ATÉ QUE EU NÃO GOZE MAIS DE VOCÊ: O AMOR NOS LAÇOS CONJUGAIS
Karine da Rocha Queiroz
Mestranda em Psicologia pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR
[email protected]
Dra. Júlia S.N.F. Bucher-Maluschke
Profa. Orientadora. Doutora em Ciências Familiares e Sexológicas.
(Universidade de Fortaleza – UNIFOR)
Falar sobre amor na atualidade é trazê-lo para o contexto da efemeridade das relações. Em
tempos de deflação do simbólico e inflação do imaginário o amor romântico e o casamento
como fundador da célula familiar estão em decadência. Somando a efemeridade das
relações o “até que a morte nos separe” abre espaço ao “até que eu não goze mais de você”.
Com Lacan sabemos que o gozo dessubjetiva o sujeito. Neste sentido será discutido, o que
atualmente tem implicado nas escolhas do sujeito para a realização do laço conjugal, feitos
e desfeitos rapidamente, assim como a escolha amorosa em relação ao complexo de Édipo
freudiano, a modalidade de narcisismo implicada nas relações e a falsa completude através
do outro prometida pelo discurso capitalista. Do término da pretensa completude conjugal,
principalmente quando do desacordo em relação aos filhos os ex-cônjuges geralmente
recorrem ao Outro jurídico, onde pode ser impelida à criança a impossível tarefa de
escolher entre o amor dos pais, podendo causar conseqüências desastrosas para esta.
Palavras-chave: amor, criança, efemeridade das relações, gozo, laço conjugal.
Enlaces e desenlaces: pensando o amor e o lugar da criança nos laços conjugais
“E casaram, tiveram filhos e foram felizes para sempre”. Seria um anacronismo
trazermos esta frase para os tempos atuais? Sim, casaram e tiveram filhos e disputam sua
guarda judicialmente, pois não têm a mínima condição de diálogo.
Para que os casais se casam? Para constituir uma família? Lacan (1984) se referia à
família como uma instituição que desempenha um papel fundamental na transmissão da
cultura. Neste sentido, os desencontros nos laços conjugais não são sem consequencia.
Para Roudinesco (2003), a família contemporânea “une, ao longo de uma duração
relativa, dois indivíduos em busca de relações íntimas ou realização sexual. A transmissão
da autoridade vai se tornando então cada vez mais problemática à medida que divórcios,
separações e recomposições conjugais aumentam” (p. 19).
O casamento mudou de natureza. O que antes era um pacto familiar indissolúvel se
torna um contrato livremente consentido entre um homem e uma mulher. Há a perda de
referência na tradição, o que Lebrun (2004) denomina de “mutação do laço social” onde a
sociedade atual é centrada do discurso da ciência.
Retomando o trabalho de Lacan, com o discurso capitalista regendo as relações da
sociedade contemporânea, cada pessoa constrói sua própria escala de valores. Assim, entra
em jogo também a desvalorização das práticas simbólicas tradicionais do casamento.
É importante nesse tocante pensarmos o que direciona um casal para o enlace
conjugal. Para Freud, apesar da desarmonia que é próprio de todo ser humano, é a ordem
simbólica implicada no complexo de Édipo, que garante a relação entre dois sujeitos.
Portanto, para compreendermos a conjugalidade é preciso pensar o complexo de Édipo, o
conflito na base das escolhas.
Entender o laço conjugal através da psicanálise é pensar a história de cada sujeito,
onde muitos casais se formam na tentativa de resolver seus problemas intrapsíquicos
acreditando que a relação com o outro tamponará a falta que é inerente ao sujeito.
Em Introdução ao Narcisismo (1914), Freud teoriza sobre as escolhas objetais em
duas modalidades, uma do tipo narcisista, onde os sujeitos procuram a si mesmos como
objetos de amor e a escolha anaclítica, onde o investimento libidinal se dirige a objetos
substitutivos dos primários, que cuidavam e protegiam a criança.
Segundo Costa (1996), tanto no “amor narcísico” quanto no “amor por apoio” se
manifesta o desejo de recuperar o amor que a criança teve ou imaginava ter, onde nas duas
modalidades é o amor a si mesmo que conta.
Assim, presenciamos a deflação do simbólico e inflamação do imaginário, onde as
pessoas cada vez mais individualistas se fecham para uma relação efetiva a dois, que
implica perdas e as relações passam a ser meras idealizações. As pessoas não deliberam
mais a respeito de suas ações, elas simplesmente desejam e compram, desejam e casam.
É nessa sociedade onde o imperativo é “goze!” que casamentos são feitos e
desfeitos com velocidades cada vez maiores. Estaríamos falando de amor?
Para Lejarraga (2002), enquanto na paixão o objeto amado se apresenta como
promessa de felicidade, já que é idealizado e o outro só seria imagem especular o amor
aceita a alteridade, há mediatização, prolongamento para o futuro, não sendo alimentada a
fantasia de fusão com o outro, próprias do apaixonamento.
Para a mesma autora, as pessoas se sentem plenas, onipotentes quando apaixonadas,
onde o gozo extremo se torna possível. Essas experiências são ilusórias porque são
tentativas de tamponar a verdadeira condição subjetiva, da castração, desamparo e finitude.
É importante pensarmos nesse sentido a lógica dos enlaces e desenlaces. O casal parte da
premissa que achará completude através do outro, as decisões não são mediatizadas, já que
amar implica a descoberta do outro, e na sociedade capitalista em que o “ter” toma o lugar
do “ser”, tempo é o que as pessoas menos se disponibilizam a ter.
Quando os conflitos próprios de qualquer relação conjugal surgem, a fantasia se
desfaz e dá lugar a busca de um novo objeto a ser consumido, um novo objeto que traga a
mesma paz, alegria e que se possa gozar sem limites, saciando a sede de ser amado pelo
outro sem renúncias e preocupações.
Costa (1996) vem pensar justamente neste sentido, onde todos os sentimentos que
caracterizavam o amor romântico estão em decadência, pois a família, o pudor, a repressão
sexual, a sacralidade do matrimônio são engolidas por uma sociedade de consumo do culto
ao corpo, prazeres físicos, liberdade sexual e como este afirma, principalmente, repulsa ao
sofrimento.
Outra grande problemática é quando o resultado do desacordo após a dissolução
conjugal é levada às varas de família e crianças ficam no meio do litígio dos pais, sendo
muitas vezes obrigadas a responder sobre questões que não as compete.
Sabemos que a criança precisa de adultos que a protejam frente ao desamparo e
assim estas não podem sentir a separação dos pais como um abandono. É importante que
estes priorizem os interesses dos filhos acima dos seus e que a criança não seja obrigada a
escolher se amará o pai ou a mãe, sendo convocada a uma tarefa impossível, pois dois
adultos após comprarem pela embalagem não ficaram muito satisfeitos com o produto.
Corroboramos nesse sentido com o questionamento: “A cultura de consumo,
vigente em nossa época, aliada aos avanços tecnológicos e aos recursos de que a ciência
lança mão para afirmar que pode quase tudo no campo biológico, aponta para um mundo
desorganizado e para as conseqüências nefastas que incidem sobre a subjetividade. Estes
vetores contribuem para a falência simbólica e para a facilitação do gozo. É um sistema que
propõe negar a castração, além de privilegiar o coletivo, em prejuízo do particular. O que
vemos é o máximo de individualismo, de lucros, valendo a lei da mercantilização. Nesse
caso, nos indagamos: Quem é a criança do nosso tempo?" (Fiaux e Clen, 2009, p.2).
De acordo com Vilhena, Maia e Novaes (2005), o lugar da criança nos tempos
atuais é de negligência e abandono moral, onde desde muito cedo são imputados obrigações
que esta não tem condições de responder, pois os pais desinteressados pela criação de seus
filhos.
E já que estamos falando de consumo, quem paga a conta dos desacordos pós
“felizes para sempre” muitas vezes são os filhos, pois além de ganhar a peleja, seus pais
estão preocupados em gozar sem limites, nem que seja tentando destruir o outro por meio
do litígio.
“O homem, portanto, faz do outro um objeto, visando assim a saciar o gozo, a
despeito da lei “(Quinet, 2003). É justamente este um dos imperativos do gozo, buscar se
satisfazer no outro, e sem lei, seja essa jurídica e/ou simbólica, não há trabalho possível,
onde em uma sociedade sem pudor, sem moral, não há espaço pra culpa. E é da relação
entre lei e gozo, que segundo Quinet (2003) existe o denominador comum entre Direito e
Psicanálise, onde em relação a este trabalho pensamos a lógica do casamento e separação.
Enlaces e desenlaces, outros enlaces e mais desenlaces, eis a lógica conjugal
contemporânea. Pessoas precisam uma das outras e precisam também consumir o que as
outras consomem, nem que o produto sejam outras pessoas. O que os sujeitos não podem
esquecer é que a paixão é um produto com curto prazo de validade.
Se as pessoas dimensionassem que embora demande tempo, é do amor enquanto
sentimento e não sexo enquanto sensação de que pode se tratar a felicidade tão buscada. Se
isso implica a escuta, abrir mão do próprio narcisismo, se colocar no lugar no outro, é desse
sentimento que estamos falando.
Amar é transcender a si mesmo e reconhecer um outro que tem semelhanças e
diferenças, é ser separado mesmo junto. Não precisamos ser “felizes para sempre”, não
precisamos ser “condenados” ao casamento sem amor, por puro moralismo, comodismo, o
que é preciso ficar claro é, que embora acabe que se comece pelos motivos certos, que haja
respeito entre o casal no sentido de “olhar para..” antes, durante e porque não, quando do
término.
Questões como estas são importantes serem pensadas, pois com a separação não
sofrem só os adultos, sofrem as crianças. Um período de luto é necessário, mas mais
necessário é que ele seja elaborado e que possam reconhecer que ali existe um outro do
qual eu não posso fazer o que quiser, escravizá-lo, gozá-lo!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Alvarenga, L. (1996). Na escuta do laço conjugal. Rio de Janeiro: Uapê.
Costa, J. S. F. (1998). As Práticas amorosas na contemporaneidade. (Apresentação de
Trabalho/Conferência ou palestra).1996)
Fiaux. C., Clen. O. (2009). O "não-dito" e o compreendido: qual o lugar da criança? In:
FORMACAO DE PROFISSIONAIS E A CRIANCA-SUJEITO, 7., 2008, São
Paulo.
Availablefrom:
http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC00000000
32008000100024&lng=en&nrm=abn. Acesso em: 15 Out. 2009.
Freud, S. (1996a). Sobre o narcisismo: uma introdução. (Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XIV). Rio de Janeiro:
Imago. (Originalmente publicado 1914).
Lacan, J. (1984). Os Complexos Familiares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Lebrun, J-P (2008). A Perversão Comum. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.
Lejarraga, A. L. (2002). Paixão e ternura: um estudo sobre a noção do amor na obra
freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará: FAPERJ.
Quinet, A. (2003). O gozo, a lei e as versões do pai. In: xx. (Org.). Direito de Família e
Psicanálise - rumo a uma nova epistemologia. Rio de Janeiro, RJ: Imago.
Roudinesco, E. (2003). A família em Desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Vilhena, J., Maia, Maria., & Novaes, V. (2005). Destituição da Infância e Crise
Contemporânea. Pulsional, ano XVIII, n. 184, dezembro.
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