1 DIALOGANDO COM GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI SOBRE A IDEIA DE SUBJETIVIDADE DESTERRITORIALIZADA Maria dos Remédios de Brito1 RESUMO: Antitradicionalista, a modernidade foi uma época de grandes descobertas e revoluções na cultura, no pensamento e na ciência. A era moderna ofereceu um novo tipo de conhecimento ou verdade que, passando pelo crivo da razão e do método, poderia levar à compreensão do mundo real. Assim, a modernidade estabeleceu um novo padrão de racionalidade. Com ela, os homens acreditaram no poder e na força de suas intervenções no mundo por meio da razão esclarecida, tornando-se senhores deles mesmos e da natureza, pois a razão, unidade substancial, era a única fonte de verdade e conhecimento. Tempo de grande mudança que incluiu o cogito, ergo sum (Eu penso, logo existo) de Descartes. Este pensador encontrou refúgio seguro e fixo para que o “Eu” pudesse obter a verdade e a certeza indubitáveis. O espírito racional e científico trouxe com ele a ideia de um sujeito consciente, autônomo e centrado em si mesmo. Assim, o sujeito é afirmado e, por meio da razão, da consciência, pode construir os processos de representação do mundo. Esta perspectiva desenhou um tipo de padrão de subjetividade que marcou uma forma inteira de pensar e compreender, estabelecendo, de uma maneira ou de outra, certos modos de vida para os sujeitos. Este ensaio trabalha com nova forma de pensar que privilegia a diferença como uma maneira de contribuir para a instauração de outra perspectiva e entendimento da subjetividade, não mais unificada, essencializada e universal, mas em movimento e deslocamento. Assim, a escritura textual responde às seguintes questões: Por que Deleuze e Guattari rejeitam a ideia de subjetividade fincada no modelo da representação? Como se pode pensar a ideia de subjetividade a partir do conceito de desterritorialidade? O que seria uma subjetividade desterritorializada? Que caminhos e expressões possíveis a subjetividade pode introduzir na vida e na existência de quem a exercita? Que modo de existência é afirmado por ela? A hipótese desenvolvida neste ensaio é que Deleuze e Guattari fazem uma efetiva rejeição da ideia de subjetividade unificada e centrada, de um “Eu” senhor de si mesmo, porque ela nega a complexidade da mudança da vida e da existência. O conceito de desterritorialidade e sua inferência com a ideia de subjetividade desterritorializada serão tratados em oposição à ideia de subjetividade unificada e universal, com a finalidade de vislumbrar um novo modo de existência que perpassa pela criatividade e constituição de um tipo de singularidade e subjetividade para além da lógica da identidade. Dessa forma, a subjetividade desterritorializada opera em conexões, fluxos heterogêneos, movimentos, deslocamentos e dobras. Este ensaio também usa obras de Escher e René Magritte para exemplificar o que Deleuze e Guattari pressupõem sobre a subjetividade em movimento, pois a arte desses artistas racha com a interioridade, a universalidade, a unidade e a centralidade de uma subjetividade fincada pela identidade para pensar a ideia de subjetividade em relação ao outro, com alteridade. Deleuze e Guattari, artesãos de um tipo de subjetividade que vai para além da lógica da representação instauram a linha do fora para pensar novos modos de intensidade em um movimento de oposição à codificação, aos modelos estabilizados, para pensar outras formas de afirmação da vida. Daí a ideia de uma subjetividade desterritorializada, porque a desterritorialização promove a vida, pois ela trabalha pela criação e recriação de outros movimentos / deslocamentos para além do que foi dado. Palavras-chave: Deleuze, Guattari, subjetividade moderna, subjetividade desterritorializada. 1 Doutora em Filosofia da Educação, professora da Universidade Federal do Pará do Instituto de Educação Científica e Matemática. Email: [email protected] ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 2 IN DIALOGUE WITH GILLES DELEUZE AND FÉLIX GUATTARI ON AN IDEA OF DETERRITORIALIZED SUBJECTIVITY ABSTRACT: Anti-traditionalist, the modernity was an age of great discoveries and revolutions in the culture, in the thinking and in the sciences. The modern age offered a new type of knowledge or truth that, passing through the sieve of reason and method could lead to an understanding of the real world. Thus the modernity established a new standard of rationality. With it, the men believed in the power and in the strength of their interventions in the world through their enlightened reason, becoming lords of themselves and nature, for the reason, substantial unity, was the only source of truth and knowledge. Time of great changes that included the Descartes‟ cogito, ergo sum (I think, therefore I am). That thinker found inside himself the safe refuge for that the “I” can get the undoubted truth and certainty. The rational and scientific spirit brings with it the idea of a conscious, autonomous and self-centered subject. Then, the subject is affirmed and, through reason, conscience, can build the processes of representation of the world. This perspective drew a kind of unaltered pattern of subjectivity that marked a whole way of thinking and understanding and that established, of one form or another, certain modes of life for the subjects. This essay works with new way of thinking that privileges the difference as a form to contribute to the establishment other perspective and understanding of the subjectivity, no longer unified, essentialized, and universal, but in motion, and displacement. Thus, the textual scripture answers the following questions: why Deleuze and Guattari reject the idea of subjectivity embedded in the representation model? How can you think of the idea of subjectivity through concept of deterritoriality? What would be a deterritorialized subjectivity? What possible ways and expressions can the subjectivity introduce in the life and existence of someone who practices it? What is mode of existence asserted by it? The hypotheses developed in this essay is that Deleuze and Guattari make an effective rejection of the idea centered and unified subjectivity, of an “I”, lord himself, because it denies the complexity of the change of the life and existence. The concept of deterritoriality and its inference combined with the idea of deterritoriality subjectivity will be treated in opposition to the idea of the unified and universal subjectivity, in order to envision a new way of existence that runs through the creativity and constitution of a kind of singularity and subjectivity beyond the identity logic. Thus, the deterritorialized subjectivity operates on connections, heterogeneous flows, movements, displacements and folds. This essay also uses the works of Escher and René Magritte to illustrate what Deleuze and Guattari presupposes on subjectivity in motion, because the art of these artists split with the interiority, universality, unity and centrality of a subjectivity stuck by identity to think the idea of subjectivity in relation to the other, with alterity. Deleuze and Guattari, artisans of one kind of subjectivity that goes beyond the representation logic establish the outside line to think of new ways of intensity in an opposition movement to the encodings, stabilized models, to think of other modes of life affirmation. Hence the idea of a deterritorialized subjectivity, for the deterritorialization promotes the life, because it works by creating and recreating other movements / displacements beyond what was given. Keywords: Deleuze, Guattari, modern subjectivity, deterritorialized subjectivity. ESCRITURA I (...) Porque a grande mentira foi fazer do homem um organismo, ingestão, assimilação, incubação, excreção, o que existia criou toda uma ordem de funções latentes e que escapam ao domínio da vontade decisora, ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 3 a vontade que em cada instante decide de si; porque assim era a árvore humana que anda, uma vontade que decide a cada instante de si, sem funções ocultas, subjacentes, que o inconsciente rege. Do que somos e queremos na verdade pouco resta (...) (Antonin Artaud.) Deleuze e Guattari são críticos severos da perspectiva de pensamento da representação2 por se distanciar, dentre outras coisas, do enfrentamento com a diferença. Contudo, quando Deleuze faz referência ao mundo moderno, afirma que ele surge com a falência do pensamento da representação, da perda da identidade e das descobertas das forças que agem sob a representação (DELEUZE, G. 2006). “Nele, o homem não sobrevive a Deus, nem a identidade do sujeito sobrevive à identidade da substância” (DELEUZE, G. 2006, p. 15). O mundo moderno é visto como palco de crise, de reviravoltas, pois novas questões são caracterizadas, novos problemas são formulados. A modernidade marca um momento de um novo tipo de padrão de racionalidade e de conhecimento que oferece ao homem a possibilidade de ser visto como senhor de si e da natureza. Assim, sem o intermédio do divino e sem a revelação, o homem e a razão se colocam como senhores capazes de conhecer o mundo e de controlá-lo. Nesse momento também surge o método científico e com ele se constitui um projeto universal de ordem e de medida baseado na matemática. Esse padrão de racionalidade passa pelo universo físico e até pela moral, configurando novos valores e perspectivas de vida e compreensão de mundo. E todas essas mudanças são solidárias com a cultura, com a economia, com a política e até com a religião. A modernidade sem dúvida é uma época de conturbadas transformações na história da humanidade, envolvendo mudanças religiosas até as profundas modificações na economia e nos seus meios de produção. Contudo, o que se quer destacar é que o tempo moderno é fomentador do sujeito, que se torna relevante por sua consciência pensante, e que por meio da sua razão, da sua consciência, possa representar e estabelecer ordem à realidade. Essas modificações 2 Deleuze entende que o pensamento da representação foi sendo profundamente formado por uma imagem dogmática (da identidade e da semelhança) e que tal imagem influenciou significativamente os padrões lógicos de entendimento e de significação acerca do mundo e da vida. Tal proposta de pensamento reconhece uma espécie de imagem recognitiva, da adequação e designação do que é, que tende a gozar de uma natureza reta e moralizante, bem como do exercício de uma prática ascética e de mortificação do corpo e da linguagem. Essa imagem tende a difamar tudo o que seja devir na existência e procura um telos, um porto seguro, uma ancoragem, negando o despertar da potência criadora da vida. Assentado em bases moralizantes, o pensamento da representação é configurado em sua severidade identidária, o que leva a uma vida cansada e enfadonha. Tal pensamento se estabelece pela identidade, pela oposição ao predicado, pela analogia no juízo e pela semelhança na percepção. O pensamento da representação “se define por essas quatro dimensões que o medem e o coordenam” (DELEUZE, G. 2006, p. 365). ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 4 ocorridas no interior da modernidade determinam um tipo de subjetividade fincada na identidade, na unidade, em um eu conhecedor e instaurador da verdade pura. Essa ideia marca um tipo de subjetividade determinante para a história das idéias. Descartes é um pensador 2fundamental para o seu entendimento, colocando como o ponto central do sujeito o eu e sua unidade. Com isso, entende-se que a subjetividade é uma noção moderna e está ligada à consciência, à atividade da razão, capaz de forjar uma identidade consigo mesmo, de fomentar o conhecimento verdadeiro, um sujeito que sabe de si, centrado em si mesmo, capaz de promover a certeza pela reta razão. Sem dúvida Descartes foi o grande representante da modernidade, é com ele que aparece a perspectiva de subjetividade, sendo o pensamento submetido a sua própria autonomia, assim, o sujeito conhecedor torna-se o ponto de partida do conhecimento, pois... (...) é preciso que se afirme primeiramente o sujeito (...). A independência do sujeito, no plano metafísico, é, pois, solidário do método que se constituirá para a filosofia e que consistirá fundamentalmente em tomar o sujeito como ponto de parida do conhecimento. (SILVA, F, L. 1993, p. 6) Dessa forma, sendo o sujeito o ponto de partida para o conhecimento, ele deve ser necessariamente quem pensa, quem conhece e quem fomenta suas “percepções claras e distintas da mente” (COTTINGHAM, 1986, p. 21). O sujeito é o centro unificador da certeza, e é a partir daquilo que está no sujeito que se pode saber o que é conhecimento, mas não qualquer conhecimento, mas aquele que pode ser chamado de verdadeiro, pois a sua ideia dominante é clara, “a verdade, muito longe de estar envolta em mistério, era facilmente acessível ao intelecto” (COTTINGHAM, 1986, p. 39). Então, o sujeito é o próprio pensamento, o eu pensante, sendo o único princípio fundamental do conhecimento. O mundo material terá que ser demonstrado no intelecto, na ideia, como bem sugere o pensamento de Descartes. Dessa forma, as ideias são o ponto de partida da verdade. O sujeito assume a função ordenadora do conhecimento, sendo ele, o núcleo da certeza. Assim, como se pode observar, a verdade no mundo moderno não é mais revelada, ela é tecida por um pensamento racional, por um cogito, ao modo de Descartes, que tem certeza de sua identidade, que é pensamento, que se efetiva pela interioridade do eu penso, de tal maneira que ele chega na segunda meditação de sua ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 5 obra Meditações à proposição: “eu sou, eu existo, é obrigatoriamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito” (DESCARTES, 1999, p. 258). Aqui é constituída a afirmação de um sujeito, mas não de qualquer sujeito, o sujeito pensamente, e este é que será capaz de promover a verdade por meio de seu processo de representação. O desenvolvimento de tal obra é na tentativa de constituir essa certeza plena e indubitável para não chegar a nenhuma imprecisão. Com isso, a ideia de subjetividade, está ligada ao sujeito enquanto unidade, que é permanente inferidor do conhecimento. Assim, a subjetividade e sua noção aparecem por meio do pensamento de Descartes, que seguramente promove uma grande modificação na modernidade. O sujeito pensamente conduzido pelo método encontra em si os critérios para conduzi-lo à verdade e ao conhecimento indubitáveis, e “Só poderá tornar-se efetivamente conhecido aquilo que puder ter a sua evidência alicerçada na subjetividade” (SILVA, F, L, 1993, p. 8). Sendo assim, o pensamento é um atributo que pertence ao sujeito, ao eu penso, ao eu sou. Por isso, Descartes afirma “nada sou, então, a não ser uma coisa que pensa, ou seja, um espírito, um entendimento ou uma razão (...) Então, eu sou uma coisa verdadeira e verdadeiramente existente (...) uma coisa que pensa” (DESCARTES, 1999, p. 261). Todo o princípio da subjetividade moderna se instaura nessa preocupação. Mas, ainda na modernidade, a ideia de sujeito centrado, estabilizado, foi aos poucos sendo denunciada, pois a identidade do sujeito centrada em si mesma não sobrevive. A inconsistência e a puerilidade daquele que se coloca como o centro do método e do conhecimento foi denunciado por Espinosa, pois mesmo partilhando do racionalismo da sua época, ele o adota de forma peculiar, sendo crítico, como os outros dos dogmas do pensamento medieval. Espinosa também foi crítico de outras ideias nascentes que se tornariam fundamentais para a modernidade, como a ideia de sujeito, que remonta a tradição a Descartes, sujeito este caracterizado pela substancialidade da mente, imune aos afetos, alma imaterial que determina as ações do indivíduo por livrearbítrio e a razão desligada do corpo. Espinosa rejeita toda essa interpretação. (MARTINS, A; SANTIAGO, H; OLIVA, L, C., p. 10, 2011). Porém, sem dúvida, toda essa crítica foi efetivamente aprofundada por Nietzsche ao criticar os conceitos de identidade, essência, substância, ser, sujeito, unidade. ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 6 Nietzsche lançou uma crítica feroz ao eu pensante de Descartes, que se colocava como o princípio e o critério da verdade, transformando o ego subjectum em um fundamento de toda representação. Descartes, para Nietzsche, aprisiona o pensamento em estreitos limites do dogma quando mostra o eu penso, logo existo como uma proposição constante que afirma que é verdadeiro todas as vezes que ele é enunciado (MARTON, S. 2000). Sendo assim, com o “eu penso, Descartes exprime a consciência que tem de si mesmo no momento em que pensa e que sempre terá no momento em que pensar” (MARTON, S. 2000, p. 126). Porém, a derrocada do eu, do sujeito e do ser vem sendo afirmada, e com ela também vem sendo posta a derrocada do mundo verdadeiro. Assim, desencadeia-se uma espécie de catástrofe do sujeito, ao mesmo tempo em que se mostra a ruína do pensamento metafísico tradicional. Nietzsche destaca muito bem esse declínio na sua obra Crepúsculo dos Ídolos, no item Como o „mundo verdadeiro‟ acabou por se tornar fábula. É possível notar a desfiguração do sujeito unificado, estável, totalizante e universal. A filosofia contemporânea de Deleuze e Guattari não cessa de denunciar sua crise, o sujeito unificante e estável está em diluição, o eu está em dissolução. Contudo, não é objeto deste ensaio mostrar a reconstituição daquilo que seria as bases para a ideia da subjetividade na modernidade. O exercício de escritura é exatamente destacar uma subjetividade que não se interessa mais por qualquer tipo de unidade, de centro, de forma e de universalidade. Importa pensar uma subjetividade descentrada, múltipla, nômade, que dialoga com a superfície e não com o fundamento. A filosofia contemporânea desses autores busca romper com a imagem do sujeito universal para pensar uma subjetividade construída na imanência, com a vida e com suas forças, agora não mais substância, fundamento, mas superfície, fluxos de vida, singularidade. O ensaio pretende responder as seguintes questões: O que fazem Deleuze e Guattari rejeitarem a ideia de subjetividade fincada ao modelo da representação, ou seja, da identidade e da unidade? Como pensar a ideia de subjetividade pela inferência do conceito de desterritorialidade? Isso é possível? Que modos possíveis de existência essa perspectiva de “subjetividade desterritorializada”3 poderia instaurar na vida daquele que a exerce? Em que medida tal reflexão pode ser importante para atualidade? 3 O conceito será esclarecido durante o desenvolvimento deste ensaio. ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 7 A hipótese que move este ensaio é que promovendo a crítica à subjetividade centralizada, que não dá conta da diferença, do movimento, dos deslocamentos existências e vitais, Deleuze e Guattari sugerem, por meio de uma subjetividade móvel, desterritorializada, a possibilidade de fomentar a construção de novos modos de vida e existência que exercitem a afirmação da vida, promovendo linhas de fuga aos modos de sujeição e imposição daqueles que desejam uma vida reativa e sem força fincada pela representação. Pensar uma “subjetividade desterritorializada” e movente é destacar que a mesma é atravessada por modos de existência afirmativos, por cruzamentos, que não a deixam ser capturada pela forma, mas por pinturas, fissuras, forças, afectos e dobras. Essa perspectiva rejeita um “eu” unificador, por isso, não mais sujeito, não mais substância, mas modos de existência, de singularidades e intensidades. Não mais individualidades, mas modos de impessoalidade. O objetivo da reflexão e buscar comprovar essa hipótese a partir do dialogo com Deleuze e Guattari. ESCRITURA II Quando eu atravessava os Rios impassíveis, Senti-me libertar dos meus rebocadores. (Arthur Rimbaud.) Para Deleuze e Guattari, a subjetividade é uma trama que não está dada, mas que está em composição contínua com diferentes arranjos, sendo assim, ela não está na ordem do “identificado”, como uma espécie de moldura formatada e fixada que leva à padronização do indivíduo a ser conhecido e reconhecido, pois “a subjetividade não é passível de totalização ou centralidade no indivíduo” (GUATTARI, F; ROLNIK, S, 1996, p. 31). Dessa forma, sem dúvida, é possível dizer que não há algo invariante na subjetividade para ser preenchido independentemente das variações e ocorrências do mundo histórico, econômico, cultural e social. Assim, ela não é um “tesouro”, também não pode ser vista como algo “secreto” que faz parte do interior do indivíduo, nem está intacta, inata, nem está lá somente para ser desvelada ou descoberta. Portanto, não há nenhum “eu” que sendo pensante detenha o critério de tudo o que seja verdade, certeza, que leva a transformar o “eu” em subjectum, em um fundamento de toda a representação, que seja a unidade, o centro, o limite fundador, como sugere o pensamento moderno. ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 8 Contra esse privilégio de uma lógica da identidade, Deleuze e Guattari trazem à tona as noções de “totalidade”, “unidade”, “fundamento”, pois para eles esses conceitos são traços predominantes da filosofia metafísica e representacional e, assim, fazem um elogio ao devir, ao transitório, à multiplicidade, ao diverso, à diferença, como elementos capazes de mostrar outro sentido para a compreensão da vida. Por isso, Guattari, em sua obra Caosmose, afirma que a subjetividade é polifônica, é plural, pois não há nenhuma instância estruturante e dominante que a determine segundo uma causalidade unívoca (GUATTARI, F. 1992, p. 11). A subjetividade interage, sofre também variações, produz sentidos, contra-sentidos, opera modos coletivos e heterogênenos, pois... (...) na heterogeneidade dos componentes que concorrem para a produção de subjetividade, já que encontramos aí: 1-componentes simiológicos que se manifestam através da família, da educação, do meio ambiente, da religião, da arte, do esporte; 2-elementos fabricados pela indústria das mídias, do cinema, etc; 3-dimensões simiológicos asignificantes colocando em jogo máquinas informacionais de signos, funcionando paralelamente ou independentemente, pelo fato de produzirem e veicularem significações e denotações que escapam então às axiomáticas propriamente lingüísticas. (GUATTARI, F. 1992, p.14) A subjetividade está sendo configurada por vários componentes que não permitem mais um entendimento simplista e estruturalista de suas dimensões e composições, ela vai sendo composta por variantes diversas que chegam mesmo até a escapar dos axiomas da linguagem. Por exemplo, na era atual, com o advento tecnológico avançado, que força a considerar uma tendência à homogeneização, à universalização, e assim há uma espécie de reducionismo da subjetividade, há também uma tensão que leva a se pensar na heterogeneidade, já que é possível outras interações, conexões com culturas, linguagens, formas de vida, signos, como esclarece Guattari. Assim, é preciso considerar essas tensões que são reais em uma sociedade que tende à globalização a partir das tecnologias avançadas e da própria expansão do capitalismo e de seus meios de produção. Tudo isso concorre para a produção dos componentes de subjetividade. Todas essas modificações obrigam o homem a manter-se alerta sobre aquilo que o governa e o controla, o que exige de todos um maior envolvimento com tudo aquilo que rodeia o homem e que o produz. Subjetividade polifônica, pois tudo funciona paralelamente ou independentemente, ela está sendo produzida o tempo todo. Não há substancialidade e nem essencialidade, mas produção, fabricação, modulação. A subjetividade está em circulação em diferentes campos sociais. ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 9 Guattari também alerta para o caráter trans-subjetivo da subjetividade, pois ele entende a “subjetividade em estado nascente que não cessaremos de encontrar no sonho, no delírio, na exaltação criadora....” (GUATTARI, F. 1992, p. 16), ou seja, ela está sempre em fluxos, sempre interagindo, conectando-se, transversalizando sentidos, mesmo quando não se tem controle sobre ela. Então, a unidade que tanto se quis nunca existiu. Para esse autor, seria empobrecedor se a subjetividade fosse vista apenas por partes separadas, por dualidades, por unidades, ou por estados de consciência ou inconsciente, como se alguém pudesse saber o que se é. Guattari alerta para aquilo que escapa, que vaza na constituição da subjetividade. Guattari e Deleuze sugerem que a “subjetividade” não escapa da invenção, ela sempre está nesse processo. Quando se entende a ideia de subjetividade fora da essência, da unificação, da centralidade, tudo que resta é estabelecer força, um movimento que possibilite a si e ao mundo se verem em movimento. Assim, a subjetividade não pode ser vista pela lógica estruturante, condicionante, ao contrário, para Deleuze e Guattari a subjetividade está em deslocamentos, pois não existe um a priori que estabelece um ser essencial, ou algo que não varia, que sempre se conserva e que só precisa ser descoberto. Não há unificação, não há centro, mas sempre trocas, movimentos, diferenças. Mas parece que o ritual da moralidade insiste em buscar um centro onde não existe nenhum centro. Logo, “Indivíduo-grupo-máquina-trocas múltiplas, que oferecem à pessoa possibilidades diversificadas de recompor uma corporeidade existencial, de sair de seus impasses repetitivos e, de alguma forma, de se re-singularizar” (GUATTARI, F. 1992, p.17). Dessa forma... ... se operam transplantes de transferência que não procedem a partir de dimensões “já existentes” da subjetividade, cristalizadas em complexos estruturais, mas que procedem de uma criação (...). Criam-se novas modalidades de subjetivação do mesmo modo que um artista plástico cria novas formas a partir da palheta de que dispõe. (GUATTARI, F. 1992, p.17) Guattari alerta também para a ideia de plasticidade da subjetividade, do seu descentramento em relação àindividualidade. Há composições mais heterogêneas possíveis que insistem em romper e fissurar com as concepções deterministas de subjetividade unificada. Ele sugere a subjetividade inventiva, desafiadora de si mesma, que se auto-produz em uma constituição, que não cessa de percorrer caminhos e também deixá-los, que exige modos de vidas plásticos, modificantes, sendo assim, não ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 10 existe mais individualidade, nem pessoalidade, mas uma impessoalidade e um profundo exercício de singularização4 e ressingularização, pois não se está mais diante de uma subjetividade dada em si mesma, conformista e subordinada a um eu fixo. A subjetividade não cessa de criar novas modalidades de subjetivação. Deleuze e Guattari convidam para um profundo exercício de coragem e enfrentamento do que seja viver e existir, bem como uma vida que seja atravessada por experimentos diversos na imanência da vida. Viver é criar, é expandir, é afirmar, é exercício plástico. Então, a vida deve ser vista como uma espécie de teatro em que se aprende efetivamente o caráter criacionista da produção da subjetividade. Nesse teatro multifacetado e criador, o corpo constrói para si outros modos de existências. Esse corpo não tem receio de devorar e de exercitar a devoração, ele não se permite mais ser organizado nas estruturas encaixotantes e fixadoras, ele transversaliza outros corpos, outros sentidos. Há encontros e movimentos com o outro, com a alteridade. Por isso, Guattari afirma que a subjetividade é... o conjunto das condições que torna possível que instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como um território existencial auto-referencial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela mesma subjetiva. (GUATTARI, F. 1992, p. 19) Não há dúvida que a subjetividade exige um povoamento que não cessa de percorrer as grandes potências, as conjugalidades, as matilhas, que instaura alianças, que atravessa e promove viagens, que muda, transforma e faz linhas de fuga que levam à implicação de novas formas de expressões. Portanto, a subjetividade pensada por Deleuze e Guattari não está submetida a idealizações, a essencialidades. Para ambos, a subjetividade é uma composição, é um trabalho de criação. Ela cria, inventa, fabrica outros modos de vida a partir de seus processos de singularidade. Essa perspectiva rompe com toda a máquina de dominação da norma, da regra, para afirmar novas formas de afetos, de perceptos. É por isso que Deleuze e Guattari criaram novas expressões, nova linguagem, tais como a do rizoma, dos territórios, das desterritorialidades, do ritornelo, do espaço liso, das linhas molares, da dobra, do 4 Sobre essa questão conferir a séria -“Das singularidades”, na obra Lógica do Sentido, de Gilles Deleuze. ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 11 acontecimento, da imanência, tudo como maneira de ir de encontro ao tipo de linguagem da identidade e da semelhança. Deleuze enfrenta a ideia do sujeito unificado, essencializado e universal, quando mostra um território de criação de pensamento que está povoado por intensidades incorporais ao modo dos estóicos, acontecimentos, imanência, movimentos, deslocamentos, conduzidos não mais por um sujeito, mas por sujeitos larvares, pois para Deleuze... Não se pode mais continuar apegado à oposição entre um universal puro e particularidades encerradas em pessoas, indivíduos ou Eus. Não se pode continuar apegado a essa distinção, mesmo, e principalmente, quando se tenta conciliar os dois termos, completá-los entre si. O que se está descobrindo, atualmente, parece-me, é um mundo muito profuso, feito de individuações impessoais, ou mesmo de singularidades préindividuais (DELEUZE, G. 2006, p. 178) A subjetividade não pode ser vista por limites, por unificações e nem por centros, o que efetivamente facilitaria a dominação, o controle, pois as forças repressivas sempre tiveram a necessidade de nomear, atribuir eus classificados, indivíduos determinados, modelados, registrados, sobre os quais pudessem exercer a sua dominação. Assim, para Deleuze, quando se torna um pouco líquido, movente, quando se deixa de furtar as caracterizações do eu unificante, o controle é mais difícil. Deleuze deseja vazar, perfurar o que parece sólido e unificante, por isso ele usa a ideia de individuações impessoais, singularidades pré-individuais, não mais o sujeito. Assim, as singularidades impessoais não são identidades e nem interioridade, essas singularidades são perfuradas e se fazem pela exterioridade, pelo fora e pelas intensificações criadoras. Os acontecimentos do incorporal fazem transbordar o que passa em si mesmo, mesmo quando opera por velocidades diminuídas. É por isso que Deleuze não fala de sujeito, pois... (...) A vida do indivíduo é substituída por uma vida impessoal, embora singular, que produz um puro acontecimento livre dos acidentes da vida interior e exterior, ou seja, da subjetividade e da objetividade do que acontece. (...). É uma hecceidade, que não é mais de individuação, mas sim de singularização: vida de pura imanência, neutra, além do bem e do mal, já que só o sujeito que o encarnava no meio das coisas a tornava boa ou má. A vida de tal individualidade se apaga em benefício da vida singular imanente a um homem que não tem mais nome, embora não se ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 12 confunda com nenhum outro. Essência, singular, uma vida... (DELEUZE, G. 1995, p. 02) Se não existe sujeito, indivíduo, pessoa, não existe uma unidade e nem uma universalidade edificante, tudo comporta uma subjetividade que se movimenta em sua subjetivação, em sua singularização, a sua possível interioridade é o exercício do fora que vai dobrando sobre si mesmo, para além da moralidade imposta. Sendo assim, a subjetividade não se submete ao controle quando não se deixa fixar em um território, quando não se permite à segmentarização. Deleuze entende que é necessário perder-se, pois a vida não tem nada de pessoal. Como diz... Perde o rosto. Torna-te capaz de amar sem recordação, sem fantasma e sem interpretação, sem recapitular. Que haja apenas fluxos, que ora enfraquecem, se congelam ou transbordam, ora se conjugam; um homem e uma mulher são fluxos. Todos os devires que há em fazer amor, todos os sexos, os n sexos, num só ou em dois, e que não têm nada a ver com a castração. Sobre as linhas de fuga, só pode haver uma coisa, a experimentação-vida (...) “Eu, eis como sou”, tudo isso acabou. Já não há fantasma, mas apenas programas de vida que se modificam à medida que se fazem, traídos à medida que se aprofundam, como margens que se desdobram em canais que se distribuem para que corra um fluxo (...) (DELEUZE, G. 2004, p. 63) A subjetividade é uma exploração, programas que margeiam canais para se distribuírem, experimentarem, criando linhas de fuga, que consiste em não fugir da vida, ou se acovardar de existir, mas, ao contrário, criar linhas de fuga é exatamente produzir novos mundos possíveis. Então, Deleuze e Guattari nos propõem o mais forte exercício de sair do buraco da subjetividade identitária, do buraco negro do eu, daquilo que tende a aprisionar, substancializar, sair do muro que fixa, que impõe a regra, que identifica e que quadricula, embora ele reconheça que a nossa sociedade não cessa de querer produzir o rosto, fixar a imagem, de querer assegurar a rostificação, o muro do significante, o quadro. Deleuze e Guattari entendem que “o rosto escava o buraco de que a subjetivação necessita para atravessar, constitui o buraco negro da subjetividade como consciência ou paixão, câmara, o terceiro olho” (1996, p. 32). Mas, a questão agora é buscar se desfazer do rosto, se desfazer do nome, sendo ela o grande desafio proposto por Deleuze e Guattari, pois... ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 13 (...) se o homem tem um destino, esse será mais o de escapar ao rosto, desfazer o rosto e as rostificações, tornar-se imperceptível, tornar-se clandestino (...) Sim, o rosto tem um grande porvir, com a condição de ser destruído, desfeito (...) Ora, o rosto possui um correlato de uma grande importância, a paisagem, que não é somente um meio mas um mundo desterritorializado. (DELEUZE, G; GUATTARI, F.1996, p.35, 36, 38) É por isso que esses autores promovem novas imagens de pensamento e de criação. Deleuze e Guattari provocam aqueles que os leem a fazer novos experimentos de si e não do eu. Esse exercício de subjetividade foi muito bem sugerido por dois artistas René Magritte5 e Escher6. A seguir a ideia de “subjetividade desterritorializada,” deslocada e não fixada, será reforçada por meio da escritura imagética desses dois artistas e intercalada com a filosofia de Deleuze e Guattari. Essas imagens serão utilizadas com o objetivo de compor as linhas do conceito de “subjetividade desterritorializada”, tema que está sendo desenhado ao longo do texto, mas que tomará foco adiante. ESCRITURA III Quem agora? (Samuel Beckett) A pintura de Magritte proporciona a experimentação de novos modos de existência, de novos traçados imagéticos, que rejeitam a semelhança, a identidade, para promover um efetivo traço do impessoal, daquilo que não está na ordem do pessoal, do individual, do eu, da unidade. Na obra de Magritte intitulada “Incerteza” (1944), uma jovem mulher vê a sua sombra como um pássaro. A perspectiva da mulher é completamente alterada, levando a se pensar que há tantas imagens em cada um de nós, há tantos modos de ser, tantos despatriamentos, como uma espécie de coletivo, tantos contágios, tantas modificações, diferenças que proporcionam outros olhares, outros perceptos, sem rigidez, sem espanto e horror. Há em cada singularidade uma espécie de 5 René Magritte (1898-1912) é considerado surrealista. Sua arte é pintada com nitidez, apresentando outras organizações distintas da realidade. Seu objetivo é destacar uma arte reveladora e crítica que se opõe efetivamente à ordem estabelecida consagrada e faz, sem dúvida, uma libertação do espírito rumo a uma quebra da rotina, das certezas, promovendo dobras, o paradoxo visual, e mostrando que as diferenças coexistem, mesmo naquilo que seja estranho e deformado. Por isso, utiliza extamente o deformado, o estranho para afirmar a diferença em sua obra de arte. (Cf: René Magritte. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1995). 6 Maurits Cornelis Escher (1898-1972) é um artísta gráfico Holandes conhecido no mundo artístico por suas xilogravuras, litografias e meios-tons, que representam construções impossíveis que exploram o infinito. Sua obra produz um efeito de movimento, transformações, que sai do padão usal geométrico ao olhar infinito de deslocamentos. (Cf: o seu site oficial: www.mcescher.com) ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 14 imagem–rosto, rosto sem rosto, corpo-imagem, que sendo desfeitas, desterritorializadas, tornam-se impessoalidades, criações, movimentos, nunca unidade. René Magritte, “Incerteza” (1944) É por isso que a subjetividade proposta por Deleuze e Guattari sofre devir, que não é “uma correspondência de relações, nem tampouco o devir “é ele uma semelhança, uma imaginação e, em última instância, uma identificação. (...) Devir não é progredir nem regredir segundo uma série” (DELEUZE, G; GUATTARI, F. 2007, p. 18). Ele não é uma evolução, não é uma continuidade, da mesma forma, a subjetividade não pode ser vista como uma linha progressiva, uma evolução, tal como o devir ela é da ordem da aliança, da involução, antes, é efetivamente criadora, tudo se processa pelo meio e não pelos extremos. Com isso, a subjetividade não deixa de promover uma perspectiva rizomática7, pois as ramificações não têm início e também não se sabe o fim. Ela sem dúvida está na ordem da legião, pois como dizem Deleuze e Guattari “não nos interessamos pelas características; interessamo-nos pelos modos de expansão, de propagação, de ocupação, de contágio, de povoamento. Eu sou legião” (DELEUZE, G; GUATTARI, F. 1997, p. 20). E dizem ainda “Essas multiplicidades de termos heterogêneos, e de co-funcionamento de contágio, entram em certos agenciamentos e é neles que o homem opera seus devires..” (DELEUZE, G; GUATTARI, F. 1997, p. 23), tal como a imagem de Magritte. 7 Cf: DELEUZE, G. e GUATTARI, F, Mil Platôs, v. 1. Nesse volume os autores mostram o que entendem pelo termo. ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 15 A subjetividade vista por esses dois pensadores está na ordem da expressão, dos modos de existência. Essa expressão pode ser observada, por exemplo, na obra de Escher, que sem dúvida soube promover uma espécie de subjetividade em movimento, em deslocamento, experimentadora de vida e de plasticidade. Na sua obra „Encontro” (1944), observa-se uma paisagem-corpo ou corpo-paisagem em multiplicidade, em devires, mostrando deslocamentos, ilusões, obrigando aquele que observa a sair da matriz conceitual identificante, da fixidade, convidando o observador a fissurar as estruturas organicistas e a exaltar os paradoxos, as diferenças, as metamorfoses. Esse jogo plástico produzido por Escher remete ao questionamento de quem seja o sujeito, há algum? E se há, qual a sua matriz? Aqui ele é posto em questionamento e vibração, pois Escher quebra com as hierarquias, com as dominações e promove novos jogos de subjetividade em que não se pode dizer onde é o começo tal como sugerem os dois filósofos aqui trabalhados. Os corpos, as imagens, sofrem deslocamentos contínuos, nos quais o suposto “sujeito” parece desaparecer, parece haver apenas um efetivo exercício de constituição, de experimentação e aliança. Escher, “Encontro” (1944) Do mesmo modo, na obra “Laços de união” (1939), também de Escher, ninguém conseguirá dizer onde ela começa ou termina, o que leva a indagar: onde começa esse exercício de subjetivação? Até onde pode ir? ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 16 Escher, “Laços de União (1939) Escher opera nessa imagem escritura tantas subjetivações possíveis, deixando assim de ser domesticado, fazendo de si um povo, que não se permite cessar, pois as matilhas, as multiplicidades, são desejadas e transformadas, mostrando a interação, a transversalidade com o outro, uma vez que “o indivíduo excepcional tem muitas posições possíveis” (DELEUZE, G; GUATTARI, F. 1997, p. 25), mostrando que aquilo que se é, se é porque existe um outro, um outro que já é o contágio do outro e, assim, está sempre subvertendo a si mesmo, o rosto sendo desfeito, operando sua subjetivação. Por isso, Deleuze e Guattari se recusam a falar de um lobo, mas afirmam uma lobiveração. (DELEUZE, G; GUATTARI, F. 1997, p. 20). Esses pensadores e artistas instalam seus explosivos e com eles fazem suas rachaduras, suas fissuras no solo de uma imagem-sujeito unificante ou da ideia de subjetividade moderna unificante, presa em si mesma, subvertendo as óticas, as imagens e o pensamento. Dessa forma, configuram uma espécie de aniquilação, mostrando com suas implosões a catástrofe do sujeito centrado e ajustado da modernidade. Escher e Magritte, sem dúvida, mostram também essa implosão em suas obras, pois elas promovem multiplicidades, dobras, não havendo dentro, tudo se mistura, tudo se devora, aceita-se o paradoxo, as tensões, as incertezas promovida pelas imagens, pelo movimento. Não há dúvida que essas imagens mostram o sentido da desterritorialidade, produzindo subjetivações deslocadas e intensas, subjetivações nômades e inventivas. ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 17 Na obra “Metamorfose III” (1967-68), também de Escher, é possível observar descolamentos promovidas pelas imagens escrituras que compõem uma superfície em metamorfose que não se deixa ser capturada, mas que exercita o puro devir, o movimento, os fluxos heterogêneos. Escher, “Metamorfose III” (1967-68) Assim, pelo percurso desenhado acima agora se pode finalmente destacar a hipótese inicial deste ensaio, que a ideia de subjetividade defendida por Deleuze e Guattari opera com o conceito de desterritorialidade, promovendo uma efetiva subversão de todo o entendimento de uma subjetividade centrada e fixada em si mesma. A seguir será pontuada essa questão. ESCRITURA IV Em quantos aspectos não sou mais eu! (Montaigne) Antes de demonstrar a hipótese de que há uma ideia de subjetividade que opera em desterritorializada em Deleuze e Guattari, é necessário primeiramente esclarecer o conceito de território. Para isso, toma-se como norte de reflexão o abecedário de Gilles Deleuze que expressa de modo claro a relação do animal com o seu território. ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 18 Deleuze destaca que os animais de território marcam e demarcam o seu espaço por meio de urinas, posturas, cantos, cores. As posturas dos animais para Deleuze são verdadeiras linhas, assim, ele afirma que o território “é o domínio do ter”(DELEUZE, G. O abecedário, tradução de Bernardo Rieux, acesso em 20/01/2010). O território, segundo esse autor, é o domínio do animal, mas quando o animal sai desse território, ele desterritorializa-se, ou seja, experimenta outros lugares, aventura-se. Além do território do animal, que tem um mundo específico, existe um território do homem, que vive a vida do mundo, pois “Este “mundo específico” dos animais não seria extensível ao homem, que “não tem um mundo”, mas “vive a vida de todo mundo”. Trata-se, portanto, de uma primeira distinção entre as duas territorialidades” (HAESBAERT, R; BRUCE, G, s/d, p.05). A territorialidade do animal e a do homem. Porém, é importante ressaltar que o termo opera uma vasta mudança de escala, que vai “iniciando como território etológico ou animal passamos ao território psicológico ou subjetivo e daí ao território sociológico e ao território geográfico (que inclui a relação sociedadenatureza). Deleuze e Guattari vão ainda mais longe: para eles, território é um conceito fundamental da Filosofia” (HAESBAERT, R; BRUCE, G, s/d, p.05). O território só vale no movimento do qual se sai. Não há território sem um vetor de saída, sem a desterritorialização. Ao sair do território, o homem, por exemplo, sofre a desterritorialidade, ou seja, o deslocamento para outro lugar, e nesse deslocamento há a reterritorialização. Assim, a ideia de território toma amplitude efetiva. A noção de território aqui é entendida num sentido muito amplo, que ultrapassa o uso que fazem dele a etologia e a etnologia. Os seres existentes se organizam segundo territórios que os delimitam e os articulam aos outros existentes e aos fluxos cósmicos. O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio da qual um sujeito se sente “em casa”. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto de projetos e representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos (GUATTARI, F; ROLNIK, S, 1996, p.323). Com isso, o conceito de território é de certa forma um agenciamento ( agenciamentos que são coletivos de enunciação e agenciamentos maquínicos de corpos), sendo possível ser territorializado e desterritorializado. Assim, “As territorialidades são, pois, atravessadas, de um lado a outro, por linhas de fuga que dão ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 19 prova da presença, nelas, de movimentos de desterritorialização e reterritorialização” (DELEUZE, G; GUATTARI, F. 1995, p. 71). A desterritorialidade é movimento pelo qual um território é abandonado e a reterritorialização é um movimento de construção de um território. Territorialização e desterritorialização é um processo em conjunto, não são separados um do outro. Por isso, quer-se dizer que uma “subjetividade desterritorializada” atua pelo movimento, pelo deslocamento, pelo agenciamento, ela torna-se criadora, pois se constitui no movimento de territorialidade, desterritorialidade e reterritorialidade. Assim, a ideia de subjetividade, pensada por Deleuze e Guattari, configura traços nesses movimentos de territorialidade e desterritorialidade que se fazem por velocidades e lenditões. Portanto, é possível afirmar que há uma defesa de uma “subjetividade desterritorializada” que fomenta modos de vida, modos que não são constituídos por uma fixidade, pois suas relações emanam do fora, dialoga com imanência, com a vida. Sua fixidade é só para ser fluxo novamente, produzindo paisagens que não são extremas, mas um mundo desterritorializado que postula relações, configurando um porvir paisagem que sempre vai se povoando, despovoando e aglomerando dimensões de diferentes formas, rejeitando a unidade do eu individual. Quando se desterritorializa, jamais isso acontece isoladamente, sem vizinhança, sem matilha, sem agenciamentos, sem encontros. Portanto, reterritorializar não quer dizer o retorno a uma territorialidade, “implica necessariamente um conjunto de artifícios pelos quais um elemento, ele mesmo desterritorializado, serve de territorialidade nova ao outro que também perdeu a sua” (DELEUZE, G; GUATTARI, F. 1996, p.40, 41). Daí, tem-se todo um sistema de reterritorialização, profundo e de complexos movimentos, que age, que coordena e que coloca os corpos em conexão. Então, a subjetividade deriva do bando, não é um eu fincado em si mesmo, assim, é excluído o buraco central ordenador, não há mais interiorioridade que apresente um muro, uma tela ou uma instalação de uma só face, mas uma espécie de mistura, um entre. Há uma subjetividade que dialoga com o outro. A subjetividade se faz e se desfaz por essa geografia da desterritorialidade e da territorialidade, e é exatamente esse movimento que promove a criação, a invenção, a singularização. Assim, pode-se dizer que Deleuze e Guattari entendem a subjetividade como modos de existência que se fomentam diante de uma estética e de uma ética, porque não se movimentam pela moralidade, pelo julgamento, pelo dever ser, mas pelo ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 20 exercício construtivo de si, subjetividade singular. Nesse movimento, há a presença do que Deleuze chama de dobra, que seria entendida como uma espécie de resistência a tudo aquilo que deseja sujeitar e impor; a dobra é uma mostra daquilo que não se deseja e não se quer como posto, dado pela máquina de controle e pelos sistemas de produção dissimulados. Ela seria uma curvatura dobrada sobre dobra, seria uma flexão, uma elasticidade, de modo que a subjetividade não se separa dos seus processos de subjetivação, de singularização, sendo a dobra um tecido, uma resistência. Dessa forma, Deleuze afirma que a força plástica resiste nos mecanismos, e esta é sempre insuficiente para dar conta de tudo que seja vivente. As forças plásticas são muito mais maquínicas do que mecânicas. Sempre a subjetividade desvia, opera movimentos, desterritorialidade e territorialidade. A dobra sempre atravessa, sempre passa entre outra dobra. Assim... dobrar-desdobar já não significa simplesmente tender-distender, contrair-dilatar, mas envolver-desenvolver, involuir-evoluir. O organismo define-se pela sua capacidade de dobrar suas próprias partes ao infinito e de desdobrá-la não ao infinito, mas até o grau de desenvolvimento consignado à espécie (DELEUZE, G. 1991, p. 22). Portanto, dobrar é diminuir, operar com uma certa lentidão, e desdobrar é aumentar, crescer. Contudo, é importante afirmar que a dobra é dobrada duas vezes pela força plástica e elástica. Mesmo em pequenos movimentos, ou em movimentos lentos, a vida não cessa de fazer sua atividade de dobra e da dobradura. Se a subjetividade opera a dobra, a dobradura sempre desdobra, há sempre graus de movimentos de subjetivação, de singularização, abre-se, acrescenta-se. Assim, para Deleuze, toda dobra vem de uma dobra, há sempre uma dobra de ou entre dois (DELEUZE, G., 1991). Subjetividade e subjetivação estão sempre implicadas, é isso que fomenta outros modos de experiências. A dobra é uma forma de apoio, de resistência, uma zona, um modo de respirar. Tal movimento fomenta sua construção em um lado de fora, o exterior, e marca um território, mas também a sua saída, sua desterritorialidade. Ela fomenta o possível, ela habita uma espécie de limite daquilo que se é, que não é uma “interioridade”, nem uma essência, mas é uma espécie de traço. ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 21 Assim, se Deleuze e Guattari desfazem o sujeito, o eu, eles sugerem uma impessoalidade por entenderem que a subjetividade não é fixa, portanto, é necessário o enfrentamento com o estranho, com o fora, e é isso que permite também resistir ao poder, à imposição e ao controle. Enfrentar a vida, o desconhecido, tentar desvendar os agenciamentos que formam, que controlam e que sujeitam, é saber construir novos mundos, novos espaços de vida, novas formas de ver e pensar o mundo. Isso não alarga só a singularidade, mas alarga tudo que a cerca, assim, são fomentados um novo mundo, uma nova forma de vida. Isso remete aos processos de singularização, Processo de singularização: uma maneira de recusar todos esses modos de endocodificação preestabelecidos, todos esses modos de manipulação e de telecomando, recusá-los para construir, de certa forma, modos de sensibilidade, modos de relação com o outro, modos de produção, modos de criatividade que produzem uma subjetividade singular (GUATTARI, F; ROLNIK, S, 1996, p.17) Portanto, entende-se que a desterritorialidade apresenta novos modos de vida, pois é aquilo que está em desterritorialidade, em descentramento, que escapa ao dado, ao controle. Então, a “subjetividade desterritorializada” torna-se uma máquina de guerra, com suas combinações heterogêneas, polifônicas, tornando-se uma trama e ao mesmo tempo quebrando toda e qualquer binaridade, fissurando os corpos disciplinados, saltando para além dos modos significado e significante, para além dos estratos organicistas. Ela forma uma espécie de singularização existencial ligada ao desejo de viver, de construir outros modos possíveis de mundo, de existência, buscando novos tipos de vida (GUATTARI, F; ROLNIK, S., 1996). Pode-se dizer que Deleuze e Guattari sugerem uma subjetividade que cria a sua intensidade no corpo sem órgãos- CsO8, pois se entende que a “subjetividade desterritorializada” rejeita a consciência repressora, o juízo dado, e, enfim, explora uma subjetividade desejante que não receia o outro, o contato com o divergente, o diferente, ao contrário, o outro é uma prodigiosa intensidade. Sendo assim, será necessário negar o organismo para poder encontrar a potência e a vitalidade do mundo e da vida com toda a 8 Sigla criada por Deleuze e Guattari para representar o nome “corpo sem órgãos”. Para um maior esclarecimento do termo é interessante conferir os seguintes textos: LINS, Daniel. A metafísica da carne: que pode o corpo. In: Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo. Daniel Lins e Sylvio Gadelha (orgs), Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002, p.67, 80; LAPOUJADE, David. O corpo que não agüenta mais. In: Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo. Daniel Lins e Sylvio Gadelha (orgs), Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002, p.81, 90; GIL, José. O corpo paradoxal. In: Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo. Daniel Lins e Sylvio Gadelha (orgs), Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002, p.131, 147. ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 22 sua força trágica e transgressora. O corpo sem órgãos é uma transgressão à subjetividade edificante, ele mesmo fomenta modos de subjetivação. O corpo sem órgãos se desfaz da consciência, do eu totalitário, guardião dos sentidos e das verdades, e libera as multiplicidades, os acontecimentos, e multiplica rostos, cabeças, personagens, tornando-se uma povoação, porém isso não é feito sem sofrimento, sem rupturas, sem dor. Esse é o paradoxo: encontrar na doença, no sofrimento, a grande saúde; encontrar na dor a alegria, pois, segundo Deleuze, sofrer é exatamente se expor, estar fora, ser afetado, já que o corpo não deixa de se submeter ao sofrer dos encontros e desencontros, dos acertos e desacertos, das pátrias e dos despatriamentos. Diz Lapoujade... O corpo deve primeiramente suportar o insuportável, viver o inevitável. É o sentido do corpo sem órgãos em Deleuze: que o corpo passe por estados de torção, de desdobramentos que um organismo desenvolvido não suportaria. Todos os textos sobre o Corpo-sem-órgãos são, no fundo, textos de embriologia. Há em Deleuze uma verdadeira embriologia transcendental: o corpo ovo. Como suportar, então, o insuportável, como viver o inevitável (Como criar para si um Corposem órgãos?) (LAPOUJADE, D. 2002, p. 87) A questão reside em saber o que pode o corpo, como deve manter seus mecanismos de defesa, de resistência, como suportar certas inferências para depois encontrar sua força, pois seus agenciamentos não são sem dor e sem conflitos. Esse corpo, que é um povoamento, precisa também construir mecanismos de resistência quando opera a dobra. Porém, construir um processo de defesa do sofrimento, da dor, não é se manter distante e receoso ao seu enfrentamento, pois é na sua exposição com o fora que o corpo aumenta sua potência. É na altura do mais sutil, do mais baixo, que pode estar presente a fortaleza do corpo sem órgãos, assim, dizem Deleuze e Guattari, o corpo sem órgãos “Não é uma noção, um conceito, mas antes uma prática, um conjunto de práticas. Ao Corpo sem Órgãos não se chega, não se pode chegar, nunca se acaba de chegar a ele, é um limite” (DELEUZE, G; GUATTARI, F. 2006, p.9). Ele é um exercício de força, de interação com o mundo, e só pode exercitar a sua potência quando deseja a vitalidade. Diz Daniel Lins que “O CsO não cessa de desfazer o organismo, de fazer passar partículas a-significantes, intensidades puras. O CsO é uma espécie de máquina abstrata à qual só os agenciamentos importam.” (LINS, D. 2004, p. 74). ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 23 Dessa forma, o tema da subjetividade nesses autores torna-se uma potência muito mais interessante e implicante quando conectada com sua perspectiva de um corpo sem órgãos que não cessa o desejo de devorar, de agenciar, de somar forças, de enriquecer com o contato e energia do outro, como visto nas imagens de Escher. Ele é um corpo sem modelo, sem uma chegada, não determinado, pois é desterritorializado, um provedor de devires que esmaga toda linearidade, pois... Para voar, na cena ou na vida, na cena como na vida, é preciso desfazerse dos órgãos, desembaraçar-se do juízo e deixar-se possuir como num ritual de iniciação xamanística, pela leveza de uma bebedeira adstêmia, por uma estética do corpo ao qual nada falta: nem verdade, nem juízo, nem órgãos. Começa aqui o teatro da crueldade, e com ele um sopro de vida. (LINS, D. 2004, p. 76) Com isso, o tema da “subjetividade desterritorializada” exige efetivamente uma estética da existência, um abandono radical do sedentarismo reinante, um abandono das formações essencialistas, da disciplinarização dos corpos, sendo a favor de uma subjetividade nômade, de uma singularização. Isso requer coragem para deixar viver o experimento. Deleuze, Guattari, Escher e Magritte convidam para essa nova legião, para essa nova subjetividade transgressora, porém com um sabor de vida, de existência. Com isso, a ideia de “subjetividade desterritorializada” opera com a negação efetiva da identidade, da unidade e da centralidade para pensar a subjetividade por movimentos, por territorialidade e desterritorialidade, por dobras e por singularidade. Contudo, não é possível negar que esses dois pensadores operam suas filosofias com uma complexidade conceitual, assim, cada conceito posto varia e transversaliza em outros, o que leva a construção textual a vazar para outros conceitos. ESCRITURA FINAL V Escrever não é certamente impor uma forma (de expressão)... (Gilles Deleuze) Os textos de Deleuze e Guattari sugerem uma clandestinidade, pois apostam também em tudo aquilo que escapa a consciência, o controle, e fazem um convite a se mergulhar na imanência, na vida, naquilo que sempre escapa. Assim, a filosofia desses ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 24 dois autores possibilita pensar em fissuras, em rachar a interioridade, a universalidade, a unidade. Há uma sugestão em desfazer o rosto, a imagem, o que leva à questão sobre o que se está fazendo de si para finalmente pensar uma nova expressão de existência. Deleuze sem dúvida... Engendra à sua maneira um combate permanente contra a representação de um eu imbuído de um singular sem singularidade que impõe a tirania do eu-déspota. Um eu, portanto, sem o outro; um eu contra o outro, um eu alicerçado num tempo psicótico cujo axioma fundamental é a anulação, por meio da degeneração da alteridade. O eu-déspota, filho da moral e da verdade verdadeira (...) ( LINS, D.2001, p. 105) Contra esse eu-déspota, filho da moral e da verdade, Deleuze e Guattari sugerem uma moral ligada à vida e não mais à verdade verdadeira. Dessa maneira, a subjetividade não é mais atravessada por um eu centralizado, dono e senhor de si, mas ela decorre da afirmação e da relação com o outro, com a alteridade. Ela é construída por suas relações e invenções, promovendo para si desterritorialidades. Deleuze e Guattari, artesãos de um outro pensamento, buscam novas invenções, experimentos com a vida. Para aquele sujeito metafísico, engendrado pela verdade, pela unificação de si, pelo pensamento da coerência e da identidade, eles sugerem novos modos de criação, de subjetivação, para além da lógica da semelhança e do igual. Ora, se a subjetividade para esses autores deve ser produzida, ela não pode ser entendida como um porto, pois tudo consiste em fazer a dobra com o fora, curvar a linha, e isso não pode ser visto como uma simples forma de proteção, mas antes é a maneira de enfrentar também a linha do fora. Ninguém poderá fazer a experiência pelos outros, isso já alertava Nietzsche em Schopenhauer como educador, pois o processo de constituição é um trabalho que será feito por cada um quando ordena um outro modo de agir-pensamento, agir-experienciar. Essa é a experiência da singularização realizada na violência, na afirmação da vida e da sua potência ativa e criativa. É importante ressaltar nessas considerações finais que alguns conceitos que foram usados neste ensaio estão sendo posto já de forma manchada, borrada, pela posição da escritura aqui defendida. Tal leitura toma um exercício efetivo de interpretação, de exercício textual e de força do pensamento, que talvez esteja ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 25 efetivamente alargado, mas não se pode escapar dos deslizamentos quando se mergulha nas águas do pensamento da diferença. O ensaio de forma alguma tem a pretensão de fechar a interpretação e nem de afirmar que ele deve ser o caminho da leitura para essa questão. O que se pretende é provocar inferências e exercitar o pensamento, assim como novas maneiras de escritas. Espera-se que essa reflexão possa contribuir para se repensar a ideia de subjetividade unificada, assim como contribuir para repensar a ideia de identidade, de unidade do ser, para navegar em outros mares, em outros modos de subjetivações, para traçar outros mundos possíveis afirmados pela força e pela potência alegres. Sem dúvida, isso pode ser uma nova linha de fuga mais condizente com o humano e com a vida. Por isso, o fundamental é se por à experimentação. Experimente! Experimente novos modos de vida. É essa a exigência sugerida por Deleuze e Guattari, mas que não é fácil diante de uma vida padronizada sob o solo da mediocridade, da moralidade e da identidade. BIBLIOGRAFIA ARTAUD, A. Homem-árvore. www. escola nômade.com, Acesso em 05/08/2011. BECKETT, S. O inominável. Trad. Ana Helena Souza. São Paulo: Globo, 2009. DESCARTES, R. Discurso do Método. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1999. _____________. Meditações. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1999. COTTINGHAM, J. A Filosofia de Descartes. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1986. DELEUZE, G. Diferença e Repetição. Trad. Luiz Orlandi, Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2006. ___________. Différence et répétion. Paris: PUF, 1969. DELEUZE, G; PARNET, C. Diálogos. Trad. José Gabriel Cunha. Lisboa: Relógio D‟água Editores, 1996. DELEUZE, G. Lógica do Sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 2007. ___________. A dobra: Leibniz e o Barroco. Trad. Luiz Orlandi. Campinas, São Paulo: Papirus, 1991. ___________. A Imanência: uma http./pt.scribd.com/doc/Deleuze-Gilles. o publicado em Philosophie, n 47, 1995. ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br vida. Acesso Trad. em Tomaz Tadeu 21/05/2011. da Silva Originalmente 26 ___________. Crítica e Clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed, 34, 1997. DELEUZE, G. ; GUATTARI, F. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia.V.1. Trad. Aurélio Guerra neto e Celia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. _________________________________. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. V. 3. Trad. Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Claúdia Leão e Suely Rolnik. Rio de Janeiro: Ed 34, 1996. ________________________________. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. V. 4. Trad. Suely Rolnik. Rio de Janeiro: Ed 34, 1997. ESCHER. M. C. site: www.mcescher.com. Acesso em 09/02/2010. GUATTARI, F. Caosmose: um novo paradigma estético. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Claúdia Leão. São Paulo: Ed. 34, 1992. GUATTARI, F. ; ROLNIK, S. Micropolítica: Cartografia do desejo. Petropólis: Vozes, 1996. GIL, J. O corpo paradoxal. In: Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo. Daniel Lins e Sylvio Gadelha (orgs), Rio de Janeiro: Relumere Dumará, 2002, p.131, 147. HAESBAERT, R; BRUCE, G. A desterritorialidade na obra de Deleuze e Guattari. Site. www.uff.br/geograhia/ojs/index.php/geografhia/article, Acesso em 20/01/ 2012. LINS, Daniel. Juízo e verdade em Deleuze. Trad. Fabien Pascal Lins. São Paulo: Annablume, 2004. __________. A metafísica da carne: que pode o corpo. In: Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo. Daniel Lins e Sylvio Gadelha (orgs), Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002, p.67,80. __________.Sujeitos e Devires: o corpo-drogado. In: LINS, D (org) Nietzsche e Deleuze: pensamento nômade. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 2001. LAPOUJADE, D. O corpo que não agüenta mais. In: Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo. Daniel Lins e Sylvio Gadelha (orgs), Rio de Janeiro: Relumere Dumará, 2002, p.81-90. MAGRITTE, R. Obras. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1995. MARTON, S. Estravagâncias: Ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. São Paulo: Discurso editorial, Editora Unijuí, 2000. NIETZSCHE, F. Crepúsculo de los Ídolos. Introducción e traducción y notas de Andrés Sánchez Pascual. Madrid: Alianza Editorial, 1998. ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 27 ____________. Schopenhauer como educador. Trad. De Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2003. MONTAIGNE. Os ensaios. Trad. e notas de Rosa Freire D‟aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. MARTINS, A; SANTIAGO, H; OLIVA, L, C. (orgs). As ilusões do eu: Spinoza e Nietzsche. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. O abecedário de Gilles Deleuze. Acesso em 02/02/2010. RIMBAUD, A. Rimbaud Livre. Trad. Augusto Campos. São Paulo: Perspectiva, 2009. SILVA, F, L. Descartes: A metafísica da modernidade. São Paulo: Moderna, 1993. ALEGRAR nº09 - jun/2012 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br