O que são os números p-ádicos e como fazer cálculo sobre eles Enno Nagel * Estas notas acompanham a minha palestra sobre “Os números p-ádicos e como fazer cálculo sobre eles” ministrada no dia 10 de maio de 2013 na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sumário 1 Números p-ádicos .. diretamente via a norma p-ádica .. explicitamente via a expansão p-ádica .. topologicamente via o limite inverso Notas algébricas 1 1 2 3 4 2 Cálculo Funções diferenciáveis sobre os números reais Funções r -vezes diferençáveis sobre espaços p -ádicos vetoriais 5 5 6 3 A base de Mahler 8 Referências 9 1 Números p-ádicos .. diretamente via a norma p-ádica Uma norma sobre os números racionais Q é um mapa k·k : Q → R≥0 tal que * Instituto de Matemática da Universidade Federal de Alagoas, Maceió 1 (i) kx k = 0 ⇔ x = 0, (ii) kxy k = kx k ky k , e (iii) kx + y k ≤ kx k + ky k . Teorema 1.1 (Ostrowsi). Toda norma sobre Q é equivalente à norma usual |·| ou a uma norma p-ádica |·|p para um número primo p . A seguir definimos p por um número primo. Os números p-ádicos foram introduzidos há cerca de cem anos atrás por Kurt Hensel. A invenção é relativamente recente em comparação aos números reais. Isto é devido à natureza contra-intuitiva da valorização p -ádica |·|p que mede quantas vezes p aparece na fatoração de um número inteiro (e contra-intuitivamente diminui quando a potencia de p cresce). Definição. Seja a ∈ Z. Pomos |a|p = 1/pe se a = a0pe onde p não divide a0. Nota. A contra-intuição da norma p-ádica |·|p é revelada pelo fato que ela é não-arquimediana, isto é | 1 + · · · + 1 | ≤ 1. Esta norma estende-se multiplicativamente aos números racionais Q. Conforme a R, que consiste de todos os limites em Q com relação à valorização |·| , declaramos analogamente: Definição. Os números p-ádicos Qp são o completamento de Q relativamente à norma |·|p . .. explicitamente via a expansão p-ádica Analogamente à expansão decimal de um número real a 0 + a 1 10−1 + a 2 10−2 + · · · , os números p-ádicos têm uma expansão p -ádica. Proposição 1.2. Os números p-ádicos se escrevem de maneira única X ai pi = a −Np −N + · · · + a 0 + a 1p 1 + a 2p 2 + · · · com ai ∈ {0, . . . ,p − 1}. i≥−N Visto que as operações do corpo são continuas com relação a topologia p-ádica, a multiplicação e adição são efetuadas naturalmente: O produto das expansões truncadas dos fatores converge ao produto das expansões inteiras. 2 Exemplo. (i) Temos −1 = 111111 . . . em Q2 . (Expansão binária.) (ii) Temos 1/2 = 2−1 em Q2 e 1/2 = (pn + 1)/2 → (0 + 1)/2 = 1/2 em Qp para p > 2. Nota. Notamos duas diferenças com a expansão decimal dos números reais. (i) Em todo número real há um sinal ± único. Observamos no exemplo acima que isto não vale para os números p-ádicos. Concluímos que Qp não é ordenado. (ii) Ao contrário, a expansão p-ádica é única. (Ao passo que 0, 9̄ = 1 em R.) A segunda observação é uma consequência da desigualdade triangular forte que enuncia |x + y| ≤ max{|x |, |y|}. .. topologicamente via o limite inverso De fato, se expandirmos a = i≥ I ai p P i eb = P j≥ J b j p j, então |a − b |p = p −K com K = primeiro índice k onde a e b diferem. Proposição. A bola de unidade X Zp = B≤1 (0) = {x ∈ Qp : |x |p ≤ 1} = { ai pi : ai ∈ {0, . . . ,p − 1}} i≥ 0 em Qp é um anel. Demonstração: Se |x |, |y| ≤ 1, então |x + y| ≤ 1 pela desigualdade triangular forte, isto é Zp e fechado sob adição e então um anel. Segue um desenho da imagem da árvore binária de Z2 . Descrição dos números binários, da norma e da distancia e das bolas sobre eles. Esta descrição figurativa se manifesta na terceira descrição dos números p-ádicos, que torna suas propriedades topológicas mais claras. Proposição 1.3. Temos Zp = lim ←−−n∈N Z/pn Z. Vemos que duas bolas contem-se ou são disjuntas, isto é Qp é totalmente desconecto. Todas estas diferenças, a desigualdade triangular forte e a topologia desconecta são uma consequência da propriedade de |·| sendo não-arquimediana. Chamamos um corpo completo K tal que a sua norma |·| é não-arquimediana de um corpo não-arquimediano. 3 Notas algébricas Como Qp é completo as propriedades algébricas são de um ponto de vista da Teoria dos Números mais fáceis. Observamos que pela definição Q ⊆ Qp é denso e então Aut(Q̄p ) = Gal(Q̄p /Qp ) ,→ Gal(Q̄/Q). Notamos que ao contrario de R = completamento de Q por |·| , onde # Gal(R̄/R) = # Gal(C/R) = 2, o grupo Gal(Q̄p /Qp ) é infinito. Hasse popularizou esses números mostrando que algumas propriedades podem ser verificadas localmente, isto é se uma propriedade aritmética de um número x ∈ Q vale em todos os Qp para p qualquer, então vale em Q também. Dado um polinómio P ∈ Z[X1 , . . . , Xd ], o objetivo é, em vez de procurar soluções P(x) = 0 nos números inteiros diretamente, procurá-las módulo pn para todo números primos p e n ∈ N. Esta solvabilidade para todos n ∈ N, é concisamente reformulada pelos números p-ádicos. Teorema 1.4. A congruência P(x) ≡ 0 mod pn é solvível para todos n ∈ N se e somente se P(x) ≡ 0 é solvível em Zp . Agora resta a questão quando a solvabilidade local, isto é, em todos os Qp para todos p primos é suficiente para solvabilidade global, isto é em Q. Isto não basta em geral, mas se valer, facilita a vida bastante. Temos o seguinte exemplo. Teorema (Hasse-Minkowski). Uma forma quadrática há um zero em Q se e somente se há um zero em Qp para todo p assim como em R. As propriedades algébricas mais fáceis de Qp nos permitem a provar o teorema seguinte. Proposição. Uma forma quadrática de posto n ≥ 5 sempre há um zero em Qp . Corolário. Uma forma quadrática de posto n ≥ 5 há um zero em Q se e somente se ela tem um zero em R. Nota. O teorema de Hasse-Minkowsi estende-se à classificação de formas quadráticas sobre Q. Ou seja, duas formas f e д são equivalentes sobre Q se e somente se eles são equivalentes sobre Qp para todo p assim como sobre R. Agora estas formas sobre estes corpos completos permitem uma parametrização concisa. 4 2 Cálculo Recordamos que por causa da desigualdade triangular forte Qp é topologicamente desconecto. Estudamos este fenómeno mais geralmente. Seja doravante K um tal corpo completo não-Arquimediano. Por causa da topologia totalmente desconecta, não haverá nenhum equivalente do Teorema do Valor Intermediário e portanto nem • do Teorema do Valor Médio (TVM), e nem • do Teorema Fundamental de Cálculo. Estes dois teoremas estão no centro da Teoria de Cálculo. Duas consequências: • TVM ⇒ Diferenciabilidade parcial continua implica Diferenciabilidade total • Teorema Fundamental de Cálculo ⇒ O espaço das funções diferenciáveis é completo respeito à norma natural. Observe abaixo em detalhes como contornar a falta do TVM no paragrafo seguinte. Funções diferenciáveis sobre os números reais Vejamos primeiro a situação clássica sobre R. Seja X ⊆ R um intervalo aberto e f : X → R. Definição. Uma função f é C1 no ponto x 0 ∈ X se f 0(x 0 ) = lim x→x 0 f (x) − f (x 0 ) x − x0 exista. Declaramos que f é C1 se f é C1 em todos os pontos x 0 ∈ X e é contínua. Proposição 2.1. Seja X compacto. O espaço C1 (X, R) com a norma k f k C1 = max{k f k sup , k f 0 k sup } é completo. Demonstração: A prova habitual usa o teorema fundamental do cálculo. 5 Se R é substituído por um corpo K não-arquimediano, então esta proposição é incorreta. Por isso vamos mudar a definição de derivabilidade para este enuncio ficar correto. Portanto darei uma demonstração diferente da Proposição 2.1 acima que indica como podemos proceder neste caso. Proposição 2.2. A função f ∈ C1 (X, R) se e somente se a função f ]1[ (x,y) = f (x) − f (y) , x −y definida para todos x,y ∈ X desiguais, estende-se a um função f [1] : X × X → R contínua. Demonstração: A direção ⇐ é fácil. Na outra direção, se (x,y) → (a,a) ∈ X × X. Então f ]1[ (x,y) = f 0(ξ) → f 0(a) = f [1] (a,a) com ξ ∈ [x,y] onde a primeira igualdade provem do TVM. A segunda por causa da continuidade de f 0. Isto é suficiente para concluir que f [1] é contínua em todos os lugares como f [1] (X × X) ⊆ f ]1[ ({(x,y) ∈ X × X diferentes}) pela construção. Corolário. Seja X compacto. O espaço C1 (X, R) é completo. Demonstração: Como visto acima pelo Teorema do valor médio, a norma k f k = max{k f k sup , k f [1] k sup } é igual a norma k f k C1 = max{k f k sup , k f 0 k sup }. Então, quanto a primeira norma, esta proposição é evidente. Funções r -vezes diferençáveis sobre espaços p -ádicos vetoriais Definição da diferenciabilidade de grau 1. Visto que não há o teorema do valor intermédio com todas suas consequências, em particular o teorema do valor médio usado na prova da Proposição 2.2 acima, propõe-se a definição seguinte para obter um equivalente da Proposição 2.1: Definição. Sejam X ⊆ K aberto e f : X → K. Então f é C1 no ponto a ∈ X se o limite lim (x,y)→(a,a) f ]1[ (x,y) f (x) − f (y) com f ]1[ = x −y para x,y diferentes existe. Então f é C1 se f é C1 em todos os pontos a ∈ X ou igualmente se f ]1[ estende a uma função f [1] contínua. 6 Agora fica a questão como iterar a noção de diferenciabilidade: Como definir uma função duas vezes diferençável? Observamos que neste caso f [1] é uma função em duas variáveis, ao contrario da função f 0 no caso real, e não podemos iterar esta definição diretamente. Então é necessário estudar o caso de muitas variáveis para definir a diferenciação repetida de uma função de uma variável só! Lembramos a definição de uma função derivável em argumentos múltiplos. Definição. Sejam V e E espaços vetoriais de dimensões finitas, X ⊆ V aberto e f : X → E. Então f é C1 no ponto a ∈ X se existe um mapeamento linear A tal que para todos ε > 0 existe U ⊆ X aberto tal que f (x + h) − f (x) = A · h + R(x + h,x) com o resto satisfazendo k R(x + h,x)k ≤ εkhk para todos x,y ∈ U. Diferenciabilidade iterada. Isto não permite diretamente obter uma definição de diferenciabilidade geral, mas possibilita uma boa perspectiva como proceder em geral. Definição. Sejam V, E, X ⊆ V e f : X → E como acima e supomos que temos uma escolha de coordenadas em V. (Isto é V = Kd com e 1 , . . . ,ed a base natural.) Então f é C1 se para todos x + h,x ∈ X com h ∈ K∗d a função f ]1[ (x + h,x) definida por (x + h,x) 7→ A ∈ HomK (V, E) com A · hk ek = f (x + h 1e 1 + · · · + hk−1ek−1 + hk ek ) − f (x + h 1e 1 + · · · + hk−1ek−1 ) estende-se a uma função contínua f [1] : X × X → HomK (V, E). Notamos que X × X ⊆ V × V é novamente um espaço vetorial com coordenados naturais e im f ⊆ HomK (V, E) e também novamente um espaço vetorial de dimensão finita. Definição. Dizemos que f : X → E é C2 se f é C1 e f [1] : X × X → HomK (V, E) é C1 . E geralmente f é Cn se f é Cn−1 e f [n−1] é C1 . Com esta definição concluída podemos compreender melhor as propriedades destas funções. Pois esta definição é complicada e não tínhamos até este momento muita teoria sobre a diferenciabilidade, mesmo a verificação das propriedades naturais exige muita atenção. 7 Generalizei esta definição a Cr -funções, funções r -vezes diferenciáveis para r ∈ R≥0 em [Nag11] e verifiquei que elas satisfazem, como esperado, muitas propriedades naturais. Mostrei igualmente que esta definição complicada permite uma descrição muito mais direta em vários casos. 3 A base de Mahler Seja E um corpo completo não-arquimediano e oE = {x ∈ E | |x | ≤ 1} o seu anel de inteiros. Definimos C0 (Zp ) = { todas as funções contínuas f : Zp → E}, e D = { todas as formas lineares contínuas 0 Z : C0 (Zp ) → E}. Pois Zp = lim Z/pn Z, segue de um fato geral que D(Zp ) = E ⊗oE lim oE [Z/pn Z]. ←−− ←−− Então observamos que [ E[Z/pn Z] = { as funções localmente constantes } n∈N são densos em C0 (Zp ) e por conseguinte obtemos dualmente, lembrando que uma forma linear sendo continua se e somente se é limitada, que D0 (Zp ) = E ⊗oE lim oE [Z/pn Z] =: E ⊗oE oE [[Zp ]]. ←−− Visto que Zp é topologicamente cíclico, gerado pelo elemento 1 por exemplo, obtemos o isomorfismo de Iwasawa ∼ oE [[Zp ]] → oE [[X]] 1 7→ X − 1. Concluímos ∼ E ⊗ oE [[X]] → D(Zp ). Pela dualidade de Schikhof, obtemos que ∼ c0 (N) → C0 (Zp ) ! x en 7→ , n 8 onde c0 (N) representa as sequências que vão ao nulo, en a sequencia cujo único coordenado não-nulo é 1 na posição n , e onde xn = x(x − 1) · · · (x − n)/n !. Sob este isomorfismo natural, a imagem de Cr (Zp ) ⊆ C0 (Zp ) permite a descrição concisa seguinte. Teorema 3.1. Temos o isomorfismo ∼ cr (N) = {(an ) : |an |nr → 0} → Cr (Zp ). Isto é, uma função f : Zp → E é r -vezes diferenciável se e somente se f (x) = P an xn com |an |nr → 0. Referências [Nag11] E. Nagel, Fractional non-Archimedean differentiability, Univ. Münster, Mathematisch-Naturwissenschaftliche Fakultät (Diss.), 2011. zbMATH 1223.26011. Confer http://nbn-resolving.de/urn:nbn:de: hbz:6-75409405856. 9