A Denúncia do Acordo entre o Brasil e a Alemanha para Evitar a Dupla Tributação da Renda e do Capital Jayme Freitas 06.02.2006 Legitimidade da Denúncia Ato Declaratório Executivo SRF nº 72, de 22 de dezembro de 2005 O SECRETÁRIO DA RECEITA FEDERAL, no uso da atribuição que lhe confere o inciso III do art. 1º do Regimento Interno aprovado pela Portaria MF nº 30, de 25 de fevereiro de 2005, combinado com o art. 8º da Portaria MF nº 275, de 15 de agosto de 2005, e tendo em vista a denúncia, em 7 de abril de 2005, pela República Federal da Alemanha, do Acordo para Evitar a Dupla Tributação em Matéria de Impostos sobre a Renda e o Capital celebrado com a República Federativa do Brasil em 27 de junho de 1975, aprovado pelo Decreto Legislativo nº 92, de 5 de novembro de 1975, e promulgado pelo Decreto nº 76.988, de 6 de janeiro de 1976, declara: Art. 1º O Acordo para Evitar a Dupla Tributação em Matéria de Impostos sobre a Renda e o Capital, celebrado entre a República Federal Alemã e a República Federativa do Brasil, cessará de ter vigência, em virtude de sua denúncia, em 1º de janeiro de 2006. Art. 2º O tratamento tributário previsto no Acordo de que trata este Ato deixará de aplicar-se aos rendimentos auferidos ou pagos, creditados ou remetidos a partir da data mencionada no art. 1º. 2 Legitimidade da Denúncia ARTIGO 31 Denúncia “O presente Acordo permanecerá em vigor indefinidamente, mas • qualquer dos Estados Contratantes poderá denunciá-lo • depois de decorrido um período de três anos a contar da data de sua entrada em vigor, • mediante um aviso escrito de denúncia entregue ao outro Estado Contratante através dos canais diplomáticos, • desde que tal aviso seja dado no, ou antes, do dia 30 de junho de qualquer calendário.” A denúncia unilateral, realizada em conformidade com o Artigo 31 do Acordo, é válida e imediata, obrigando o outro Estado contratante. Independe de qualquer manifestação do outro Estado contratante (ADE SRF n. 72/2005 tem caráter meramente informativo). 3 Legitimidade da Denúncia A denúncia unilateral do acordo tem legitimidade no ordenamento interno? O acordo é aplicado como norma internacional ou como norma interna? Teoria da Transformação (dualismo clássico) • O acordo internacional deve ser convertido por cada Estado contratante em lei doméstica de mesmo conteúdo; • Peca por não explicar como após a denúncia, que se dá no plano internacional, o acordo não continua valendo como norma interna. Ou como após a aprovação da norma interna ainda seja necessária a ratificação do acordo para que este surta seus efeitos. X Teoria da Incorporação (dualismo moderado) • Existe apenas um veículo normativo, o acordo. A recepção pelo Poder Legislativo do Estado Contratante é pressuposto para a aplicação do mesmo no ordenamento jurídico interno. •No caso do Brasil, por exemplo, o referendo do Congresso Nacional (Art. 49 I CF/88) não tem o condão de transformar o acordo em lei interna, sendo apenas uma autorização para sua ratificação e execução. •A denúncia do acordo no plano internacional implica o fim de sua aplicação no ordenamento interno, sem resultar, contudo, em modificação de legislação. 4 Legitimidade da Denúncia O Acordo como Tratado de Direito Internacional Público relativo à Divisão de Competências Tributárias • Acordos para evitar a bitributação estabelecem limitações recíprocas à jurisdição tributária dos Estados contratantes. Não há revogação da legislação interna, como impropriamente preceitua o Artigo 98 do Código Tributário Nacional (ou sua repristinação após a denúncia), mas tão-somente suspensão total ou parcial de sua eficácia nas situações reguladas pelo acordo. Uma vez denunciado o acordo de bitributação, aplica-se a lei em sua plenitude. • O contribuinte pode se insurgir contra a incorreta aplicação de um acordo, mas não contra sua denúncia: não há direito adquirido ao regime jurídico derivado do acordo. •Os acordos não estipulam diretamente direitos e garantias dos contribuintes, portanto não há que se falar em violação do parágrafo 2º do Artigo 5º da CF/88. 5 Análise da Denúncia As Justificativas Oficias do Governo Alemão I - O acordo foi concluído em período no qual o Brasil era considerado nação em desenvolvimento, o que não mais corresponde à realidade políticoeconômica. Diversas cláusulas encorajadoras de investimentos, como aquelas que determinam a concessão de “matching credits” (créditos presumidos) pela Alemanha, propiciavam um (atualmente) injustificado desequilíbrio na repartição de competências tributárias. Fato: a Alemanha ainda possui diversos acordos com a concessão de benefícios semelhantes, como com a Argentina, China e o Vietnã. 6 Análise da Denúncia As Justificativas Oficias do Governo Alemão II - Segurança jurídica: a garantia quanto ao regime tributário aplicável, um dos fundamentos para a conclusão de acordos para evitar a bitributação, não era mais oferecida pelo acordo, considerando: (i) os conflitos de interpretação - como a qualificação dos pagamentos pela prestação de serviços técnicos ou de assistência técnica sem transferência de tecnologia; (ii) a violação de cláusulas - a questão dos preços de transferência; e (iii) a introdução de novos tributos não abrangidos pelo acordo - com destaque para a CIDE-royalties. 7 Análise da Denúncia Prestação de Serviços Técnicos sem Transferência de Tecnologia Ato Declaratório (Normativo) COSIT nº 001, de 05 de janeiro de 2000 Dispõe sobre o tratamento tributário a ser dispensado às remessas decorrentes de contratos de prestação de assistência técnica e serviços técnicos sem transferência de tecnologia. “(...) I - As remessas decorrentes de contratos de prestação de assistência técnica e de serviços técnicos sem transferência de tecnologia sujeitam-se à tributação de acordo com o art. 685, inciso II, alínea "a", do Decreto nº 3.000, de 1999. II - Nas Convenções para Eliminar a Dupla Tributação da Renda das quais o Brasil é signatário, esses rendimentos classificam-se no artigo Rendimentos não Expressamente Mencionados, e, conseqüentemente, são tributados na forma do item I, o que se dará também na hipótese de a convenção não contemplar esse artigo. III - Para fins do disposto no item I deste ato, consideram-se contratos de prestação de assistência técnica e de serviços técnicos sem transferência de tecnologia aqueles não sujeitos à averbação ou registro no Instituto Nacional da Propriedade Industrial - INPI e Banco Central do Brasil.” 8 Análise da Denúncia Prestação de Serviços Técnicos sem Transferência de Tecnologia Ato Declaratório Interpretativo SRF nº 27, de 21 de dezembro de 2004 Dispõe sobre a aplicação de dispositivos da Convenção entre a República Federativa do Brasil e o Estado Espanhol destinada a Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão Fiscal em Matéria de Impostos sobre a Renda. “(...) Art. 3º Com relação a royalties e a serviços técnicos, deve ser observado o seguinte: I - incluem-se no conceito de royalties, para fins de aplicação da Convenção, todos os serviços técnicos ou de assistência técnica, independentemente de que, em si mesmos, suponham ou não transferência de tecnologia, à exceção do disposto no inciso II; II - aplica-se o art. 14 da Convenção (“Profissões independentes”) aos serviços técnicos de caráter profissional relacionados com a qualificação técnica de uma pessoa ou grupo de pessoas; III - não se aplica, em nenhuma hipótese, o art. 22 da Convenção (“Rendimentos não expressamente mencionados”) aos serviços técnicos prestados por uma empresa de um Estado contratante no outro Estado contratante; IV - considera-se reduzido o âmbito de aplicação do art. 7º da Convenção (“Lucros das empresas”) no tocante aos serviços compreendidos nos incisos I, II e III deste artigo.” 9 Análise da Denúncia Preços de Transferência • O regime de preços de transferência segundo a Lei 9430/96: (i) vai de encontro à prática internacional para o princípio do dealing at arm’s length, na qual cabe à Administração a comprovação da divergência de preços; (ii) praticamente conduz à utilização do Preço de Revenda Menos o Lucro, pois os métodos de Custo de Produção Mais o Lucro e de Preços Independentes Comparados pressupõem a obtenção de informações de difícil acesso; (iii) restringe a aplicação do preço efetivo, devido às disposições dos parágrafos 1º a 3º do Artigo 21. • A Receita Federal entende que a rígida sistemática aritmética da Lei 9.430/96, atualmente regulada pela IN/SRF 243/02 (que inovou ao dispor sobre o cálculo do PRL), não viola o Artigo 9º do Modelo OCDE, pois o Brasil não é membro da Organização e não estaria, portanto, obrigado a seguir suas diretrizes. •Recente decisão da 3ª Câmara do Primeiro Conselho de Contribuintes manteve auto de infração que vedou a utilização, com base no acordo para evitar a dupla tributação entre o Brasil e a Bélgica, de método alternativo (denominado Transactional Net Margin Method) para o cálculo do preço de comparação. 10 Análise da Denúncia CIDE-royalties • Caso típico de treaty dodging (≠ treaty overriding): não há violação direta do tratado, pois a CIDE não se encontra entre os tributos abrangidos pelo mesmo. A norma interna, contudo, desrespeita o espírito do acordo e a boa-fé das partes. Klaus Vogel faz um paralelo entre tal abuso de estruturação da legislação interna com a desconsideração de condutas elisivas. • Dupla vantagem para o Fisco Federal com a CIDE: (i) o produto da arrecadação não é repartido com Estados e Municípios; e (ii) a limitação, estabelecida pelos acordos, da tributação na fonte dos pagamentos a título de royalties vale apenas para o IRRF. Fato: a Alemanha possui acordo para evitar a bitributação com os EUA, País com política atípica no que diz respeito a tais acordos, admitindo até mesmo que o legislador doméstico estabeleça expressamente sua inaplicabilidade. 11 Análise da Denúncia As Justificativas Oficias do Governo Alemão III - A dificuldade para firmar compromissos com os representantes brasileiros nas negociações para a revisão e modernização do acordo. Fatos: (i) déficit financeiro na Alemanha e a necessidade de recursos; (ii) posição da administração brasileira prioriza seus interesses fiscais em detrimento da função principal do acordo: evitar a bitributação mediante a renúncia a competências tributárias; (iii) denúncia - fato inédito na história da Alemanha. 12 Efeitos da Denúncia Última Aplicação do Acordo: Artigo 31 • No Brasil: I - no que concerne aos impostos retidos na fonte, às importâncias pagas ou remetidas antes da expiração do ano calendário no qual o aviso de denúncia tenha sido dado; II - no que concerne aos outros impostos de que trata o presente acordo, ao exercício fiscal que comece no ano calendário no qual o aviso de denúncia tenha sido dado; • Na Alemanha: I - no que concerne aos impostos retidos na fonte, às importâncias pagas ou remetidas antes da expiração do ano calendário no qual o aviso de denúncia tenha sido dado; II - no que concerne aos outros impostos de que trata o presente acordo, ao período fiscal seguinte ao ano no qual o aviso de denúncia tenha sido dado. 13 Efeitos da Denúncia Pessoas Físicas Ato Declaratório Interpretativo SRF nº 16, de 22 de dezembro de 2005 “Art. 1º A legislação da República Federal da Alemanha permite a dedução do imposto de renda das pessoas físicas comprovadamente pago no Brasil sobre rendimentos auferidos e tributados no Brasil, o que configura, nos termos do § 2º do art. 1º da Instrução Normativa SRF nº 208, de 27 de setembro de 2002, a reciprocidade de tratamento. Art. 2º O imposto pago na República Federal da Alemanha pelas pessoas físicas residentes no Brasil sobre os rendimentos auferidos na República Federal da Alemanha pode ser compensado com o imposto devido no Brasil, observados os limites a que se referem os arts. 15, § 1º, e 16, §§ 1º, 2º e 6º, da Instrução Normativa SRF nº 208, de 2002. (...)” 14 Efeitos da Denúncia • RIR/99, art. 103: “As pessoas físicas que declararem rendimentos provenientes de fontes situadas no exterior poderão deduzir, do imposto apurado na forma do art. 86, o cobrado pela nação de origem daqueles rendimentos, desde que (Lei nº 4.862, de 1965, art. 5º, e Lei nº 5.172, de 1966, art. 98): I - em conformidade com o previsto em acordo ou convenção internacional firmado com o país de origem dos rendimentos, quando não houver sido restituído ou compensado naquele país; ou II - haja reciprocidade de tratamento em relação aos rendimentos produzidos no Brasil. (...)” •IN SRF 208/02, art 1º: “Os rendimentos recebidos de fontes situadas no exterior (...) estão sujeitos à tributação pelo imposto de renda, conforme o disposto nesta Instrução Normativa, sem prejuízo dos acordos, tratados e convenções internacionais firmados pelo Brasil ou da existência de reciprocidade de tratamento. (…) § 2º A prova de reciprocidade de tratamento far-se-á com cópia da lei publicada em órgão de imprensa oficial do país de origem do rendimento, traduzida por tradutor juramentado e autenticada pela representação diplomática do Brasil naquele país, ou mediante declaração desse órgão atestando a reciprocidade de tratamento tributário. § 3º Ato da Secretaria da Receita Federal (SRF) reconhecendo a reciprocidade de tratamento dispensa a prova de que trata o § 2º.” 15 Efeitos da Denúncia Pessoas Físicas • Dupla residência: a Lei do Imposto de Renda alemã prescreve a “obrigação tributária ilimitada” (unbeschränkte Steuerpflicht) de pessoas com domicílio ou residência habitual na Alemanha. § 8 do Código Tributário Alemão: “Tem uma pessoa domicílio no lugar onde mantém moradia em circunstâncias que permitam concluir que vai mantê-la e utilizá-la.” Ou seja: alemão residente no Brasil, que mantenha imóvel na Alemanha, está sujeito à tributação ilimitada em ambos os países. • Rendimentos provenientes de terceiro país: bitributação inevitável no caso de dupla residência. 16 Efeitos da Denúncia Pessoas Jurídicas • RIR/99, Art. 395: “A pessoa jurídica poderá compensar o imposto de renda incidente, no exterior, sobre os lucros, rendimentos, ganhos de capital e receitas decorrentes da prestação de serviços efetuada diretamente, computados no lucro real, até o limite do imposto de renda incidente, no Brasil, sobre os referidos lucros, rendimentos, ganhos de capital e receitas de prestação de serviços (Lei nº 9.249, de 1995, art. 26, e Lei nº 9.430, de 1996, art. 15). § 1º Para efeito de determinação do limite fixado no caput, o imposto incidente, no Brasil, correspondente aos lucros, rendimentos, ganhos de capital e receitas de prestação de serviços auferidos no exterior, será proporcional ao total do imposto e adicional devidos pela pessoa jurídica no Brasil (Lei nº 9.249, de 1995, art. 26, § 1º). (…)” 17 Efeitos da Denúncia Investimentos Alemães no Brasil • Lucros das Empresas: (i) a tributação na fonte dos rendimentos auferidos pela prestação de serviços técnicos sem transferência de tecnologia não pode mais ser questionada; (ii) por outro lado, o imposto pago no Brasil, cuja compensação estava sendo negada pelas autoridades alemãs com base no Artigo 24 Nr. 2 do acordo (“(...) o imposto de renda que, de acordo com a legislação brasileira e com o presente acordo, for pago (...)”), agora será passível de dedução, ao menos, como despesa na base de cálculo do Körperschaftsteuer. • Preços de Transferência: assim como quanto à prestação de serviços, perde-se o instrumento de garantia contra a aplicação da legislação interna. • Dividendos: aqueles distribuídos a partir de 1996 são isentos de tributação no Brasil. No entanto o acordo, ao limitar a tributação na fonte a 15%, era uma garantia contra eventual mudança na legislação interna. Outrossim, no caso de pessoas jurídicas não-transparentes, apenas 5% do total remetido está sujeito a tributação pelo Körperschaftsteuer (isenção de 50% do valor dos dividendos recebidos por pessoas físicas, incluindo aqueles recebidos através de sociedades pessoais). 18 Efeitos da Denúncia Investimentos Alemães no Brasil • Juros: alíquota de 10% no caso de certos empréstimos (período mínimo de 7 anos; vinculação a obras públicas ou à compra de bens de produção), e a isenção no caso de empréstimos por empresas e bancos estatais alemães, tornavam atrativo o financiamento alemão de projetos no Brasil. O ônus da mudança provavelmente será arcado pelas empresas brasileiras tomadoras dos empréstimos nos contratos em vigor: se os juros devidos forem de R$ 100,00, o custo da tributação na fonte será de R$ 17,65 (117,65 x 15% = 17,65). • Royalties: a alíquota interna é igual/inferior àquelas previstas no acordo (15% e 25%). • Matching credit: créditos presumidos de 20% a 25% eram concedidos aos contribuintes residentes na Alemanha que recebessem royalties, juros e dividendos (relevante no caso das pessoas físicas) do Brasil, independentemente da efetiva tributação no Brasil. 19 Efeitos da Denúncia Investimentos Brasileiros na Alemanha • Lucros das Empresas: sem o artigo 7º do acordo, não há mais qualquer restrição à tributação do lucro de filias, sucursais, controladas e coligadas conforme a Lei 9.249/95 e a MP 2.158-35/01. As quantias remetidas por serviços técnicos sem transferência de tecnologia não são tributadas na Alemanha. • Dividendos: tributação na fonte a uma alíquota de 20% (antes limitada a 15% pelo tratado). • Juros: em geral isentos de tributação na fonte; em certos casos tributados entre 25% a 35% (antes limitada a 15% pelo tratado). • Royalties: tributação na fonte caso a propriedade intelectual seja mantida e utilizada na Alemanha, a uma alíquota de 25% (antes limitada a 15% pelo tratado). • Redução do capital de giro devido à adicional tributação antecipada na fonte. 20 Efeitos da Denúncia Medidas Mitigadoras: Triangulação das Operações Alemanha juros (isentos de tributação na fonte) •Atenção para as normas de combate ao treaty shopping. empréstimo Holanda juros (tributação na fonte a 15%) (matching credit de 20%) empréstimo Brasil 21