Mudam-se as leis; mudam-se os valores? O pensamento jurídico e cultural nos processos de
violência doméstica contra a mulher.
Carolina Yonamine
Prof°Dr°Márcio Henrique Pereira
Faculdade de Direito de Ribeirão Preto
Este trabalho se propõe a analisar a figura da mulher nos processos de violência doméstica
(Lei 11.340/06), segundo a visão dos operadores do direito e as consequências dessas perspectivas
para a efetivação da justiça e afirmação dos direitos de gênero.
Um estudo da figura da mulher nos processos de violência se faz necessário porque a figura
presente no processo, muitas vezes, corresponde a construções sócio-culturais criadas pelo discurso
de gênero. Esse discurso implica na construção dos papéis sociais e na definição do feminino e
masculino, definindo desse modo os espaços de atuação e de atribuição de poder para cada gênero 1.
Cabe lembrar que a relação de gênero é uma relação transversal, não basta analisar a condição de
gênero sem outros fatores que podem agravar ou amenizar a discriminação, como a raça/etnia ou
condição social.
Na maioria dos casos de violência doméstica, o conflito analisado no processo é visto de
acordo com os estereótipos de gênero2, tendenciando os resultados nos processos, de acordo com o
discurso apresentado pelas partes e por seus defensores. A imagem da “mulher de malandro”, por
exemplo, é utilizada como um recurso argumentativo nos processos de violência doméstica contra a
mulher, desvalorizando-a para comprovar que é desnecessária a punição do réu. Assim, como bem
comprova a obra de Sílvia Pimentel3, muitas vezes o que se julga num processo de violência
doméstica contra a mulher não é exatamente o caso em si, mas se as partes têm desempenhado bem
seus papéis sociais, por exemplo o papel de boa mãe, ou se elas se enquadram nos esteriótipos
negativos criados pela sociedade, vem à tona a figura da “mulher de malandro”, “mulher de vida
fácil”, “homem pudim de cachaça”, “homem corno”, entre outros.
Com a coleta de opiniões em jornais e jurisprudências foi encontrado no trabalho por parte
de juízes, promotores e advogados: por um lado, parcialidade e machismo; por outro, indiferença ou
desconhecimento da lei. Ambos comprovam que existe a carência de uma abordagem crítica e
humanista. Há também um distanciamento entre a realidade das partes envolvidas no processo e
1 Para melhor conceito de gênero utilizado por esta pesquisa ver: SCOTT, Joan. Gênero: Uma Categoria Útil para a
Análise Histórica. Tradução: SOS CORPO. Recife-PE. 1989.
2 A pesquisadora Wania Izumino é referência nas análises processuais com análise de gênero, como exemplo:
IZUMINO, Wânia Pasinato. Jutiça e Violência contra a Mulher: o papel do sistema judiciário na solução dos
conflitos de gênero. São Paulo: Annablume: FAPESP, 2004.
3 PIMENTEL, Silvia; SCHRITZMEYER, Ana Lucia; PANDJIARJIAN, Valeria. “Estupro: crime ou cortesia?
Abordagem sociojurídica de gênero”. Porto Alegre: SAFe, 1998.
dos operadores da lei, o que resulta numa interpretação da norma desinteressada ou sem um caráter
pluralista e insensível às questões sociais, especialmente quanto à questão do gênero.
Alguns trechos que ratificam a dificuldade de aplicação da Lei Maria da Penha:
1) Trecho retirado de uma sentença-padrão utilizada por um juiz de Sete Lagoas4 (MG), o juiz,
Edilson Rumbelsperger Rodrigues, responde por processo administrativo no Conselho
Nacional de Justiça devido a suas alegações pessoais nas sentenças, visto que ele considera a
Lei Maria da Penha inconstitucional.
A vingar esse conjunto de regras diabólicas, a família estará em perigo, como
inclusive já está: desfacelada, os filhos sem regras, porque sem pais; o homem subjugado.
[...]a mulher moderna, dita independente, que nem de pai para seus filhos precisa mais, a
não ser dos espermatozóides.
[...]Para não se ver eventualmente envolvido nas armadilhas dessa lei absurda, o homem
terá de se manter tolo, mole, no sentido de se ver na contingência de ter de ceder facilmente
às pressões.
2)
Trecho retirado de vara criminal de Ribeirão Preto (SP), local analisado pela pesquisa.
No trecho, com sentença datada de 2009 – 3 anos após a publicação da Lei Maria da Penha - , há
comprovada ausência de conhecimento das mudanças trazidas pela Lei Maria da Penha 5, que proíbe
a aplicação da Lei 9.099/95 e a tramitação dos processos de violência doméstica contra a mulher em
Juizados Especiais Criminais, pelo entendimento de que não se tratam de crimes de menor potencial
ofensivo.
Substituo as penas privativas de liberdade por duas penas restritivas de direito ,
consistentes, a primeira, em prestação pecuniária no valor de um quinto do salario minimo
em favor da APAE local e, a segunda na entrega de 1 cesta básica a entidade beneficiaria.
3) Comprovou-se que o patriarcalismo também é utilizado como argumentação de defesa do
réu (trecho retirado de processo de vara criminal de Ribeirão Preto), numa tentativa de convencer o
magistrado de que a violência utilizada pelo agressor, na verdade, seria um “método de correção”
aplicado na mulher. Claramente, percebe-se que a criminalização da violência doméstica contra a
mulher ainda encontra resistências, por ainda existir a cultura permissiva da violência em âmbito
familiar e também pelo entendimento de que se trata de um conflito no qual predomina o ditado
popular “briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”.
4 Fonte: <http://www.conjur.com.br/2009-set-17/juiz-criticou-lei-maria-penha-avesso-preconceito>, último acesso em
06/03/2010.
5
“ Art. 17. É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta
básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de
multa.” Lei Maria da Penha.
[…] o acusado que vivia e vive em regime de união estável com
a suposta vítima, teria, após discussão, dado uma bem merecida coça.
Esses dados citados e outros utilizados na pesquisa reforçam a tese de que a dificuldade para
aplicação dos princípios da equidade e isonomia vem, em parte, da própria formação pessoal dos
operadores do direito, principalmente ao ignorarem os elementos axiológicos e sociológicos a
referendarem a Lei Maria Penha, fundamentais para obstar o avanço da violência doméstica contra
a mulher.
Como cita Hannah Arendt6, quando não pensamos sobre determinado assunto (e nesse
momento entra a contribuição da universidade na formação do futuro profissional), permitimos a
manutenção de clichês, frases feitas, ditados populares e esteriótipos, justamente por ser mais
cômodo e nos proteger da realidade. Porque pensar criticamente, analisar a relação existente entre
violência e gênero, refletir sobre os porquês de leis específicas como a Maria da Penha no nosso
ordenamento jurídico são atos exaustivos; mas, sem dúvida, necessários para o profissional de
direito, especialmente para aquele que trabalha para a pacificação do conflito entre as partes nos
casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.
6 AREDNT, Hannah. “A vida do espírito”. Tradução Cesar Augusto R. De Almeida, Antônio Abranches e Helena
Franco Martins. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p.19.
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