A FUNÇÃO DO PAGAMENTO EM ANÁLISE: LIMITES E POSSIBILIDADES NA INSTITUIÇÃO Fernanda de Souza Borges [email protected] Prof. Ms. Clovis Eduardo Zanetti “Na praça Clóvis Minha carteira foi batida, Tinha vinte e cinco cruzeiros e seu retrato, Vinte e cinco eu francamente achei barato Pra me livrarem do meu atraso de vida. Eu já devia ter rasgado e não podia Esse retrato Cujo olhar me maltratava e perseguia Um dia veio o lanceiro, Naquele aperto da praça, Vinte e cinco, francamente, foi de graça.” Praça Clóvis – Paulo Vanzolini RESUMO: Diante da experiência vivida num curso de pós-graduação intitulado “Residência em Psicologia Clinica e da Saúde”, surgiram questões que já estavam presentes no tempo da graduação sobre as possibilidades de uma clínica fora dos settings tradicionais da clínica particular, ou seja, dentro de uma instituição. Mais do que as possibilidades de uma clínica, a questão deste trabalho se volta para as possibilidades da clínica psicanalítica inserida em ambiente institucional. Que pode o analista? Que dificuldades encontra em seu trabalho e como pode lidar com elas? Neste trabalho se discutiu principalmente a função do pagamento no tratamento da neurose. Quais os efeitos de um tratamento gratuito ou barato, e o que pode o analista frente a isso? INTRODUÇÃO Questionar a psicanálise na instituição se faz pertinente, uma vez que o ambiente das instituições vem abrindo as portas para a clínica, considerando o tratamento psicológico como uma questão de saúde pública e integrando este serviço às redes já existentes, que compreendem CRAS, CREAS, CAPS, entre outros. É uma maneira de tornar acessível à população o tratamento de questões até então desvalorizadas pela saúde pública, porém, como todas as políticas que trabalham no social, corre-se o risco de cair no assistencialismo. Freud( 1919[1918]), no artigo “Linhas de Progresso na Terapia psicanaçítica” já previra a atuação da psicanálise na saúde pública: (...)é possível prever que, mais cedo ou mais tarde, a consciência da sociedade despertará, e lembrar-se-á de que o pobre tem exatamente tanto direito a uma assistência à sua mente, quanto o tem, agora, à ajuda oferecida pela cirurgia, e de que as neuroses ameaçam a saúde pública não menos do que a tuberculose(...) Logo, sendo a neurose uma questão de saúde pública, questionar como operar com a clínica na instituição se faz necessário diante dos pressupostos com que a psicanálise trabalha, e na maneira como o funcionamento das instituições interfere no funcionamento analítico, muitas vezes prejudicando o uso das ferramentas disponíveis ao analista. Na instituição referida, nos debruçamos principalmente sobre a problemática do pagamento. O espaço de toda e qualquer instituição contará com elementos externos ao trabalho realizado pela psicologia, como a presença de outros profissionais, secretárias, grande movimentação de pessoas, etc. Quanto à questão referente ao dinheiro, esta precisa ser adaptada, uma vez que a instituição existe para de alguma maneira amparar aqueles que não dispõem deste bem em quantidade suficiente para arcar com um tratamento particular. OBJETIVOS Este trabalho tem como objetivo analisar o que se passa no entrecruzamento da psicanálise e da instituição, e assim elaborar o que pode o analista em sua prática clínica diante das dificuldades encontradas, dando ênfase no pagamento como ferramenta fundamental ao trabalho de análise. MÉTODO Durante um ano realizou-se atendimento clínico individual na Instituição acima citada. A residência em psicologia compreendia 14 horas semanais de atendimento a pacientes da cidade da comunidade e também encaminhados pelo SUS. Os pacientes que vinham pela via da comunidade pagavam uma taxa que variava de acordo com a renda familiar, no entanto não havia um controle muito rígido quando a isso. Os pacientes do SUS não pagavam suas sessões, uma vez que o SUS paga a Instituição. Logo, o método utilizado foi a vivência prática em ambiente institucional por um ano, acompanhado de pesquisa bibliográfica sobre o tema referido, tendo como fio condutor a teoria da psicanálise freudiana e lacaniana. DESENVOLVIMENTO TEÓRICO Tratar de questões de dinheiro nos importa não pelo dinheiro em si mesmo, uma vez que a prática da psicanálise é muito democrática, pois a regra é a mesma para todos: fale! O que importa é que pague em satisfação, não em cifrão. É muito comum que as práticas que visam a população de baixa renda tenham uma postura assistencialista com tal público, rodeando-se de pensamentos caridosos. Ora, isso é o pior que podemos fazer por eles, analiticamente falando. Em se tratando de neurose, devemos responsabilizar o sujeito e fazêlo pagar por seu sofrimento. Mas será que ele já não paga com todo o sofrimento de seu sintoma? Talvez, mas não o bastante para abandoná-lo. Desde Freud (1917) sabemos que o sintoma é uma realização substitutiva, contendo em si uma satisfação e também sofrimento. A questão é que do sofrimento todos sabem, mas a satisfação, esta é preciso apontar. Ninguém quer saber da satisfação que obtém no sintoma e mais, isso vale também para os profissionais da saúde que sustentam esta prática de doação. O pagamento é importante na psicanálise, sendo uma poderosa ferramenta do analista, assim como o corte da sessão, o divã, o silêncio. Privar o analista desta ferramenta é impor diversas dificuldades ao restabelecimento do paciente. Vejamos por que: Quem poderá negar o valor narcísico do dinheiro na sociedade em que vivemos? Porém, na constituição subjetiva, antes do dinheiro haviam o seio, as fezes, o genital. Todos fazendo parte de elementos narcísicos altamente valorizados pelo sujeito. Logo, se o dinheiro ocupa um lugar na cadeia significante, podemos através dele percorrer a cadeia retroativamente. Antônio Quinet (2009) afirma que o dinheiro entra na série de objetos altamente valorizados pelo sujeito ao longo de seu desenvolvimento, “Portanto, como faltante, ou seja, como substituto do objeto que representa a falta, isto é, a castração (menos fi), o dinheiro entra na série dos objetos destacados do corpo.” E acrescenta o diagrama abaixo para ilustrar: Seio Fezes Pênis Dinheiro Notamos aí a posição do dinheiro na cadeira significante, mas ele também contém a marca da satisfação, um quantum de satisfação, que não se representa por si só, apenas pela via do significante. Segundo Quinet (2009) “ o dinheiro pode permitir amoedar esse capital do sujeito que Freud chamou libido”. O sintoma carrega a articulação significante do sujeito, com a qual trabalhamos na associação livre, mas também uma quantidade de satisfação pulsional, da ordem do gozo. O dinheiro é um objeto que alcança essas duas dimensões, porque tem valor significante e de perda, a renúncia de satisfação narcísica. É preciso dar de si, porém não mais nos moldes daquela relação alienada ao desejo do Outro, em que o sujeito dá aquilo que lhe é mais precioso para ser amado, ou seja, um trabalho na realização do desejo do Outro. O trabalho da análise é de dar de si para si mesmo. Para realização de seu próprio desejo. O pagamento estabelecerá que os lugares são assimétricos, e que o analista não faz isso em troca de amor. Freud nos adverte em “O Início do Tratamento” : “O tratamento gratuito aumentará enormemente algumas das resistências do neurótico – em moças, por exemplo, a tentação inerente à sua relação transferencial, e, em moços, sua oposição à obrigação de se sentirem gratos(...)”.(Freud,1913) . Ou seja, não manejando o pagamento, cai-se no amor, ou na dívida. Mantendo certa distância o analista se presta ao lugar vazio, podendo assim ocupar o lugar na transferência que lhe couber, sem interferências deste tipo; Ainda neste texto Freud afirma “nada é tão caro quanto a doença, e a estupidez”, frase que em nossa língua podemos jogar com a palavra “caro”, e compreender que a doença é cara porque é custosa, certamente, mas também, muito querida. Aquele que trabalha com o sofrimento psíquico não pode esquecer desta segunda dimensão da doença neurótica, ou estará fazendo um desfavor ao doente e a prática da psicanálise. Na instituição referida, foi possível notar o surgimento de tais resistências, e muito difícil o manejo destas, principalmente em casos do SUS. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante da discussão que se seguiu, fica a questão: que pode então o analista na Instituição? Freud (1919[1918]) dirá que o analista se verá diante da tarefa de adaptar sua técnica, “fundir o ouro puro da análise com o cobre da sugestão direta”. Isso vale também para a questão do pagamento em análise. Em face de tais questionamento ocorridos durante a própria vivência na instituição, algumas decisões foram tomadas em conjunto com supervisores e coordenadores do curso. A primeira foi rever a tabela de preços, e estipular uma renda familiar máxima de 1.500 reais para o atendimento na instituição. A renda anterior era de até 2.500. É importante ressaltar que esta questão não havia sido discutida no início da residência, então havia muitos pacientes que ultrapassavam em muito a renda permitida pela instituição. Outra decisão foi a cobrança das faltas, para os pacientes que pagavam, buscando assim alguma responsabilização, porém ainda ficava nítido que o valor cobrado não era suficiente para que o paciente não faltasse. Com o SUS aumentaram-se as cobranças quanto às faltas e desligou-se pacientes que tinham mais de 3 faltas consecutivas, ou três faltas em muito pouco tempo. Se isto teve um efeito verdadeiro? Certamente teve algum efeito, pudemos triar aqueles que estavam dispostos a se comprometer com o tratamento, desligando aqueles que não queriam “pagar” tanto assim. CONCLUSÃO Creio que o melhor que uma instituição pode fazer é permitir ao psicanalista a maior liberdade possível para atuar, permitindo que estipule o preço de acordo com a renda mas também com o caso, uma vez que estabelecer um valor fixo para o trabalho é nos colocar na dimensão da prestação de serviço, e não é neste campo que atuamos, sendo necessário a escuta de cada caso. Cada cabeça, uma sentença. REFERÊNCIAS Freud, S. (1996) [1913]. Sobre o início do tratamento. Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XII . Rio de Janeiro: Imago, 1996. Freud, S. (1996) [1916-1917]. O sentido dos sintomas. Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XVI, Rio de Janeiro: Imago, 1996. Freud, S. (1996) (1919[1918]). Linhas de Progresso na Terapia Psicanalítica. Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XVII . Rio de Janeiro: Imago, 1996. QUINET, Antônio. As 4+1 condições da análise. 12. ed., Editora: Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2009.