um lugar de ‘agente
provocador’ da elaboração de um trabalho em equipe, tanto no dispositivo de formação
analítica do cartel como nas etapas da construção do caso, aplicada a um campo heterogêneo
de saberes sobre a clínica. Nessa perspectiva, o pesquisador como ‘mais um’ assumiria uma
posição externa à condução do caso que o permite interrogar e produzir ‘perfurações’ no
próprio texto da construção coletiva do caso, sem que esteja envolvido diretamente na
condução do tratamento junto à equipe, ao praticante ou ao próprio paciente.
Nossa hipótese foi, então, a de que o pesquisador poderia convidar ao trabalho do
Cartel da Construção do Caso aqueles analistas interessados na leitura da escritura clínica, que
expõe o testemunho do praticante e da equipe como verificação da condução clínica e
institucional do caso. No entanto, notamos que a função de ‘mais um’ 96 se apresentaria como
95
Em 1964, quando funda sua Escola, Jacques Lacan inventa uma nova forma de trabalho em pequenos grupos – o cartel –
em oposição aos ‘modos de agrupamento’, estabelecidos pela IPA para o ensino da psicanálise. Proposto como órgão de base
de sua Escola, tal dispositivo tem o nome oriundo da palavra latina cardo, que quer dizer ‘dobradiça’. Sua estrutura,
consonante com a do próprio sujeito, está calcada na topologia do nó borromeano, em que x (número de aros) mais 1
(qualidade borromeana) se enlaçam, preservando o fundamental para o desejo de cada um: o furo no saber. Incentivando a
transferência de trabalho, e marcado por uma temporalidade em que o fim está posto de entrada, o cartel introduz o vivo na
experiência de trabalho na Escola, enlaçando a política e a episteme com a lógica que sustenta o princípio mesmo da
experiência psicanalítica. O Cartel é composto por três a cinco integrantes Mais Um, a partir de um desejo de saber sobre
algum tema em psicanálise, referido à clínica, teoria, política, ou nas conexões com outros campos de saber. O trabalho tem a
duração de um a dois anos, quando o cartel é dissolvido, sendo as produções individuais apresentadas em uma Jornada
convocada exclusivamente para receber os resultados dos trabalhos, que são ofertados à comunidade analítica, também por
meio das atas que reúnem tais textos. Fonte: http://www.ebpsc.com.br/wordpress/?page_id=5, acessado em 14/03/2012.
96
O Mais Um é um membro convidado pelos demais membros de um Cartel e tem a função essencial de manter a
operatividade do grupo, estando também movido por um interesse de saber sobre o tema de pesquisa proposto. É o
responsável por ‘empuxar’ a todos à tarefa que os reúne e, para levá-la adiante, trabalha na contramão dos efeitos imaginários
que a ele são conferidos, necessariamente, tal como nos aponta as descobertas freudianas sobre os efeitos da psicologia das
massas: todo grupo está sujeito aos efeitos de um líder, do qual – colocado como ideal de eu – será esperado o saber, assim
como será o depositário do amor e do ódio que seria conferido ao Pai. Espera-se que o Mais Um seja um integrante advertido
de tais efeitos, para poder manejá-los, desconsistindo o lugar do líder e também das identificações horizontais, que são as
fontes das obscenidades nos grupos, tal como nos aponta Lacan. O Mais Um também tem a incumbência de inscrever o cartel
na Escola, assim como a de dissolvê-lo, quando as condições de trabalho se afastam da possibilidade de levar a tarefa a seu
termo. Fonte: http://www.ebpsc.com.br/wordpress/?page_id=5, acessado em 14/03/2012.
127
aquele que propõe ao Cartel da Construção do Caso um trabalho de releitura do texto da
construção, não estando essa função fixada na figura do pesquisador. Mas dirigida ao
integrante escolhido entre os demais membros do Cartel, que poderia assegurar as
contribuições de cada um desses e/ou de uma equipe de saúde mental na elaboração coletiva
que se produz na construção do caso.
Identificamos, nessa proposta, a possibilidade de constituição de um dispositivo
interessante para a formação do analista por incluir o caso clínico no eixo do trabalho
investigativo de um Cartel, fazendo avançar a psicanálise e sua transmissão entre os próprios
analistas em formação. Desse modo, poderíamos recolher, nas primeiras etapas de aplicação
da Construção do Caso Clínico, os efeitos da transmissão da psicanálise para ‘não analistas’,
enquanto, nessa última etapa, poderíamos extrair, ainda, a pertinência dessa metodologia de
pesquisa para a própria formação do analista.
Para essa etapa final, agendamos dois encontros, cuja composição se aproximou do
formato de um Cartel da Construção do Caso Clínico. No primeiro encontro, os participantes
se reuniram e se ocuparam, particularmente, da discussão e dos esclarecimentos relativos à
metodologia da construção do caso clínico. Os pontos abordados e esclarecidos, nessa
discussão inicial, referiam-se aos instrumentos empregados, às etapas de sua aplicação
metodológica e ao rigor conceitual da estrutura de um cartel. Essa ocasião foi fundamental
para o entendimento dos participantes em relação ao método de pesquisa e para a
problematização da própria concepção de cartel e da função do pesquisador como ‘mais um’.
De saída, a proposta da função do ‘mais um’, relacionada à posição do pesquisador na
construção do caso, foi problematizada diante de um impasse ‘infeliz’, instaurado na ocasião
desse primeiro encontro. A recente notícia do falecimento do proponente do método, que
também se envolvera diretamente nessa proposta do Cartel da Construção do Caso, nos
impediu de avançar na nossa hipótese inicial sobre a função do ‘mais um’ na pesquisa em
psicanálise, na medida em que, naturalmente, essa função lhe fora designada pelos demais
participantes.
Carlo
Viganò
acompanhou
continuamente
as
primeiras
etapas
de
desenvolvimento da metodologia empregada nesta pesquisa, tendo mantido viva e, cada vez
mais, fecunda sua contribuição para a construção do caso em questão. Não poderíamos negar,
contudo, o modo como estivemos causados pela ‘presença de uma ausência’ tão marcante e
decisiva para o desenvolvimento deste trabalho, o que resultou na nossa escolha de eleger o
proponente do método como o ‘mais um’ dessa proposta de cartel.
Além desse impasse, ainda deparamos com outro limite frente ao rigor da proposta de
Lacan para a formação do Cartel da Escola, o que nos impediu de sustentar esse dispositivo
128
constituído por uma pesquisa de doutorado sob as premissas necessárias para a composição de
um cartel. Por um lado, tal impedimento se apresentava na medida em que propúnhamos um
dispositivo de construção de casos que tangenciava a formação do analista, sem, no entanto,
haver qualquer registro formal de inscrição em uma Escola de Psicanálise. Por outro lado, se a
proposta de um Cartel é a de produzir intervenções teóricas e clínicas para fazer avançar o
ensino e a transmissão da psicanálise, observamos, nesse aspecto, certa correspondência com
esse dispositivo de pesquisa ao privilegiar o estudo do caso como meio de transmissão da
psicanálise entre analistas e praticantes de uma determinada comunidade psicanalítica.
Após essa discussão em torno dos impasses encontrados para sustentar a composição
dessa última etapa de pesquisa como um cartel, agendamos o segundo encontro para a
construção do caso entre os participantes. Esse último encontro, aqui nomeado Laboratório
de Construção do Caso Clínico 97 , continuou se desenvolvendo aproximado ao formato de
um cartel, sendo pertinente, no entanto, a escolha de um novo termo que melhor defina a
etapa conclusiva de aplicação do método de pesquisa. Essa última etapa da construção
favoreceu, então, a formalização do texto final da construção do caso, realizado pelo
praticante e do texto elaborado pela pesquisadora sobre os efeitos de transmissão da
psicanálise, extraídos dessa experiência de pesquisa; ambos apoiados pelas considerações
recolhidas da discussão realizada em torno do caso e das etapas anteriores da construção.
Para esse último encontro, foi solicitado ao praticante que enviasse para os demais
participantes os instrumentos metodológicos nos quais constavam seus registros sobre o caso.
Antes do encontro, cada participante se comprometeu com a leitura de todo o material
enviado e, a partir daí, cada um pôde introduzir algumas hipóteses, pontuações e
contribuições acerca da narrativa do caso. Para além dos aspectos teóricos que cada analista
participante poderia assinalar em sua leitura sobre o caso, considerou-se a importância de
enfatizar os efeitos das intervenções clínicas durante esse processo investigativo da
construção do caso. Assim, até mesmo o tema da pesquisa de doutorado, abordado nesse
último encontro, “A política do sintoma na Construção do Caso Clínico: o que é possível
transmitir ao campo da saúde mental?”, esteve condicionado ao estudo do caso e não a uma
determinada teoria. As considerações produzidas por cada analista participante foram
97
Esse termo foi empregado pela própria doutoranda, com as reflexões que surgiram a posteriori à discussão realizada nos
dois encontros entre os pesquisadores, o praticante e o supervisor clínico. A substituição do termo Cartel para ‘Laboratório de
Construção de Casos Clínicos’ não exclui o modo de funcionamento de um ‘cartel pontual’, identificado e proposto para essa
última etapa metodológica da pesquisa, mas amplia a possibilidade de inscrição do rigor dessa proposta nos termos de uma
pesquisa clínica e acadêmica. Nessa perspectiva, a noção de ‘Laboratório’ traduz, ainda, a idéia de um espaço destinado ao
estudo de casos clínicos, com a aplicação de uma metodologia de intervenção e investigação capaz de formalizar e
demonstrar a operação lógica da psicanálise e seus efeitos na condução de cada caso.
129
registradas, gravadas e transcritas 98 , servindo de suporte tanto para a escritura final do caso,
formalizada pelo praticante, quanto para o texto de conclusão do método explorado pela
pesquisadora.
As etapas de escrituras e re-escrituras do texto da construção do caso atravessaram
cada um desses quatro momentos de aplicação da metodologia de pesquisa. Essas etapas
foram apoiadas pelos instrumentos metodológicos utilizados pelo praticante e pelo
pesquisador, conforme a ilustração seguinte e sua sistematização:
Figura 3.1. Ciclo das Etapas da Construção do Caso Clínico
Fonte: Elaborado pela autora
Escritura do praticante
O profissional de formação analítica de referência para essa pesquisa, desenvolvida no
CAPS, produziu um material escrito para cada etapa da construção do caso clínico, utilizando
os respectivos instrumentos metodológicos:
1ª Escritura: os registros dos encontros com o paciente e a elaboração desses registros em
supervisão analítica, por meio da construção de certo número de sessões.
Instrumentos Metodológicos: Quadro Registro/Intervenções/História 99
Roteiro de Apresentação do Caso 100
Analisando esses instrumentos, verificamos uma distinção entre a escrita do
praticante, transposta ao ‘esquema’ como registro literal do dizer do paciente nas sessões, e a
escritura clínica, iniciada pelo praticante no ‘roteiro’ como uma construção em torno dos
impasses do tratamento, que pôde ser formalizada com as elaborações extraídas na supervisão
98
Ver apêndice IV
Ver apêndice III.
100
Ver apêndice I.
99
130
analítica. Tal distinção nos permite retomar o modo como o testemunho do real em jogo na
experiência clínica se apresenta na escritura da construção do caso, em que o saber que se
constrói é aquele que deriva da narrativa clínica do caso e da equipe clínica que dele se ocupa.
De outro modo, a escrita como ato de um autor 101 permite construir um saber teórico ou
individual daquele que testemunha determinados acontecimentos em nome próprio, seja no
âmbito artístico, seja no acadêmico.
2ª Escritura: a construção do caso com a equipe do CAPS.
Instrumento Metodológico: Roteiro de Apresentação do Caso 102
Nesse instrumento, foram incluídas novas considerações sobre a relação do paciente
com os profissionais do serviço, o efeito da construção do caso como estratégia clínica de
pluralização da transferência e a avaliação da equipe sobre a condução do caso. O roteiro foi
utilizado como texto norteador para a discussão em equipe, revelando-se um instrumento
capaz de evidenciar os pontos menos esclarecidos em relação ao caso levados à construção
coletiva. Trata-se, no entanto, de um registro particular do praticante, que favorece a
apresentação mais precisa e demonstrativa desses pontos de impasse em relação ao caso. Esse
instrumento não deve constar no prontuário institucional do paciente, mas pode estar
disponível para o acesso do profissional da equipe que se interesse pela leitura desse material.
3ª Escritura: o terceiro momento da construção do caso realizado com profissionais da
Estratégia de Saúde da Família (ESF), que acompanham o paciente e sua mãe.
Instrumento Metodológico: Roteiro de Apresentação do Caso 103
Após a discussão com a equipe da ESF, foram incluídas no roteiro novas informações
sobre a relação do paciente com sua mãe, e a avaliação, realizada conjuntamente com a
equipe, sobre a importância do acompanhamento familiar na Clínica de Família.
4ª Escritura: o último momento da construção do caso realizado entre psicanalistas no
Laboratório da Construção do Caso Clínico.
Instrumentos Metodológicos: Quadro Registro/Intervenções/História
Roteiro de Apresentação de Caso
Transcrições da construção do caso 104
101
Referência à discussão desenvolvida no segundo item do capitulo 2, p. 102.
Ver apêndice I.
103
Ver apêndice I.
104
Ver apêndice IV.
102
131
Trata-se da última escritura da metodologia da construção do caso clínico, formalizada
pelo praticante de modo compilado, a partir das escansões produzidas nos textos anteriores e
demarcadas pela leitura dos analistas envolvidos nessa última etapa da construção. Nesse
momento, a narrativa (do paciente, das equipes, dos familiares, etc.) torna-se a construção do
caso. A finalização do texto da construção do caso pode ser exposta a um público mais amplo
e/ou publicada como demonstração das contribuições da operação analítica, aplicada à prática
coletiva da atenção psicossocial.
Convém esclarecer que a finalização desse texto elaborado pelo praticante foi
submetida à revisão do pesquisador, tendo em vista o rigor exigido para a publicação do texto
da construção do caso em uma pesquisa acadêmica de doutorado. Para a demonstração do
método de pesquisa, optou-se, ainda, por uma exposição mais detalhada das etapas da
construção no próprio texto do caso. Para outras modalidades de exposição ou publicação, no
entanto, o praticante poderá se apropriar do texto final da construção do caso de modo ainda
mais compilado, conforme seus interesses de demonstração.
Escritura do pesquisador
O pesquisador produziu um novo texto após a última etapa da Construção do Caso,
utilizando os mesmos instrumentos metodológicos empregados pelo praticante.
5ª Escritura: o texto final da construção do caso produzido pelo praticante é articulado com o
tema da pesquisa de doutorado e com as contribuições recolhidas da última etapa da
construção realizada entre psicanalistas.
Instrumentos Metodológicos: Quadro Registro/Intervenções/História
Roteiro de Apresentação de Caso
Transcrições da construção do Caso
Texto final da Construção do Caso
A partir do texto da construção do caso, finalizado pelo praticante colaborador da
pesquisa, e das contribuições recolhidas na última etapa da Construção do Caso Clínico, o
pesquisador produziu uma escritura compilada do caso, tomando-o como apoio para a
formalização de um saber teórico-clínico sobre a transmissão da política analítica do sintoma
no campo da saúde mental. O texto finalizado pelo praticante produziu essa nova escritura,
contendo as considerações extraídas da leitura dos analistas em torno do ato demonstrado no
après-coup da construção coletiva, particularmente, com as passagens e escansões que
atestam as modificações do sintoma ao longo do tratamento. Essa escritura clínica da
132
construção testemunha um modo de transmissão da operação analítica do sintoma extraído
das escrituras anteriores da construção coletiva do caso.
3.2. As escrituras clínicas da construção do caso
3.2.1. A escritura clínica do praticante
O Caso Dario ∗
A construção do caso foi empregada por um profissional de formação analítica diante
das dificuldades relacionadas à condução do tratamento de um paciente, que aqui será
chamado de Dario, no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). Dario tem 45 anos e é
morador de uma comunidade cercada por uma das favelas mais violentas da cidade do Rio de
Janeiro. Iniciou tratamento no CAPS em novembro de 2010, a partir de três visitas
domiciliares realizadas por esse profissional, com a equipe de referência territorial da
Estratégia de Saúde da Família (ESF), que identificou a necessidade de acompanhamento do
CAPS. Nessa ocasião, Dario completava ‘trinta anos sem sair de casa’, conforme o relato da
mãe do paciente com quem a equipe da ESF conseguiu obter informações, já que Dario
recusava-se a receber qualquer visita. O paciente vivia somente com a mãe idosa em um
apartamento pequeno e bastante simples, porém cuidado e organizado. Assim, a mãe revelou
o histórico familiar de Dario: a família de cinco filhos morava em outra casa no mesmo bairro
e, após falecimento do pai, no ano de 1993, Dario passou a viver somente com a mãe.
Segundo a mãe, após uma abordagem policial, vivenciada aos 15 anos, Dario não conseguiu
mais sair de casa e passou a se relacionar com dificuldades também com os irmãos e
familiares.
Antes da equipe do CAPS agendar a primeira visita domiciliar, obteve-se a informação
pela equipe da ESF de que a médica generalista da Clínica da Família, que tem formação em
psiquiatria, havia indicado para esse caso o diagnóstico de ‘esquizofrenia’, embora a mesma
ainda não o tivesse atendido, tendo apenas escutado o relato da mãe. De saída, a proposta
levantada pelo praticante para a equipe da ESF foi a de que os profissionais não ‘se
prendessem a um diagnóstico’ e que tentassem uma aproximação do paciente sem um ‘saber
previamente estabelecido’ sobre o seu diagnóstico. Com essa recomendação, a visita a casa
∗
Dario, o nome fictício dado ao paciente em questão é uma homenagem à memória de Carlo Viganò, proponente da
metodologia da Construção do Caso Clínico empregada nesta pesquisa em psicanálise. Dario é um nome próprio comum na
língua italiana, mas ‘da Rio’ significa também ‘do Rio’. Enfim, uma homofonia que se traduz em homenagem por meio da
construção de um caso DaRio, da cidade do Rio.
133
desse paciente foi realizada pelo praticante na companhia de duas agentes comunitárias da
equipe da Clínica da Família.
Chegando à residência de Dario, a equipe da ESF e o profissional do CAPS foram
recebidos, na sala de estar, pela mãe do paciente, que informou que o filho tinha aceitado a
visita da equipe. A mãe foi até o quarto ao lado e retornou dizendo que Dario ‘não queria
sair’ para receber visitas. Mas, em seguida, entregou uma carta escrita por ele naquele mesmo
dia e endereçada à equipe presente na visita domiciliar. Apesar de sua recusa em ter um
contato direto com os profissionais que ali estavam, Dario tomou a iniciativa de fazê-lo pela
carta. De imediato, o praticante acusou o recebimento da carta e propôs lê-la em voz alta para
compartilhar a leitura de seu conteúdo, tanto com os demais profissionais presentes, quanto
com o próprio paciente que se encontrava no cômodo ao lado. Nesse momento, o praticante
supôs que Dario também poderia escutar o que dizia pela primeira vez com o seu escrito.
Ao escutar a leitura da carta, a equipe da ESF pareceu impactada com a clareza do seu
conteúdo, mas ao mesmo tempo, permaneceu sem saber como abordar esse paciente. O
praticante solicitou, então, que a mãe o convidasse, mais uma vez, para vir até a sala de estar,
mas Dario se recusou novamente a sair. Então, o profissional propôs à mãe que solicitasse a
Dario que o recebesse em seu quarto, proposta por ele prontamente aceita. Ao entrar em seu
quarto, o praticante o cumprimentou com um aperto de mãos, correspondido ainda com certa
inibição. Dario mantinha uma aparência bem cuidada e um discurso organizado e coerente.
Apontou para a poltrona ao lado de sua cama e convidou o profissional para se sentar ao seu
lado, mostrando boa receptividade, ainda que permanecesse a maior parte do tempo sem lhe
dirigir o olhar.
Dario fez um relato sobre diversos temas que já adiantara na carta. Falou de seu
isolamento, demarcando suas expectativas em relação ao tratamento: ‘comecei a ficar isolado
com treze anos. Foi antes do episódio da polícia. Nunca veio nenhum profissional aqui.
Penso em ter amigos, arrumar uma namorada, voltar a estudar’. Falam, ainda, sobre o
tratamento que poderia realizar no CAPS e sobre a disponibilidade do profissional de retornar
a sua casa diante de sua dificuldade de ‘sair’. Na visita domiciliar seguinte, situou nesse relato
um interesse específico: ‘Queria me relacionar melhor com minha família.’; associando essa
fala às lembranças do ‘bom relacionamento’ que mantinha com seu pai, antes do falecimento
dele, e com sua mãe, e ao ‘medo da violência e da internação psiquiátrica’ que tinham
impedido que o filho ‘saísse de casa’, até mesmo para buscar ajuda médica.
Após três atendimentos domiciliares, realizados no quarto do paciente, Dario aceitou
comparecer no CAPS na semana seguinte, acompanhado de sua mãe. Sua quarta entrevista
134
foi, então, realizada no CAPS. Revelou não ter sentido muita dificuldade de sair de casa para
essa consulta e se propôs a acompanhar a mãe, em seguida, ao supermercado. Diante do
pedido de uso ‘dos remédios para o seu problema’, registrado na sua carta, o paciente foi
também atendido pela psiquiatra nessa primeira ida ao CAPS.
Na última sessão de 2010, antes das festividades de Natal e Ano Novo, Dario
agradeceu ao analista por tê-lo ajudado a sair de casa: ‘foi graças a você’, pedindo-lhe um
abraço. Nesse momento, a mãe de Dario também se aproxima para agradecer ao analista a
recuperação de seu filho e, então, o praticante interveio, dizendo-lhe que ‘antes de qualquer
coisa, a saída de Dario se devia a ele próprio, ao seu desejo de sair’. A partir daí, o
praticante começou a observar o surgimento de uma transferência fortemente ‘idealizada’
desse sujeito em relação ao analista. Com isso, aposta na possibilidade de ‘pluralizar’ a
transferência
como
estratégia
para
envolver
outros
profissionais
do
CAPS
no
acompanhamento do caso. O paciente, então, começou a ser atendido pela assistente social do
serviço, que o ajudou com uma nova demanda: “Assim que tirar meus documentos, vou
começar a sair sozinho. Quero voltar a estudar”.
Desde o primeiro atendimento realizado no CAPS, Dario foi informado das diversas
atividades que são oferecidas pelo serviço, mas preferiu não participar das oficinas e grupos.
O paciente realizava apenas tratamento analítico e psiquiátrico no CAPS, até ter aceitado os
convites da equipe para participar das atividades oferecidas ‘fora’ do serviço. Dario
acompanhou, então, o bloco de carnaval “Loucura Suburbana”, com outros usuários e
técnicos do CAPS e, dessa vez, esteve desacompanhado de sua mãe. Olhava atentamente
todos os detalhes e cores do evento com certo ar de contemplação e de satisfação. Voltou para
casa com transporte público na companhia de um outro paciente e, quando retornou ao CAPS,
revelou: “adorei o carnaval!”. Participou, ainda, da comemoração do Dia Nacional da Luta
Antimanicomial, realizada na Praça da Cinelândia. E, no mês seguinte, da festa junina do
CAPS.
A partir dos relatos e demandas que começaram a surgir nos atendimentos analíticos
realizados no CAPS, Dario passou a procurar a assistente social com maior frequência,
solicitando-lhe suporte para a retirada de seus documentos civis, pois tinha apenas a ‘certidão
de nascimento’. O paciente e sua mãe passam, então, a serem orientados a retirar os demais
documentos como cadastro de pessoa física (CPF), certificado de reservista e título de eleitor.
Em seguida, Dario começou a afirmar o seu desejo de retomar os estudos. Em junho de 2011,
o paciente foi, então, encaminhado a uma escola, que oferece um projeto de Educação para
Jovens e Adultos, e voltou a cursar o ensino fundamental. A mãe de Dario, por sua vez, foi
135
orientada pela assistente social a participar dos encontros do Grupo de Família, o qual passou
a frequentar assiduamente, sem mais acompanhar o filho nas consultas.
Para que a Construção do Caso Dario?
Aproximadamente, com seis meses de tratamento no CAPS, o praticante observou
que, entre os casos complexos discutidos na reunião de equipe do serviço, o caso Dario ainda
não havia perpassado essa discussão. Ao praticante, eram feitas questões quanto aos ‘efeitos
terapêuticos rápidos’, obtidos na condução do tratamento do paciente, quanto à dúvida
diagnóstica e ao manejo da transferência com o analista e com a equipe do CAPS. E foram
esses os pontos pouco esclarecidos em relação ao caso, levados para construção na supervisão
analítica. Apesar da aposta na ‘pluralização da transferência’ ter se desdobrado nos
atendimentos com a assistente social e com a psiquiatra, o praticante notava que o restante da
equipe se demonstrava ‘pouco curiosa’ em relação ao caso. Sua suposição era a de que os
próprios efeitos terapêuticos dos atendimentos individuais poderiam ter causado na equipe
certa ‘despreocupação’ em relação ao tratamento de Dario no CAPS.
Nas supervisões analíticas, a dúvida diagnóstica se apresentou de imediato. A
princípio, o praticante e a psiquiatra acreditavam tratar-se de um caso grave de neurose
obsessiva, pela ausência de fenômenos elementares, como delírios e alucinações, pela forma
‘coerente e organizada’ de Dario se expressar, pelos re-arranjos realizados rapidamente pelo
paciente no laço social e pela resposta satisfatória ao uso de psicotrópicos antidepressivos. A
informação dos ‘trinta anos sem sair de casa’ representava, porém, um impasse quanto a essa
hipótese diagnóstica e, ao mesmo tempo, o que causava o trabalho investigativo do praticante
nas supervisões analíticas.
Em relação ao desencadeamento dos sintomas, Dario revelava, já nas entrevistas
iniciais, a recordação de um episódio vivenciado quando tinha 13 anos e foi abordado por
policiais quando estava com os amigos. Contrariamente à sua mãe, que localiza esse episódio
como o ‘desencadeador de sua doença’, Dario afirmava que tal agressão não teria provocado
seu isolamento. Essa divergência de Dario, em relação à opinião de sua mãe sobre a origem
do que nomeia como ‘sintomas de isolamento’, aponta tanto para uma posição discursiva já
descolada da fala de sua mãe, permitindo-lhe enunciar seu sofrimento ao seu modo próprio,
como para a ausência de um evento traumático causal: “não teve um motivo específico”,
afirmou o paciente.
Outros elementos etiológicos que indicavam o desencadeamento dos sintomas
começaram a ser construídos na supervisão analítica, a ponto de recolher, nos relatos do
136
paciente, a manifestação de sintomas alucinatórios, como uma “sensação de que a mente era
muito grande e depois ficava muito pequena”, experimentada aos 8 anos de idade. Ainda
sobre sua infância, recordava do incômodo sentido diante do “barulhinho do pingo da chuva:
quando pingava sem parar, ficava muito mal. Rezei, aí parou o barulho”. Outra passagem
significativa para a investigação diagnóstica está relacionada à reação que Dario teve na
adolescência, quando traficantes entraram na sua casa e encostaram uma metralhadora em sua
cabeça: “não fiquei com medo de morrer, mas fiquei com medo de acenderem a luz, porque
não gosto de que as pessoas me olhem”.
Entre esses elementos etiológicos, é importante situar um modo de defesa contra os
‘sintomas de contaminação e de isolamento’ que o paciente refere ter criado ao longo dos
últimos trinta anos: a criação de “um mundo mágico”, “um mundo perfeito, um paraíso”, no
qual poderia fazer tudo, já que “levava as coisas do mundo real para a minha fantasia”. Dario
descreve seu “mundo imaginário” como sendo da ordem de uma ‘ficção’ e o justifica como
sendo, naquela ocasião, o modo que encontrava para acessar outras pessoas sem sair de casa,
ou seja, para acessar o Outro de modo mais protegido: “era a forma que tinha de me
relacionar. Hoje eu posso me relacionar diretamente. Me sentia muito acuado. As pessoas me
criticavam muito quando eu fiquei doente. Elas me feriam. Ficava pior ainda, aí tinha umas
depressões. Isso tem diminuído.”. Assim, o paciente revela que quando começou a isolar-se,
criou “um mundo novo”, no qual se relacionava com todos, inclusive com as mulheres que
via passar pela janela, e no qual poderia “reproduzir a sua família e ter uns cinco filhos”.
Desse modo, Dario avalia que poderia “trazer as coisas do mundo externo para o meu
mundo”, como um arranjo singular que, ao seu modo, traduz: “o real eu levo para o mundo
imaginário”.
Diante das associações do paciente, recolhidas mais precisamente na supervisão
analítica, a hipótese diagnóstica de psicose começou a ser considerada pelo praticante. Nessa
perspectiva, os efeitos terapêuticos produzidos pelas intervenções clínicas passam a ser
investigados, em especial, com a retirada de documentos e do retorno de Dario aos estudos
escolares. Supõe-se que o retorno à escola, possivelmente, represente uma solução subjetiva
construída por Dario para sustentar o seu ‘desejo de sair’ do isolamento e um lugar próprio no
laço social. Ainda no início do tratamento, o paciente conseguiu ‘retirar seus documentos e
começou a sair sozinho’, conforme literalmente planejara. Com efeito, Dario criou condições
para transitar do ‘mundo imaginário’ que criara para o ‘mundo real’, no qual – desligado da
mãe’ – passou a conseguir “ter uma estratégia de comunicação para poder pôr para fora”, o
que em suas palavras “antes acontecia só com a mãe e, agora, tem ajudado nos
137
relacionamentos, na escola”. O retorno aos estudos escolares foi, então, mais um dos
aspectos levantados na supervisão analítica, realizada como primeira etapa para construção
desse caso. Nesse momento, o praticante pôde situar a importância do movimento sustentado
por Dario de ‘voltar a estudar’, como modo de reconstituir uma história defasada, frente ao
que foi perdido nos últimos trinta anos e que, portanto, é passível de ser esquecido e
reconstruído. Essa seria a possibilidade de Dario de construir uma nova versão para a sua vida
e de ressignificar o ‘tempo perdido’, ainda que construindo uma versão ‘mais leve’, coerente e
organizada, para o sofrimento que o acometeu por tantos anos. Nesse aspecto, é situado o
papel da equipe do CAPS e, mais especificamente, a função do analista como a de ouvir,
recolher, registrar e acompanhar cada etapa dessa reconstrução que permitiu a Dario “ver as
coisas pela primeira vez e ficar encantado com o que via”.
Ainda sobre o retorno aos estudos escolares, destaca-se um dado clínico interessante: a
invenção do personagem Tubarão. Dario cria uma personagem para responder às perguntas de
seus colegas de escola sobre sua vida nos últimos anos: onde trabalhou, se é casado, entre
outras. Inventou essa personagem baseado na vida de um amigo de seu irmão, que “é tudo o
que eu queria ser: um pai de família, um bom amigo”, para não ter que dizer aos colegas que
ficou trinta anos sem sair de casa. Esse parece ter sido um arranjo produzido pelo paciente
para se preservar do olhar invasivo do Outro: “acho que é porque eu tenho medo das pessoas
me discriminarem se souberem quem eu sou”. Um arranjo singular desse sujeito que, sem a
mediação da fantasia, se utiliza de um personagem como semblante para uma mediação
possível entre a reclusão, que o faz escapar do olhar do Outro que o contamina, e o Tubarão,
que o permite ser ‘visto’ como um ‘bom homem’, admirado pelo que faz.
Com essas elaborações, o praticante retoma seu interesse de ampliar a investigação e a
discussão do caso junto às equipes do CAPS e da ESF, mantendo a aposta na pluralização da
transferência desse sujeito com outros profissionais e serviços que o acompanham. Para isso,
o praticante escolheu empregar a metodologia da Construção do Caso Clínico como
instrumento que permite provocar uma elaboração coletiva da equipe em torno do caso e uma
verificação sobre os impasses e efeitos observados nessa condução clínica. A hipótese
diagnóstica de psicose fortaleceu, portanto, o investimento nessa aposta de compartilhamento
da leitura do caso e de avaliação da equipe em relação ao tratamento de Dario no CAPS.
Um impasse diagnóstico introduz a pluralização da transferência
A construção do caso Dario, realizado com a equipe do CAPS, permitiu recolher as
falas da equipe sobre o paciente e, entre elas, os efeitos da estratégia da ‘pluralização da
138
transferência’, como uma aposta lançada pelo praticante ao trabalho de equipe. A assistente
social afirmou ter ficado ‘muito emocionada’ ao vê-lo circular nas proximidades do CAPS,
sozinho, segurando pacotes nas mãos, que indicavam que havia feito compras no comércio do
bairro. Uma das técnicas que coordena o Grupo de Familiares contribuiu com sua leitura do
caso, revelando a implicação por parte de sua mãe no tratamento de Dario, que participou
assiduamente dos encontros desse grupo. A técnica, então, apresentou uma fala da mãe do
paciente, dita de forma recorrente, sobre sua preocupação com o ‘comportamento’ do filho,
que ultimamente se mostrava ‘muito impaciente e estressado’ com ela, afirmando que
‘sempre cuidou dele e que, por isso, se sentia injustiçada’. Na leitura da coordenadora do
grupo, esses problemas parecem ter se intensificado, na medida em que vem se promovendo
uma separação entre mãe e filho cada vez mais; suposição fundamentada no relato da mãe do
paciente quando afirmou que “antes meu filho não me dava trabalho, pois estava sempre
dentro de casa.”. Uma das copeiras falou do quanto aprendeu ‘coisas novas’ com aquela
discussão e que também gostaria de conhecer o paciente. Essa etapa da construção do caso
com a equipe do CAPS foi realizada na véspera do início das férias do praticante, período em
que havia orientado o paciente a procurar qualquer técnico do serviço, se assim o desejasse.
O aspecto que mais suscitou questionamentos para a equipe, porém, foi o da dúvida
diagnóstica em relação ao caso. Alguns profissionais, entre eles a psiquiatra e os psicólogos,
assinalaram a ausência de fenômenos da psicose, como delírios e alucinações, como
determinantes para indicar um diagnóstico de neurose obsessiva. Os sintomas de isolamento,
como o ‘medo de contaminação’, cercado por rituais de limpeza das mãos e o ‘medo de sair
na rua’, foram elementos extraídos do caso que apontariam para um diagnóstico de
Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), mais específico dos manuais diagnósticos da
psiquiatria. Na leitura diagnóstica da equipe, o discurso organizado e bem elaborado do
paciente também corroborava a hipótese diagnóstica de TOC indicada pela psiquiatra.
Diante desses argumentos, o praticante introduziu os relatos sobre o ‘mundo mágico’
criado por Dario, suscitando para parte da equipe o questionamento se esta seria uma
construção da ordem de uma fantasia ou de um delírio. Introduziu, ainda, a suposição de que o
‘medo de contaminação, de sair na rua’ não se associava diretamente a uma ‘ritualização
culpabilizada’ de limpeza, conforme os fenômenos característicos da neurose ou do TOC, mas
com um ‘medo de ser olhado’ pelo Outro. No entanto, a rápida estabilização do quadro clínico
e o fato do paciente ter saído logo de casa representava para a maior parte da equipe mais um
elemento diagnóstico indicativo para TOC. Ponto este que, ao seu avesso, indicaria para o
praticante a suposição diagnóstica de um sujeito psicótico que produz, rapidamente, uma
139
solução subjetiva com o retorno à escola, como um lugar novo e estratégico para sua inserção
no laço social.
O supervisor da equipe apontou para essa avaliação do caso como efeito de uma
intervenção de ‘diluição’ da transferência entre outros profissionais que atualmente o
acompanhavam. Além disso, o supervisor do CAPS ressaltou a importância de ‘ter levado a
sério’ as palavras de Dario, quando descrevia seus sintomas na carta, finalizando-a com o
pedido “Eu queria tentar!”, como uma abertura para convidá-lo a ‘sair de casa’ para ir ao
CAPS e iniciar seu tratamento. Outro ponto também destacado pelo supervisor foi a de que a
hipótese diagnóstica deve ser construída a partir da relação transferencial, ainda que seja
necessário, por enquanto, manter em suspenso o diagnóstico.
A experiência da construção do caso Dario demonstra que, nesse caso, a hipótese
diagnóstica de psicose permitiu ao praticante se recolocar na condução do tratamento e diante
do trabalho em equipe. O principal efeito da construção foi, portanto, o de produzir uma
mudança na posição da equipe diante do caso, pluralizando a transferência do paciente com
outros profissionais do serviço. Verificado isto, avaliou-se a pertinência de manter, em
suspenso, o saber diagnóstico em detrimento de um confronto com a prevalência do saber
psiquiátrico sobre o ‘sintoma de isolamento’. Nesse momento, não seria interessante fomentar
um embate teórico e diagnóstico sobre o caso para que se preservasse o debate clínico. A
transmissão dos princípios analíticos recolhidos nesse debate não se deu com base no
diagnóstico, mas, sobretudo, a partir da ‘surpresa’ da equipe em relação às rápidas soluções
construídas pelo paciente. Manter o diagnóstico em suspenso foi, então, uma nova estratégia
do praticante com a equipe para sustentar a investigação no curso do tratamento e para manter
‘aberto’ o saber que se constrói, a partir daí, coletivamente sobre o caso.
Outros efeitos da Construção do Caso Dario
Após a construção com a equipe do CAPS, foi realizada mais uma etapa da
construção do caso em um dos encontros de matriciamento com a equipe da ESF, que vinha
acompanhando o paciente e sua mãe na Clínica da Família. De saída, uma das agentes
comunitárias de saúde (ACS) afirmou que, antes de ser tratar no CAPS, Dario “não chegava
nem na janela. A gente passava por lá e só passou a conhecê-lo quando ele passou a ir à
clínica”, afirmando sua ‘curiosidade em saber mais’ sobre o paciente. E acrescentou: “a
minha cunhada era vizinha dele, então, a gente sabia que não era um cárcere privado. Dizem
que quando ele era adolescente, ele levou uma surra dos policiais e nesse momento ele se
trancou no quarto e não saiu mais”. A partir desse relato, o praticante retomou a discussão
140
sobre o primeiro contato com o paciente e sobre a surpresa da equipe diante do que Dario
escrevera na carta. Observaram que, na carta, o paciente já apontava para o
‘desconhecimento’ do que lhe fez adoecer, o que pôde ser mais explorado somente quando ele
iniciou o tratamento no CAPS.
O praticante apresentou, então, alguns trechos da fala de Dario, pontuando seu modo
próprio de construir um sentido para o que estava acontecendo com ele, diferente do motivo
da doença dito por sua mãe e vizinhos. Esse aspecto foi retomado com a equipe da ESF pela
importância de pensar que, sobre seu sofrimento, é ‘o paciente que sabe’ e que esse é o saber
que deve ser considerado para direcionar um tratamento. Sobre o isolamento, assinalou que,
para Dario, ‘não há um motivo específico’, e que é necessário estarem atentos para os novos
elementos que o paciente trazia ao longo dos atendimentos, tomando suas palavras para
orientar essa discussão sobre o caso.
Ao apontar os avanços obtidos no tratamento no CAPS, quando Dario encontrou
condições de sustentar seu ‘desejo de sair de casa’, de ir à praia, à escola, ao supermercado, às
festas no CAPS, aos aniversários e casamentos de familiares que, até então, desconhecia,
abriu-se uma discussão sobre a importância dos novos vínculos criados pelo paciente, não
reduzido mais à companhia exclusiva de sua mãe. E esse foi um novo aspecto da leitura do
caso, que permitiu à equipe da ESF a trazer notícias do acompanhamento das atuais crises
hipertensivas da mãe de Dario na Clínica da Família.
A outra agente comunitária que acompanhava, mais regularmente, as consultas da mãe
de Dario, considerou que ‘quando o filho começou a sair, percebi que a mãe perdeu alguma
coisa, que ela não ficou muito satisfeita dele sair. Ela, de alguma forma, se ressentiu pelo
fato do filho querer agir por ele mesmo’. Com essa leitura do caso, a agente se recordou do
seguinte episódio: “me lembro que antes dele sair, a gente encontrava com a mãe dele na
rua, sempre correndo e dizendo: ‘eu tenho que ir para a cidade resolver um problema para o
meu filho’. Aí quando ele saiu, a mãe ficou quase doida! Ela me encontrou afobada e disse:
Ele saiu, mas ele não sabe sair assim! Aí eu disse para ela: Calma, ele saiu, mas vai voltar!”.
Sobre esse aspecto, o praticante acrescentou que a mãe de Dario tem frequentado o Grupo de
Familiares do CAPS e que a técnica, que coordena o grupo, fez uma observação semelhante
quanto ao adoecimento da mãe do paciente. E que Dario, por sua vez, também já associara as
crises hipertensivas de sua mãe com o momento em que ficava longe dele. Com efeito, a
agente comunitária concluiu que as queixas constantes que a mãe do paciente vinha
apresentando, nas consultas médicas na Clínica da Família, seriam da ordem do que “vocês
chamam de somatização, porque é um sofrimento que ela não sabe dizer o que é, então ela
141
começa a sentir esses sintomas (...), porque realmente ela não está doente, ela está ressentida
depois de 30 anos cuidando do filho”.
Nesse momento, a equipe da ESF avaliou a possibilidade de participação da mãe de
Dario nos ‘grupos de convivência’ da Clínica da Família, ampliando a oferta de cuidados com
ela para além das consultas médicas: “ela precisa de um pouco de convivência!”, disse a
agente comunitária mais envolvida no acompanhamento da mãe do paciente. Em seguida,
levantou a seguinte proposta: “é o que eu vou sugerir, porque eu acho que ela mesma já não
tem essa dinâmica depois de 30 anos ali dentro de casa fazendo a mesma coisa, acho que ela
mesma já se desligou dessa idéia de conviver com alguém que não seja o filho.”. E, assim, o
projeto terapêutico de Dario foi sendo reformulado, incluindo, dessa vez, o acompanhamento
da mãe do paciente pela assistência da equipe da Estratégia da Saúde da Família.
A recomendação da suspensão de um saber diagnóstico sobre o caso, lançada pelo
praticante ainda nas discussões iniciais com a equipe da ESF, foi retomada, dessa vez, pela
orientação do ‘esvaziamento de um saber prévio’ em relação ao quadro clínico do paciente. A
transmissão desse princípio clínico se demonstrou, mais precisamente, pela via aberta para a
produção de novos sentidos associados ao adoecimento da mãe de Dario e pela consequente
aposta da equipe de ampliação das ofertas de cuidados com a mesma na Clínica da Família.
Verificação e avaliação do trabalho em equipe
A partir da construção do caso, foram avaliadas as seguintes reformulações para a
condução do tratamento junto às equipes do CAPS e da ESF, apoiadas na aposta da
pluralização da transferência:
• A assistente social mantém o acompanhamento psicossocial do caso, em especial, das
questões financeiras que envolvem o cotidiano familiar e escolar do paciente;
• A psiquiatra mantém sua referência para o caso, observando a ‘resposta’ do paciente
no período atual de suspensão do uso de psicofármaco;
• A mãe do paciente continua sendo acompanhada pelo Grupo de Familiares do CAPS,
ampliando as ofertas de acompanhamento clínico com as novas atividades propostas
pela equipe da Clínica da Família de sua referência.
142
3.2.2. A escritura clínica do pesquisador
Do isolamento ao encantamento de ver um mundo novo
Trinta anos sem sair de casa. Assim se inicia o acompanhamento de um paciente no
Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), do bairro onde sempre viveu. Dario tem 45 anos e se
isolou em casa ainda no início de sua adolescência. Viveu somente com a mãe idosa, que
solicitava tratamento para o filho, que ‘não conseguia sair’. Dario tem quatro irmãos e passou
a viver com a mãe, após o falecimento do pai. Seu pai construiu, anos antes de morrer, um
quarto só para o filho, diante de suas dificuldades de relacionamento com a família e com os
vizinhos. Os pais não procuraram antes um serviço de saúde, pois temiam que o filho pudesse
ser levado ao manicômio.
Após uma abordagem policial, vivenciada aos 13 anos de idade, a mãe afirmou que
Dario não conseguia mais sair de casa. Dario discordou de sua mãe em relação à causa de seu
isolamento que, para ele, ‘não teve um motivo especifico’. Sobre esse episódio, relatou não ter
sentido ‘medo de morrer, mas de acenderem a luz, porque não gostava que as pessoas o
olhassem’. Nos últimos trinta anos, abandonou os estudos e passou a ‘evitar qualquer tipo de
contato’, pois se tocasse em alguém, teria que se lavar várias vezes para se sentir ‘limpo’. Não
conseguia ‘falar com ninguém porque ninguém o entendia’, ao contrário, ‘achava que o
Outro poderia o destruir e o fazer sofrer’ com julgamentos e críticas, associados à sua
escolha de manter-se isolado. Permaneceu em seu quarto ‘para se proteger’ de algo que não
entende bem, era ‘como se a pessoa entrasse dentro dele’ e pudesse ter acesso aos seus
pensamentos.
Que solução teria construído Dario para isto?
Da sua janela, avistava os amigos de infância e as garotas da comunidade por quem se
apaixonava e ‘imaginava’ que poderia se casar e ter filhos. Essa imaginação foi aprimorada,
nos últimos vinte e cinco anos, pela construção de um ‘mundo mágico, imaginário’, em que
Dario podia ‘fazer tudo’, protegido do olhar invasivo do Outro. Esse foi o ‘paraíso, o mundo
perfeito’ por ele criado para protagonizar, nessa ‘ficção’, um modo de se relacionar com as
pessoas que via pela janela, sem por elas ser visto. Um modo de gozo, de satisfação pulsional,
que permitiu a esse sujeito ‘trazer as coisas do mundo externo para o seu próprio mundo’
com a construção de um ‘mundo novo’. Dario parecia estar pronto para abrir mão dessa
organização subjetiva de gozo, quando aceitou sair de casa para se tratar no CAPS.
143
Chega ao serviço de atenção psicossocial após três atendimentos domiciliares,
realizados por um profissional de formação psicanalítica. A primeira visita domiciliar foi
agendada por esse profissional do CAPS, com a equipe da Clínica de Família, que identificou
o caso. Sem conseguir receber ‘visitas’, Dario endereçou uma carta à equipe na qual registrou
alguns motivos e sensações de estar isolado por trinta anos. Entre eles, destaca a hipótese de
ter sofrido de ‘síndrome do pânico, de uma depressão monstro, de acne, de fobias e
pensamentos obsessivos compulsivos’. Concluiu a carta com a informação de que ‘viu na TV
que teriam remédios para esses problemas’ e com um pedido claro dirigido à equipe: ‘Eu
queria tentar!’. O profissional de orientação lacaniana acusou o recebimento da carta, lendo-a
em voz alta para que os demais profissionais presentes e o próprio paciente pudessem ouvir o
que dizia pela primeira vez a uma equipe clínica. Com efeito, Dario aceitou a proposta de
receber o praticante em seu quarto – e o recebeu com um aperto de mãos, mas ainda sem lhe
dirigir o olhar.
Iniciou o tratamento, no CAPS, com o praticante e a psiquiatra, três semanas após os
primeiros ‘contatos’ dos atendimentos domiciliares. A psiquiatra introduziu o tratamento
medicamentoso com antidepressivo para o monitoramento dos ‘sintomas de isolamento e de
contaminação’ diagnosticados, por ela, como Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC). No
final do primeiro atendimento no CAPS, Dario se despediu do praticante e da psiquiatra e
acompanhou, logo em seguida, sua mãe ao supermercado. Passou a frequentar semanalmente
o serviço para dar continuidade aos tratamentos analítico e psiquiátrico. Poucos meses depois,
aceitou participar do bloco de carnaval e de festas organizadas ‘fora’ do CAPS. Retornou aos
atendimentos, dessa vez, desacompanhado de sua mãe.
No segundo atendimento realizado no CAPS, Dario pediu um abraço ao analista e lhe
agradeceu por tê-lo ajudado a sair de casa: ‘foi graças a você’. Nesse momento, o praticante
interveio, associando a saída de Dario ‘ao seu desejo de sair’. Mas observou, com essa fala, o
surgimento de uma transferência fortemente ‘idealizada’ e, com isso, o praticante apostou na
possibilidade de ‘pluralizar’ a transferência como estratégia para envolver outros profissionais
do CAPS na condução do caso. Dario começou a ser atendido, então, pela assistente social do
serviço, que o ajudou com uma nova demanda revelada nas sessões de análise: “assim que
tirar meus documentos, vou começar a sair sozinho. Quero voltar a estudar”. Dito e feito:
Dario retirou seus documentos civis, começou a circular sozinho pelo bairro e se matriculou
na turma de jovens e adultos de uma escola pública. No final do ano, recebeu uma medalha de
‘melhor aluno’ da turma.
144
Que nova solução teria construído esse sujeito para transitar do ‘mundo imaginário’
que criara para o ‘mundo real’ do qual se isolou por tanto tempo? Como situar a rápida
transformação do seu modo de gozo ‘isolado’ do olhar do Outro para a construção de uma
nova solução subjetiva, que permitiu a Dario “ver as coisas pela primeira vez e ficar
encantado com o que vê”?
De saída, evidenciou-se o rápido efeito terapêutico produzido pela transferência
analítica. É possível supor que esse modo anterior de gozo ‘não interpretável’ pôde ser
recolocado discursivamente em uma cadeia associativa sob o efeito da transferência analítica
instaurada, ainda, nos atendimentos domiciliares. O encontro com um analista teria produzido
uma abertura para que Dario pudesse subjetivar seus sintomas e torná-los seu, inserindo os
restos, fragmentos de lembranças que escapam ao sentido, em uma cadeia simbólica que o
permitiu reconstruir e ressignificar o ‘tempo perdido’.
Vê-se aí o sintoma se modificando sob transferência, como uma construção singular e
dinâmica que se dirige ao Outro, dessa vez, menos invasor e mais acolhedor a sua demanda de
‘querer tentar’ abrir mão de um modo de gozo que o mantinha isolado do mundo. A estratégia
da pluralização da transferência se apresenta, então, com uma aposta do praticante de incluir a
equipe clínica do CAPS em cada uma dessas etapas de reconstrução do paciente, dirigindo-as
ao Outro institucional e não somente à ‘imagem’ idealizada do analista. Com efeito, a função
do analista de ouvir, recolher, registrar e acompanhar cada etapa dessa reconstrução se
pluraliza como uma estratégia clínica que passou a orientar o trabalho da equipe.
Há, porém, mais uma verificação que merece ser demonstrada nesse caso: que efeitos
de transmissão da psicanálise se produzem para uma equipe clínica quando deixamos em
aberto o sentido do sintoma?
A construção do caso Dario testemunha o desafio da transmissão da operação analítica
com o sintoma entre os diversos saberes e práticas que compõem o trabalho coletivo no
campo da saúde mental. Esse caso demonstra que o mais significativo para o tratamento do
sintoma não se remete ao seu diagnóstico nosográfico-classificatório, mas ao modo como este
se modifica sob transferência. Se por um lado o saber dos manuais psiquiátricos encobre com
o sentido normativo o ‘sintoma de isolamento e de contaminação’ de Dario sob o diagnóstico
de TOC, por outro, a resposta rápida e, portanto, ‘não programada’, dada pelo próprio
paciente ao tratamento psiquiátrico, abre uma via para a transmissão de uma operação lógica
com o sintoma que concerne ao real em jogo na experiência clínica.
Transmitir o encontro com o real da clínica implica tornar legível no trabalho coletivo
a contingência do caso a caso, o modo ‘não programado’ que cada sujeito constrói com o
145
clínico esteja mais estabilizado. Embora essa observação corresponda às responsabilidades
clínica e territorial do serviço de atenção psicossocial de manejo à crise e de assistência aos
casos mais graves de neurose e psicose, convém interrogar se a sobrecarga de trabalho e,
portanto, do número de pacientes em tratamento no CAPS não estaria dificultando a discussão
da condução terapêutica de casos mais ‘estabilizados’. De qualquer modo, a escolha de levar
para a construção coletiva um caso ‘menos problemático’ na avaliação da equipe, possibilitou
recolhermos uma consideração que aponta para a importância de uma leitura
compartilhada da equipe sobre os casos atendidos individualmente no CAPS; sendo esta
uma prática que se difere dos atendimentos individuais realizados nos ambulatórios de saúde
mental.
A intervenção produzida pela construção do caso esteve mais diretamente relacionada
ao reposicionamento da equipe e à sua localização diante da lógica singular de funcionamento
do paciente e ao modo como este iniciou o tratamento no serviço. Com efeito, manteve-se
aberta a possibilidade de outros profissionais do CAPS testemunharem os efeitos clínicos que
a própria instituição produz ao acompanhar as novas estratégias de inserção no laço social,
sustentadas pelo paciente a partir de seu tratamento no CAPS. Vimos, aí, mais um alcance da
construção do caso, tomado como um momento de avaliação que inclui um modo de
demonstração do que vem a ser um ato clínico, cujos efeitos só podem ser colhidos a
posteriori, conforme testemunhado no caso Dario. Esse fundamento, caro ao campo de saber
psicanalítico, se aplica ao trabalho coletivo com a prática de construção dos casos que, por sua
vez, o inclui como uma orientação essencial para a avaliação da condução de cada caso no
trabalho em equipe. Tal consideração nos permitiu acrescentar um alcance, mais específico,
desse método de pesquisa clínica, ao fomentar o trabalho investigativo, ancorado no valor
metodológico da singularidade do caso clínico e na verificação das transformações do sintoma
no curso de um tratamento. Isto implica a transmissão de uma leitura clínica do caso único
que se deixe conduzir por uma temporalidade particular de ‘um antes e depois’, no sentido
menos cronológico e mais lógico, que evidencie os efeitos das intervenções realizadas sob
transferência.
Uma vez transmitido esse fundamento da psicanálise, apostamos na pertinência de sua
utilização para a leitura dos episódios de crise ou dos quadros clínicos mais complexos, cuja
causalidade só poderá ser revelada a posteriori pelo próprio paciente no momento em que
constrói uma determinada significação para o que lhe ocorreu. Ainda que não se trate de um
episódio de crise, o caso Dario ensina como o ato clínico da leitura de sua própria carta foi
capaz de modificar a relação de um sujeito com o seu isolamento radical, levando-o a
147
ressignificar a sua própria escolha. Nesse ponto, entretanto, localizamos um limite instaurado
na aplicação metodológica da construção do caso em questão, na medida em que na escritura
do praticante os efeitos de transmissão da psicanálise para ‘não analistas’ prevalecem em
relação aos registros das intervenções realizadas nas sessões com o paciente. Consideramos
que esses registros, ausentes na escritura clínica do caso, nos permitiriam recolher algo da
dimensão do ato e da resposta produzida por esse sujeito, indicando, ainda, de que modo e em
que momento, este passou a se apropriar da transferência analítica no curso do tratamento.
Isto nos leva a observar mais um limite em relação ao modo de aplicação
metodológica empregada nessa pesquisa: talvez se tivéssemos mais de um caso clínico sendo
trabalhado com a mesma metodologia, seria possível recolhermos mais elementos que
apontem para os modos de transformação do sintoma como efeito de um ato analítico
empregado sob transferência. Nesse sentido, podemos dizer que o caso Dario demonstrou
apenas de modo parcial o alcance do método da Construção do Caso Clínico. As
considerações que seguiremos apresentando, portanto, correspondem mais aos efeitos de
transmissão da política analítica do sintoma às equipes clínicas dos serviços de saúde mental e
aos profissionais cujas práticas não se orientam pelos princípios da psicanálise.
Outro aspecto importante de ser abordado se refere ao tema sempre presente do saber
psiquiátrico aplicado à prática clínica coletivizada nos serviços substitutivos de saúde mental.
O diagnóstico psiquiátrico, centrado no manual de classificação da CID-10, é o que orienta a
condução terapêutica das equipes e o que, consequentemente, pode introduzir a lógica de um
ideal de cura dos sintomas e de monitoramento dos comportamentos como referência para o
acompanhamento clínico. A construção do caso indica, no entanto, o momento em que a
equipe se encontra dividida entre uma orientação que toma a posição subjetiva do paciente na
investigação diagnóstica e aquela que a exclui para encerrar a significação dos fenômenos
psíquicos, com as nomenclaturas das classificações diagnósticas dos transtornos mentais.
Evidencia-se, nesse ponto, certo confronto discursivo entre os profissionais que se orientam
pelo discurso analítico e, portanto, pela transferência incluída no eixo da investigação
diagnóstica, e os que se remetem à terapêutica como eliminação dos sintomas.
A construção do caso realizada com a equipe do CAPS aponta para a possibilidade de
uma leitura coletiva do caso, desviada do risco de um embate com saber teórico e
diagnóstico da psiquiatria atual que, não raro, engessa a continuidade de um debate clínico
mais amplo sobre as soluções singulares encontradas por cada paciente. A estratégia da
pluralização da transferência introduz, nesse nível de debate, uma abertura para que o saber
cristalizado pelos manuais diagnósticos se coloque em suspenso para dar lugar às falas de
148
Dario sobre seu modo de se reposicionar diante das dificuldades de relacionamento familiar e
social, às quais respondeu por trinta anos com seus ‘sintomas de isolamento e de
contaminação’. Sobre esse aspecto, convém assinalar o modo sensível da psiquiatra do CAPS
de acompanhar as respostas do paciente ao uso de psicofármacos desde o momento de sua
introdução ao de sua retirada. Sem a aposta na pluralização da transferência, a condução
coletiva do caso poderia se diluir em intervenções isoladas e fixadas por um saber préestabelecido, tornando inaudíveis os efeitos terapêuticos recolhidos no trabalho em equipe da
construção do caso.
Por fim, atestamos o alcance dessa metodologia de pesquisa em psicanálise como um
método de avaliação que inclui a transferência no eixo da clínica. A orientação psicanalítica,
aplicada à prática da construção do caso, nos conduziu a formular aqui uma axiomática
avaliativa capaz de demonstrar os impasses e avanços instaurados na prática coletiva da
equipe clínica de um CAPS. E isso nos faz defender a contribuição da Construção do Caso
Clínico como um método clínico de intervenção capaz de produzir um cálculo permanente em
torno do ‘não mensurável’ da experiência clínica, sem encobri-lo com um valor universal de
condutas e procedimentos.
Clínica da Família
Um alcance inovador constatado nesta pesquisa refere-se à aplicabilidade da prática da
construção dos casos nos encontros de matriciamento em saúde mental. Diante do desafio de
estabelecer uma rede de cuidados na lógica da clínica, observamos que o método da
construção se revelou um operador estratégico para alcançar a condução do caso em rede,
entre diferentes equipes que atuam ‘dentro e fora’ das paredes do CAPS. Convém ressaltar
que, por um lado, este trabalho parte de um movimento particular do praticante em considerar
os vários pontos da rede do paciente, começando pelo compartilhamento da condução do caso
com a equipe da Clínica da Família, que identificou o caso e o acompanha desde o primeiro
atendimento domiciliar. Por outro lado, a própria função de matriciador da equipe, assumida
por esse profissional do CAPS, favorece o compartilhamento do caso em rede. Atesta-se, com
isso, a potencialidade desse método de pesquisa ao estimular a construção de uma rede de
cuidados desenhada por cada paciente pela implicação de diferentes profissionais
envolvidos no tratamento e na leitura clínica do caso. Seguindo uma lógica clínica, a
prática de construção dos casos se oferece ao apoio matricial em saúde mental também como
uma ação de educação continuada aos profissionais das equipes da Estratégia da Saúde da
149
Família (ESF) não referidos aos princípios da reforma psiquiátrica e, tampouco, aos princípios
clínicos da psicanálise.
Os efeitos da construção deste trabalho, em rede, com o caso puderam ser recolhidos
tanto no âmbito da avaliação do processo terapêutico, quanto pelo viés da transmissão de uma
leitura clínica compartilhada sobre o caso. Verificamos, nessa etapa da construção, as
contribuições do saber psicanalítico aplicado à prática do matriciamento em saúde mental,
quando o matriciador das equipes da ESF introduz, na leitura dos casos, uma operação
específica com o saber que se extraí, posteriormente, a cada intervenção e que é passível de se
conectar com outros saberes e práticas presentes no campo da saúde pública. Observamos ter
sido esse um momento oportuno para a transmissão da especificidade da operação analítica
com o sintoma àqueles profissionais que atuam nas Clínicas da Família, onde os
procedimentos terapêuticos são, comumente, orientados por uma lógica sanitarista e imediata
de intervenções, baseada nas classificações diagnósticas e nas ‘metas’ de produtividade dos
protocolos que avaliam a prática clínica generalista desses serviços.
Sobre esse aspecto, convém esclarecer que essa tendência imediatista de intervenções
e de resultados terapêuticos é fortemente caracterizada pelo modo como a implantação dos
serviços de Atenção Primária em Saúde (APS) vem se consolidando na cidade do Rio de
Janeiro. A expansão das Clínicas de Família na rede municipal segue uma política de âmbito
nacional, que prevê a ampliação da assistência em saúde de base comunitária nos variados
municípios e Estados do país. Na cidade do Rio de Janeiro, a proposta de expandir de 2% para
60% a cobertura de saúde da família 105 , no período de 2009 a 2016, foi tomada como
prioridade no atual governo municipal, tendo alcançado, no primeiro semestre de 2012, uma
cobertura aproximada ao percentual de 35%. No entanto, esse processo de expansão,
indiscutivelmente necessário para o acesso da população carioca aos serviços de saúde, trouxe
consequências preocupantes para a ‘SUStentação’ 106 da proposta de uma clínica ampliada,
que contempla a elaboração de projetos terapêuticos singulares e sua continuidade no trabalho
em equipe.
O modelo privado da gestão das Clínicas de Família, colocados sob o domínio das
Organizações Sociais (OS’s), vem provocando uma explícita ‘privatização’ do sistema
105
Todos os dados estatísticos apresentados foram recolhidos diretamente na Secretaria de Saúde e Defesa Civil da Prefeitura
da Cidade do Rio de Janeiro (SMSDC/RJ). As demais conclusões sobre o assunto partem das observações da própria
pesquisadora que, ao longo dos anos de 2010 a 2012, assumiu o cargo de Assessora de Matriciamento da Coordenação de
Saúde Mental – SMSDC/RJ.
106
Jogo de palavras que inclui a idéia da sustentação dos princípios da integralidade, universalidade, equidade, participação
da comunidade e, principalmente, da descentralização político-administrativa que regem o Sistema Único de Saúde no Brasil.
São esses os mesmos princípios que fundamentam as diretrizes da reforma psiquiátrica e dos serviços de atenção psicossocial
substitutivos ao manicômio.
150
público de Atenção Primária em Saúde, cujos impactos se refletem na alta rotatividade de
profissionais nesses serviços, na contratação de profissionais que não aderem ao trabalho em
equipe, por atuarem ainda sob a lógica da assistência hospitalar e ambulatorial e no
estabelecimento de ‘metas’ para a avaliação da resolutividade, que deve ser cada vez mais
rápida, dos atendimentos realizados. Tais impactos se articulam, claramente, ao modo ‘toque
de caixa’ como as equipes e unidades de Saúde da Família são montadas: o alto valor dos
salários e dos investimentos públicos geridos ‘mais rapidamente’ pelas OS’s possibilitam que
a cada dia se inaugure mais uma Clínica de Família em ritmo de festa e de comemoração
“propagandística-eleitoreira”. Enquanto isso, a cobertura de 30% de CAPS na ‘cidade
maravilhosa’ permanece a mesma desde 2009.
Esse breve e crítico relato nos parece necessário para situar o modo particular como a
atual gestão municipal de saúde vem desenvolvendo a proposta nacional de reforma sanitária.
O risco sempre presente no campo das políticas públicas de uma ‘sanitarização’ do sofrimento
psíquico se intensifica frente à faceta higienista do ‘choque de ordem’, aplicado ao campo da
saúde. Esse mote popular do prefeito atinge a prática de cuidados em saúde mental, desde a
difusão do ato autoritário da internação compulsória para usuários de drogas à da prescrição
de psicofármacos pelos médicos generalistas da Estratégia de Saúde da Família, que, por sua
vez, devem tratar de diversas doenças com ‘agilidade’, sem necessariamente ter obtido
formação para isso.
Para que haja uma ‘expansão’ da lógica da clínica ampliada em saúde mental nos
resta, então, apostar na prática do matriciamento em saúde mental, que pode partir dos NASF,
CAPS e ambulatórios de saúde mental, dependendo dos recursos da rede de serviços de cada
território. Apesar dos impactos apresentados que dificultam a prática coletiva do trabalho em
rede com os casos, notamos a importância do apoio matricial em saúde mental, representado
por profissionais comprometidos e implicados no desafio do trabalho clínico em rede, da
transmissão da lógica do caso a caso e da contenção de certa tendência higienista da
prescrição, pouco criteriosa, de antidepressivos e ansiolíticos na APS: o conhecido efeito
‘Rivotril na caixa d’água da comunidade’.
O caso Dario nos remete a esse cenário político e, mais precisamente, a essa aposta na
prática do matriciamento em saúde mental, assumida por profissionais de formação
psicanalítica. Nesse cenário, o método de pesquisa da construção do caso revelou-se uma
estratégia de avaliação clínica interessante para o trabalho em rede, demonstrando, ainda, os
efeitos rápidos e eficazes da prática analítica aplicada ao campo da saúde mental. Além disso,
a construção do caso Dario, realizada com a equipe da Estratégia da Saúde da Família, nos
151
permite extrair elementos importantes que assinalam os efeitos de um modo de transmissão
da política analítica do sintoma, em contraponto à política sanitária de eliminação dos
sintomas psíquicos.
De saída, o princípio psicanalítico do ‘esvaziamento do saber prévio’ sobre o sintoma,
indispensável para aplicação metodológica da Construção do Caso Clínico, foi introduzido
pelo praticante. Com efeito, testemunhamos, no texto da construção do caso, uma evidente
relação entre a transmissão desse princípio clínico e a abertura provocada no relato das
agentes comunitárias sobre os ‘sintomas de somatização’ da mãe do paciente, até então
tratados apenas como um quadro hipertensivo. A concepção do sintoma, como expressão
singular de um sujeito, passou a orientar as novas ofertas de cuidado que compõem o projeto
terapêutico do paciente, incluindo aí a percepção clínica do ‘adoecimento da mãe com a
melhora do filho’ na leitura coletiva do caso.
Concluindo, os alcances e efeitos recolhidos, nessa etapa da construção do caso,
atestam as contribuições desse método clínico de investigação e intervenção no trabalho entre
diferentes equipes de saúde. Devemos estar advertidos, no entanto, quanto à proposição de
que a aplicação dessa metodologia de trabalho seja desenvolvida por profissionais em
formação psicanalítica que atuem no campo da saúde mental. Tal proposição permite evitar o
risco de uma prática ‘padronizada’ da construção do caso aplicada aos encontros de
matriciamento que destitua a dimensão da ‘surpresa’ e da relação com o ‘saber não sabido’,
características do campo de saber da psicanálise.
Para avançar na proposição de um dispositivo clínico, que favoreça o trabalho coletivo
com os casos, retomaremos a idéia apresentada na última etapa da aplicação do método da
construção por meio da proposta de constituição do Laboratório de Construção do Caso
Clínico, inaugurado por essa pesquisa de doutorado.
Laboratório de Construção do Caso Clínico
Conforme apresentado anteriormente, o principal alcance da composição desse
dispositivo está diretamente relacionado aos efeitos que dele se extraem no âmbito da
formação do analista. O Laboratório de Construção do Caso, que nesta pesquisa se aproximou
do formato de um Cartel, é uma proposta que privilegia o estudo do caso único como uma
contribuição para a formação permanente em psicanálise, que permite extrair da leitura
coletiva da construção do caso elementos fecundos para fazer avançar a teoria e clínica
psicanalítica no cenário clínico atual.
152
psicanalíticos ao campo das pesquisas clínicas. Assim, ainda que esse dispositivo não se
desenvolva em uma instituição psicanalítica, este implicará o comprometimento de analistas e
praticantes com sua formação na tarefa de fazer avançar a práxis analítica no cenário clínico
atual como um debate que se produz internamente e externamente ao campo da psicanálise.
Por fim, cabe ressaltar que a principal sustentação para esses encontros clínicos deve
estar apoiada no interesse de seus participantes em relação ao caso e ao método proposto de
pesquisa. Essa pesquisa de doutorado demonstra, portanto, de que modo a metodologia da
construção do caso pode se oferecer como suporte para a formalização das produções
individuais de cada participante, a partir da leitura coletiva de um caso, podendo ser
aprimorada e ofertada a uma comunidade analítica ou a um campo clínico mais amplo com a
publicação dos resultados obtidos com esse trabalho.
154
CONCLUSÃO
O que se transmite da política analítica do sintoma ao campo da saúde mental?
Esta pergunta acompanhou o percurso desta pesquisa e encontrou em cada uma de
suas etapas diferentes modos de nos aproximarmos de uma resposta conclusiva sobre o tema.
O primeiro capítulo se remete diretamente a esse questionamento ao produzir uma
discussão conceitual, como ponto de partida para a apresentação do tema da política da
psicanálise, definida em sua especificidade em relação ao tratamento do sintoma no cenário
clínico atual. Neste capítulo, é apresentada a concepção do sintoma atravessada por variações
teóricas que se estabelecem no ensino e na transmissão da psicanálise e que, não sem
consequências, modificam sua abordagem na condução clínica. Ainda que marcada por um
contínuo teórico definido pela obra freudiana e pelos seminários e escritos de Lacan, nossos
esforços se concentraram na investigação da concepção do sintoma na teoria psicanalítica
para chegarmos a uma definição conceitual mais precisa sobre o seu estatuto. Foi, então, com
a releitura de Lacan sobre o estatuto do sintoma freudiano que encontramos uma direção mais
clara para alcançarmos uma definição que fundamenta o tema, cada vez mais relevante, da
política do sintoma.
Mais além da vertente simbólica do sintoma freudiano, Lacan investiga sua vertente
real e nos adverte quanto ao modo como cada sujeito goza do seu inconsciente através da
expressão singular do sintoma. Assim, Lacan estende a concepção freudiana da formação dos
sintomas neuróticos para cada versão singular do sintoma, tomado não apenas como uma
formação do inconsciente, mas, ainda, como uma invenção e ‘construção’ de cada sujeito
diante do caráter incurável do sintoma. Orientar-se pelo real do sinthoma é, então, uma
recomendação que se extrai do final do ensino lacaniano e que fundamenta a operação lógica
com o incurável do gozo do sintoma, cuja direção é menos decifrá-lo do que fazer uso dele.
Com efeito, essa orientação designa uma operação clínica com o sintoma, que redimensiona o
uso tático da interpretação, passando a ser concebida mais pelos efeitos de sua ressonância no
processo de uma análise do que pela decifração da verdade inconsciente que o sintoma
enuncia. Vimos, ainda, a possibilidade dessa operação incidir sob o real do gozo do sintoma,
155
que se repete e que escapa à significação, pela apropriação da associação livre para servir ao
manejo do equívoco do significante, em detrimento de uma amplificação de sentido no nível
de seu deslizamento na cadeia associativa.
Essa passagem na teoria lacaniana indica o modo específico da operação analítica com
o sintoma, designada como uma orientação que inclui o real em jogo na experiência clínica e,
portanto, no tratamento do sintoma. Isto nos possibilitou encontrar uma direção para definir a
política da psicanálise diferenciada tanto da operação médico-científica, que exclui o real do
gozo do sintoma pela universalização de uma significação única e classificatória, quanto das
práticas psicológicas, que buscam exaustivamente no relato do sintoma uma explicação
coerente que corresponda aos ideais da cultura, tratando-o como portador de um sentido que
nada tem de real.
Seguindo esse percurso teórico, nos deparamos com uma nova perspectiva apresentada
no final da obra de Freud, que nos fez aproximar a vertente real do sintoma com a
operação da construção analítica. Trata-se de uma articulação conceitual, originalmente
proposta por esta pesquisa, que aponta para a possibilidade de uma releitura do texto
‘Construções em Análise’, a partir da concepção do sinthoma como uma construção que
permite ao sujeito um ‘saber fazer’ com isso que resta, que escapa ao sentido e à
rememoração, o que em termos lacanianos se refere ao real do sintoma. Construção é o termo
empregado por Freud para designar a relação do analista com um ‘ponto perdido’ que não
reaparece na fala do analisante, senão pela repetição, ou seja, com aquilo que o trabalho
analítico não consegue restituir pela via do sentido. Ao analista, cabe a tarefa da construção
como uma operação clínica que se produz diante de um ‘furo’, de um ‘ponto cego’ e que
marca a falta de saber que constitui o sujeito e seu sintoma. Do lado do analisante, por sua
vez, situamos o sintoma como uma construção, como uma solução inventada por cada sujeito
para lidar com o irredutível do real do gozo, melhor dizendo, como uma construção singular
com o que resta do gozo do sintoma. A tarefa da construção analítica estaria, então,
diretamente atrelada ao trabalho do analista com o real da experiência clínica, apreendida no
nível do gozo do sintoma: dos restos e fragmentos de lembranças que não se inscrevem em
uma cadeia significante, mas que podem ser usados e demonstrados logicamente.
Essa trajetória conceitual tornou-se ainda mais instigante ao recolhermos, nas
passagens do texto ‘Construções em Análise’, o caráter político dessa proposição freudiana
no cenário científico do início do século XX. Sob esse viés, a construção analítica se
apresenta na resposta a um ‘opositor da psicanálise’ como uma intervenção que se apropria do
método da associação livre para produzir a posteriori a cada sessão, uma verificação lógica
156
que condiciona a direção do tratamento. Desse modo, Freud transmite o rigor da operação
analítica da construção não somente aos analistas, mas, em especial, ao campo científico de
sua época, diferenciando-a dos métodos da ciência empírica e da sugestão como uma
proposição clínica e política da psicanálise.
Existe uma política do sintoma. Somente uma. E existem duas políticas do sintoma.
Somente duas. Essas duas sentenças formuladas por Antonio Di Ciaccia esclarecem o que
tentamos concluir sobre o tema: a existência de uma política do sintoma na práxis analítica
que corresponda à lógica freudiana da satisfação pulsional, designada por Lacan sob o
estatuto do gozo. Assim, o sintoma possui uma política de leis próprias, que funcionam
seguindo uma lógica que inclui a repetição do gozo e o modo singular como cada sujeito goza
do seu inconsciente. Há, ainda, duas políticas do sintoma na civilização contemporânea: uma
é a política de Lacan e a outra é a política que orienta a prática clínica a partir da exclusão do
real em jogo no sintoma e de sua relação com o sujeito que o habita. Essa é a política que se
prolifera no mundo atual globalizado entre métodos e correntes terapêuticas que consideram o
sintoma como um déficit ou um desfuncionamento, compreendendo-o a partir de uma
formalização de saber que o aprisiona nas classes e comunidades identitárias que resultam dos
manuais diagnósticos. A nossa política do sintoma, no entanto, é aquela que se dirige ao real
da experiência clínica, preservando a contingência, o caso a caso e o ‘não programado’ das
organizações subjetivas do gozo que se apresentam no curso de uma análise.
Se essa é uma tarefa para os analistas do mundo globalizado do século XXI, isto nos
faz retornar ao nosso ponto de partida para incluir na pergunta “o que se transmite da política
analítica do sintoma” a questão de como transmiti-la ao campo da clínica. Esse
questionamento segue, no segundo capítulo da tese, uma direção mais precisa, sustentada pela
aposta da transmissão dos princípios da psicanálise na prática coletiva em saúde mental.
O que e como foram perguntas que orientaram o estudo metodológico dessa pesquisa clínica,
aplicada ao campo da atenção psicossocial por meio do método da Construção do Caso
Clínico. Nossa hipótese foi, então, a de que a aplicação dessa metodologia de orientação
psicanalítica possibilitaria extrair uma lógica singular do sintoma em cada caso que fosse
transmissível na sua coerência clínica e subjetiva aos profissionais que atuam no campo da
saúde mental. Partindo daí, revisamos a literatura sobre o método de pesquisa em psicanálise
da Construção do Caso Clínico, tendo como principal referência os artigos do autor Carlo
Viganò, propositor da metodologia empregada nesta pesquisa.
De saída, encontramos, na justificativa teórica do método da Construção do Caso, a
perspectiva política dessa proposta no contexto atual das pesquisas clínicas. No tempo
157
em que as ‘evidências científicas’ reduzem as transformações do sintoma aos dados de
mensuração estatística dos protocolos de avaliação terapêutica, situamos a importância desse
método de pesquisa, capaz de produzir uma avaliação da lógica processual do tratamento do
sintoma, incluindo a transferência como o pilar dessa investigação realizada por uma equipe
clínica. Notou-se, com isso, a possibilidade de contribuição do saber analítico, aplicado ao
âmbito das verificações que se extraem da prática coletiva com os casos, considerando o
sujeito e o sintoma como seu correlato no nível de uma axiomática avaliativa. E isso se reflete
como uma proposta de avaliação do trabalho clínico-institucional com o ‘incurável’ do
sintoma em cada caso que nos parece ter um maior alcance para a demonstração dos impasses
cotidianos da prática em equipe, se comparada com a dos parâmetros e metas dos protocolos
de validação estatística, que avaliam a eficácia e a ‘agilidade’ da condução terapêutica no
campo da saúde pública.
Por ser um método de pesquisa em psicanálise, a Construção do Caso Clínico implica
uma operação investigativa com os casos, conforme explorado pelo método freudiano, no
qual investigação e tratamento coincidem. Sobre esse aspecto, enfatizamos o modo específico
de investigação do campo da psicanálise que deriva da experiência da construção dos casos,
sendo esta uma tarefa, recomendada por Freud, que não se dissocia da construção do saber
teórico. Para esclarecer esse fundamento, foram demarcados três tempos essenciais para a
metodologia da construção: o primeiro refere-se à construção do caso, o segundo à avaliação
que desta resulta, realizada não a partir de um modelo pré-concebido de verificação do êxito
do processo terapêutico, mas como uma verificação do próprio processo. No terceiro
momento, essa avaliação clínica pode servir à pesquisa de um analista, organizada em torno
de um saber teórico que se elabora sempre a posteriori ao trabalho da construção analítica.
Nesse ponto nos reencontramos com o tema da política do sintoma transmitida pelo
método da Construção do Caso Clínico, que se apoia no valor metodológico da singularidade
do caso para produzir uma verificação das transformações do gozo do sintoma no curso de um
tratamento. Eis aí um modo de preservar o saber conjectual da operação com o real em jogo
em toda e qualquer experiência clínica, em contraponto à utilização do estudo de casos para
fins de comprovação teórica ou empírica.
Mas como transmitir a operação analítica com a dimensão do real na clínica que não
cessa de não se inscrever? Essa questão nos indicou um novo caminho para abordar a noção
do testemunho articulada ao tema da transmissão da psicanálise. Essa é uma via aberta
pela metodologia da construção dos casos pela possibilidade de transmissão da lógica do caso
único, abordada não a partir de uma determinada teoria, mas a partir do testemunho de uma
158
equipe no encontro com ‘não programado’ da experiência clínica e com o indizível do gozo
do sintoma, recolhido na narrativa de cada caso. O principal instrumento dessa metodologia
de pesquisa é a construção do texto do caso clínico como um texto elaborado e finalizado
pelo analista, para comunicar a uma equipe de profissionais ou ao campo clínico, de um modo
geral, o que se testemunha clinicamente da singularidade de cada caso. Trata-se, portanto, de
um instrumento que inclui a dimensão do testemunho de um encontro com o real da clínica na
demonstração do modo de como a operação analítica recolhe os efeitos de suas intervenções
em cada caso. O que se trata de demonstrar consiste em algo a ser apreendido em torno de
um ato clínico que se constrói a posteriori, a partir do que testemunha uma equipe clínica na
condução do tratamento, pelas narrativas do paciente, de seus familiares ou de outros
profissionais que representem os pontos da rede social do mesmo.
O texto da construção do caso é uma escritura clínica que extrai dessas narrativas a
formalização de uma sequência lógica, marcada por um ‘ponto cego’ em relação ao caso que
faz obstáculo no acompanhamento clínico de uma equipe. Desse modo, a construção do caso
não se limita aos impasses que se colocam no processo terapêutico, mas é a tentativa de
introduzir uma lógica às escansões, aos momentos em que o sintoma se modifica sob
transferência para, assim, demonstrá-las logicamente. Considerando, então, que o real não se
pode dizer e nem sequer representar, a transmissão da operação lógica da psicanálise com o
real em jogo, no tratamento do sintoma, está diretamente relacionada com a função do
testemunho como uma prática experimentada por uma equipe clínica na posição de aprendizes
da clínica.
Na trilha aberta pela discussão sobre a noção do testemunho como uma função
essencial para a transmissão dos princípios psicanalíticos, encontramos orientações
importantes para as pesquisas clínicas em psicanálise. Ao associarmos testemunho e
transmissão, incluímos nessa articulação a especificidade da clínica demonstrativa do
psicanalista, que esclarece seu modo próprio de propor o relato e a construção dos casos,
transmitindo, ao mesmo tempo, de que modo somos capazes de fazer o que nós dizemos e de
dizer o que nós fazemos; isto é, de tornar transmissível a prática clínica da psicanálise no
campo eclético de saberes da saúde mental. Em linha direta com essa tarefa de transmissão,
situamos a dimensão do testemunho, registrada na escritura clínica do texto da construção dos
casos como uma demonstração que se oferece à pesquisa do analista. Mas, para se chegar a
uma demonstração da lógica do testemunho na construção de casos, é necessário situá-lo entre
dois extremos a serem evitados: o da apresentação do caso como uma demonstração da teoria
e o da exposição exaustiva de uma sorte de significantes da qual se subtrai o real do ato
159
clínico e seus efeitos na condução do tratamento. Com isso, destacamos a diferença entre uma
prática da apresentação do caso, que poderá simplesmente narrar, ‘historicizar’ uma
determinada teoria, sem testemunhar a contingência de cada encontro clínico; e uma prática
de construção, que testemunha, no plano da enunciação e da escritura clínica, o ‘ponto cego’
da narrativa de um caso, sem engessar o impossível em jogo na experiência.
Para prosseguir nesse argumento, foi importante dar um último passo em direção à
função do testemunho para designá-lo como correspondente à posição de analisante que
assume um analista, seja na formalização de uma pesquisa clínica ou de um relato sobre a
construção de um caso, diante dos limites do saber em circunscrever o valor sempre inédito da
experiência clínica. Ao pesquisar o tema do testemunho, concluímos que um de seus
fundamentos designa o modo como o saber se acumula no lugar do analisante e é desse lugar
da suposição de um saber sobre os casos que devem partir as hipóteses e elaborações de um
analista para conduzir sua pesquisa clínica. Essa orientação se remete, ainda, à maneira como
se emprega o valor metodológico do caso clínico na investigação psicanalítica: o caso ensina
e é a partir desse ensinamento que nos colocamos na posição de aprendizes da clínica como
pesquisadores. Não há, portanto, outro modo de demonstrar os resultados de uma pesquisa em
psicanálise que não seja testemunhando a posteriori os dados recolhidos dessa experiência.
Chegando ao final do segundo capítulo, nos reencontramos novamente com o tema da
transmissão da política da psicanálise, mas, dessa vez, articulado à aplicação do saber
analítico às práticas terapêuticas que compõem o campo da saúde mental. A metodologia da
Construção do Caso Clínico foi apresentada, nesse momento, a partir de sua aplicação no
campo da atenção psicossocial com as pesquisas realizadas recentemente, cuja análise aponta
para os efeitos de transmissão da psicanálise aplicada à clínica ampliada da saúde mental. Em
especial, tentamos demarcar uma aproximação entre a transmissão e a aplicação dos
princípios psicanalíticos na vida humana e na cultura como uma estratégia clínica e política da
pesquisa em psicanálise.
Continuamos nosso trajeto teórico, buscando definir a proposta da psicanálise
aplicada, conforme as ‘explicações e orientações’ deixadas por Freud, no que tange ao modo
de como o saber inconsciente se aplica à terapêutica ou à interpretação de outras disciplinas
‘não terapêuticas’. Em seguida, localizamos, nos escritos de Lacan, a concepção do termo
‘psicanálise pura e aplicada’ como uma questão eminentemente vinculada à formação do
psicanalista, na qual acentuamos a tarefa da transmissão da política do sintoma como um
dever que compete à psicanálise em nosso mundo. Mais adiante, Lacan passa a designar a
proposta da psicanálise aplicada, concebendo-o a partir da estrutura topológica de um plano
160
projetivo que demonstra uma junção da ‘psicanálise em intensão e extensão’ que, mesmo
representando momentos diferentes na formação do analista, se manteriam unidas
mutuamente.
Das observações que conferem as propostas de Freud e de Lacan de aplicação do saber
psicanalítico em um campo mais amplo de intervenções clínicas e sociais, demarcamos
algumas consequências extraídas no âmbito da pesquisa em psicanálise em sua tarefa de
transmissão dos princípios psicanalíticos ao campo da saúde mental. A primeira delas é
delimitada pela autonomia disciplinar da psicanálise que, ao se conectar com outros saberes,
possibilita a utilização do saber que o inconsciente enuncia e que o psicanalista sustenta em
sua práxis, como aplicável à terapêutica e transmissível ao campo da clínica. Dito isso,
recolhemos uma segunda consequência da proposição lacaniana da psicanálise aplicada à
terapêutica da medicina e do campo de saber psiquiátrico. Para sustentar tal proposição,
Lacan inclui, na formação do analista, a contribuição do saber médico, ainda que este se
configure como um saber prático e objetivo e, portanto, de natureza diferente daquele que a
experiência analítica permite elaborar. Em continuidade com essa proposta, se delineia a
terceira consequência extraída de uma orientação deixada por Lacan para os analistas de sua
Escola: a de que estes recolham o levantamento e a avaliação crítica de publicações que
atualizem os princípios da psicanálise aplicada ao saber conjectural de um campo mais
abrangente de procedimentos clínicos. Foi, então, nesse ponto que pudemos indicar a
dimensão política que atravessa a transmissão da psicanálise diante de uma forte
tendência que reduz, cada vez mais, as pesquisas clínicas a um ‘empirismo aplicado à
terapêutica’. Situamos, assim, a importante tarefa da pesquisa clínica em psicanálise entre a
aplicação e a transmissão dos princípios psicanalíticos no debate clínico atual, para que se
mantenha sempre atualizada a demonstração da operação analítica com o sintoma, não
reconhecida como ‘esotérica’ ou inefável. Com isso, chegamos a uma última consequência
que define a pesquisa em psicanálise no ponto de junção entre a ‘psicanálise em intensão e
extensão’, o que implica considerá-la como uma estratégia para que a formação do analista
presentifique a ação da psicanálise no mundo.
Sob essa perspectiva, apresentamos os desdobramentos das pesquisas de psicanalistas
que assinalam a contribuição do método da Construção do Caso Clínico pela articulação que
este promove entre as práticas diagnósticas da psiquiatria e da psicanálise, favorecendo a
transmissão da especificidade da operação analítica com o sintoma no trabalho em equipe.
Outra contribuição do método da construção do caso se constata por meio de sua proposta
metodológica articulada ao ato clínico, sempre inédito e imprevisível, mas, ao mesmo tempo
161
passível de demonstração; contrapondo-se aos parâmetros metodológicos pré-codificados dos
atuais protocolos de validação científica. Tais desdobramentos se apresentam em
convergência com o desafio da transmissão de uma leitura psicanalítica dos casos realizada
junto às demais leituras das equipes que se ocupam do acompanhamento clínico nos serviços
de saúde mental. Trata-se, portanto, da transmissão de um saber que a experiência
psicanalítica permite construir, caso a caso, que é aplicável à terapêutica da atenção
psicossocial em que o trabalho em equipe e as práticas coletivas se efetuam.
A partir dessa trajetória mais conceitual sobre a metodologia de pesquisa clínica da
Construção do Caso Clínico, chegamos ao terceiro e último capítulo com a aposta de que a
aplicação desse método no trabalho coletivo possibilitaria recolher efeitos de transmissão da
política analítica do sintoma no campo da saúde mental. Foi, então, por intermédio da
apresentação das etapas da construção de um caso, acompanhado pela equipe de um Centro de
Atenção Psicossocial (CAPS) do Rio de Janeiro, que pudemos testemunhar de que modo a
política analítica do sintoma pôde ser transmitida às equipes clínicas envolvidas na condução
do tratamento do paciente em questão.
Além dos resultados apresentados no último capítulo como uma verificação da
condução terapêutica da equipe com o caso, a aplicação metodológica da construção
produziu, ainda, uma avaliação que indica os impasses e avanços observados no cotidiano
clínico-institucional do CAPS. Considerando, no entanto, que esses dados já foram detalhados
anteriormente, nos dedicaremos aqui às passagens extraídas da escritura clínica do caso
produzida pelo pesquisador, que se remetem à nossa pergunta inicial reformulada, dessa vez,
com base no caso clínico: o que nos ensina o Caso Dario sobre a clínica analítica do
sintoma?
Para responder a essa pergunta, cabe retomar a proposição desta pesquisa de releitura
da concepção da construção analítica articulada ao trabalho do analista com o real em jogo
na clínica do sintoma, por meio do qual se apreende as construções de um sujeito para lidar
com o irredutível da repetição do gozo sintomático. Sob esse viés, o tema da política do
sintoma é designado pelo modo como o sintoma é tomado em sua dimensão de real, como
aquilo que não se interpreta pela via de um sentido único, mas que pode ser construído por
uma equipe clínica, se esta estiver atenta às modificações do sintoma induzidas ao uso
estratégico da transferência. Assim, a construção do caso permite isolar, no modo de gozo de
cada sujeito, as soluções por ele mesmo construídas, preservando uma orientação que se
dirige à incidência do real no curso do tratamento.
162
O caso Dario testemunha a construção de um sujeito em torno dos restos e
fragmentos de lembranças de uma escolha subjetiva que o manteve isolado do mundo por
trinta anos. Foi, então, a partir do encontro com um analista que esse modo singular de gozo
do ‘sintoma de isolamento’ pôde ser isolado do discurso do paciente no terreno da
transferência, testemunhando, ao mesmo tempo, os momentos em que esse modo de gozo é
recolocado discursivamente numa cadeia simbólica, permitindo que esse sujeito pudesse
reconstruir uma nova solução para sua inserção no laço social. Nessa direção, a escritura
clínica do pesquisador demonstra uma formalização produzida pela leitura coletiva do caso
como uma esquematização não concebida pelos significantes que se articulam coerentemente
numa cadeia associativa, mas pelos pontos de gozo não interpretável que puderam ser
construídos pontualmente, mantendo aberto o sentido do sintoma na verificação que resulta da
construção de um caso clínico.
Esse caso testemunha, ainda, a construção do analista e sua tarefa de transmissão da
operação analítica com o sintoma na prática coletiva da atenção psicossocial caracterizada, em
especial, pela suspensão de um saber teórico ou diagnóstico previamente estabelecido para a
condução do tratamento. Os efeitos recolhidos da aplicação de princípios psicanalíticos na
avaliação da condução da equipe permitiram localizar a utilidade clínica destes no desafio da
transmissão da política do sintoma ao campo da saúde mental. Entre eles, o princípio do
‘esvaziamento de saber prévio’ tornou-se operativo na leitura produzida pelas equipes do
CAPS e da ESF sobre as rápidas e constantes transformações do sintoma, não mais fixado em
uma determinada significação diagnóstica. Nota-se, com isso, a importância da transmissão
desse princípio clínico para que sejam introduzidos cotidianamente do trabalho em equipe
outros princípios da psicanálise, como o da ‘suposição de saber ao sujeito’ que mantém
sempre aberta uma via para abordar a dimensão real do sintoma. Sobre esse aspecto, a
construção do caso Dario testemunha a surpresa de uma equipe diante da resposta rápida e,
portanto, ‘não programada’ do paciente em relação ao tratamento psiquiátrico e às novas
soluções por ele inventadas para sustentar sua singularidade no laço social. Nessa perspectiva,
a estratégia da ‘pluralização da transferência’ revelou-se um modo de transmissão da
operação analítica com o sintoma para uma equipe clínica que passou a acompanhar as novas
transformações e soluções inventadas por esse sujeito como uma orientação clínica
compartilhada na condução do tratamento.
Constatamos, por fim, que o resultado extraído dessa metodologia de pesquisa
favorece a transmissão da política analítica do sintoma, tanto no nível mais pontual do
trabalho em equipe quanto no âmbito mais amplo do debate clínico, levado adiante pela
163
publicação desta pesquisa em psicanálise, cujo alcance se estende ao campo universitário ou
ao próprio campo da formação psicanalítica. Com essa conclusão, não encerramos nosso
trabalho de aplicação do método da Construção do Caso Clínico, mas propomos seu
aprimoramento e sua continuidade entre analistas e praticantes comprometidos com a
formação em psicanálise e, portanto, com a tarefa de fazer avançar a teoria e clínica
psicanalítica no cenário clínico atual, partindo de uma experiência com os casos que renova e
atualiza o campo da psicanálise lacaniana.
164
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171
APÊNDICES
APÊNDICE 1
172
Roteiro para apresentação do caso ∗
É importante que os pontos listados sejam tratados, mesmo que em outra ordem.
A narração
•
•
•
Do sujeito (a palavra do paciente)
Da família (pais, cônjuge, filhos, irmãos, ou até vizinhos e empregadores)
Da instituição (os documentos e registros: fichas, relatórios, atas, etc.)
A dinâmica da clínica
Trata-se de construir as etapas, as escansões (avanços, ‘congelamentos’, regressões) da
dinâmica da verdade subjetiva. Este ponto é mais histórico-documentário e, por isso,
não deve ignorar nenhuma das pessoas que possuem uma relação significativa com o
paciente, incluindo os técnicos da equipe. Nesse ponto a narrativa torna-se construção
do caso e a definição da doença, recontratação do sintoma:
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
As expectativas subjetivas (os pedidos, as demandas, se existirem)
A relação do paciente com o(s) técnico(s) da equipe e com a(s) instituição(s).
A(s) discussão clínica da equipe.
As identificações do paciente.
As etapas no uso dos fármacos.
Os ‘nós’ sintomáticos que o sujeito reconhece, suas necessidades.
As histórias afetivas e sexuais
As fases da relação com as substâncias.
Escansões clínicas (passagens ao ato, mudanças do sintoma, abstinências e
recaídas, distanciamentos, retornos, etc.)
Reformulações do projeto terapêutico.
Verificação e Avaliação
•
•
•
•
•
•
•
∗
Anamnese
Diagnóstico(s) (DSM-IV ou CID-10) e suas eventuais modificações no curso
da observação e do tratamento
Diagnóstico psicodinâmico ou de outra abordagem clínica (se realizada pela
equipe)
O uso de fármacos
Eventuais intervenções com a família.
Participação em grupos, comunidade, outras estruturas.
Psicoterapia.
Tradução da ‘Griglia per la presentazione del caso’, disponível no site www.forumpsi.it organizado por
Carlo Viganò. Os comentários inseridos entre os itens desse instrumento seguem o mesmo formato
apresentado no texto original como observações do proponente.
APÊNDICE II
ANOIdade
HISTÓRIA
DATA
Esquema História/ Tratamento/ Intervenções ∗
Tempos no ‘après coup’, tempos históricos transformados
pelo inconsciente.
Tratamento/ MATEMA
INTERVENÇÕES
.
.
∗
Instrumento empregado pela Metodologia da Construção do Caso Clínico, conforme observado na experiência de intercâmbio acadêmico. Originalmente, no campo ‘tratamento’ está
incluída a possibilidade de ‘matematização’ do caso clínico. Por não termos formalizado em matema ou em grafos topológicos a construção do caso, optamos pela adaptação desse
instrumento, conforme o anexo apresentado em seguida.
APÊNDICE III
REGISTROS
INTERVENÇÕES
ANO /
Idade
DATA
Quadro Registro/ Intervenções/ História
HISTÓRIA
APÊNDICE IV
Transcrições do Laboratório da Construção do Caso
Encontro com Carlo Viganò: Milão, 06/07/2011
A tendência nesse caso é a de consolidar um delírio psicótico. Wagner é o
protagonista, o Deus da transferência, e se entra no delírio, transforma-se no Deus de
Schreber, torna-se persecutório. É importante ter em mãos a transferência e observar
que Dario ‘racionalizou’ o mundo que construiu, mas toda a equipe é pouco curiosa. 30
anos em casa, o que fez? Que gozo havia lá? Dario responde: ‘construí um mundo
imaginário onde tudo estava bem’. A questão é descobrir o que se pode ligar ao mundo
externo, e isso se chama transferência (do mundo imaginário com o mundo real via
Wagner). Mas se transforma sozinho, Wagner se torna Deus: ‘foi graças a você’, diz
Dario. É importante que o analista se subtraia para que consiga abrir essa transferência
que pode se desenvolver em uma pluralidade. Deve ser plural a transferência na psicose
(na praia, no carnaval, no supermercado...). Quando descobre o mundo real, Dario
recomeça sua leitura sobre esse mundo. Wagner pode estar envolvido nesse delírio que
agora já não faz no seu próprio quarto, mas nas sessões, toda a semana... como ‘delirar a
dois’. Wagner torna-se um regente e talvez não em ritmo semanal como uma analise
neurótica. Nota-se que na fala de Dario não se cria uma associação.
A demanda ‘queria me relacionar melhor com minha família’ é um ponto que
chama a atenção, o que isso significa? Há aí uma contradição: do ponto de vista
realístico não significa nada, pois Dario esta com a mãe tem seus irmãos e cita o pai
adorado, mas Dario continua dizendo que esta isolado. Não é uma demanda tomada pela
via do sentido, é diferente, é tipo de demanda não subjetivada, ao modo psicótico
(sinthoma) análogo do que pretende reordenar o mundo, a sociedade, o laço social.
A mãe tinha estruturado a causalidade de doença do filho, e Dario diz: não, antes
disso já sentia sensações estranhas. Aos 8 anos sente a cabeça: perde a organização da
realidade (ponto de desencadeamento: perde a realidade em relação ao próprio corpo) e
busca os pais para reencontrar a organização da realidade. Mas ali já se sente isolado da
família, o que é da ordem do desejo parental: a organização da realidade é perdida e
deve ser reconstruída com a fantasia edípica.
Como é feita a psicose? A psicose é feita de dois tempos lógicos: defender-se do
Outro persecutório, a realidade se desorganiza e torna-se persecutória. Por isso Dario se
fecha em casa e disso se defende (movimento de defesa, de auto-proteção). Através dos
olhos (visão) em que não se destaca o ‘olhar’ porque ‘entra na cabeça e é invadido pelo
Outro’, portanto disso deve se proteger. A partir desse isolamento, o psicótico deve
reconstruir uma realidade onde inclua o gozo, senão adoece. E isso se organiza de modo
paranóico ou de modo mais esquizofrênico. Dario não é compreendido por ninguém,
nem por sua mãe: nesse ponto é possível encontrar o sinthoma que não é interpretável,
encontrar os pontos que não são lógicos, “relacionar-se melhor com sua família” não é
lógico, é um enigma: sinthoma: tentar ter um laço melhor com a família, tentar construir
um mundo paralelo.
Sobre a relação com a mãe dedicada ao filho, que vive para o bem estar do filho.
É um mundo artificial que a mãe manteve em vida (o que alguns chamam de simbiose),
como uma relação uterina que caracteriza uma gravidez de 30 anos. O que será que a
vizinhança dizia: porque Dario não vai trabalhar? Não sai de casa, por quê? A mãe tinha
o problema de não conseguir explicar a doença do filho, talvez por medo que a
psiquiatria o levasse ao manicômio.
Em relação ao diagnóstico de esquizofrênico: a equipe questiona: o que fazer
com um esquizofrênico? Do ponto de vista da classificação é um diagnóstico correto, o
que deseja. Essa intervenção pode ser assinalada ao longo do tratamento: se foi uma
intervenção eficaz do analista, se houve subjetivação da parte da mãe ou não. Mas até
aqui, Dario parece ainda acreditar num ‘milagre’ e na magia do encontro com Wagner.
Sobre o uso do fármaco, é importante indicar a dosagem, o tipo de fármaco, etc. Não
há equipe, porque não vê que se reduz o fármaco, Dario começa a delirar. Wagner pode
discutir isso com a psiquiatra. Há um laço ligado ao fármaco que precisa entrar na
transferência como um objeto a como coagulador do gozo, fundamental na
transferência. O psiquiatra deve ser cúmplice dessa política com a equipe, uma política
de redução ao mínimo, mas mantendo o fármaco como objeto de transferência, entrar
nessa ótica (...). Não é somente a química que deve ensinar sobre o uso dos fármacos.
Nesse caso, há indicação de neuroléptico: Seroquel, que age sob o pensamento
obsessivo psicótico, freia esse pensamento. Enquanto que os novos seratoninérgicos
agem mais para o pensamento obsessivo neurótico.
Sinthoma / micro-eventos:
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Relato de 10/01: “Durante 30 anos criei um mundo mágico só para mim”. Esse
é o assunto que trata o que fez Dario ao longo desses últimos 30 anos. É uma
outra forma de sinthoma, ou seja, seu modo de gozo, que o fez viver durante 30
anos, era o de construir um mundo mágico, onde ‘eu podia fazer tudo’. Não há
nada de maior satisfação do que é isso. Parece que Dario estava pronto para sair,
porque tendencialmente outro nessa condição não sairia: porque sair é perder
esse gozo. Agora Dario quer transferir esse mundo mágico também ao externo, a
ver esse externo com seus olhos. É importante esse aspecto porque deve se levar
em conta que o seu corpo quis por 30 anos esse gozo, senão seria uma memória
somática.
“Um ponto onde via tudo de cima pela janela: meus amigos de infância, a
menina”. Um gozo de ver o bairro pela janela, ligado ao ver e não olhar, porque
não há Outro (gozo autístico de ver o mundo paradisíaco) porque ‘levava as
coisas do mundo real para a minha fantasia’, um paraíso.
Auto-história: acidente 13-14 anos de bicicleta: o Outro quer me amassar? Medo
de acender a luz e não da morte: a morte chegou. Esses são alguns dos episódios
singulares que descreve Dario. Como, ainda, o sonho ou a sensação de queda do
teto a cama. É um sonho rápido, uma alucinação, o que é? Dario diz: ‘é como se
a pessoa entrasse dentro de mim’, ‘ficava isolado para me proteger não sei do
que...’ aqui há uma direção de intervenção: os outros entram dentro dele, então
veremos quais os tipos de proteção que podemos oferecer. O Outro (CAPS) não
entra dentro dele porque não o entende e por isso não é persecutório, verificar
como o Outro o invade fora dali.
Encontro do dia 25/02/2012: Laboratório da Construção do Caso Clínico
Wagner: A equipe do CAPS esta há dois meses sem supervisor e tem trabalhado
sozinha. Fala da dificuldade do uso diagnóstico com a equipe e acrescenta: aquele
paciente com dificuldade com a lei, o que é muito comum na psicose, se não é
escancaradamente psicótico, como um usuário de cocaína com problemas com o tráfico,
por exemplo, vira um caso de psicopatia.
Daniela: Propõe iniciar a discussão, seguindo a narrativa do Wagner a partir do roteiro
que trabalhou no caso Dario. Por ser um texto que já tem uma elaboração de quem
atende o paciente, seria interessante partir dele e na medida em que as informações
faltarem, podemos retomar o esquema para recolher novos dados e também cotejar com
os novos comentários de vocês. Os comentários do Viganò já foram enviados e os
nossos podem começar a aparecer agora. Então, seria mais interessante,
metodologicamente falando, que a gente começasse pela narrativa que o Wagner fez, a
rigor, o debate parte desse texto que já contém algumas elaborações do Wagner.
Ana: O primeiro ponto, que é um ponto ‘espinhoso’ em relação ao caso é o diagnóstico,
que esta no texto como ‘transtorno obsessivo compulsivo’ que foi indicado pela
psiquiatra e é assim que ela medica com dose alta de antidepressivo. Ela dá algum
neuroléptico? Não sei, pode até ter sido a salvação para o paciente, mas não sei, não esta
claro isso aqui.
Wagner: Ela medica com Clomipramina e diz que é a medicação mais eficaz para TOC
e antes mesmo da discussão do caso que eu levei para a equipe, eu já tinha feito
supervisão com o Marcus e já tinha conversado bastante com a Dani. Eu não levei o
diagnóstico fechado de psicose, porque não me sentia seguro para argumentar, mas a
tendência da psiquiatra com parte da equipe era a de continuar sustentando esse
diagnóstico de TOC.
Marcus André: Eu acho que a gente esta chegando num ponto em que os diagnósticos
não se recobrem mais. Sei lá, há dez anos atrás, era esquizofrenia/psicose, transtorno
bipolar, etc. Mas agora os nossos saem como, por exemplo, o TOC não tem nada a ver
com o nosso mais... TOC psicose/neurose?
Wagner: É, para TOC pode ser tanto um neurótico quanto um psicótico.
Ana: Mas se bem que na perspectiva continuísta evolucionista a neurose obsessiva e a
paranóia, por exemplo, são fronteiriças. Então, tinha confusões entre neurose obsessiva
e psicose, resumindo, é uma área que se confunde particularmente. Tem isso que você
Wagner: Mesmo na psiquiatria tem uma diferença entre ‘se contaminar porque não
quer se sentir sujo’ e ‘se contaminar porque a contaminação vem do Outro’. E outra
coisa que eu observei, que contribuiu para esse diagnóstico de TOC, de neurose, para
boa parte da equipe, não só da psiquiatra, foi a melhora rápida do paciente, os ‘efeitos
terapêuticos rápidos’ da medicação: ele ter saído logo de casa, etc. Isso foi interpretado
assim: como ele é louco? Louco não melhora tão rápido assim!
Marcus: É, mas isso até na gente coloca dúvida né? E tudo tão maravilhoso, tão
perfeito que a gente duvida mesmo.
Ana: Esse é um ponto, ele responde muito bem ao antidepressivo, quer dizer, é uma
droga que não tem nenhum efeito antipsicótico.
Daniela: Mas ele responde bem e mesmo quando a medicação é retirada, ele continua
bem. Então tem algo que e anterior ao medicamento, acho que parte da transferência
mesmo. Eu estou tentando retomar algumas perguntas que eu remeti a esse encontro, e
duas delas tem a ver com esse ‘ponto de partida’ que a gente esta introduzindo aqui: a
primeira questão é ‘o que se transmite da Psicanálise ao campo da SM’, essa marca da
transmissão eu acho importante passar pela nossa discussão. Eu localizei na narrativa do
Wagner dois aspectos da transmissão da psicanálise: primeiro quando ele marca o
‘esvaziamento do saber prévio’ com a equipe, seja a da ESF, seja a do CAPS. E depois,
algo muito peculiar que esse caso traz que é o ‘surgimento da transferência’, quando
isso começa a aparecer desde o primeiro momento de uma visita domiciliar até, três
semanas depois, quando o paciente está no carnaval, no bloco da Loucura Suburbana.
Enfim, o que acontece aí nesses primeiros momentos em que a transferência surge?
Nesse item, eu coloquei algumas perguntas para o Wagner a partir de três questões:
quais foram as hipóteses ou os impasses encontrados pelo praticante que nortearam a
construção do caso? Quer dizer, o que fez você escolher esse caso a ponto de decidir:
‘esse é um caso que eu quero discutir, levando adiante a construção do caso’. Tem a ver
com a duvida diagnóstica, tem a ver com essa transformação rápida ou tem a ver com o
manejo na transferência? Porque no início tinha uma fala muito idealizada do paciente,
como aquela ‘foi graças a você’, enfim de que perguntas ou questões você parte para
dizer: ‘eu quero construir coletivamente esse caso’.
Wagner: A dúvida diagnóstica era uma questão de imediato. Quando eu levei o caso
para a discussão no CAPS, eu já havia feito uma ou duas supervisões com o Marcus.
Quando eu trouxe o caso pela primeira vez para a supervisão, eu estava convencido de
que era um caso de neurose obsessiva. Eu ainda não conseguia levar em consideração
que algumas falas dele apontavam para uma psicose, como aquele episódio que o
Viganò aponta do ‘cérebro que vai diminuindo e aumentando’ ou aquele outro episódio,
muito estranho, que o Marcus marcou ‘dos policiais entrando na casa dele e ele não
tinha medo de morrer, mas que alguém acendesse a luz” e, sobretudo, esse isolamento.
A primeira hipótese foi de cárcere privado, eu achava que ia encontrar um ‘homem das
cavernas’ em função desse isolamento. E depois da supervisão é que fui me deparando
com essa possibilidade de um caso de psicose. Isso é importante tanto para a direção do
tratamento quanto para a ‘transmissão’ disso junto à equipe.
Daniela: É, mais parece que era uma equipe pouco curiosa, né? Porque na medida em
que o paciente ia bem, estava melhorando, eles não tinham nem muita curiosidade com
essa melhora rápida.
Wagner: Teve uma coisa que eu acho que não foi de imediato, mas ao longo do
tratamento, que me chamou atenção foram os ‘efeitos terapêuticos rápidos’, a saída dele
de casa. Eu já fiquei surpreso com o fato dele ter topado que eu entrasse no quarto dele
para atendê-lo porque naquele momento eu pensei assim: eu tenho que tomar todo
cuidado para não forçar a barra, para não ser invasivo, mas insisti ate o fim. No final da
VD quando ele não topou sair do quarto, mas mandou a carta eu notei que ali tinha um
terreno e fiz questão de ler a carta em voz alta, até porque ele não estava endereçando
aquela carta a mim. Eu estava ali com outras pessoas da equipe e fiz questão de ler em
voz alta para a equipe e para a mãe que estavam ali na sala e também para ele próprio
escutar.
Daniela: O que vocês acham, então? A gente poderia ficar com aqueles três itens para
discutir inicialmente ou ver se Ana e Marcus querem trazer mais alguma coisa. Mas
pelo que você falou acho que esses três itens interessam a você nessa discussão pelo
modo como você destacou na narrativa do caso, né? Quais são? O diagnóstico, localizar
esses ‘efeitos terapêuticos rápidos’ e de que modo houve (ou não), se foi possível a
transmissão para essa equipe, ou seja, que efeitos de transmissão a gente pode recolher
que houve para a equipe. Não sei, pensei em delimitar alguns pontos para que agente
possa reduzir e fazer circular... Marcus, você pensou algo que possa incluir nessa
discussão?
Marcus: Essa questão que a equipe, que a gente tem um olhar especificamente
lacaniano ou psicanalítico sobre o assunto é que o sentido de uma vida é muito diferente
numa psicose e numa neurose. E a relação com o sentido, estou falando em sentido para
ficar bem geral, então quando a gente fala de um caso desse a gente diz: ah, eu acho que
é psicose, porque a gente está preocupado com um sentido geral e ele está num sentido
completamente ‘fora do sentido compartilhado’, em geral. Ninguém fica 30 anos fora a
toa e depois volta a toa, sem problema nenhum. E estranho porque isso aí tem alguma
coisa a ver com o jeito de se relacionar com o sentido compartilhado, com a ruptura e
tal. Mas para a equipe isso não faz diferença, o que a equipe quer e o que o mundo quer
é que ele entre num sentido compartilhado e pronto, e ele entrou!
Ana: Pois é, ele é o primeiro da turma! E numa escola convencional.
Marcus: Falar da equipe é também falar de uma relação nossa, da psicanálise, com o
mundo. Aonde o mundo esta satisfeito porque o sujeito se converteu, a gente está
dizendo que essa conversão tem um formato específico. E isso vai ter conseqüências e a
gente vai ter que lidar de uma maneira ou de outra, mas o mundo só quer saber que ele
se converteu. Aí lutar com o diagnóstico de psicose nesse caso, é muito difícil, porque
em nome de que a gente diz: ‘ah ele é psicótico. Porque é?’ O que se poderia dizer é
‘ah, o meu TOC está muito bom, e o que você me dá a mais se chamar de psicose?’ O
que a gente diz para eles? Esse é ponto, o debate com a equipe é fundamental, até
porque funciona muito bem com a equipe. Não digo que a gente não deve debater com a
equipe, mas o que a tem que se pensar é quando fazer isso com a equipe. Está todo
mundo muito bem, feliz, e ninguém mais quer saber o que fazer com essa história de
psicose. O problema do diagnóstico eu acho que é esse: porque se é psicose ou não,
acho que a gente poderia definir que é e não ficar discutindo muito mais isso. Apesar de
ser super complicado porque tem pouca coisa: uma que o Viganò chamou atenção é o
que a gente já pode ver que vamos partir da hipótese de que é psicose. Sei lá, de neurose
obsessiva ele não traz nada, nada de um mundo interior qualquer que pudesse justificar
ficar tanto tempo trancado, alguma fantasia de que ‘ele tem que ficar ali porque senão
algo vai acontecer’. Até um psicótico que já esta no delírio ou que esta criando um
delírio tem causa, é porque algo vai acontecer se ele não se lavar. Mas a gente encontra
uma causa muito diferente da causa da realidade psíquica, mas aí não tem nada, é muito
estranho. Não dá para ser neurose obsessiva sem nada, geralmente aparece nem que seja
no próprio sintoma. Então, vamos assumir que é uma psicose, como hipótese de
trabalho e não divulgando que é, e sendo assim, a maior complicação num caso desses é
ficar lutando por um diagnóstico de psicose.
Ana: Nem vale a pena, porque senão a psiquiatria iria medicá-lo ainda mais, coisa que
não precisou porque ela apostou em TOC e para ele foi mais vantajoso, inclusive em
termos de medicação.
Marcus: Então, esses são os pontos sobre o diagnóstico que eu teria para falar, é melhor
deixar TOC.
Ana: É, manter a posição da equipe, mas eu acho que a gente não pode deixar TOC
porque a gente não está assinando que é. Mas não interessa muito o diagnóstico para a
discussão da equipe, a transmissão não vai ser feita a partir do diagnóstico.
Marcus: É isso, mas ao mesmo tempo nós vamos ficar num mundo paralelo?
Daniela: Não, porque eu acho que tem uma outra via que está localizada no texto do
Wagner que é o fato dele ter conseguido discutir a hipótese diagnóstica e situar melhor
o caso na psicose, fez com que ele tivesse um manejo com o caso que ele chama de
‘pluralizar a transferência’ que teve um efeito. Então, não se trata de ficar discutindo
TOC ou psicose, mas que ele pôde assumir uma posição diante do caso que fez com que
outros colegas da equipe começassem a acompanhar o caso junto. Eu acho que se teve
alguma contribuição do diagnóstico aí, talvez tenha sido para ele conseguir conduzir
esse caso de um outro modo que não seja ‘venha aqui me ver toda a semana’. E aí ele
começou a conseguir falar com a assistente social, a falar com a psiquiatra, etc. Enfim,
teve uma pluralização da transferência que até então estava muito direcionada a ele, não
sei, tive a impressão que a hipótese diagnóstica de psicose fez com que ele se
recolocasse diante do caso e da equipe.
Ana: Interessante porque tem todo um trabalho a ser feito com a mãe, que também tanto
a Saúde da Família quanto o CAPS ficaram atentos para isso.
Marcus: Mas ao mesmo tempo, caso a gente não vá discutir com a equipe se é TOC se
é esquizofrenia, o que seria num linguajar mais comum: ‘não deixa TOC porque é só
sintoma, vamos trabalhar com hipótese de psicose aqui só entre nós’, isso levanta um
problema que é o de como a psicanálise pode funcionar com um registro completamente
distinto do registro dos psiquiatras. Eu não saberia como avançar nisso, mas vamos
mudar as nossas categorias para as do mundo de hoje?
Ana: Mas você fala em relação à equipe ou em relação a um trabalho entre
psicanalistas? Em relação à equipe, é colocar a dúvida diagnóstica porque tem algumas
coisas muito estranha, é manter o estranhamento, eu acho.
Marcus: Mas eu quero fechar essa questão, o que eu quero levantar é de se a coisa
continuar assim, talvez a gente chegue em situações em que a gente não tenha mais
como dialogar com a equipe se a equipe é tomada pelo discurso da psiquiatria. Então a
gente teria que ter equipes psicanalíticas?
Ana: Não, não eu também não acho que é o discurso da psiquiatria, é o diagnóstico
apressado ou do senso comum.
Marcus: Mas o nosso mundo é cada vez mais avesso a psicanálise, tem horas que as
nossas categorias não são mais compreensíveis e aí? Então fica a questão...
Ana: Mas na reforma psiquiátrica a categoria é de ‘grave sofrimento psíquico’ ou
‘paciente grave, paciente não grave’, então trinta anos trancado é grave e ponto. Se deu
uma boa resposta, que bom, mas não pode não ser grave. Porque senão aí, começa a
fazer psicoterapiazinha e ao mesmo tempo, o fato dele responder bem com medicação e
sem medicação, acho que essa psiquiatra foi, como todo o psiquiatra deve ser, sensível a
resposta do sujeito a droga. Porque ela diminui a medicação quando ele disse: ‘olha, eu
estou sonolento’, ele pediu, e o psiquiatra que se preza, da reforma pelo menos, e não
precisa ser psicanalista para ser sensível a resposta do sujeito.
Marcus: Mas é importante observar que talvez no futuro não haja mais esse psiquiatra.
E num futuro próximo.
Ana: Ah, mas aí eu não quero pensar no pior dos mundos hoje não.
Marcus: Mas esse caso levanta o pior dos mundos. Em alguns aspectos ele aborda o
pior dos mundos, é o caso e não sou eu.
Daniela: Mas esse diagnóstico de TOC se sustenta para a equipe ou somente para a
psiquiatra? Porque acho que isso faz alguma diferença.
Wagner: Para boa parte da equipe é TOC. Mas alguns colegas com certa leitura
psicanalítica duvidavam: ‘não é um delírio, é mais da ordem da fantasia’.
Ana: A dúvida é entre fantasia e delírio, né?
Marcus: Essa necessidade de se satisfazer com o delírio compartilhado em que
ninguém dá mais problema, é muito evidente nesse caso: “que bom, ele cria e já chega
com a coisa pronta - eu me prendi depois voltei”, agora já me esqueci bem como ele
disse.
Ana: Ele tem nomes para essas coisas que ninguém deu para ele, ele cria. Eu acho que
foi um grande trabalho que ele fez nesse mundo aí.
Marcus: Ele vai se aproximando desse senso comum do Fantástico, de modo que todo
mundo engole fácil, e aí fica uma coisa fechada.
Ana: Não, não fica. Ele é bem sucedido, porque por acaso ele se aproximou do senso
comum.
Marcus: Sim, mas o nosso trabalho com a equipe fica amarrado num sentido fechado
que não tem muito a ver a com a realidade dele, mas tem muito mais a ver com a
realidade do Fantástico. E amanhã ninguém vai poder interceder quando ele mexer para
lá e para cá porque vai romper com um sentido que todo mundo concorda.
Ana: Mas aí, ele vacilando, quer dizer: ficar 30 anos trancado é grave, é um caso
complicado, ele deixa uma porta aberta para não fechar o diagnóstico, para não bater de
frente no diagnóstico psicose x TOC e para poder amanhã, se o cara der uma
descompensada, seja por qual motivo for, tropeçou numa pedrinha. E aí tem que fazer
todo um outro trabalho que não sabem qual é, mas por enquanto não esta precisando.
Mas aí, por enquanto eu acho que essa coisa de manter o saber em suspenso. O mais
importante na transmissão eu acho que é ‘como lidar com o saber’, porque aí dá uma
segurada: ‘não sabemos muito bem’.
Marcus: Mas que condições adversas, né? Não é uma situação em que você, por
exemplo, pode fazer uma postura e ver que a equipe esta sendo positiva, não a equipe
esta sendo patológica. De certo sentido, porque ela aceita e fica fechadinha naquilo,
acabou, pronto. Então assim, a equipe esta longe de conseguir, não essa equipe, estou
falando de uma questão... o trabalho para a gente é um trabalho que você tem que ficar
sozinho, só fazendo, só trazendo a dúvida diagnóstica, é um trabalho que não o trabalho
de equipe, entendeu? Não é um trabalho em que a equipe está sentindo que é uma coisa
mais ampla.
Ana: Mas você viu que ele falou que mesmo o pessoal com certa orientação da
psicanálise ficou na dúvida entre delírio e fantasia? Ou seja esse caso é mesmo uma
pedrona!!
Marcus: É, é um caso difícil por isso!
Daniela: O que eu pude recolher na forma como o Wagner narrou o caso, é que não
havia equipe! Em relação a esse caso não havia um trabalho em equipe.
Wagner: Por que? Porque veio a partir do matriciamento, veio para atendimento
comigo, ele faz a demanda inicial de ‘remédio’ e eu aproveitei para dizer que não
poderíamos oferecer só remédio, que o CAPS dispõe de outras atividades e ele topou.
Ele já estava topando vir, eu já estava atendendo e ele vai na primeira vez ao CAPS na
quarta entrevista minha com ele. Ele tem a consulta com a psiquiatra e eu mostro para
ele o CAPS e as várias atividades do CAPS como para qualquer outro paciente que está
sendo matriculado. Ele não se interessou, assim de cara, ele disse em relação as
oficinas: ‘não, por enquanto não’. Então, assim, é um paciente que no momento vai ao
CAPS só para os atendimentos individuais comigo e não procura se interessar pelas
oficinas e por isso é menos ‘conhecido’ ainda, porque ele não circula no serviço.
Ana: Mas ele entrou nos dispositivos de atenção psicossocial, foi para o carnaval. Ele
entrou no que é oferecido fora do CAPS, digamos assim, pontualmente. E ele fala:
‘graça a vocês’, ele pluraliza isso e responde no plural. Apesar de inicialmente ser com
você, depois ele responde ao CAPS.
Wagner: Com relação a essa questão diagnóstica, é muito comum que as equipes
queiram ‘fechar com o diagnóstico psiquiátrico’, mas nem todos fecham. Até pela
transferência de trabalho que eu observo que alguns têm comigo pelo fato de introduzir
algumas discussões inclusive em relação a outras hipóteses diagnósticas.
Daniela: Então, eu acho que a gente podia seguir em relação a esse item da transmissão
e do diagnóstico, a gente poderia situar em dois tempos: um primeiro momento em que
não havia equipe em relação a esse caso e foi a partir da primeira discussão, da reunião
de equipe que você introduz essa idéia do diagnóstico em suspenso, como algo que
ainda tem que se investigar melhor e não ‘fechar’ e que começou a ter ali algum
trabalho de ‘pluralização da transferência’. Mas aí o Marcus, localiza um segundo
momento que seja talvez a consequência dessa primeira convocação ao trabalho de
equipe que tenha sido a equipe começar a trabalhar com um sentido mais fechado e, não
necessariamente, ficar no registro de um saber em suspenso, é isso Marcus?
Marcus: Não, eu não sei se foi uma consequência dessa chamada. Acho que essa
chamada... a tendência natural de todo mundo, dele e da mãe, é dizer : ‘ah, eu me isolei
no meu mundo imaginário, porque eu não tive coragem de lutar com o mundo”, como
uma novela. Essa novela já se passa, não é por nossa causa, ao contrário, a gente vai
contra essa novela.
Ana: Mas ele monta um semblante ai, ou um ‘pseudo-semblante’, não saberia dizer se
isso é um semblante, mas ele construiu alguma coisa: meu mundo interior, a minha
fantasia...
Marcus: Por exemplo, uma passagem de um sonho: “Deus pede para eu sacrificar um
filho, mas eu não consegui. Deus pediu para Abraão sacrificar um filho dele que era a
coisa mais importante para ele.”. Então, tem um sonho, tem uma associação e aí
começa a maquininha do sentido: “me livrar de uma coisa importante é difícil para
mim, quando eu comecei a me isolar eu criei um mundo novo, lá eu me relacionava
com todo mundo, lá era perfeito”. Esse sujeito é o sujeito universal, é o semblante
psicanalítico da novela. E ele vai direitinho, ele pegou bem esse semblante.
Ana: É, e sabe-se lá como, né? Porque nunca se tratou e tinha medo do hospício.
Marcus: Agora o sonho de “Deus ter que sacrificar um filho”, não tem nada a ver com
essa história. É muito barra pesada, a Bíblia, Deus tentando sacrificar um filho, sabe-se
lá como era esse sonho, mas não, é só ‘ah, eu prefiro essa coisa mais light’, mas esse é o
trabalho dele.
Ana: É o trabalho dele, ele vai colocando o véu.
Marcus: Agora o trabalho do delírio em geral quando vai colocando o véu, é um
trabalho fechado, rígido. Esse que é o problema da paranóia, aqui não, fica uma coisa
geral e tal, mas se a equipe aumenta, porque tudo que o coletivo quer é que isso
continue rígido. Quando ele precisar dizer para a equipe que ele é o Abraão, a equipe
vai dizer: ‘não, o que é isso, você só tem medo do mundo externo, você não é Abraão
não’, ele não terá margem para jogar. Então nesse sentido a equipe não é terapêutica, ela
tende a seguir num sentido ao contrario do trabalho dele. Ele precisa saber jogar com o
semblante, ele jogou bastante quando ele estava sozinho, não sei o quanto ele é capaz de
jogar agora. Nesse sentido, o trabalho da equipe aí, o fato de ter pluralizado e
institucionalizado a transferência foi fundamental, agora se esse Outro transferencial
que é a instituição, responde sempre do mesmo jeito para ele: “você é o nosso menino
que tem medo do mundo”, ele não vai poder fazer outra coisa, ela vai ter que ser ejetado
dali para poder criar um novo semblante se a mãe precisar. Ele não vai poder fazer com
a instituição, esse é que o perigo da pluralização também, a instituição não pode ser tão
fixa.
Ana: Pois é, aí alguma transmissão da psicanálise tem que se fazer valer, senão para que
tudo isso, né? Que eu acho que é a ponto de deixar valer esse saber em suspenso, uma
certa suspensão metódica do saber, porque amanhã ele aparece dizendo que é Abraão e
ai você diz: ‘gente, é então a gente vai ter que rever, não é bem assim ou a gente não
pode ir com tanta pressa achando que ela já esta bom, que esta curado’ ou seja lá o que
for, porque amanhã ele aparece dizendo que é Abraão, vamos supor. Essa hipótese de
que o delírio estoure, né? No começo do tratamento o delírio estoura, e aí quando você
põe o saber em suspensão e diz: ‘mas olha, a gente não sabe qual vai ser o próximo
passo, o cara é que diz para a gente’. Então aí, se for erro diagnóstico ou não, naquele
momento parecia tudo organizado, mas agora não esta mais. Eu acho que isso que é
quebrar esse mundo duro, progressivo, evolucionista de que o cara melhora e vai
melhorando toda a vida, como ninguém. Nem normais melhoram progressivamente. O
ponto então é o saber, na transmissão desse tipo de relação com o saber, e isso a gente
não transmite falando com a equipe, a gente transmite trabalhando: ‘olha, não sei,
vamos ver, agora esta assim, vamos com cuidado, ele melhorou a mãe caiu, todo mundo
já observou isso. Não era cárcere privado, era ele que se escondia, ao mesmo tempo ele
se escondeu tempo demais e isso não deixa de ser estranho mesmo para TOC’. Acho
que são esses pontos que vão caminhando pelo senso comum e que as pessoas dizendo:
‘é, pode ser que sim, pode ser que não’. Deixar essa coisa vacilando, acho que não tem
outro jeito. A transmissão mais importante nesse ponto eu acho que é essa, é deixar a
possibilidade de deixar vacilar o saber. Ai, então a gente não precisa trabalhar
escondido, achando que é psicose, né? Mas realmente, você não pode dizer que ele tem
um delírio sistematizado. Ele não tem uma figura delirante, ele colocou ‘véus’ numa
história, é impressionante como ele trabalha mais para o semblante do que para o
delírio.
Daniela: É como se ele estivesse ‘racionalizando’ um pouco essa história e com isso
inventando um novo modo... acho que esse é um aspecto importante no caso também,
né? Como ler esse ‘sintoma de isolamento’, como ele chama?
Ana: É ai a gente vai entrar nos nossos pontos, né? O que o Viganò apontou... tem uma
coisa do olhar aqui que é fantástico. Tem pelo menos duas cenas que eu marquei que
você diz: pela relação com o olhar, objeto olhar, você vê que tem um estranhamento ali.
Daniela: Eu acho que até aqui a gente já fez um bom cotejamento entre diagnóstico e
transmissão, né? O que a Ana acabou de falar já localiza algo que se mantém em
suspenso como causando o trabalho de uma equipe. Talvez entrar um pouco mais nos
meandros da leitura analítica do caso, que poderia ser ‘como ler esse sintoma de
isolamento’, eu acho que a gente poderia cotejar com o outro item que seria ‘os efeitos
terapêuticos rápidos’ apontado pelo Wagner. Porque se a gente localiza algo aí, a gente
pode extrair alguma coisa da transferência que foi operativa nesse sentido, para recolher
os efeitos.
Wagner: O que eu teria a dizer, por exemplo, de como vem sendo o tratamento nesses
últimos meses, ele vem cada vez se reportando menos a essa situação do passado. Ele
traz questões atuais, ele fala do que ele esta experimentado na escola, por exemplo. Ele
veio dizendo que não pode mais freqüentar aquela escola, e foi falar com assistente
social e tal, e o que ela fez? Ela fez um levantamento de escolas e entregou para ele, ao
invés dela conseguir uma escola para ele e dizer onde era. E isso partiu de uma conversa
que tive com ela para ele tentar numa escola que seja melhor para ele. Então, ele tem
falado dessas situações: das dificuldades, que esta conseguindo isso e aquilo e também
do seu interesse pelo mundo da informática.
Daniela: Então, ir para a escola é uma solução subjetiva? De que maneira ele consegue
se situar, ficar bem, com esse lugar que ele encontra na escola? Tem passagens muito
claras do tipo: ‘quando eu tirar os meus documentos vou começar a sair, e vou
freqüentar a escola’. Enfim, até que ponto essa oferta de um lugar ‘civil’ possibilitou
que ele pudesse construir um novo lugar? Será que essa escola assume uma função de
suplência que antes era da ordem do isolamento ou ate mesmo do horror? Enfim, como
é que a gente localiza essas ‘novidades’ no momento em que ele sai de casa e diz
claramente o que ele quer. E quando ele consegue? Seria uma solução? Ao mesmo
tempo ficar isolado 30 anos representa o que?
Marcus: Acho que primeiro a gente tem que especular sobre essa solução anterior. Quer
dizer, a mudança para o asfalto seria uma situação em que a gente pega e se você tivesse
me contado a história? E se a gente tivesse conversado? Tem um sujeito lá em cima, ele
diz que quer se mudar para o asfalto, você conversa com ele e ele diz que de lá vê tudo,
a gente ia começar a especular que iria abrir um delírio pesado ou que ele iria ficar
violento. Não foi isso? A gente imaginaria que essa passagem para o asfalto deveria dar
numa catástrofe subjetiva. E não deu, foi muito rápido, me refiro à catástrofe da solução
anterior.
Daniela: Ele disse que do alto do morro para o asfalto ele chorou muito e ficou muito
mal.
Marcus: É, mas no que chega o Wagner já ficou tudo muito bom. Quer dizer, muito
rapidamente depois dessa catástrofe ele começou a construir alguma coisa e essa
construção deve menos a gente e mais a ele, como a Ana tava falando. Ele já chega
quase pronto.
Ana: A carta, ele já escreve na carta: olha o que eu já trabalhei nesses 30 anos?
Marcus: Mas eu imaginaria assim que durante os últimos 29 anos, ele estava de um
jeito, depois desestruturação total e reconstrução de outro. Talvez imediatamente, a
gente não estava lá para ver, mas esse outro jeito que não é o anterior.
Ana: Mas que desestruturação total?
Marcus: Que a gente não viu, a gente imagina logicamente alguma coisa que
desmontou porque não é mais ele lá olhando para o mundo afastado do mundo, um
pouco como o Viganò falou. Ele estava no olhar do mundo e fora do mundo, trinta anos
assim... com a televisão, a mãe e ele olhando...
Daniela: Ele vê, mas ninguém o vê.
Marcus: É, e isso era um modo de estruturação. Aí hoje em dia, não tem mais nada a
ver com isso e a gente se pergunta: ué, como é que pode? E porque ele construiu outra
solução e essa outra solução não é a mesma anterior: não é em cima dele fora do mundo,
fazendo metáfora do carnaval, porque na esquizofrenia cada ala sai de um jeito, né? Não
tem como, você vai pegando por pedacinhos.
Daniela: O Viganò faz uma consideração importante, porque eu perguntei a ele: ‘vc
acha que é uma esquizofrenia clássica? Ele disse que sim, que a gente está acostumado
com o imaginário psiquiátrico da psicose e que não é uma esquizofrenia refratária,
institucionalizada. A forma como ele fez a montagem do seu delírio, tirou ele do risco
do manicômio, esse era um medo da família, a mãe fala isso. Então, até que ponto
também tantas soluções foram feitas aí, e a gente só localiza uma parte delas, a ponto da
gente poder localizar uma psicose, uma esquizofrenia que seja, mas escapando do
imaginário psiquiátrico do que é a esquizofrenia. Tem uma coisa bacana aí, ele se isolou
mas diz como ele estava lá se deparando com a própria loucura.
Ana: Mas não é só o imaginário psiquiátrico, mas a condução clínica da psiquiatria
clássica também que é processual, quer dizer, ela tende a um esfacelamento ou então ela
tende a paranóia, se organiza através da paranóia. Acho que o Viganò fez um
argumento ousado, né?
Marcus: Mas acho que de repente vale a pena marcar esse ponto intermediário, a gente
poderia imaginar que ele tem um sentido delirante muito normalizado, ele é um
náufrago que está sendo reencontrado depois de sair da ilha, e isso pode ser um
postulado e ele esta usando isso para retomar a vida dele. Ou também, qualquer coisa
assim: ele esta reconstruindo isso artesanalmente, como o Viganò diz, mais aí há de se
prever que blocos estranhos vão começar a aparecer. E nessa hora a equipe não vai
agüentar: ‘ah, ele era TOC e agora é sei lá o que’.
Daniela: O Tubarão, ele inventa um personagem para conseguir ficar na escola. Porque
quando ele vai para a escola, e ele é muito bonitinho dizem as ACS, e as meninas o
paqueram e perguntam para ele como era a vida, se já trabalhou, etc. E ele inventa esse
personagem.
Wagner: Ele se inspira no Tubarão e fala na análise que se faz passar pelo Tubarão,
para não dizer que ficou 30 anos trancado, mas sabendo que não é nada disso.
Marcus: É tudo muito coerente. Na esquizofrenia é tudo mais descompactado, mas não
deu merda até agora. Agora, ao mesmo tempo do lado da paranóia, bem com ele é tudo
muito excepcional, mas na paranóia ele teria que ser mais rígido. Se fosse ‘eu sou
aquele que saiu de casa depois de 30 anos’, ele não teria inventado o Tubarão, ele iria
ficar como um cara que saiu depois de 30 anos do buraco que ele tinha no mundo e
pronto, acabou.
Daniela: Mas também não nenhum problema de culpa em ser o Tubarão, no sentido de
‘ah se um dia alguém descobrir que isso é mentira’, enfim, nada disso aparece.
Marcus: Concluindo, aquilo que a gente tenderia a chamar de paranóia seria muito mais
alguém que saiu depois de ficar em casa 30 anos, mas agora ele iria para a televisão para
contar essa história. Ele iria criar uma associação daqueles que ficaram isolados, esse é
o paranóico. Ele iria ser o líder disso, ia juntar gente e ia fazer um grupo no Facebook.
Mas de repente ele troca e agora eu vou ser o Tubarão.
Ana: Ele é o Tubarão, mas não é... ele dá uma jogada.
Marcus: Uma hipótese poderia ser assim: ele saiu da catástrofe que a gente nem viu,
com o sentido de ‘eu sou um menino querendo aprender sobre o mundo”, um troço
meio vago assim, que mais ou menos funciona bem assim com o Wagner e com a
equipe: eu sou o produto do desejo de vocês que eu seja alguém para o mundo, e isso
prossegue. Aí dá para entender o personagem, não dá? Não aparece assim no
significante: eu sou um bom aluno, um bom menino da demanda desse mundo de que
eu seja legal, que sai do buraco e tal. Aí poderia ser o Tubarão e ainda manter esse
sentido. Agora é o máximo que dá para fazer, porque é tudo especulação.
Ana: Mas ninguém fez grandes demandas a ele sobre isso. Isso é uma demanda que ele
cria por ele mesmo.
Marcus: Mas por exemplo, as moças querem saber dele porque ele é bonitinho, qual é a
demanda? Dentro dessa demanda tem alguma coisa embutida.
Ana: Ninguém diz para ele que ele tem que estudar.
Marcus: Ninguém disse, mas é assim o que todo mundo no CAPS quer que ele faça?
Que ele volte a estudar, enfim em qualquer lugar.
Ana: Ah, mas essa é a demanda do mundo, dos pais, da televisão, ele vai construindo
isso antes mesmo de chegar no CAPS, o CAPS chegou lá de ‘gaiato no navio’.
Marcus: Então pronto, mas isso dá um lugar para o Wagner também. O Wagner dá
corpo para essa demanda, O Wagner não diz nada, mas veicula essa demanda.
Daniela: A demanda é: “eu quero voltar a estudar, ter uma namorada e me relacionar
melhor com a minha família”.
Marcus: Então, a demanda do Outro é: você deve voltar a estudar, etc.” E o CAPS que
é o Wagner não poderiam ser o vetor dessa demanda? Mesmo que ele não diga nada?
Daniela: Ele diz isso antes de sair, na VD.
Marcus: Então talvez ele continue nessa demanda até agora. O CAPS só esta dando
corpo para isso, como a Ana estava falando.
Ana: Pois é, o CAPS de ‘gaiato no vaio’, mantenha isso que é anterior ao CAPS.
Marcus: Meu medo é que é muito bom e gostoso ficar sustentando esse lugar, então
não sei até que ponto a equipe esta preparada quando isso muda.
Ana: Eu acho que tem que deixar acontecer, porque ninguém se prepara para o real.
Marcus: A construção do caso é também para a gente ter um horizonte. O horizonte é:
se esse caso é de psicose isso não vai durar. E se isso não vai durar, a gente tem que
estar pronto para mexer em algumas coisas quando elas tiverem desestruturadas.
Daniela: Estou lendo a passagem sobre o Tubarão, e estou pensando aqui se não há um
modo dele se preservar do olhar do Outro que é devastador.: “acho que é porque eu
tenho medo das pessoas me descriminarem se souberem que eu sou”.
Marcus: Essa é a arrumação da elaboração psicológica dele, o problema maior é com o
olhar invasivo do Outro, com o gozo do Outro chegando, aí ele diz: ‘ah, me vejam como
uma pessoa menos tímida”
Daniela: É, então: “me vejam como o Tubarão”.
Marcus: Então, o que segura ele é o Tubarão como semblante que ele vai usar como
mediação entre o menino tímido e bom (do sentido compartilhado) e o olhar do Outro
que vai me contaminar (da psicose dele). Aí a gente pega esse sentido comum e diz: ‘ah,
ele é um menino tímido, é isso o que todo mundo pode fazer e é isso o que ele está
usando agora. Mas só isso faz a hipótese de neurose, e a gente sabe que não é só isso. Se
a colega da escola quer alguma coisa dele, a gente deve saber que ele não tem a
mediação da fantasia que a gente teria, então ele se pergunta: o que eu faço com isso?
Eu vou ser o Tubarão ou eu vou me isolar no meu quarto, e ele faz o que ele pode, né?
Ana: E o pai constrói um quarto para ele para ele se isolar aos 18 anos.
Daniela: Esse personagem me fez lembrar algumas etapas que estão no texto do caso,
em relação às histórias sexuais: como as meninas de quem ele gostava e se apaixonava
eram aquelas que ‘ele via passar através da janela: sentia o cheiro, alisava o gato dela’.
Enfim era sempre evitando o olhar, ele não era visto, ele estava sempre fora da cena.
Tem algo aí que o Tubarão modifica né? Talvez pelo fato de ser um personagem que se
coloca diante do olhar de uma mulher, aí eu quero ser visto como um bom amigo, um
bom pai, etc. Antes ele prescindia do personagem porque não havia um encontro.
Marcus: Então ele tem várias cartas na manga, teve essa da reclusão e essa do Tubarão
e quem sabe terá outras ainda, mas supondo essa hipótese da psicose qual seria o
dispositivo relacional que ele tem hoje? Era a mãe, era a televisão e as moças que
passavam, agora ele tem o Wagner que parece que faz parte e quem mais? Tem mais
coisa? Com a mãe, por exemplo, ele já não conta da mesma maneira.
Wagner: É, ele voltou a estudar, esta aprendendo a usar o computador e participa de
algumas festas no bairro, da família, mas não circula muito. Ele, por exemplo, mostrou
interesse de passar reveillon em Copacabana, mas não se sentiu a vontade de ir sozinho.
Ana: Mas ele teve numa festa de família, que dessa vez ele fala que se sentiu super a
vontade e antes ele se sentia estranho.
Marcus: Mas a gente vê que a hipótese da psicose faz a gente não deixar para trás a
história do isolamento, porque tratando-se de uma psicose ninguém pode deixar isso
para traz. Isso faz parte da identidade dele pelos próximos 30 anos, ou pode ser que não,
que ela já construiu outra coisa e o isolamento ficou lá no passado. Então a gente tem
isso, a idéia da instituição mais do que a da pessoa que pode ajudar, mas pelo visto
ainda não aconteceu muito.
Ana: Com a instituição aconteceu sim, o Wagner esta ali e faz parte da instituição.
Marcus: Mas ele está ligado nisso? Se amanhã ele tem o troço e o Wagner não esta lá,
ele vai lá ou te esperaria? Isso fala um pouco de uma transferência institucional.
Wagner: Nunca aconteceu, mas eu tenho a sensação que ela vai esperar que eu chegue
ou vai me telefonar.
Marcus: Tem um investimento no CAPS, mas apesar disso o investimento é pouco e é
mais na pessoa do Wagner como vetor disso tudo. Então, a gente está vendo isso
acompanhando e em relação à equipe, sei lá como vai colocar uma pulga na idéia de que
ele é um menino bom que ficou isolado e que agora ele esta ótimo. Isso não serve para
nada, já passou até para ele...
Ana: Não sei, daqui a um tempo ele pode tropeçar numa pedrinha e querer se trancar no
quarto de novo. Eu acho que para isso é melhor sustentar a suspensão de saber, acho que
é isso que é o melhor da transmissão.
Marcus: E isso é possível? Sei lá, vamos não saber... as pessoas não vivem com isso.
Ana: Mas essa relação com o saber é muito na dobra, ninguém faz sermão, você vai
dizer: ‘olha até agora é isso, mas pode não ser’. É marcar um estranhamento.
Wagner: É, no caso dele como ele não circula muito entre outros da equipe, pode ser
que se ele tenha alguma crise e precise do acolhimento noturno ou outra situação que
ele precise ficar mais tempo no CAPS ...
Ana: Aí o caso volta a tona e a equipe vai se retificar em relação ao caso. É o que se
espera pelo menos, né?
Daniela: É interessante porque quando você se reúne com os ACS, no que você
localiza que tem algo que ‘não dá para saber’ que é da ordem de uma aposta, aparece
uma contribuição de uma ACS, que nem acompanha o caso dele, que começa a traçar
uma aposta de trabalho com a mãe. Dali, alguma coisa surge do tipo: “ta bom, mas a
mãe dele ficou doente e ele melhorou, mas a mãe agora bate na Clinica da Família” Mas
isso é interessante para pensar: na medida em que o Wagner deixa algo em suspenso, e
transmite isso para a equipe da ESF, parece que imediatamente como efeito disso
aparece: “ah, então ele está bem, as coisas estão acontecendo, mas a mãe precisa
também ser tratada porque agora quem está doente é ela”. Então algo do esvaziamento
de saber em relação ao paciente, que deu um novo sentido para a equipe que ate então
tratava da mãe como se ela estivesse ‘velhinha’ com crise hipertensiva. Eles não
conseguiam dar outro lugar para esse adoecimento, foi só quando o Wagner pôde falar
disso que eles disseram: ‘ah, então é isso que vocês chamam de somatizar, a Dona
Fulana está somatizando, sofrendo com a saída rápida do filho’. Tem um efeito lógico
aí, né?
Ana: É isso foi muito legal
Wagner: Fala dos atendimentos individuais semanais...
Marcus: É, o atendimento centrado em uma pessoa só é sempre mais complicado. Se
ele hoje pudesse ter um encontro, pelo menos uma vez por mês com a psiquiatra já seria
melhor, né? Nem que seja para dizer estou bem, mas vim aqui te contar isso. E ver se
ele pode investir no CAPS de alguma maneira, em algum dispositivo com a psiquiatra
ou com a assistente social uma vez por mês, sei lá.
Wagner: voltar a falar das oficinas?
Ana: Não sei porque ele também quer fazer coisas fora, né? Tem que tomar cuidado
porque o CAPS é muito lugar de maluco, né?
Marcus: Pode ser que na escola ele se entrincheire no Tubarão, porque como ele mentiu
para todo mundo, ele não vai poder visitar as pessoas, fazer sei lá o que. Então ele vai se
manter sempre a parte: contando para você, contando para os colegas na escola e por aí
vai. Mas pode ser que não, pode ser que mais uma vez ele seja impressionante e comece
a ter amigos, namoradas, tudo vai dar tudo certo, etc. Bem, mas se ele ficar meio
entrincheirado ele vai ficar com você e com a mãe, e com vocês e com todo o mundo, o
que não seria a melhor coisa. A melhor coisa seria que ele pudesse ‘pluralizar’ isso,
agora como? Aí é ele, na medida dele.
Ana: Mas eu acho que forçar um pouco o encontro mensal com a psiquiatra, ou alguma
demanda que ele tenha para a assistente social, então ela vai se encontrar mais com ele e
ela vai te acompanhar.
Marcus: O que teria mais a ver com uma supervisão psicanalítica, sei lá, seria
interessante tentar entender melhor, se possível, o que aconteceu com ele para ele
conseguir fazer essa revolução e o que está acontecendo agora. Porque é uma
investigação também querer saber se realmente ele está se entrincheirando no Tubarão
ou o Tubarão está servindo de mediador? Ele está estabelecendo relações a partir do
Tubarão ou está estabelecendo distâncias a partir do Tubarão?
Wagner: É essa situação vai voltar e não vai demorar porque ele começa a estudar na
próxima semana.
Marcus: O tratamento dele é acompanhar essa construção de um semblante possível
para que ele possa estar no mundo, porque ela ainda não está, acabou de chegar. Será
que ele poderá estar no mundo?
Wagner: É depois eu mandei para Dani uma fala dele sobre a escola em que ele diz:
“pela primeira vez eu me senti pertencendo a um grupo”.
Marcus: É, isso é mais atual, vamos acompanhar e descobrir depois.
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a política do sintoma e a construção do caso clínico