UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU MESTRADO PROFISSIONAL EM PSICANÁLISE, SAÚDE E SOCIEDADE Lucia Conceição Santos de Almeida RECURSOS HUMANOS À LUZ DA PSICANÁLISE – UMA REFLEXÃO POSSÍVEL. Rio de Janeiro 2011 Lucia Conceição Santos de Almeida Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade Área de Concentração: Psicanálise, Sociedade e Práticas Sociais RECURSOS HUMANOS À LUZ DA PSICANÁLISE – UMA REFLEXÃO POSSÍVEL. Dissertação apresentada à Banca Examinadora do Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida, como requisito ao Título de Mestre em Psicanálise, Sociedade e Práticas Sociais. Orientadora: Profª Drª Maria Cristina C. Poli Rio de Janeiro 2011 FOLHA DE APROVAÇÃO Lucia Conceição Santos de Almeida RECURSOS HUMANOS À LUZ DA PSICANÁLISE – UMA REFLEXÃO POSSÍVEL. Dissertação apresentada à Banca Examinadora do Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida, como requisito ao Título de Mestre em Psicanálise, Sociedade e Práticas Sociais. Aprovada em 25 de março de 2011. BANCA EXAMINADORA _______________________________________________________ Profª. Drª. Maria Cristina C. Poli Universidade Veiga de Almeida – UVA _______________________________________________________ Profª. Drª. Maria Alice Ferruccio Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ _______________________________________________________ Profª. Drª. Sonia Xavier de A. Borges Universidade Veiga de Almeida – UVA DIRETORIA DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTU SENSU E DE PESQUISA Rua Ibituruna, 108 – Maracanã 20271-020 – Rio de Janeiro – RJ Tel.: (21) 2574-8871 - (21) 2574-8922 FICHA CATALOGRÁFICA A447 Almeida, Lucia Conceição Santos de Recursos humanos á luz da psicanálise; uma reflexão possível / Lucia Conceição Santos de Almeida, 2011. 85f. ; 30 cm. Digitado (original). Dissertação (Mestrado) – Universidade Veiga de Almeida, Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade, Rio de Janeiro, 2011. Orientação: Profª. Drª. Maria Cristina C. Poli. Ficha Catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da UVA Biblioteca Maria Anunciação Almeida de Carvalho 1. Psicanálise. 2. Recursos humanos I. Poli, Maria Cristina C. (orientador). II. Universidade Veiga de Almeida, Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade. III. Título. CDD –150.195 Ficha Catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da UVA Biblioteca Maria Anunciação Almeida de Carvalho Dedico este trabalho ao meu marido Sergio: grande incentivador e parceiro das minhas aspirações e desafios. A minha filha Ana Beatriz: luz da minha alma, grande exemplo de superação e amor à vida. A meus pais: mestres na vida. À minha amada avó Rosa: exemplo e saudade eterna. Aos meus amigos na MSA: apoio nas horas mais difíceis. A minha orientadora: pela paciência e apoio para que eu pudesse entender que não estava só neste percurso. RESUMO A partir da análise das atribuições da área de Recursos Humanos, propomos promover um debate interdisciplinar num diálogo com a psicanálise, pois, embora os estudos sobre as organizações tenham trazido inúmeras contribuições auxiliando as empresas em sua busca por espaços de trabalho mais humanizados, não queremos deixar de problematizá-las, na medida em que elas podem produzir um modelo instrumentalizado e instrumentalizador com tal rigor pragmático e metodológico, que acabe inviabilizando a escuta do trabalhador padronização de a um outro serviço lugar dos senão objetivos de da agente de empresa. A Psicanálise, por sua vez, nos traz conceitos que não só possibilitam novas significações do significante trabalho, como também um novo sentido para o que aprisiona o sujeito em significações como sofrimento e alienação. Refletindo sobre as mudanças na sociedade, nos movimentos da administração e analisando as características emergentes das relações de trabalho como a intensa flexibilidade; visão de curto prazo; ênfase em valores como cooperação e confiança em contraponto com o estímulo ao individualismo e a competitividade; o gradual desaparecimento de carreiras estáveis e de vínculos profissionais duradouros, discorremos sobre a possibilidade do profissional de Recursos Humanos poder ocupar um lugar de escuta fora do modelo de instrumentalização da subjetividade do trabalhador, utilizando a ótica da Psicanálise e seus referenciais teóricos. Palavras-chave: Psicanálise, Cultura, Recursos Humanos, Trabalho. ABSTRACT Analyzing the attributions of the Human Resources area, we proposed an interdisciplinary approach to promote a dialogue with psychoanalysis. Although studies on organizations have brought many contributions assisting companies in their challenges for more humane working spaces, we considered important to have another view of them, understanding that they can produce an instrumented model with such rigor and pragmatic methodology, which can cause a lack of listening of the worker and perform as an agent of standardization in the service of corporate objectives. Psychoanalysis, in turn, brings us not only concepts that allow new meanings of work significant, but also a new meaning for that imprisons the workers in significations such as suffering and alienation. Reflecting on the changes in society, in the movements of the administration and analyzing the characteristics of the emerging labor relations: intense flexibility, short-term vision, emphasis on values such as cooperation and trust as opposed to the encouragement of individualism and competitiveness, and the gradual disappearance of career stable and lasting professional ties, we discussed the possibility of a professional from Human Resources can occupy a place of listening outside the model of instrumentalization of the worker subjectivity, using the lens of psychoanalysis and its theoretical frameworks. Keywords: Psychoanalysis, Culture, Human Resources, Labor. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ........................................................................................ 08 2. O CONTEXTO SOCIAL DO TRABALHO ............................................ .. 15 3. CONTEXTO DA ADMINISTRAÇÃO DO TRABALHO ........................... 32 4. RECURSOS HUMANOS À LUZ DA PSICANÁLISE ............................. 43 4.1. Psicanálise e RH – interlocuções possíveis .............................. 57 4.2. France Telecom – um caso .......................................................... 66 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................... 71 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁGICAS ........................................................ 82 8 1. INTRODUÇÃO Nestes últimos 20 anos, temos atuado na área de Recursos Humanos (RH) dentro de empresas dos mais diferentes segmentos de mercado, nos levando a entender que a sua função essencial é atender aos objetivos estratégicos da empresa no que se refere aos processos e instrumentos aplicados à Gestão de RH, tendo como resultado esperado maior incremento e manutenção da performance do trabalhador, garantindo assim a sobrevivência da empresa através das pessoas. Para alcançar esses objetivos, os teóricos da Gestão de RH compartimentaram sua atuação para que possam potencializar todos os pontos de contato com o trabalhador, desde a captação dos profissionais até os programas sociais, estabelecendo identificações positivas que reforcem comportamentos de alta performance. No sentido de uma melhor compreensão da atuação dos profissionais de Recursos Humanos nas empresas e, posteriormente, como a psicanálise pode contribuir com seus referenciais teóricos a esta área, descrevemos na Figura1, quais os principais pontos deste contato com o trabalhador, denominados de subsistemas de RH, que permeiam as práticas de RH. GESTÃO DE RECURSOS HUMANOS RECRUTAMENTO & SELEÇÃO ALOCAÇÃO E AVALIAÇÃO DE DESEMPENHO REMUNERAÇÃO TREINAMENTO E DESENVOLVIMENTO RELACIONAMENTO INSTITUCIONAL SISTEMAS DE INFORMAÇÃO Figura1. Adaptado de (CHIAVENATO, 1999, p. 12) O primeiro deles é o subsistema voltado para agregar pessoas e tem como base o recrutamento e seleção de profissionais para as mais diversas funções dentro das empresas. Para tanto, utilizam-se técnicas de avaliação que pretendem tornar possível a verificação da adequação do candidato à função em aberto, sendo a 9 principal delas a entrevista individual. Porém outras técnicas também são utilizadas, como dinâmicas de grupo, testes comportamentais ou psicológicos, entrevistas em grupo e situacionais, entre outras. O segundo é aplicar pessoas, tendo como objetivo entender como cada elo da cadeia produtiva está dividido e como cada função precisa ser definida para garantir os resultados esperados. Neste subsistema também está inserida a avaliação de desempenho, que mede os resultados esperados versus os resultados obtidos e recompensa os trabalhadores por eles. Tanto no levantamento de cargos quanto na avaliação de desempenho o trabalhador tem a oportunidade de dizer o que faz, como faz sua atividade e as dificuldades que encontra para alcançar os resultados definidos. O terceiro é recompensar pessoas e trata-se da composição da definição e manutenção da remuneração do trabalhador, entendendo remuneração o salário e demais benefícios oferecidos pela empresa, como: previdência privada, plano de saúde e odontológico, participação nos resultados. Dentro deste subsistema também está incluída a pesquisa de remuneração que avalia junto ao mercado o quanto atrativa é a empresa para buscar novos profissionais e manter seus potenciais nos seus quadros. O quarto é desenvolver pessoas, sendo seu objetivo treinar e desenvolver os trabalhadores para suas funções, para desafios futuros e para as mudanças que surgem ao longo da história da empresa, como certificações, fusões e sucessões. Esta é uma atuação importante do RH, pois em geral se baseia em levantamentos das necessidades e expectativas pessoais e organizacionais, que possam ser atendidas essencialmente através do conhecimento. Nesta função a ação de comunicação é essencial para divulgar, sensibilizar e manter todos os envolvidos no mesmo foco. O quinto é manter pessoas. Este é o subsistema que trata da aderência do trabalhador junto à empresa, ou seja, o estilo de gestão, os programas de 10 reconhecimento, os programas de sugestões, os códigos de conduta e valores institucionais, os programas de qualidade de vida, as relações sindicais. E o último é monitorar pessoas através de um sistema de informações sobre os trabalhadores, que sustentam as decisões de gestão quanto às demissões, admissões, mudanças de estrutura, entre outros indicadores para a melhoria do desempenho individual ou coletivo. Analisados, mesmo que superficialmente, os subsistemas de RH, verificamos uma configuração de conceitos e práticas que apontam para uma possibilidade de incremento da performance do trabalhador e do aumento de satisfação no trabalho. Porém, ao longo do nosso percurso profissional, acompanhando os trabalhadores dentro da empresas, o que pudemos perceber é um distanciamento entre os resultados esperados dessas ações e o que se traduz em realidade. Esta percepção pôde ser captada a cada aplicação dos subsistemas acima referidos. Tomamos por exemplo, os processos de recrutamento e seleção, que são utilizados para seleção novos colaboradores na empresa. As tecnologias atuais de avaliação de seleção nos sugerem métodos quantitativos a fim de reduzir a subjetividade do recrutador. Porém, a avaliação de um candidato é composta de outros aspectos, como a adequação à cultura da empresa, aos futuros desafios profissionais, histórico familiar, entre outros que surgem de uma abordagem menos matemática do candidato. Sendo assim, se aquilo que diferencia em candidato de outro candidato é a sua singularidade, perguntamos como não escutá-lo para além do dado objetivo de seu percurso profissional. Em muitas entrevistas individuais e dinâmicas de grupo por nós realizadas, pudemos registrar algumas falas de candidatos, como: “existe vida após o trabalho”; “é importante separar a vida profissional da pessoal”; “precisamos ter um tempo depois do trabalho para se fazer aquilo que se gosta”. Pensando nestas falas extraídas do contexto de avaliação e exposição profissional do candidato sobre suas expectativas pessoais e profissionais, nos 11 questionamos, sem ainda aprofundar este assunto no momento, sobre as conseqüências da não escuta do que o candidato trás como significantes em relação ao trabalho e em relação a outros significantes como família e escolhas pessoais. Nas avaliações de desempenho, muito embora encontremos técnicas bastante convincentes de que o trabalhador está sendo avaliado em sua integralidade, percebemos que questões complexas, que a princípio poderiam ser ouvidas como um processo de identificação com o líder que requer outro endereçamento, podem estar causando uma redução nos resultados esperados e que não há quantificação que aponte para esta questão. Outra experiência importante em nossa atuação é o treinamento e desenvolvimento de profissionais. Este trabalho tem por objetivo a indicação de treinamentos que possam desenvolver as potencialidades do trabalhador nas suas atividades atuais e futuras. O mapeamento dos treinamentos é feito através de alguns indicadores importantes de gestão: 1) Mapeamento de competências; 2) Avaliação de desempenho; 3) Mudanças estratégicas; 4) Diagnósticos de cultura, clima, gestão, entre outros; 5) Novas contratações ou progressões. Encontramos, em algumas empresas, situações onde os trabalhadores não são consultados quanto aos treinamentos que irão realizar e quando o são, (através de formulários ou em raros momentos em entrevistas) percebe-se que a visão da empresa sobre a capacitação e desenvolvimento daquele trabalhador está, muitas vezes, dissonante com a sua necessidade ou desejo. Como exemplo, podemos mencionar alguns treinamentos, por nós ministrados, que atendem alguns itens de capacitação, e nos defrontamos por vezes com 12 profissionais que não sabem o que estão fazendo naquele evento, o que se espera dele, ou mesmo o que ele espera de seu futuro a partir das informações que estão sendo repassadas e do qual a empresa espera uma resposta. O trabalho que acreditamos ser uma das maiores fontes de inspiração para este trabalho é o diagnóstico de gestão. Ele tem por método entrevistas abertas e diretivas com os envolvidos, investigando primeiramente as expectativas do solicitante sobre o diagnóstico a ser realizado, a quem se destina e o contrato de confidencialidade. Com este trabalho realizamos um levantamento da história organizacional; situações importantes vividas pelos envolvidos no diagnóstico (tanto positivas como negativas); emoções ligadas a esses fatos; metáforas trazidas pelo entrevistado ou sugerida a partir de seu discurso e ao final a conciliação de demandas: empresa e gestor. Todo este levantamento gera um Relatório Final identificando oportunidades de reflexão e ações sobre as questões levantadas. Trazemos ainda, outra experiência que reforça nosso desejo de avançar em nossa atuação utilizando a psicanálise como referencial teórico: a assessoria a empresas que estão em processo de adequação de suas estruturas para receber pessoas com diferentes modalidades de deficiências. O trabalho é constituído de avaliação da cultura organizacional verificando impasses e valores restritivos ou flexíveis para aceitação da diferença, mobilização e sensibilização através de palestras e depoimentos, avaliação dos postos de trabalho para adequação de espaços e de instrumentos de trabalho. A questão central do trabalho de inserção de pessoas com deficiência está na possibilidade de aceitação por parte dos trabalhadores das diferenças, seja ela pela via aparente da deficiência física, seja pela via da singularidade como tratada na psicanálise. Neste embate entre o princípio da normalidade e o princípio da singularidade, há em causa um desconforto no confronto com o desconhecido. 13 Foi atuando, principalmente nos processos acima referidos, ouvindo as empresas, na figura de seus gestores, e ouvindo os trabalhadores; que consideramos uma pergunta recorrente: que relevância há neste ouvir que nos impele a contribuir para a melhoria das relações entre a organização e o trabalhador. Ao escutar os trabalhadores sobre suas questões profissionais e também aquelas de cunho mais pessoal, percebe-se que a função de escuta, nos processos de seleção, avaliação de desempenho, treinamento e outros subsistemas que nos confrontam com a fala do trabalhador, fica à deriva, não havendo porto seguro que a acolha dentro das organizações, no sentido de uma prática habitual dos profissionais que se dizem agentes da melhoria das relações humanas no trabalho. Nas possibilidades que se apresentam, dentro dos subsistemas de RH, temos atuado nesta função faltosa apoiando-nos na escuta dos trabalhadores para além dos dados quantitativos esperados, e traduzindo essas falas em ações concretas de melhoria de processos e relações de trabalho. Enfim, influenciados pela teoria psicanalítica em função de nossa atuação clínica e nos surpreendendo, muitas vezes, escutando o trabalhador para além do que seria próprio de nossa atuação como profissional de RH, nos propusemos a mergulhar na questão da escuta analítica nos subsistemas de recursos humanos, onde estão inseridos os processos de Recrutamento e Seleção, Avaliações Diagnósticas e Treinamento, acreditando que poderemos nos apropriar dos referenciais da psicanálise para instrumentalizar os profissionais de RH a serem melhores ouvintes de seus clientes internos. Numa das defesas de dissertação que assistimos, fomos surpreendidos com o tema a respeito do trabalho institucional com coveiros; recortamos uma fala que nos colocou em alerta sobre o nosso dilema dentro das organizações “onde existe sujeito de um sofrimento comum ali está a psicanálise como possibilidade de escuta e endereçamento para a cura”. 14 Impregnado pela instituição e suas formas de alienação, o sujeito fala na busca de um sentido. Mas fala em um espaço não próprio para a atuação de um psicanalista, pois, a princípio, não haveria espaço para tal nas organizações. Ele fala a um profissional que de alguma forma tem uma posição privilegiada de escuta, que codifica sua demanda e endereça-a a outro espaço. Mas esse endereçamento, esta primeira escuta, já não seria uma escuta preliminar em psicanálise? Não seria a demanda do trabalhador envolta de metáforas laborais para dar conta de suas questões mais subjetivas? Assim, esta dissertação se utiliza da pesquisa bibliográfica de artigos acadêmicos, aulas e palestras pertinentes ao tema, assim como de nossa experiência profissional, tendo um estudo de caso para ilustrar nossa hipótese. . Iniciamos nossa trajetória de pesquisa, percorrendo os movimentos da produção industrial e os impactos sociais e políticos que influenciam as relações de trabalho até os dias de hoje, tendo como foco principal a problematização da atuação de Recursos Humanos, como possibilidade de ocupar um lugar de escuta fora do modelo de instrumentalização da subjetividade do trabalhador. Nos propomos em adição, promover um debate interdisciplinar num diálogo com a psicanálise, pois, embora a Psicologia Organizacional tenha trazido inúmeras contribuições para a atuação da área de Recursos Humanos, e auxiliando as empresas em sua busca por espaços de trabalho mais humanizados, não queremos deixar de problematizá-la, na medida em que ela pode produzir um modelo instrumentalizado e instrumentalizador com tal rigor pragmático e metodológico, que acabe inviabilizando a escuta do trabalhador de um outro lugar senão o de agente de padronização a serviço dos objetivos da empresa. Finalizando propomos a realização de um Seminário aos profissionais de RH, tendo como objetivo, ressaltar a escuta do trabalhador, como forma de qualificar nossa atuação e gerar resultados mais efetivos ao nosso trabalho. 15 2. O CONTEXTO SOCIAL DO TRABALHO Entendendo que as forças sociais estão intrinsecamente ligadas às transformações do processo laboral e, conseqüentemente, a uma mudança subjetiva da organização do trabalho, escolhemos três sociólogos que descrevem a modernidade e seus impactos nas relações de trabalho e as mudanças em suas representações. São eles: Anthony Giddens (1991), Richard Sennett (1999) e Zigmundt Bauman (2001). Iniciamos assim com uma questão, aparentemente simples, porém desafiadora, sobre o que é, afinal, a modernidade. Anthony Giddens (1991), em seu livro “As conseqüências da Modernidade” descreve a modernidade em referência ao estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII, tendo uma repercussão mundial. Sua característica fundamental é o desatar de todos os nós tradicionais da ordem social, tanto na sua extensionalidade estabelecendo formas de interconexão social que são globais quanto na sua intencionalidade alterando características pessoais de nossa existência. Como resultado mais específico, essa transformação social penetra nas organizações e altera a forma de produção e relações de trabalho. Dentro desta lógica, o desenvolvimento das organizações mundiais modernas criou mais oportunidades para os seres humanos gozarem de uma existência segura e gratificante. Porém, tanto Marx como Durkheim e Weber (apud GIDDENS, 1991, p.20) observavam a era moderna como fonte de fortes turbulências, sendo cada um mais ou menos otimista diante das mudanças e das perspectivas de alteração social. Marx via a luta de classes como fonte de dissidências na ordem capitalista, mas via ao mesmo tempo a emergência de um sistema social mais humano. Durkheim 16 acreditava na expansão para além do industrialismo estabelecendo uma vida social harmoniosa e gratificante, integrada através de uma combinação da divisão do trabalho e do individualismo moral. Já Weber (apud GIDDENS, 1991, p.21) era mais pessimista, vendo o mundo moderno como paradoxal onde o progresso material era obtido apenas à custa de uma expansão da burocracia que esmagava a criatividade e a autonomia individuais. “..., todos os três autores viram que o trabalho industrial moderno tinha conseqüências degradantes, submetendo muito seres humanos à disciplina de um labor maçante e repetitivo.” (GIDDENS, 1991, p.17) Para autores influenciados por Marx (apud GIDDENS, 1991, p.23), a força transformadora principal que modela o mundo moderno é o capitalismo. Neste, não só uma variedade de bens materiais, mas também a força de trabalho tornam-se mercadoria. A era moderna está intimamente ligada à transformação do tempo e do espaço, fomentando relações entre ausentes, localmente distante. “Em condições de modernidade, o lugar se torna cada vez mais fantasmagórico” (GIDDENS, 1991, p.27). Podemos perceber esta mudança através das transações virtuais financeiras com fusos horários díspares e relacionamentos cultivados à distância. Giddens nos leva a pensar também a questão do dinheiro como mais um dos mecanismos de afastamento simbólico da pura mercadoria. O dinheiro pode ser qualquer coisa em qualquer lugar. Entendendo assim “dinheiro”, como um significante cultural, que vai além de seu uso, mas desencadeia uma percepção de que uma ação deverá ter uma reação que está diretamente ligada a sua recompensa. Assim, a lógica estabelecida entre trabalho e recompensas estabelece uma certeza: de que se os sistemas sociais funcionam como se espera que o façam, que existem padrões e regras a serem cumpridos e que nada poderá alterar o curso desta relação. Esta certeza, porém, tem por base uma atitude de alienação, 17 onde se perde algo em benefício da segurança da coletividade, e de confiança de que não haverá ruptura nestes sistemas sociais, negligenciando por vezes as contingências da vida. Assim, nos resta ou vivermos alienados ou em um estado de incertezas onde não há garantias de atendimento as nossas necessidades de existência. Para Giddens (1991), o que é característico da modernidade não é uma adoção do novo por si só, mas a suposição de uma reflexividade, desdobrando a reflexão sobre a própria natureza da reflexão. Assim, não estamos seguros, como em outras eras, onde verdades eram estabelecidas e as relações eram dogmáticas. O que conhecemos hoje talvez possa ser refutado amanhã. Estamos vivendo no campo do devir e, assim, no campo da angústia, onde não podemos estar seguros do conhecimento que nos é dado. Pressupõe ainda um cenário de alta tecnologia, que não tão somente alteram as formas de produção, mas toda a sociedade (transportes, vida doméstica, relações sociais, internet, etc.). A natureza fortemente competitiva e expansionista do empreendimento capitalista implica que a inovação tecnológica tende a ser difusa, mas constante. O sistema administrativo do estado capitalista, e dos estados modernos em geral, tem que ser interpretado em termos de controle coordenado, onde nenhum outro estado pré-moderno conseguiu se aproximar do nível de coordenação administrativa da modernidade. Isto implica em um desenvolvimento de condições de vigilância, que, como o capitalismo e o industrialismo, ascendem da modernidade. Com isso, a supervisão é inserida como uma ferramenta de controle, como descrito por Foucault (apud GIDDENS, 1991, p.47) – prisões, escolas, locais de trabalho, mas caracteristicamente baseada no controle da informação. Cabe aqui esclarecer que para Giddens o capitalismo e o industrialismo são entendidos da seguinte forma: 18 “O capitalismo é um sistema de produção de mercadorias centrado na relação entre a propriedade privada do capital e o trabalho assalariado sem posse de propriedade, esta relação formando o eixo principal de um sistema de classes. O empreendimento capitalista depende da produção para mercados competitivos...” (GIDDENS, 1991, p.61) “A característica principal do industrialismo é o uso de fontes inanimadas de energia material na produção de bens, combinado ao papel central da maquinaria no processo de produção.” (GIDDENS, 1991, p.61) “O industrialismo pressupõe a organização social regularizada da produção, no sentido de coordenar a atividade humana, as máquinas e as aplicações e produções de matéria-prima e bens”. (GIDDENS, 1991, p.62) A emergência do capitalismo, como diz Marx (apud GIDDENS, 1991, p.67), precedeu ao desenvolvimento do industrialismo e na verdade forneceu o ímpeto para sua emergência. A produção industrial e a constante revolução na tecnologia, a ela associada, contribuem para processos de produção mais eficientes e baratos. A transformação em mercadoria da força de trabalho foi um ponto de ligação particularmente importante entre o capitalismo e o industrialismo, porque o “trabalho abstrato” pode ser diretamente programado no projeto tecnológico de produção. O contrato de trabalho capitalista envolve a contratação de trabalho abstrato, ao invés de servidão da “pessoa inteira” (escravidão) – daí a mão-deobra; uma proporção da semana de trabalho, ou do produto. A globalização está intrinsecamente ligada à idéia de modernidade, dentro do conceito de tempo e espaço, com conexões presença/ausência. Ela se refere essencialmente a este processo de alongamento mundial do tempo e espaço. Este é um processo dialético, onde as conseqüências não caminham em uma mesma direção. 19 Muitas empresas multinacionais podem imprimir, pelo seu imenso poder econômico, mudanças culturais nas regiões em que se instalam, visto que muitas vezes têm orçamentos maiores do que as nações em que se estabelecem. Se por um lado temos os estados-nação como principais atores dentro da ordem pública, as empresas são agentes dominantes dentro da economia mundial. Porém em suas relações comerciais entre si, com estados e consumidores, as empresas têm como principal objetivo, e dependência, o lucro. O desenvolvimento industrial teve como aspecto mais óbvio, a expansão global do trabalho, não apenas no que diz respeito à especialização da indústria, mas também à difusão mundial de tecnologias de máquinas, afetando a vida cotidiana, influenciando o caráter genérico da interação humana com o meio ambiente material. A difusão do industrialismo criou um mundo ameaçador, com mudanças ecológicas reais que afetam todo o planeta, porém também transformou as tecnologias de comunicação nos colocando nesta referência de mundo. No mundo moderno, o futuro está sempre em aberto, não somente em termos da contingência comum das coisas, mas em termos da reflexividade do conhecimento em relação aos quais as práticas sociais são organizadas. Nos momentos de crise, o verdadeiro repositório de confiança está no sistema abstrato, na idealização, e não nos indivíduos que o representam. Porém os pontos de acesso a estes sistemas abstratos trazem lembretes de que são operadores de carne e osso, por isso mesmo falível, como ouvidorias, gestores, profissionais de RH, centrais de atendimento, etc.. Giddens toma como exemplo o ar descontraído da tripulação de um avião que surte mais efeito do que as estatísticas sobre as quedas de avião. Por isso o compromisso com o “rosto”, no sentido do contato visual com o outro, mantém a sensação de confiança, mais do que os códigos de ética envolvidos nas diversas profissões. Podemos nos lembrar a célebre frase de César sobre 20 sua mulher Pompéia, mesmo sabendo de sua inocência: “À mulher de César não basta ser honesta, tem que parecer honesta.” Essas características de segurança são encontradas na primeira infância, quando recebemos uma dose básica de confiança que elimina ou neutraliza as suscetibilidades existenciais. A confiança aqui referida não implica somente em contar com a uniformidade e continuidade dos provedores externos, mas também que na possibilidade de confiar em si mesmo. Assim a previsibilidade das rotinas sem importância da vida cotidiana está profundamente envolvida com um sentimento de segurança psicológica, e quando alteradas a ansiedade transborda. Podemos evidenciar esta ansiedade nos processos de mudanças organizacionais, quando são inseridos novos padrões de trabalho ou nos movimentos da economia, que tem como conseqüência reestruturações não só verticais como horizontais. Aquilo que se entendia como certeza de atendimento de expectativas, a organização, se traduz como também submetido a incertezas, seja pela via das demandas diferenciadas do mercado, seja pelo desenvolvimento tecnológico. De forma mais intensa, observamos este fenômeno nos processos demissionais, tanto para aqueles que são desmobilizados quanto para os que permanecem na organização, visto que há uma identificação direta destes últimos com os primeiros, ou seja, “se aconteceu com o outro pode acontecer comigo”. Neste momento, onde não há certezas de respostas adequadas às necessidades do trabalhador, vem à tona a fragilidade desta confiança básica, inaugural da primeira infância. Uma intervenção mínima de escuta, por parte dos profissionais de Recursos Humanos, nos parece que traria resultados de, no mínimo, amparo e acolhimento deste trabalhador, apontando para uma visão mais reflexiva do trabalho e do seu papel dentro deste contexto. Além disso, trazer uma outra perspectiva sobre o trabalho e suas relações, tendo em vista que a rotina não é parte estrutural de nossa vida e sim as contingências. “só temos uma certeza: que tudo muda”. 21 Enfim, a rotina exige uma vigilância constante e um refazer contratual, entre indivíduos, também constante, de forma que, caso o contrato seja quebrado, o transbordamento inevitável de sentimentos como mágoa, perplexidade e traição, junto com suspeita e hostilidade, seja amenizado. A segurança da rotina e a confiança em sistemas abstratos se colocam como substitutos da relação que já não mais se estabelece na vida cotidiana, visto que a vida privada reduziu suas referências estáveis e a vida pública as acrescentou em suas relações. Para Horkheimer, no capitalismo organizado “a iniciativa pessoal desempenha um papel sempre menor em comparação aos planos daqueles com autoridade”. (apud GIDDENS, 1991, p.118) Nesta transição a honra é substituída pela lealdade, tendo como apoio o afeto pessoal e a sinceridade é substituída pela autenticidade, uma exigência de ser aberto e bem intencionado. Considerando este cenário, Richard Sennett (1999), em seu livro “A corrosão do caráter”, indica que o novo capitalismo é marcado pelo mercado global e o uso maciço de novas tecnologias que tornam a vida mais dinâmica obrigando as pessoas a se prepararem para freqüentes mudanças, incluindo trocas de emprego. A nova forma do capitalismo também se caracteriza pela quebra de tabus antigos - podemos citar o maior número de mulheres que passam a trabalhar, algumas até mesmo com a responsabilidade de sustento do lar. Porém, o capitalismo atual trouxe também efeitos indesejados, como o medo de perder o controle sobre a própria vida, pois o mercado cada vez mais é motivado pelo consumidor, e, para manter sua competitividade e produtividade, as empresas, e, conseqüentemente, seus trabalhadores, se tornam em maior grau subservientes aos horários dos clientes. 22 O medo da perda de controle está intrinsecamente referido ao controle de tempo. Tendemos a operar com horários mais flexíveis reinventando o ciclo circadiano trazendo em decorrência a secundarização da vida emocional e declínio das carreiras tradicionais. O mundo se tornou mais dinâmico e as mudanças de emprego, ou mesmo de carreira durante a vida se tornam cada vez mais comuns. O mercado se torna mutável como nunca antes visto, passando cada vez mais a se pensar no curto prazo. Segundo Sennett (1999), as empresas se caracterizam pela "força dos laços fracos", o emprego passa a ser utilitário e sem vínculo, há uma falta de perspectiva de compromisso duradouro com a empresa gerando assim uma certa falta de lealdade institucional. Os trabalhadores tendem a ficar "negociáveis" assim que descobrem que não podem contar com a empresa. Enfim, o mundo anterior ao "novo capitalismo" era mais burocrático, previsível. O atual tem a marca da flexibilidade e do dinamismo, das relações líquidas. Dois filósofos contemporâneos, no século XVIII, Denis Diderot (apud BORGES, 2008), francês, e Adam Smith (apud BORGES, 2008), escocês, tinham posições diferentes sobre a rotina no trabalho. Diderot considerava que a rotina laboral não era degradante, ao contrário, era igual a qualquer outra forma de aprendizado, indo além afirmando que a rotina estava em constante evolução, pois repetindo uma tarefa haveria a possibilidade de se descobrir como reduzir seus tempos ou criar novos procedimentos. Um modelo similar de estudo de uma determinada tarefa é reinstaurada nos anos 80, pelo modelo japonês de melhoria contínua, chamado kaisen (termo japonês que indica que é sempre possível se fazer melhor). Já Adam Smith via a rotina de forma negativa, algo degradante, fonte de ignorância mental por falta de conhecimento de como fazer a mudança. A rotina, portanto se tornava autodestrutiva porque os trabalhadores perdiam o controle sobre seus próprios esforços. 23 No capitalismo atual, a rotina é de outra ordem, não mais das certezas de realização de uma tarefa de forma repetida ou da manutenção de relacionamentos duradouros. Passa a dar lugar à falta de segurança no emprego, do futuro incerto, da costumeira reavaliação da carreira, e essa "rotina dinâmica" é tão ou mais destrutiva quanto a rotina sob o ponto de vista de Smith (apud BORGES, 2008). Para minimizar os impactos desta nova demanda de dinamismo e enfrentamento de incertezas, as organizações se tornaram mais flexíveis a partir do remodelamento de sua gestão. Antenadas às demandas do mercado, as organizações se reinventam de forma descontínua, mobilizando e desmobilizando recursos a cada novo desafio. Outro fato importante é a especialização flexível da produção sendo um sistema de inovação permanente. A finalidade é inserir no mercado, cada vez mais rápido, produtos variados, sendo uma forma de adaptação à mudança permanente e não uma forma de controlar essa mudança. Para implantar esta modalidade de gestão é necessário que as decisões sejam tomadas de forma rápida, com suporte de alta tecnologia, rapidez nas comunicações e fundamentalmente ter disposição de deixar que as demandas de mercado externo determinem a estrutura da empresa, que obviamente poderá ser mutante, ao sabor do mercado. A concentração de poder sem centralização é uma técnica moderna de dar liberdade, mas ao mesmo tempo manter o controle. Esta é uma técnica muito utilizada para grupos de trabalhos, empresas com filiais, prestadores de serviço ou agências. Na maioria dos casos é imposta uma meta a ser atingida e é dada liberdade para o grupo atingir essa meta da forma que achar mais conveniente. Geralmente essas metas estão além do que normalmente seria alcançável e o controle se dá através de planilhas ou mapas de acompanhamento. Essa é uma forma de dar 24 mais controle às pessoas sobre as suas atividades diminuindo a burocracia e envolvendo o trabalhador no negócio da empresa. Na verdade, esses sistemas de informação oferecendo total controle sobre os atos "independentes" do grupo é uma nova forma de poder aparentemente libertador, mas na realidade desigual, pois aumenta o poder da alta administração de forma dissimulada tornando o trabalhador único responsável pelo seu êxito ou fracasso. O trabalho se torna ilegível no capitalismo flexível porque há perda da identificação entre o ato e o ator do trabalho. O trabalho passa a ser frio, mecânico, asséptico. A alienação e a indiferença, no que se refere ao produto do trabalho, se instauram e o trabalhador não tem mais o domínio do processo, não sabe mais o seu ofício original, ou seu valor no processo produtivo, o que acarreta em identificação fluida com o trabalho. Outro aspecto observado quando o trabalhador se torna alienado do trabalho é a falta de vínculos dentro do grupo. Uma nova ética do trabalho se estabelece no trabalho em equipe, onde se destaca a capacidade de ouvir e de se adaptar as diversas circunstâncias exigidas no ambiente interno e externo, sendo necessário maior cooperativismo. Porém, o que poderia ser um catalisador para um retorno aos vínculos mais densos, se traduz na evitação desses vínculos, onde os grupos tendem a manterse juntos na superfície das coisas. "O trabalho em equipe deixa o reino da tragédia para encenar as relações humanas como uma farsa". (SENNETT, 1991, p.91) Outro ponto deste momento na ordem do trabalho é que o fracasso não é mais a perspectiva apenas dos pobres ou desprivilegiados, tornou-se mais conhecido como um fato regular na vida da classe média. Sennett discorre sobre sua experiência com alguns profissionais da IBM que acreditavam que suas carreiras seriam quase que vitalícias, mas depois de demitidos descobriram no próprio fracasso certa revelação sobre suas vidas. 25 Este é um mito importante nas relações de trabalho: que o vinculo de trabalho é para sempre. Não há uma visão transitória de relação, por isso tanta mágoa envolvida nas demissões. A empresa se apropria não só do trabalhador como do seu desejo e quando a relação utilitária já não é mais produtiva, o vínculo se rompe e se rompe o mito, despedaçando o trabalhador em sua existência. A IBM era administrada por Thomas Watson Sr., que administrava de forma feudal e dirigida como um exército. Como as relações feudais, os empregos são vitalícios para a maioria dos trabalhadores e uma espécie de contrato social entre administração e mão-de-obra. Em 1956, Thomas Watson Jr, assumiu o lugar do pai, implantando uma administração com maior delegação e escuta dos trabalhadores, proporcionando maiores benefícios. Após 1980 houve grandes perdas para o mercado da IBM, Thomas Watson Jr. se aposentou, entrando outros presidentes em seu lugar. Em 1993, a IBM procurou substituir as rígidas estruturas hierárquicas por formas mais flexíveis de organização, e com uma produção flexível orientada para maior diversidade de produtos no mercado com maior rapidez. A estabilidade dos 400 mil trabalhadores mudou dentro desta nova realidade acarretando demissões em grande escala. Depois de algum tempo os trabalhadores que foram demitidos sentavam-se em um café em Nova York para discutir o fracasso em suas carreiras. Quando Sennett (1991) se junta a eles, no começo todos se achavam vítimas passivas da empresa, mas depois mudam o foco para seu próprio comportamento. Esses trabalhadores acreditavam que tinham sido traídos pela IBM e que a lealdade à empresa havia morrido. Como uma das formas de se tornar competitiva, reduzindo em especial os custos com trabalhadores, a IBM passou a contratar mão-de-obra indiana, onde pagava muito menos do que aos americanos. Esses mesmos homens que se juntavam num bar, ressentidos de suas demissões, reconheceram a qualidade de trabalho 26 que vinha da Índia e passaram a pensar no que deveriam ter feito antes de suas carreiras chegarem ao ponto que chegara. O tema, porém, das discussões ainda era mais o fracasso e a falta de controle sobre as suas vidas. Eles julgavam que estiveram errados em não se qualificar e acreditavam que deveriam ter corrido mais riscos. Sennett (1991) percebeu que aos poucos os programadores estavam tentando enfrentar a realidade do fracasso e de seus próprios limites. Para eles o que importava não era mais o que aconteceu, mas o que eles deveriam ter feito há alguns anos: ter tomado suas vidas em suas mãos e se responsabilizarem por elas. Após algum tempo a percepção quanto ao ocorrido na IBM tornou-se mais realista. O regime flexível talvez pareça gerar uma estrutura de caráter constantemente em recuperação. Exige-se um senso maior de comunidade, e um senso mais pleno de caráter, do crescente número de pessoas que, no capitalismo moderno, estão condenados a fracassar. Cabe aqui destacar a definição de caráter para Sennett: “traços pessoais a que damos valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem” (SENNETT, 1991, p.10). Sennett passa a então a questionar as relações de trabalho contemporâneo e suas implicações nos valores pessoais como a lealdade e os compromissos mútuos. Não é possível construir um caráter em um capitalismo flexível, onde não há metas a longo prazo, pois a construção deste depende de valores e relações duradouras e isto não é possível em uma sociedade onde as instituições vivem se desfazendo ou sendo continuamente reprojetadas. A partir desta experiência, o que fica de alerta é a exigência de uma resiliência do eu, sendo entendida como a capacidade de resistir à pressão das situações adversas dentro das organizações, na medida em que precisamos estar preparados para enfrentar um constante correr de riscos a partir do estabelecimento de relações mais flexíveis, em todos os níveis. 27 Sennett (1991) coloca que diante da destruição da esperança e do desejo, a preservação de nossa voz ativa é a única maneira de tornar o sofrimento suportável, assim a narrativa dos ex-trabalhadores tentou uma espécie de saída através da palavra. Podemos compreender, a partir deste relato, a importância de um espaço de possibilidade de verbalização das questões que perpassam a vida do trabalhador na empresa, desde sua admissão até a sua demissão. As propostas práticas mais convincentes que existem para enfrentar os problemas do novo capitalismo concentram-se nos lugares onde ele opera, ou seja, nas organizações sociais ou privadas. Hoje a dependência é uma condição vergonhosa: o ataque à rígida hierarquia burocrática quer libertar estruturalmente as pessoas da dependência; o assumir riscos destina-se mais a estimular a auto-afirmação que a submissão ao que existe. Dependência vira sinônimo de fracasso. Porém, a ideologia do parasitismo social, termo apropriado da Biologia que descreve organismos que vivem em associação com outros aos quais retiram os meios para a sua sobrevivência, normalmente prejudicando o organismo hospedeiro, é um instrumento utilizado no local de trabalho. Ou seja, enquanto as organizações estimulam a autonomia e o trabalhador precisa demonstrar que não está se aproveitando do trabalho dos outros, este ainda está subjugado à hierarquia organizacional. Em muitas sociedades havia pouca vergonha de depender de outras pessoas. O fato de o fraco necessitar do forte, como na sociedade indiana e japonesa, não é considerado humilhação. No mercado moderno a maioria da massa laborativa trabalha para os outros. A vergonha da dependência tem uma conseqüência prática, corrói a confiança e o compromisso de qualquer empreendimento coletivo. Os laços de confiança são testados quando as coisas dão errado e a necessidade de ajuda se torna aguda. A falta de confiança também pode ser criada pelo exercício flexível do poder. 28 No trabalho em equipe supõe-se que todos partilham da mesma motivação, e é essa suposição que enfraquece a verdadeira comunicação, fortes laços entre as pessoas significam enfrentar com o tempo suas diferenças. A comunidade aberta em seus conflitos é exatamente o que um regime flexível deveria inspirar. A grande questão no capitalismo moderno é: "Quem precisa de mim?", isso reduz o sujeito ao sentido de sermos necessários, a falta de resposta é uma reação lógica ao sentimento de que não somos necessários, sendo sua conseqüência o adoecimento do trabalhador tanto de forma física como mental. Dentro desta visão podemos considerar que o que se pede é que não exista a falta como elemento singular do ser humano. Considerando o Seminário 7 (LACAN, 1960), Lacan irá criticar esse ideal de autonomia, como uma possibilidade de escapar à falta para ser Um com o Outro: ser sem falta em um gozo narcísico. Porém, na experiência psicanalítica, tratamos este ponto como um lugar de impossibilidade, objeto almejado e objeto obtido são diferentes. O objeto da Lei (das ding) não são os objetos dos nossas vontades, mas o objeto para sempre perdido, que instaura o desejo como falta que procura ser preenchida com objetos causa de desejo, categorizado por Lacan como objeto a. Assim deslizamos através de objetos em torno dessa falta, buscando significá-la. Ora se a completude é a ausência da falta original, o que se oferece a este trabalhador é o adoecimento, a morte ou, se articularmos os modos de gozo tratados por Lacan, tendo no centro o objeto a, teremos o que nos parece ser o principal modo de gozo da sociedade contemporânea, onde o sujeito procura a completude não no sentido, mas nas coisas. Desta forma, a sociedade capitalista estaria vinculada a um modo de gozo a partir da aquisição, ter em detrimento do ser e, consequentemente, ao consumismo. Zygmundt Bauman (2001), em seu livro “Modernidade Líquida”, faz um recorte da sociedade traduzindo-a como indivíduos colecionadores de experiências e 29 sensações. Pela propriedade de não fixação no espaço e por não se prenderem ao tempo, utilizou-se da metáfora da “fluidez” ou “liquidez” para definir a era moderna. A modernidade fluida, segundo Bauman, produziu uma profunda mudança na condição humana e em seus conceitos básicos de individualidade, relação tempo/espaço, vínculos de trabalho e a participação em comunidade. O tempo adquire importância singular pela velocidade do movimento através do espaço, da imaginação e da capacidade humana. Não há limites neste contexto, pois o que existe é um esforço contínuo, rápido e irrefreável para que todo e qualquer limite seja ultrapassado. O acesso a meios mais rápidos de mobilidade na modernidade é a principal ferramenta de poder e dominação, principalmente no que tange a mobilidade virtual. A definição de homem moderno a ser incapaz de parar e de ficar parado, tendo necessidade de estar sempre à frente de si mesmo, significando também, ter uma identidade que só pode existir como um projeto não realizado. Estamos tratando de um ser em devir. Há que se fazer, porém, uma distinção histórica entre a condição na modernidade em que vivemos e a condição da modernidade de nossos ancestrais. Bauman se utiliza de duas características para apresentar diferenças na situação atual. A primeira diz respeito ao declínio da crença de que há um estado de perfeição a ser atingido no fim do caminho. A segunda diz respeito à autoafirmação do indivíduo, que se reflete no discurso ético/político do quadro da “sociedade justa” para o dos “direitos humanos”. Ou seja, se a modernidade era densa em suas ideologias, a modernidade atual é fluida, livre de deveres libertários. Diferente da individualização de cem anos atrás, a individualização na modernidade atual, consiste em transformar a identidade 30 humana em uma tarefa, onde seus autores serão responsáveis pela realização dessa tarefa e das conseqüências advindas com a mesma. Em “O Mal-Estar na Civilização”, Freud (1930) concebeu um mundo no futuro regido pela segurança no qual uma ordem social extrema daria incontestável forma a um desejo coletivo de controle e justiça. A estabilidade social romperia o fluxo constante do afloramento das pulsões; a sexualidade e a agressividade, entre outras exigências, e sofreriam com a renúncia que o processo civilizatório demanda, porém essa renúncia seria acatada em troca de um pouco de felicidade, para não perder a segurança iminente nesse arcabouço de perigos em um trajeto desconhecido. Mas, no pensamento de Bauman (1998), em particular no livro “O Mal-Estar da Pós-Modernidade”, encontraremos um mundo repleto de incertezas onde o ser humano troca a segurança, outrora desejada, pela liberdade, mas não uma liberdade qualquer: a liberdade individual engendrada por uma vontade suprema. Porém esta vontade suprema reduz o homem a um estado de insegurança, de medo universal, de tecnologia excludente, de ameaças constantes e desemprego crescente. Mudanças repentinas, aonde o tempo é o senhor que tudo pode. Mudanças econômicas, políticas, culturais transformam o cotidiano em ambivalente. A rotina e a estabilidade das relações que traduz um sentimento de confiança já não existem e o sentimento de incompletude, de vazio é mais um fantasma a assombrar os humanos “pós-modernos”. As incertezas apontadas por Bauman contagiam todos os setores de atuação humana. Os pressupostos que nos regem, e indicam um pseudo ideal de liberdade totalizante, são o do mercado consumidor, competitividade, indiferença, verdades múltiplas, que salientam diferenças, mas não respeitam as singularidades. A globalização como veículo de enquadramento e padronização, despersonaliza as diversas culturas alimentando-as de produtos para consumo rápido, liberdade de escolha que não alcança a satisfação prometida, pois parece impossível o 31 prazer nesta época de constante oferta de oportunidades de satisfação através das coisas e das pessoas. Neste contexto encontramos um mundo de guerras preventivas, como são preventivas as ofertas de produtos que nem se sabia precisar, levando ao consumismo exacerbado. Assim o homem pós-moderno no sentido de combater o vazio que incessantemente tenta ser preenchido pelo outro, busca um prolongamento de sua vida em novas formas de comunitarismo (nos quais estão incluídos o nacionalismo e o fundamentalismo religioso – e até terrorista), neste mundo onde o homem sonha com o prolongamento de sua vida, essas formas de comunitarismo são tentativas legítimas de combater os excessos da liberdade, da falta de ética, da invasão de um livre mercado internacional, onde os países desenvolvidos fazem as regras. O mundo “pós-moderno” nos desafia a refletir sobre quais os benefícios da desapropriação do ser para a apropriação do ter. Além disso, o quanto devemos abrir mão de nossa individualidade em prol de uma sociedade que nos massifica e enquadra para seu próprio prazer e benefício. Se por um lado Giddens (1991) nos leva a considerar a noção de reflexividade como ponto de possibilidade de ver e agir criticamente no mundo, por outro Bauman (2001) nos apresenta uma visão de sociedade crua considerando os caminhos da sociedade apontando para uma padronização do ser e uma valorização do ter. Já Sennett (1999) contextualiza as organizações e seus impactos nas relações de trabalho. Por fim, o que pretendemos é nos apropriar da visão de Giddens trazendo a reflexividade como ponto de atenção para a atuação dos profissionais de RH, utilizar Sennett como base para a contextualização das organizações na sociedade moderna e Bauman, trazendo uma visão crítica da sociedade, impactando o sujeito que é convocado a trabalhar nas organizações, estabelecendo diferentes formas de relações de trabalho. 32 3. O CONTEXTO DA ADMINISTRAÇÃO DO TRABALHO Temos presenciado profundas transformações no mundo do trabalho, tanto nas formas de estrutura produtiva quanto nas formas sociais e políticas. Nos arriscamos a dizer que essas repercussões influenciaram tanto a materialidade do trabalho quanto a sua subjetividade. O grande salto tecnológico, a automação, as tecnologias da informação, invadiram o ambiente organizacional revirando os paradigmas do trabalho e de suas relações. Mas para entender a realidade do mundo do trabalho é necessário entender os movimentos históricos que nortearam a sua estrutura e que ainda estão presentes, de forma residual ou integral. Seja através dos tempos e movimentos pelo cronômetro fordista ou pela produção em série taylorista, ou pela especialização flexível do toyotismo, temos elementos que nos indicam possíveis hipóteses para discutir o sofrimento do trabalhador frente às mudanças no processo produtivo ou a manutenção de estruturas de trabalho que reforçam a coisificação da subjetividade. Trataremos basicamente das mudanças nos trabalhos produtivos da indústria em seus principais movimentos como o Taylorismo, Fordismo, Toyotismo, entre outros, entendendo os diferentes focos que engendram o trabalhador e sua posição diante do trabalho. O Taylorismo, ou a chamada Administração Científica, foi desenvolvido por Frederick W. Taylor (apud BORGES, 2008), engenheiro americano do início do sec. XIX e é constituído basicamente de um modelo de desenvolvimento dos trabalhadores e seus resultados, através de instruções e procedimentos, para que pudessem fazê-los produzir mais e com qualidade melhor. Esta era uma época onde os trabalhadores eram desqualificados e tratados com desprezo, pois não havia interesse em investir já que a demanda de 33 trabalhadores era enorme. Taylor (apud BORGES, 2008) então identifica, a partir de sua análise da singularidade da tarefa, que trabalhadores desqualificados eram trabalhadores de baixa produtividade e, conseqüentemente, menos lucro, forçando a um maior número de contratações. Além disso, instituiu o modelo de planejamento de produção para que pudesse ter maior controle sobre o produto final, visando sempre potencializar a cadeia produtiva, assim sendo acreditava que os melhores resultados refletiriam em menores custos e, conseqüentemente, em salários mais altos. Dentro desta lógica científica, de análise e controle de dados, introduziu o conceito de “tempos e movimentos”, que tinha por objetivo fazer com o que o trabalhador executasse uma determinada tarefa dentro de uma seqüência e tempos pré-programados de modo a ter um desperdício mínimo de produção. Eliminando movimentos inúteis e fazendo o trabalho se tornar mais rápido e eficaz. É neste momento em que a figura do supervisor se inaugura dentro das fábricas com a função de verificar se os trabalhadores estão desenvolvendo duas atividades dentro dos procedimentos definidos. Institui-se também a separação entre aqueles que executam e aqueles que planejam. A noção do bom trabalhador se traduz naquele que cumpre ordens e não as discute, tendo o supervisor como aquele que dá as ordens. Dentro do seu método existia um olhar sobre o trabalhador para além das questões da produção. Ele estabelece alguns preceitos até hoje difundidos na administração moderna. Uma relação entre a fadiga e a diminuição da produtividade, com perda de qualidade de resultados, doenças e aumento da rotatividade de pessoal. Estabelece ainda que todas as instruções programadas devam ser transmitidas a todos os trabalhadores, definindo as aptidões de cada trabalhador para determinada tarefa na direção da especialização e divisão do trabalho. 34 Incentivos salariais e prêmios por produtividade, para aqueles que se destacassem além do estabelecido (atualmente chamado de meritocracia) e a melhoria do ambiente físico para maior conforto do trabalhador e, por conseqüência; maior produtividade. Entra em cena a noção do homem econômico, motivado por recompensas salariais e materiais e que hoje em dia ainda é foco de todas as empresas para que se possa estimular o aumento da produtividade. Este método traz em si maior controle sobre os trabalhadores e desapropriação do trabalhador em relação ao seu trabalho, visto que a segmentação das tarefas era vital para maior produtividade. Analisando os sistemas de gerenciamento e controle da qualidade dos resultados nas últimas duas décadas, nos deparamos com a permanência da administração científica nas atuais ditas inovações de gestão. O treinamento contínuo, as certificações que garantem o resultado final, a função da supervisão como ponto chave para a manutenção de um processo produtivo com resultados de excelência, são ainda a base da administração contemporânea, mesmo se travestida de outros nomes. Um exemplo do resquício do Taylorismo na atualidade são as normas International Organization for Standardization-9000 (ISO-9000), que garantem, através de itens de controle da qualidade, o produto entregue ao cliente, a forma de gestão, o treinamento a ser aplicado para cada função. Quando da nossa atuação como Auditora da Qualidade para as normas ISO-9000 (grupo de normas técnicas que estabelecem um modelo de gestão da qualidade para organizações em geral, qualquer que seja o seu tipo ou) e do Prêmio Nacional da Qualidade (PNQ), a padronização dos macro fluxos de processo, a descrição das atividades e sua real aplicação no trabalho, a definição de indicadores de qualidade e de técnicas estatísticas que pudessem garantir esses resultados eram, e são, fatores decisivos para o controle da produção e do 35 controle da atuação do trabalhador. A Área de Recursos Humanos sofreu uma valorização pela necessidade de “motivar” seus trabalhadores para as novas práticas de trabalho, além de analisar outras formas de gestão. Henry Ford (apud BORGES, 2008), fundador da Ford Motor Company, revolucionou a indústria automobilística a partir de 1914, quando introduziu a automatização da linha de montagem de seus carros, utilizando os princípios de padronização e simplificação de Frederick W. Taylor. Seu grande objetivo era popularizar o automóvel através da redução dos custos da produção. No filme “Tempos Modernos” de Charles Chaplin, podemos verificar como a linha de montagem do modelo fordista operava. Esteiras rolantes movimentavam-se com as peças, enquanto os operários ficavam estáticos realizando uma parte da tarefa da produção. Assim não era necessária nenhuma qualificação dos trabalhadores. Fixo em seu posto de trabalho, o trabalhador era parte da máquina, sem que houvesse necessidade de elaboração mental para o exercício de sua função. Sem interferência da mente, novamente desapropriando o trabalhador de seu trabalho, a linha de produção homem-máquina se constituía em uma só entidade. Enquanto no Taylorismo ainda havia a preocupação de se adequar as potencialidades às necessidades de especialização da tarefa, no Fordismo, pela implantação de movimentos repetitivos e sem atuação mental, volta-se a desprestigiar a qualificação e a prestigiar somente a “mão-de-obra”, mais barata e substituível. Ford, em 1913, relata: “Para certa classe de homens, o trabalho repetido, ou a reprodução contínua de uma operação idêntica, por processos que não variam nunca, constitui um espetáculo horrível. A mim me causa horror. Por preço algum do mundo poderia fazer todos os dias as mesmas coisas. Entretanto, atrevo-me a dizer que para a maioria a repetição nada tem de desagradável. Para certos temperamentos, a obrigação de pensar é uma 36 verdadeira tortura, porque o ideal consiste em operações que de modo algum exijam instinto criador.” (apud BORGES, 2008, slide 25) Ford traduz uma realidade de mão-de-obra marginalizada, sem capacitação, que se assujeitava a realizar qualquer tipo de trabalho em troca de uma remuneração. Aqui ele já inaugura uma tentativa de avaliar as tendências do trabalhador para uma ou outra atividade, porém ainda com a visão segmentada entre elaboração mental e trabalho braçal, como se ambas pudessem ser dicotomizadas. O Fordismo teve seu ápice na Segunda Guerra Mundial, nas décadas de 1950 e 1960, conhecidas também como Os Anos Dourados. Porém o mundo mudou após a guerra e com isso o modelo rígido de gestão e de produção de um único produto que atendesse a todos os potenciais compradores, levou o Fordismo ao declínio. Em 1970, a General Motors flexibiliza sua gestão e sua produção, cria diversos modelos de carro com cores variadas e adota um sistema de gestão profissionalizado, assim ultrapassando a Ford como maior montadora do mundo. Neste mesmo período com a crise do petróleo e a entrada de competidores japoneses neste mercado, um novo modelo de produção se inicia baseado no Toyotismo e em 2007, a Toyota se torna a maior montadora de veículos do mundo colocando fim ao Fordismo. O Japão, após a Segunda Guerra Mundial, apesar de destruído, encontrou condições favoráveis para retomar sua economia e mudar o curso da história dentro das organizações. Diferentemente dos EUA e da Europa, o Japão tinha um mercado consumidor pequeno, com capital e matéria-prima escassos e grande disponibilidade de mão de obra especializada. Nesta conjuntura, a aplicação do modelo americano de administração de produção em massa era inviável. O que se configurou como resposta foi o aumento da produtividade através da fabricação de pequenas quantidades de numerosos modelos de produtos, 37 voltados para o mercado externo, de modo a gerar divisas para a sua reconstrução pós-guerra. O Toyotismo, como modelo de organização produtiva, foi elaborado por Taiichi Ohno, que tem como base a filosofia orgânica da produção industrial. Em seu sistema foram identificados alguns aspectos importantes de sustentação, como a introdução de uma mecanização flexível onde a produção é realizada a partir da necessidade da entrega, em contraponto com o Fordismo que privilegiava o estoque de excedentes da produção, sendo assim flexível a demanda do mercado. Além disso, a estruturação de processos multifuncionais ou de polivalência de seus trabalhadores, incentivando o enriquecimento do trabalho e investimento em educação, visto que com mercados muito segmentados a função de especialista restringia a produção. O envolvimento do trabalhador no pensar a produção, foi extremamente estimulado com a implantação de sistemas de controle de qualidade total, promovendo ciclos de palestras onde o trabalhador desenvolve a visão de todo o processo produtivo e sua importância dentro dele. Hoje ainda verificamos a utilização do sistema “Just in time”, originalmente idealizado por Henry Ford (apud BORGES, 2008), porém implantada por ele, baseado em controles estatísticos de processo produzindo o necessário, na quantidade e no momento necessários. Apesar das maravilhas e novidades que o Toyotismo trouxe através da tecnologia nos modos de produção atual, esse mesmo modo desencadeou um elevado aumento das disparidades socioeconômicas e uma necessidade desenfreada de aperfeiçoamento constante para simplesmente se manter no mercado. 38 Alguns pensadores, entre eles Richard Sennett (1999), concordam que a nova crise econômica mundial, deflagrada em setembro de 2008, representa uma profunda ruptura com a visão de trabalho predominante no século XX. Esta ruptura vinha se processando com a emergência das novas tecnologias da era digital que, por si, já modificaram a natureza do trabalho contemporâneo. No ambiente de crise, essas mudanças derivadas da técnica, criam um quadro potencialmente explosivo em curto prazo. Onde a globalização impetra um nova ordem social e econômica, não há espaço para as relações de confiança estabelecidas de forma clara e transparente. As ações dentro do contexto do trabalho são documentadas virtualmente para que se possa garantir que a mensagem foi enviada, porém não está em questão o recebimento e o entendimento da mensagem e sim a emissão descompromissada da informação, pois uma vez enviada, já não faz mais parte da responsabilidade daquele que enviou. Os espaços verbais de discussões e análise tornaram-se espaços vazios de elaboração. Hoje se seguem os twitters pessoais ou corporativos, mas que elaborações subjetivas efetivas se traduzem deste colóquio virtual? No isolamento de seus computadores, cada trabalhador se coloca como um espectro para o outro, protegido pela máquina. As relações aumentam em quantidade e diminuem qualidade. Chega-se ao máximo do distanciamento do outro ao serem enviados e-mails aos colegas que estão ao seu lado fisicamente. O tempo é uma variável que se expande na medida em que as pessoas e as corporações, envolvidas no trabalho, estão em diversas partes do mundo e o acesso às informações é online. Os profissionais estão conectados através de seus computadores fixos ou móveis de forma que são acessados em todo o tempo e lugar. A pressão por resultados de excelência e pela manutenção do trabalho desloca o tempo do trabalho para o tempo livre, sem que o inverso seja uma verdade. 39 Os vínculos que se estabelecem com as empresas já não são mais fantasiosos, cumprindo uma promessa de convivência eterna e de plena satisfação. A relação de uso entre as coisas e as pessoas, muito bem colocado por Bauman (2001), é também vivenciada nas relações de trabalho que estabelecem vínculos frágeis e sem envolvimento subjetivo. Muitos têm sido os estudos que procuram desvendar a natureza de novas formas de trabalho imaterial – mais associativas e coletivas liberadas dos locais de emprego, com novas recomposições entre o manual e o intelectual. E a perspectiva para os próximos anos traz reformulações importantes tanto para o trabalhador quanto para aqueles que fazem a arquitetura das relações de trabalho. Assim, neste item nos interessa refletir sobre as características do "novo capitalismo": a exigência de flexibilidade; a visão de curto prazo; a contradição entre enaltecer valores como lealdade, ajuda mútua e confiança e estimular o individualismo e a competitividade; o desaparecimento de carreiras estáveis e de vínculos profissionais duradouros; questionando se tais condições não estariam contribuindo para corrosão do caráter, criando novas subjetividades. Muito se tem falado sobre novas formas de subjetivação na atualidade, se utilizarmos como parâmetro a tradição ocidental do individualismo iniciada no século XVII, tendo as noções de interioridade e reflexão sobre si mesma como eixos constitutivos. Mas o que nos parece mais apropriado é inferir que com todas as mudanças na sociedade até agora descritas, não se trata de uma nova forma de subjetividade, mas a forma reativa a uma sociedade que trás para cada sujeito a necessidade de sobreviver em meio à fluidez de ideais, vínculos frágeis, descrenças nas autoridades e tantas outras inconstâncias advindas do Outro. Talvez seja importante que repensemos os fundamentos de nossa leitura da subjetividade atentando para os "destinos do desejo" na atualidade, na medida em que tais destinos podem nos levar a perceber o que se passa nas “subjetividades”. Se conseguirmos, por exemplo, identificar os destinos do desejo assumindo uma direção auto-centrada e exibicionista, onde há um esvaziamento 40 e um não investimento nas relações humanas, podemos inferir que a subjetividade latente é a impossibilidade de reconhecer o outro em sua diferença radical, característica fundamental na cultura narcísica. Quando nos referimos à cultura do narcisismo, é importante utilizarmos o historiador e crítico social Christopher Lasch (1983). Pode-se definir a “cultura do narcisismo” como uma cultura que requer a sobrevivência de um mínimo eu diante dos sentimentos de impotência em que somos jogados diariamente através dos meios de comunicação ou de nossos contatos sociais. A decadência dos vínculos, o descrédito nas instituições públicas, privadas ou religiosas, o consumo estimulando o prazer imediatista e a perda das ideologias podem ativar nossas defesas narcísicas para que o ego, confrontado exaustivamente com a frustração, possa sobreviver. Temos aqui a supervalorização da realização individual em detrimento dos ideais coletivos. Freud, no texto “Introdução ao Narcisismo” (FREUD, 1914), aborda a questão da constituição do ego, que consiste de um afastamento do narcisismo primário, como processo de individuação. A libido é deslocada em direção ao ideal do ego, que está diretamente ligado a identificações com os pais ou outras figuras substitutivas e depois com os ideais da cultura. O ideal do ego representa o modelo a ser atingido e as realizações a serem alcançadas. “A busca do atingimento do “ideal do ego” implica, enfim, o desenvolvimento, crescimento e transformação do ego narcísico; implica também a renúncia e adiamento do “prazer imediato” em função de um “modelo ideal”, ele próprio “libidinizado”, mas que aponta para projetos futuros e requer a inserção do sujeito no real. Por outro lado, o recurso ao “ego ideal” consiste numa saída que envolve uma renúncia do enfrentamento da realidade e um fascínio por um “objeto-engodo” que encerra o sujeito num pseudo-estado a-conflitivo mediante o processo de “idealização”.” (SEVERIANO, 2006, p.1) 41 Freud (1921) afirma ainda, no texto, “Psicologia das Massas e Análise do Eu”, que somente através da identificação mútua entre os membros da massa e do controle da expansão narcísica pode haver possibilidade de coesão social, indicando a importância dos vínculos libidinais para a limitação do narcisismo e os compromissos primordiais para a existência de um grupo. Mas se esses mesmos compromissos estão dissolvidos em relações virtuais e frágeis, se o princípio da impessoalidade colocou os líderes em uma posição ilusória, percebemos que a saída para a sobrevivência deste ego é a emersão de defesas narcísicas, que coloca o outro no lugar de objeto para satisfação de seus desejos na busca da realização do ideal a ser alcançado, porém sem sentido. Podemos talvez dizer que há ainda uma saída, pois se por um lado o sujeito na cultura do narcisismo encerra o outro como objeto para seu usufruto, por outro, as experiências de perda e o reconhecimento da incompletude do sujeito têm a possibilidade de abrir caminho para a subjetivação permanente, para a alteridade e temporalidade e, consequentemente, para um futuro que tenha sentido. Porém, no ambiente de trabalho, essa esperança de subjetivação permanente, que Giddens (1991) chamou de reflexividade, está capturada pelas organizações capitalistas, amarrando o trabalhador no ideário narcisista, tendo em vista que quanto mais fluidas são as relações, muito bem descrito por Bauman (2001), mais submetido às regras como ponto de apoio para sua sobrevivência e mais submetido aos seus próprios interesses em detrimento do todo, gerando uma competitividade por vezes doentia e que adoece o trabalhador, para o alcance de resultados cada vez melhores, com reconhecimento também maior. Como em um círculo vicioso, temos o trabalhador que precisa produzir mais, para ser reconhecido e alavancar seu status profissional. Assim, como Sennett (1999) coloca, a corrosão do caráter acontece para fazer frente a constante desconstrução do que se é diante de um vínculo de trabalho. Se o trabalhador não pode mais criar laços com a empresa, pois não há mais garantias de longo prazo, se não pode criar laços com seus colegas de trabalho, 42 pois existe uma competição acontecendo por melhores resultados, se o ideário da empresa pode mudar a qualquer momento devido a fusões, compra, venda ou internacionalização de outras culturas, o que resta é a sustentação de um mínimo de narcisismo para a proteção do ego. Quanto menos vínculos existirem, quanto mais contarmos somente conosco, quanto mais autônomo e auto-suficiente o trabalhador for, maior a possibilidade de ele sobreviver tanto no mundo do trabalho quanto emocionalmente, visto que a insistência das organizações capitalistas é a redução ou coisificação da subjetividade do trabalhador. 43 4. RECURSOS HUMANOS À LUZ DA PSICANÁLISE Após caminharmos pelas interlocuções com a administração e a sociologia no que diz respeito ao trabalho, finalmente chegamos à Psicanálise, saber que mais nos interessa para embasar esta dissertação. Iniciemos, assim, nosso percurso pelo entendimento dos complexos laços que se estabelecem nas empresas através dos textos de Freud sobre a cultura, percorrendo a linha do tempo em que ele discorre sobre o assunto. Destacamos os textos Totem Tabu (1913); Psicologia das Massas e Análise do eu (1921); O Futuro de uma Ilusão (1927) e O Mal estar da Civilização (1930), como fundamentais para entender a cultura através da visão da psicanálise. Em Totem e Tabu (1913), Freud faz uma reflexão sobre a origem da civilização, abordando o mito da horda primeva e da morte do pai totêmico que levam a hipóteses acerca da origem das instituições sociais e culturais, além da religião e da moralidade. São escolhidas, como objeto de estudo, as tribos primitivas da Austrália que eram regidas pelo sistema de totemismo, tendo como característica principal a proibição de relações sexuais entre membros de um mesmo clã, conseqüentemente a proibição do incesto como fator fundamental - substituindo o parentesco consangüíneo real pelo parentesco totêmico. Freud (1913) distingue o laço totêmico do familiar, sendo o primeiro mais forte e herdado pela linhagem feminina. Proibição e desejo – Freud retoma sua teoria a respeito do Complexo de Édipo sobre a primeira escolha amorosa da criança que é incestuosa. Assim, ele encontra esta ambivalência nos tabus, pois proíbem algo que é desejado e a sua violação precisa ser vingada para que outros não repitam a mesma ação do transgressor. 44 Analisando os tabus (termo que possui dois sentidos contraditórios: sagrado e proibido - tendo como característica comum o temor do contato) dos povos primitivos, Freud (1913) pontua que estes não divergem de alguns dos costumes de nossa sociedade, comparando a psicologia dos povos primitivos com a psicologia dos neuróticos, em especial com a neurose obsessiva. Os atos cerimoniais e o desejo de violar a proibição insistem no inconsciente, produzindo uma posição ambivalente frente ao proibido (temor e desejo), em decorrência um senso de culpa é convocado toda vez que um tabu é violado, levando à angústia e ao caráter obsessivo. Há também que se respeitar severamente os tabus que protegem o totem, sendo que qualquer violação seria punida com doença grave ou morte. A partir do mito da horda primeva, Freud descreve uma situação mítica em que os filhos matam e devoram o pai tirânico colocando fim à horda patriarcal – o fato de devorarem o pai fazia com que se identificassem com ele (aquisição de parte de sua força, mito presente nas tribos antropofágicas) Apresentam-se então sentimentos ambivalentes dos irmãos perante o pai, pois ao mesmo tempo em que o odiavam (obstáculo para seus desejos sexuais), também o amavam e o admiravam. Esta ambivalência levaria ao sentimento de culpa e à herança simbólica: “o pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo... o que até então fora interdito por sua existência real foi doravante proibido pelos próprios filhos” (FREUD, 1913, p. 171 e 172). A estrutura totêmica teria então surgido a partir do sentimento filial de culpa e também como impeditivo de repetição do ato de destruição do pai real. A morte do pai da horda faz surgir “um ideal que corporificava o poder ilimitado do pai primevo contra quem haviam lutado, assim como a disposição de submeter-se a ele” (FREUD, 1913, p.177). Ou seja, o retorno do amor, o aparecimento da identificação e da organização social, entrelaçando lei e desejo. 45 Freud (1913) então finaliza nos aconselhando a não nos deixar influenciar demais pelo nosso julgamento em relação aos homens primitivos em analogia com os neuróticos, visto que há distinções, principalmente no que tange ao pensar e ao fazer em ambos. Ele diz: “... os neuróticos acima de tudo, inibidos em suas ações: neles, o pensamento constitui um substituto completo do ato.” (FREUD, 1913, p. 190). “Os homens primitivos, por outro lado, são desinibidos: o pensamento transforma-se direto em ação.” (FREUD, 1913, p.191). Mas presume, por fim, com segurança, que “no princípio foi o Ato”, remetendo-se a Parte I da Cena 3, em Fausto, de Goethe e como em João 1: 1-3: “No princípio era o Verbo”. Pensamos então, como este traço primário da existência humana, pode ser identificado nos complexos grupos que se formam dentro das organizações. Uma empresa é a concretização do desejo de uma ou mais pessoas com o objetivo de subsistência, riqueza e poder. Trazendo para nossa lente de estudo uma empresa qualquer, escolhida dentro da amostragem de nossa percepção cotidiana, vamos encontrar em algumas empresas os nomes próprios de seus fundadores em sua marca, em outras marcas que identificam seus produtos/serviços ou uma metáfora associada a estes. Porém, todas são repletas de significados subjacentes. Podemos assim entender que a marca de uma empresa nos remete a um totem, sendo este um símbolo de um grupo ao qual o indivíduo se filia a um sistema de códigos e proibições. Esta filiação subjetiva, em algumas situações, pode ser transmitida por parentesco. Em algumas regiões, onde uma empresa tem uma grande relevância econômica e social para a população, o respeito e o desejo de fazer parte daquela empresa são cultivados desde cedo, seja pela experiência dos familiares e amigos próximos, seja pelo lugar de destaque que a filiação à essa empresa trás para o indivíduo. Em nossos processos seletivos, quando os candidatos são 46 questionados sobre o interesse em trabalhar em determinada empresa, escutamos frases como “Eu sempre sonhei trabalhar nesta empresa”; “Meu pai me levava ao trabalho dele e eu adorava ver os trens com todo aquele minério”; “Quase todo mundo da minha família trabalhou ou trabalha lá, e eu tenho esta meta também”; “É o sonho de todos da cidade poder um dia trabalhar aqui”. Essa marca (como ícone desse grupo de significantes que a sustentam) deve ser respeitada e assimilada pelos seus trabalhadores e através de seus uniformes, camisetas, crachás, carteiras de trabalho e demais elementos objetivos e subjetivos, irão marcar sua existência e filiação. Nas tribos primitivas os animais do totem estavam representados em seus elmos, roupas ou em tatuagens. Nas empresas, assim como nos grupos primitivos, existe o controle da ação do indivíduo, a garantia de sua subsistência física e uma posição que o define dentro do grupo. Além disso, os trabalhadores agregam aos seus nomes aos nomes das empresas em que trabalham, transmitindo a eles, status e posição na sociedade. Além disso, as empresas têm seus códigos de ética e conduta, valores definidos e afixados em locais visíveis (tabus). Sendo ainda existente uma das proibições mais antigas que é o sexo entre os membros do mesmo clã como parte deste código. Em muitas empresas, seus empregados não podem se relacionar afetivamente sob pena se serem demitidos. Os trabalhadores agregam aos seus nomes os nomes das empresas em que trabalham, transmitindo a eles, status e posição na sociedade. Enquanto o vínculo com as tribos é permanente, à exceção daqueles que descumprem as regras, nas empresas esses vínculos são estabelecidos e rompidos na medida em que o mercado de trabalho se organiza. Ou seja, o sujeito refaz suas identificações a cada novo vínculo empregatício necessitando introjetar novos totens e tabus. Podemos retomar aqui a experiência de Richard Sennett na International Business Machines (IBM), tratada no capítulo sobre o contexto social do trabalho, 47 que indica claramente como este luto do desligamento de uma empresa e de seus significantes pode marcar profundamente o indivíduo a ponto de paralisá-lo para o estabelecimento de novos laços sociais e especificamente de trabalho. A vinculação a uma empresa gera ao indivíduo uma posição de importência (paramos neste momento para explicar esta palavra, ato falho na nossa escrita, pois o que gostaríamos de escrever era “importância”, mas o que veio foi sua aglutinação com a palavra “impotência”. Necessário dizer que a “importância” nesta vinculação à empresa também está atrelada à “impotência” que se estabelece a partir desta vinculação. Potência e impotência se posicionam nesta relação. Explicamos, ao estarmos vinculados a uma organização nos colocamos a seu serviço, sujeitos a sua ordem, impotentes em nosso desejo. Por outro lado, como benefício desta relação de assujeitamento, temos a potência de termos empregos, remunerações, posição junto à sociedade produtiva. Creio que o ato falho importência” revela sobremaneira a nossa relação com o trabalho). A partir deste ato falho, vamos ao texto “Psicologia das Massas e Análise do Eu”, onde Freud (1921) detalha os conceitos de laços libidinais, identificação e idealização para a formação de grupos e líderes: “...os homens não são espontaneamente amantes do trabalho e ... os argumentos não tem valia alguma contra suas paixões.” (FREUD, 1921, p.18) Freud descreve que a produção de massas compreende regulamentos especiais particularmente a partir da infância, cujos benefícios da civilização seriam introjetados de tal forma que poderiam efetuar sacrifícios referentes ao trabalho e à satisfação instintual que forem necessários para sua preservação. Sugere ainda que para que se dê a produção de uma geração com tal qualidade, é necessário existirem líderes inabaláveis, que como educadores, devem exercer uma coerção ainda maior antes que tais exigências sejam postas em prática (trabalho e satisfação pulsional). 48 Quando o homem começa a se distanciar de sua condição animal, ali se produziram proibições que levaram ao processo civilizatório e que até hoje imperam constituindo a origem da hostilidade contra a civilização, visto que toda criança nasce padecendo dos mesmos desejos instintuais, como o canibalismo, o incesto e o desejo de matar. Porém não podemos dizer que não houve evoluções no processo coercitivo, visto que o supereu se tornou o guardião da internalização gradativa das proibições civilizatórias. É só por meio dessa evolução que uma criança se torna um ser moral e social, sendo o fortalecimento do supereu uma vantagem cultural muito importante no campo psicológico. Essa operação transforma opositores em veículos da civilização. É importante também colocar que embora as reivindicações pulsionais acima descritas tenham sido, de alguma forma, internalizadas, à exceção das psicopatologias, outras proibições culturais só são mantidas sob a pressão da coerção externa, conhecidas como exigências morais da civilização que se aplicam a todos. Identificamos claramente as reminiscências dessa coerção no exercício da liderança dentro das organizações. O gestor tem como principal função preparar a equipe para fazer o trabalho com alto desempenho, através da elaboração de procedimentos escritos e de manuais de treinamento, planos de treinamento, determinação cuidadosa do perfil, integração intensa com RH no momento da seleção de seus futuros funcionários, auditoria feita por ele próprio e por terceiros, avaliações freqüentes do desempenho dos seus profissionais com feedback claro, elaboração de planos de desenvolvimento individual para suprir as carências de seus comandados. Todas essas responsabilidades demonstram a ortopedia necessária para que o trabalhador possa responder às expectativas da organização. 49 Muito embora muitas pessoas se neguem a matar ou cometer incesto, não se furtam a satisfazer seus impulsos agressivos e sexuais acobertando-os através de mentiras, fraudes e calúnias para manterem-se impunes. O assédio moral no ambiente de trabalho pode ser considerado uma das possibilidades de satisfação dos impulsos agressivos acobertada pelas exigências de competitividade e alta performance são perpassadas por abuso de poder, ofensas repetitivas, agressões, maximização dos “erros” e culpas, que se repetem por toda jornada, degradando deliberadamente as condições de trabalho. A partir deste relato fica notório que, como o próprio Freud (1921) coloca em seu texto “Psicologia das Massas e Análise do Eu”, a psicologia individual e a psicologia social estão intrinsecamente ligadas, visto que não há como desprezar os fenômenos sociais da pesquisa sobre o indivíduo e vice versa. Coloca, porém, que o questionamento da psicologia social ou de grupo se baseia na influência de um indivíduo por um grande número de pessoas, com que se acha ligado por qualquer circunstância, e que, quando rompido este laço, um fenômeno facilmente observável se revela, chamado por Freud de “instinto social” (tradução das expressões originais herd mind, group mind) (FREUD, 1921, pg. 92), mas que de alguma forma pode ser analisado sob a ótica da primeira constituição social: a família e não tão somente como algo primitivo. Freud se utiliza da obra de Lê Bon para recorrer aos fenômenos do indivíduo em grupo, indagando o porquê, sob certa condição grupal, um indivíduo, a quem havia chegado a compreender, agiu de maneira inteiramente diferente daquela que seria esperada e qual seria a natureza desta força que produz este tipo de alteração mental. Le Bon tenta responder a este questionamento dizendo que os indivíduos em grupo tomam posse de uma mente coletiva que os fazem agir de forma diferente de quando isolados. Ele trata este fenômeno como grupo psicológico que é um ser provisório com características diversas daquelas dos indivíduos que o compõe. 50 Em algumas organizações, em especial as que produzem produtos ou serviços controversos, como álcool, cigarros, armas, podemos observar claramente a assimilação de códigos e valores que não estariam presentes se não houvesse a vinculação com o grupo psicológico estabelecido. Le Bom (apud FREUD, 1921) coloca que os indivíduos apresentam novas características que não possuíam anteriormente, (na psicanálise, porém, diz-se que o indivíduo é colocado sob condições que permitem o surgimento das repressões dos impulsos instintuais inconscientes, as características que aparentemente são novas, na realidade são as manifestações desse inconsciente), por conta de três fatores diferentes: a) o poder invencível por considerações numéricas, b) Contágio (porém como efeito de sugestionabilidade) e c) sugestionabilidade. Nos grupos, as idéias mais contraditórias podem existir lado a lado e tolerar-se mutuamente, sem que nenhum conflito surja da contradição lógica entre elas. Esse é também o caso da vida mental inconsciente dos indivíduos, das crianças e dos neuróticos. Os grupos dão, constantemente, precedência ao que é irreal sobre o real; são quase tão intensamente influenciados pelo que é falso quanto pelo que é verdadeiro. Possuem tendência evidente a não distinguir entre as duas coisas. Essa predominância da vida da fantasia e da ilusão nascida de um desejo irrealizado é o fator dominante na psicologia das neuroses. Descobrimos que aquilo por que os neuróticos se guiam não é a realidade objetiva comum, mas a realidade psicológica. Quanto à liderança dos grupos, Le Bon diz que, assim que seres vivos se reúnem em certo número, se colocam sob a influência de um chefe, pois possui tal anseio de obediência, que se submete a qualquer um que se indique a si próprio como chefe. 51 Podemos falar de outras manifestações de formação de grupo que revelam uma opinião muito mais elevada da mente grupal como: 1) os princípios éticos de um grupo que podem ser mais elevados do que os dos indivíduos que o compõe e 2) o trabalho intelectual revelado na linguagem, no folclore, nas canções populares. Freud (1921) cita McDougall: uma multidão ocasional só se torna um grupo no sentido psicológico quando há algo em comum uns com os outros, um interesse comum num objeto, uma inclinação emocional semelhante numa situação ou noutra. Isto tem como resultado a exaltação ou intensificação da emoção produzida em cada membro. O grupo não organizado é emocional, impulsivo, violento, influenciável, sem auto-critica. McDougall fala de cinco ‘condições principais' para a elevação da vida mental coletiva a um nível mais alto: 1)continuidade de existência do grupo, 2) idéia definida da natureza, composição, funções e capacidades do grupo para desenvolver uma relação emocional com o grupo como um todo, 3) interação com outros grupos semelhantes, 4) tradições, costumes e hábitos tais, que determinem a relação de seus membros uns com os outros e 5) estrutura definida, expressa na especialização e diferenciação das funções de seus constituintes. O indivíduo num grupo está sujeito, através da influência deste, ao que com freqüência constitui profunda alteração em sua atividade mental. Sua submissão à emoção torna-se extraordinariamente intensificada e sua capacidade intelectual é acentuadamente reduzida. Freud se pergunta por que no grupo cedemos ao contágio de uma emoção e quando sozinhos resistimos? Dentro deste questionamento introduz o conceito de Libido ligado à energia das pulsões sexuais. Freud vai destacar uma distinção entre grupos com líderes e grupos sem líderes. Dois grupos altamente organizados, permanentes e artificiais: ao Igreja e o exército. É de notar que nesses dois grupos cada indivíduo está ligado por laços libidinais por um lado ao líder (Cristo, o comandante-chefe) e por outro aos demais membros do grupo. 52 Freud (1921) então vem dizer que os laços libidinais são o que caracterizam um grupo. Os indivíduos do grupo comportam-se de forma semelhante, toleram seus outros membros, e não sentem aversão por eles. Este fenômeno ocorre a partir de uma limitação do narcisismo que só pode ser produzida pela existência de um laço libidinal com outras pessoas. A libido se liga à satisfação das necessidades básicas e escolhe como seus primeiros objetos aqueles que de alguma forma fizeram parte desta satisfação. Nos grupos, não se pode falar de objetivos sexuais, havendo outros mecanismos para os laços emocionais, as chamadas identificações. A identificação é a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa. Ela desempenha um papel na história primitiva do complexo de Édipo. “Um menino mostrará um interesse especial pelo pai; gostaria de crescer como ele, ser como ele e tomar seu lugar em tudo. Podemos simplesmente dizer que toma o pai como seu ideal” (FREUD, 1921, p.133). Assim, o laço existente entre os membros de um grupo é da natureza de uma identificação com uma qualidade emocional comum, que reside na natureza do laço com o líder. Outro conceito importante, segundo Freud, é o da idealização que se dá na presença do amor, que tende a falsificar o julgamento a respeito do outro, visto que, quando estamos amando, uma quantidade considerável de libido narcisista de direciona para o objeto. Esse amor se volta para as qualidades que nos esforçamos em obter para o nosso próprio ego e que de maneira indireta satisfaz nosso narcisismo. Como Freud diz: o objeto foi colocado no lugar do ideal do eu. Do estado de estar amando à hipnose vai, evidentemente, apenas um curto passo. Os aspectos em que os dois concordam são evidentes. Existe a mesma sujeição humilde, que há para com o objeto amado. Há o mesmo debilitamento da iniciativa própria do sujeito; ninguém pode duvidar que o hipnotizador colocou-se no lugar do ideal do eu. 53 Assim, podemos considerar a constituição libidinal dos grupos que têm um líder e que não adquiriram as características de um indivíduo, que seu movimento foi de colocar um objeto no lugar de seu ideal do eu e, conseqüentemente, se identificaram uns com os outros em seu ego. Em termos da teoria da libido, o gregarismo é outra manifestação da tendência proveniente da libido e sentida por todos os seres vivos da mesma espécie, e os impulsiona a fazerem parte de unidades cada vez maiores. Freud, porém, questiona a existência de um instinto gregário. A linguagem deve sua importância à aptidão para o entendimento mútuo, sendo nela que a identificação mútua dos indivíduos repousa em grande parte. O homem é um animal de horda, uma criatura individual numa horda conduzida por um chefe. O pai da horda primeva, porém, era livre, seus atos intelectuais eram fortes e independentes, e não necessitava do reforço de outros, seu ego possuía poucos vínculos libidinais, ele não amava ninguém, a não ser a si próprio, ou a outras pessoas, na medida em que atendiam às suas necessidades. Aos objetos, seu ego não dava mais que o estritamente necessário. O líder do grupo ainda é o temido pai primevo; o grupo ainda deseja ser governado pela força irrestrita e possui uma paixão extrema pela autoridade. O pai primevo é o ideal do grupo , que dirige o ego no lugar do ideal do eu. Em muitos indivíduos, a separação entre o ego e o ideal do eu não se acha muito avançada e os dois ainda coincidem facilmente; o ego amiúde preservou sua primitiva autocomplacência narcisista. A seleção do líder é muitíssimo facilitada por essa circunstância. Freud (1921) coloca que o controle da massa (entendida como grupo) por uma minoria e a coerção no trabalho da civilização é condição básica para a manutenção do processo civilizatório. Só através de um processo de influência de indivíduos que possam fornecer exemplo e que sejam reconhecidos como líderes, 54 a massa poderá ser induzida a efetuar o trabalho e a suportar as renúncias de que a existência depende. Freud (1921) não intenta dissociar cultura e civilização, sendo ambas inerentes ao ser humano e o que o diferencia da condição animal. A partir do século XVI, o conceito de cultura passa a articular-se, ora positiva ora negativamente, com o conceito de civilização, pois, inicialmente, o conceito de civilização referia-se, de um lado, ao civil, correspondente ao homem educado e polido, e do outro lado, à ordem social. Com o tempo, civilização passou a designar um estágio ou etapa do desenvolvimento histórico ocidental ligado ao progresso. Desde então, ao aproximar-se do conceito de civilização, a cultura passou a exprimir os aspectos do desenvolvimento material da sociedade moderna que via como civilizado o homem moderno. Para os alemães Kultur (cultura) é um conceito com maior expressão, pois determinam os aspectos intelectuais, artísticos, religiosos, técnicos, morais, sociais e acima de tudo a realização no próprio Ser. Para eles, o conceito de cultura não tem o mesmo significado do conceito de civilização, estabelecido pelos ingleses e franceses, pelo fato desse conceito estar relacionado à produção humana como no caso, de obras filosóficas, obras de arte, obras literárias, ou seja, a particularidade desse povo. Distinguem-se duas tendências da civilização: o conhecimento e a capacidade de controlar as forças da natureza e extrair suas riquezas para atender suas necessidades e a outra são os regulamentos de ajuste das relações entre os homens e sua distribuição de riquezas. Freud considera ambas interdependentes, 1º) pela satisfação pulsional que a riqueza traz; 2º) que o homem pode ser traduzido como riqueza para outro homem, na medida em que é utilizada sua capacidade de trabalho ou como escolha de objeto sexual e 3º) todo “indivíduo” é virtualmente inimigo da civilização. E assim a civilização deve ser defendida contra o “indivíduo” e para tanto existe sua regulamentação. E da mesma forma que as produções humanas são erguidas para sua regulação, podem também ser facilmente destruídas. 55 Falar sobre remoção de fontes de insatisfação, só é possível através da renúncia à repressão das pulsões, que parece ser incompatível com o processo civilizatório, na medida em que todos os homens têm tendências destrutivas, anti-sociais e anticulturais. Sabemos disso, pois algumas pessoas se determinam fortemente por este comportamento na sociedade. Assim, vimos deslocar as questões materiais de apropriação de riquezas para questões mentais, deixando para nós uma questão decisiva: se é possível diminuir o ônus dos sacrifícios instintuais, reconciliá-los com os sacrifícios que devem permanecer e fornecer uma compensação. Em “O Mal-Estar da Civilização”, Freud (1930) diz que o propósito da vida, é a busca por intensos sentimentos de prazer e ausência de sofrimento (princípio do prazer). Segundo ele, a infelicidade é muito mais fácil de ser experimentada: através de nosso próprio corpo, do mundo externo e do relacionamento com outras pessoas. Muitas vezes a felicidade é entendida meramente como ausência de sofrimento, dada a dificuldade de experimentá-la. Existem alguns métodos para fuga do sofrimento: o isolamento, o controle das pulsões, as substâncias tóxicas, o deslocamento de libido, etc.. A religião também é uma fuga do sofrimento, apresentando para a felicidade e deformando a visão de mundo real. A infelicidade causada pelos relacionamentos entre humanos (relações sociais) pode nos remeter à idéia de que a grande responsável por nossa desgraça seria a civilização, supondo equivocadamente que um retorno às condições primitivas nos proporcionaria maior felicidade. O aumento do controle da humanidade sobre o espaço e o tempo não aumentou a quantidade de satisfação prazerosa nem nos tornou mais felizes, o que nos permite concluir que esse poder sobre a natureza não é a única precondição de felicidade humana. Esperamos da civilização uma valorização da beleza, da limpeza e da ordem, contrariamente à tendência do homem para o descuido, irregularidade e irresponsabilidade. O passo decisivo de uma civilização é a substituição do poder individual pelo poder da comunidade (direito), atendendo a primeira exigência da 56 civilização: a justiça. A civilização é construída sobre uma renúncia às pulsões, provocando uma frustração cultural, que domina o grande campo dos relacionamentos sociais. Na busca pela felicidade, através do amor, muitos se protegem contra a perda de objetivo voltando seu amor para todos os homens, evitando as incertezas e decepção do amor genital. Para Freud (1930) um amor assim tem uma desvalorização, pois faz injustiça ao objeto. Freud repudia algumas exortações religiosas, tais como “Amarás a teu próximo como a ti mesmo” e “Ama os teus inimigos”, que vão fortemente contra a natureza original do homem. Para ele, uma exortação mais correta poderia ser: “Amarás a teu próximo como este te ama”. Segundo ele, os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas, mas são, pelo contrário, criaturas em cujos dotes pulsionais devem-se considerar poderosa cota de agressividade, que é o maior impedimento à civilização e que é internalizada pelo supereu - agente de punição e herdeiro do Complexo de Édipo. O processo civilizatório só ocorre através da renúncia pulsional e a neurose é uma resposta às exigências culturais e essa resposta é declarada através do sintoma. Uma das produções civilizatórias é o trabalho, que tem uma ação coercitiva sobre a pulsão. É sabido ainda que a palavra “trabalhar” vem do latim vulgar tripaliare, que significa torturar, e é derivado do latim clássico tripalium, antigo instrumento de tortura. Ora, temos assim uma produção que trás em si o próprio significado da coerção pulsional, ou seja a tortura. A importância e o significado que o trabalho tem sobre o sujeito, pode variar dentro de culturas diferentes, posições hierárquicas, condições sociais e econômicas, pois muitos de nós somos identificados a partir do trabalho e de suas identificações com ele. O trabalho nomeia o sujeito, por vezes, mais do que sua singularidade, qualificando-o inclusive subjetivamente. Sendo assim podemos supor que o trabalho traz para o sujeito uma submissão a exigência do Outro. 57 Como agravantes, já anteriormente citados, na nossa imersão pela sociologia, existem relações líquidas e deslocadas do ambiente grupal, sendo os laços definidos de forma fluida e superficial, especialmente as relações dentro dos ambientes virtuais, com o tempo fora do ciclo circadiano e a inserção de um universo de atuação não mais local e sim global. No livro “O Artífice”, o autor, Richard Sennett (2009), menciona que na época anterior a Revolução Industrial, o artesão e o produto do seu trabalho eram um. Aquilo que era produzido levava a marca de seu autor. Após a Revolução Industrial cada vez mais o homem se distanciou do produto final do seu trabalho, sendo que muitas vezes desconhece o impacto de suas ações no produto final. Assim também a marca pessoal que advém de nosso desejo e de nossa singularidade ficou perdida, fragmentada em processos, hierarquias de responsabilidade e distanciamento do outro. Assim o sujeito vira um espectro daquilo que é, assujeitado às relações da cadeia produtiva do trabalho e suas formas de intra e inter-relação. 4.1. Psicanálise e RH – interlocuções possíveis Pensamos assim, em possibilidades de escuta do trabalhador dentro da atuação do profissional de Recursos Humanos, como forma de propor ações que reduzam os impactos da renúncia pulsional, mas ainda a serviço dos interesses da empresa. Uma ferramenta de RH utilizada na escuta e direcionamento da demanda profissional é o Coaching. O Coaching é uma ferramenta de orientação de empregados com o objetivo de aumentar o seu desempenho profissional. Seu instrumento principal é a palavra, ou seja, o Coach (treinador ou facilitador) e Coachee (treinando) se submetem a reuniões de orientação sobre as atividades executadas e tratam de assuntos que podem de alguma forma dificultar o processo produtivo como relacionamento com 58 os seus pares no trabalho, suporte de treinamento ou dificuldades com a chefia imediata. O discurso é livre, mas voltado para questões profissionais, o Coachee se coloca em sua singularidade, sendo um convite sutil para o sujeito comparecer. Existem algumas formas de atuação do Coaching. Consideraremos aqui somente duas: o realizado por profissional interno à empresa e será nomeado em situações específicas, principalmente aquelas em que o empregado precisa de um profissional mais maduro para guiá-lo a novos desafios profissionais; e o realizado por profissional certificado para orientar profissionais em suas carreiras e é nesta atividade que, através de perguntas abertas, o Coachee pode se colocar mais livremente para falar de si e de suas escolhas profissionais. Neste momento, através da palavra, pode-se pensar numa possibilidade de emergência do sujeito, mas não é seguro que isso ocorra visto que o local constituído para tal, assim como o local de trabalho, está impregnado de significantes do trabalho que ainda poderão enrijecem o discurso do Coachee. O que podemos supor, com esta ferramenta, é que se há um discurso, mesmo que fomentado para atuar em uma questão específica do sujeito, esse discurso poderá trazer informações que, para um ouvinte preparado, aqui me refiro ao profissional que fez sua formação em psicanálise, é possível inferir hipóteses que estabeleçam novas significações não só ao objeto do Coaching, mas também a outras questões relativas a vida do Coachee. Como sabemos, a psicanálise tem como alguns de seus recursos para a investigação do sujeito os lapsos, os atos falhos, os chistes, os comportamentos repetitivos e por vezes o próprio silêncio que se instala. Assim, não há pretensão de se realizar no trabalho de Coaching um tratamento psicanalítico, mas sim escutar algo se singular que se produz neste discurso para além do objeto de intervenção proposto. 59 Mas vamos aprofundar a questão da escuta em psicanálise de forma a entender os seus benefícios no ambiente organizacional. A escuta tem um espaço medular na psicanálise. Não importa se as palavras vêm maquiadas de mentiras ou silêncios, e sim que são portas que se abrem para uma possibilidade de interpretação e levantamento de hipóteses a cerca do sujeito. Desta forma, entendemos que também na empresa podemos tecer hipóteses sobre o discurso do trabalhador, desde que haja um interlocutor atento e preparado para tal. Acreditamos que a utilização apropriada das ferramentas existentes na atuação da área de Recursos Humanos, como em Recrutamento e Seleção, Treinamento, Avaliação de Desempenho ou na Entrevista de Desligamento, propiciam ao trabalhador um espaço de posicionamento diante das variáveis em que este está submetido e, sendo assim, há uma possibilidade de dar uma direção às hipóteses levantadas a partir deste posicionamento (fala do trabalhador). Caminhar no sentido de desvelar a fala do trabalhador na empresa é um percurso árduo, que precisa de algumas arestas, visto que aquilo que temos nesta condição de ouvintes dentro das empresas são apenas pistas que por vezes podem ser enganadoras ou encobridoras de outras questões, principalmente porque nos parece que há mais a ser dito, mas o espaço que se permite a fala é restritivo a uma exposição maior do trabalhador. Mas algo é dito e quanto a isso não há como negar. Temos uma causa e um efeito sendo apresentado constantemente, seja pela via da observação direta do trabalhador na sua relação com sua função, seja pela fala junto ao seu supervisor, seja pela sua possibilidade de colocação pela via do RH. Em algum momento sabemos que o sujeito e seu desejo irão comparecer e que, para sermos efetivos em nossa ação de escuta e direcionamento de demanda, devemos estar atentos. Remetemo-nos, assim, ao texto de Silvia Alonso (2007), “A escuta psicanalítica”: 60 “Nisto se baseia o conceito de inconsciente, onde Freud coloca a fala em outro lugar. Neste falar, em certos momentos, a lógica consciente se rompe, se desvanece, e algo diferente se torna presente, manifestando uma outra lógica.” Através dos lapsos, chistes, esquecimentos, das frases contraditórias, do duplo sentido, se revelam o sentido que aparentemente seria um sem sentido no discurso do trabalhador. Como quando um trabalhador ao falar de seu chefe o chama de “paitrão” e ri pela palavra que formou. Logo após quando questionado sobre este neologismo, responde que o chefe tem comportamentos com ele que o faz lembrar seu pai e isso o incomoda, trazendo problemas de relacionamento com seu chefe e consequentemente em seu desempenho. Não podemos propor nas empresas a associação livre, regra fundamental para a situação analítica, mas podemos aproveitar espaços da fala do trabalhador e esperar que algo compareça em algum momento. Mais do que isso, estar disponível para ouvi-lo quando este momento acontecer. “Diria então que, do lugar do analista, se escuta tudo, para poder escutar alguma coisa. Coisa essa que é o inconsciente, que no seio da repetição insiste para ser escutado, que na trama dos movimentos imaginários se disfarça, se fantasia e, no entanto, vai tecendo o fantasma.” (ALONSO, 2007). Porém, existem riscos nesta conduta de escuta nas empresas. Para ilustrar relatamos o caso de alguns trabalhadores em uma fábrica que reclamaram de uma psicóloga que parecia “investigar” os seus pensamentos, fazendo perguntas sem sentido para eles, longe do contexto do trabalho. Questionada sobre sua conduta a psicóloga relatou que estava buscando informações importantes para entender o baixo desempenho dos mesmos, mas o que aconteceu foi exatamente o contrário, a resistência se instalou não só nestes trabalhadores como também nos demais que acabaram sabendo do ocorrido. O que queremos considerar com este exemplo é que podemos ter as mesmas respostas sem que precisemos ser 61 invasivos, criando um ambiente favorável para que o trabalhador possa se colocar, o que precisamos saber, para a entendermos a dinâmica de um grupo ou de um trabalhador em função de sua atuação, comparece na sua fala. Remetemo-nos neste momento ao famoso caso Emmy que pede, certa vez, que não a tocasse, não a olhasse e nada falasse; queria apenas ser escutada. Outro risco é fazer hipóteses de forma precoce, sem que as mesmas sejam minimamente aprofundadas com outras variáveis, visto que time is money nas empresas e sendo assim o tempo que utilizamos para este fim é reduzido, sem que possamos seguir de perto as repetições derivadas da insistência da pulsão. Aqui temos um grande paradoxo, posicionar o ser humano em um complexo sistema de valores científicos, previsíveis e controlados, tendo como grande protagonista deste sistema um ser relativo, complexo e instável. Além disso, um ser em relação, histórico, em eterno (enquanto dure) devir. Um conceito importante dentro do campo da fala e da escuta é o da transferência, onde o analisando endereça ao analista seu desejo, de forma a não reconhecer a falta. Mas o analista só permite este endereçamento para que na sua presença/ausência o desejo possa deslizar entre os significantes e assim possibilitar simbolizações estruturantes. Isso só é possível por conta da renúncia narcísica do analista, que concede a ele um lugar de angústia que o remete a sua própria análise, visto que por vezes o discurso do paciente fomenta os pontos cegos do analista. Assim, para que o analista possa “sobreviver” a este lugar é fundamental que tenha passado por sua análise pessoal, pois só assim ele poderá sustentar a transferência sem que sua história seja confundida com a história do paciente e consequentemente sua escuta fique implicada. Pensamos assim como este processo transferencial pode ocorrer na empresa visto que aquele que escuta também está submetido às mesmas variáveis que aquele que fala e assim comprometido com a história do outro semelhante. Mais 62 do que isso, aquele que escuta não está protegido pelo espaço analítico ou pelo tempo lógico que ele impõe. E, para finalizar, não tem a formação ou a análise pessoal que possa fazê-lo se distanciar no momento da escuta para poder levantar hipóteses mais isentas a partir da fala do trabalhador. Essas são questões que não vamos desenvolver com profundidade, mas ficam como pontos de atenção e de estudo para outra oportunidade. Mas mesmo não avançando de forma devida, é fato que Freud privilegia a palavra como porta de acesso ao desconhecido e, assim sendo, a escuta se instaura como o decodificador para este desconhecido que se apresenta e se ausenta, a partir da fala, cuja produção é singular a cada ser humano. Eugène Enriquez (1997), em seu livro, “A Organização em Análise”, fala da importância da psicanálise para a análise organizacional, principalmente quando tratamos de aspectos inconscientes da conduta social, porém coloca que a lógica da psicanálise é outra e não pode ser confundida com aspectos sociais, afirmando que: “[...]… porquanto Freud mantém, apesar das ligações existentes, uma distância entre a realidade psíquica e realidade histórica. Essas duas realidades que estão naturalmente em interações, como já salientei antes, procedem de universos diferentes, conhecem sua própria lógica, suas próprias leis de funcionamento e não podem se reduzir uma a outra.” (ENRIQUEZ, 1997, p. 28). Enriquez trás uma contribuição relevante ao nosso tema quando revela que a organização como um sistema simultaneamente cultural, simbólico e imaginário. Como sistema cultural, define a possibilidade da organização oferecer uma estrutura de valores e normas, auxiliando na constituição de uma determinada cultura. Com isso são constituídas expectativas de papéis, condutas e hábitos de pensamento e de ação. Além disso, apresenta um processo de formação e de socialização que permite que novos atores possam se inserir nesse sistema, estabelecendo bons comportamentos e boas condutas. 63 Como sistema simbólico, apresenta a possibilidade de criação de uma narrativa onde os atores dão sentido aos seus atos e legitimam suas condutas e práticas. Apesar do sistema simbólico não estar completamente fechado, as organizações procuram, consciente ou inconscientemente, criá-lo para que os indivíduos não se sintam inseguros quanto ao sistema. Um sistema imaginário também será produzido para sustentar o sistema cultural e simbólico, de forma que a organização consiga capturar “os indivíduos nas armadilhas de seus próprios desejos de afirmação narcisista” (ENRIQUEZ, 1997, p. 35). Assim, imaginário, a organização busca a substituição do imaginário dos indivíduos pelo dela. Neste processo de sedução, aparecendo simultaneamente como muito poderosa e possuindo extrema fragilidade, o que se propõe é ocupar a totalidade psíquica do indivíduo. Além disso, o imaginário reflete a ilusão de que a organização permite a criatividade para que os indivíduos não se sintam reprimidos com as regras organizacionais. Para melhor análise das organizações, Enriquez propõe sete instâncias (ou níveis) baseando-se no pensamento de Freud: a instância mítica, a instância sócio-histórica, a instância institucional, a instância organizacional, a instância grupal, a instância individual e a instância pulsional. A instância mítica se refere às narrativas que contam uma história sobre um tempo sem data, que possibilita que os atores, situados no tempo histórico, dêem sentido aos seus atos. Nas organizações há uma valorização do passado, da história sempre gloriosa, entre dificuldades e triunfos, e que afirma sua existência e perenidade. Há diferentes formas de mitos, mas ele é conservador por excelência, já que une pensamento e comportamentos, clamando por ações coerentes com a narrativa que ele conta. “Assim, o mito trata de congregar a comunidade em torno da narrativa, provocando nela uma identificação com os protagonistas do drama; cada um sendo colhido nesse processo afetivo poderá identificar-se com os outros membros e contribuir com a construção comunitária. Nessa ótica o 64 mito é criador na sideração e no amor... o mito permite elevar o comum dos mortais à altura dos Seres de que ele fala.” (ENRIQUEZ, 1997, P.42) O mito aponta para a ideologia como forma de revestir a trama social com maior coesão. Essa é a instância social-histórica, ou seja, o modo de acontecer no tempo e espaço e a forma de ser da organização, segundo as nuances do mito construído. A ideologia, segundo Enriquez, pretende simultaneamente: 1) expressar a realidade, porque caso não estivesse fundamentada em algum nível de verdade, não faria nenhum sentido e 2) mascará-la porque pretende ocultar os conflitos, assimetrias e relações de dominação existentes em qualquer sociedade com classes. É na instância institucional que se encontram os verdadeiros fenômenos de poder que advêm da instância sócio-histórica. É nela que encontramos a expressão do poder, onde tudo é controlado e direcionado. Aqui a palavra instituição é utilizada para dar visibilidade e poder ao que não é visível: “a instituição é assim, aceite”, impondo limites a subjetividade, visando manter um estado de coisas, estabelece uma repetição de comportamentos, assegurando a transmissão de normas, regras, valores e comportamentos aceitáveis. “O que desejo salientar no estudo da instância institucional... é a capacidade da instituição de se defender contra toda a interrogação, a promulgar suas leis e decretos sem se indagar se são justos ou pertinentes.” (ENRIQUEZ, 1997, P.80). A instância organizacional é o que torna concreta a instituição e busca servir como porta-voz legítimo dessa. Podemos ter várias organizações sob a égide de uma mesma instituição. Verificamos claramente a representação desta instância na fala de um gestor em uma entrevista de diagnóstico gerencial: “Se fosse eu não seria assim, mas como represento a empresa, tenho que fazer.” Aqui vemos como somos embotados em nossos desejos e valores, sendo destituídos de nossa subjetividade em prol da organização. A organização traduz as assimetrias de poder em divisão do trabalho e em sistemas de autoridade. Se a instituição é o 65 lugar das disputas políticas, a organização é o lugar onde se dão as relações de força, as lutas explícitas e implícitas e as estratégias dos atores. Além do trabalho, da produção e do lucro, dentro das organizações existem grupos que estabelecem relações afetivas e interesses comuns, por vezes com identificações fora do contexto do trabalho. Sendo assim, a instância grupal é fundamental para a compreensão dos fenômenos coletivos. Um grupo se estabelece em torno de uma causa seja instituída em um primeiro momento, ou proposta a posteriori. É nos grupos que se expressa a solidariedade entre os trabalhadores, onde as pessoas se agrupam para resolver seus problemas no trabalho e simultaneamente onde surgem as estratégias de resistência e luta. Na essência de um grupo está a noção de comunidade. Por comunidade entende-se: “[...] uma associação voluntária de pessoas que experimentam em comum a necessidade de trabalharem juntos em conjunto ou de viverem juntas de maneira intensa, a fim de realizarem um ou diversos projetos que assinalam sua razão de existir.” (ENRIQUEZ, 1997, p. 103) A instância individual preocupa-se com as condutas normais e patológicas do indivíduo na construção social. Enriquez não nega que o indivíduo nasce em uma sociedade já com uma cultura e que essa cultura vai estruturar a conduta do indivíduo. No entanto, o indivíduo possui certa autonomia na construção do social e para o autor, retirar o indivíduo do estudo é não entender que ele é agente passivo e ativo da construção social. A última instância é a pulsional. Trieb (Pulsão) significa uma força germinativa; um impulso, impulsão, propulsão. É a forma originária do querer. Freud (1916) define pulsão como sendo um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, como o representante psíquico dos estímulos que se originam no corpo - dentro do organismo - e alcança a mente, como uma medida da exigência feita à mente no sentido de trabalhar em conseqüência de sua ligação com o corpo. A instância pulsional, é apreendida pelos seus efeitos e representantes psíquicos, sendo constituída pela pulsão de vida e pela pulsão de morte, entendendo pulsão 66 como “um processo dinâmico consistindo num impulso que faz o organismo tender para um objetivo” (ENRIQUEZ, 1997, p. 123). A pulsão de vida favorece o amor e a amizade entre os seres, pois representa as exigências da libido, mas é canalizada ou sublimada para o fortalecimento dos elos sociais. Nas organizações essa pulsão se dá com busca de eficiência, dinamismo, mudança e criatividade e põe em funcionamento o processo de ligação favorecendo a coesão e harmonia. A pulsão de morte é uma compulsão a repetição e a tendência à redução das tensões ao estado zero. Essa pulsão manifesta-se nas organizações como uma força que tende à homogeneização do trabalho, à recusa da criatividade, à repetição e a própria burocratização. 4.2. France Télécom – um caso Compreendendo os diversos impasses do sujeito, diante das múltiplas representações do trabalho: o trabalho como base de valoração do homem, como sofrimento, como definição do que se é perante a sociedade e analisando o contexto das relações de trabalho e as instâncias sugeridas por Enriquez (1997), trazemos uma evidência indiscutível sobre as conseqüências do mundo do trabalho sobre o trabalhador. A France Télécom foi considerada a principal empresa francesa de telecomunicações e a 71ª empresa mundial no ano de 2010. Emprega quase 187.000 pessoas, cerca de 100.000 na França, e atende cerca de 174 milhões de clientes no mundo. Para responder a uma diretiva européia de colocação em concorrência dos serviços públicos nacionais, a Direction Générale des Télécommunications (DGT) torna-se a France Télécom em 1º de Janeiro de 1988. Em julho de 1990, a partir da lei instituída para fins de mudança de administração, transforma a France Télécom em uma empresa de direito público, onde é dotada de uma personalidade moral distinta do Estado e adquire autonomia financeira. 67 Em setembro de 2004, o Estado francês vende uma parte das suas ações, para reduzir seu nível abaixo dos 50%, transformando A France Télécom definitivamente em uma empresa privada. Após essa transição de capital e administração, precisamos entender que sua história não se reduz a uma mudança de modelo administrativo-financeiro. Temos uma instituição pública com códigos de conduta, valores, vínculos de trabalho e relações humanas próprias que regem este tipo de instituição e ocorre uma mudança para uma instituição privada, com novas regras, valores, vínculos e uma mudança estratégica drástica do posicionamento da gestão de seus empregados. Foram utilizadas técnicas para obrigar os empregados a deixarem a companhia, como transferências forçadas para outras regiões e mudanças nas atividades e cargos dos funcionários. O programa "É hora de se mover" obrigou os gestores a mudar de profissão ou área geográfica, a cada três anos. Seus empregados foram compelidos a se filiar a outra instituição, mesmo sendo aparentemente a mesma, sem que tenham feito uma escolha por ela, tendo que se submeter a códigos de competitividade e rotatividade que desconheciam. Essas, entre outras modificações no modelo de gestão dessa empresa, foram reconhecidas como as causas de depressões em seus empregados, entre outros problemas psicológicos, e estariam ligadas também ao grande número de suicídios entre 2008 e 2010. Neste período ocorreram mais de 30 suicídios e mais de 20 tentativas. A empresa admitiu que as mudanças organizacionais necessárias durante a transição de uma companhia estatal para uma multinacional competitiva poderiam ser consideradas estressantes e como conseqüência ter motivado os suicídios e demais estados psicológicos alterados. 68 Segundo o sindicato SUD-Solidaires, um dos empregados que se suicidou tinha sido transferido recentemente e não se sentia bem no seu novo serviço, “do qual se libertou”, segundo sua carta de despedida. Patrice Diochet, de um dos sindicatos ligados a France Télécom , reagiu à notícia dizendo: "É aterrorizante. Ele trabalhava numa seção conhecida há muito tempo por ser insuportável, havia uma verdadeira indiferença, nenhum calor humano, não se falava senão de números. Os empregados eram carne para canhão”. Outra empregada se jogou do quarto andar do prédio da empresa, depois de uma reunião de trabalho em que lhe foi comunicado que mudaria de função. O marido da vítima, um executivo sênior, escreveu uma carta acusando a empresa de ser responsável pelo gesto de sua esposa. “Suicido-me devido ao meu trabalho na France Télécom. É a única causa.” O autor desta frase desesperada, um empregado de 51 anos, pôs termo aos seus dias em seu domicílio, em Marselha. Na carta deixada à sua família, cujo conteúdo foi comunicado, de acordo com a sua vontade, aos seus colegas e aos delegados dos trabalhadores (representantes sindicais na empresa), evoca nomeadamente “a urgência permanente”, “a sobrecarga de trabalho”, “a ausência de formação”, “a desorganização total da empresa” e “a gestão do terror”. Outro empregado escreve: “Aquilo desorganizou-me totalmente e perturbou-me. Tornei-me um barco naufragado, é melhor terminar.” A Direção da empresa confirmou os suicídios, mas não teceu comentários sobre o conteúdo das cartas, relatando somente a importância de se tentar compreender o que se passou, recordando que as causas de um suicídio podem ser sempre múltiplas. A empresa afirmou ainda que alguns dias antes de alguns dos suicídios, os colegas dos empregados e os seus responsáveis observaram sinais de depressão. 69 Um dos delegados dos trabalhadores tinha alertado sobre o mal estar no trabalho de um dos empregados suicidas e a empresa tentou diminuir o volume de seu trabalho, conforme informado pelo delegado dos trabalhadores Denis Capdevielle, do Comitê de Higiene, Segurança e Condição de Trabalho (CHSCT) da unidade onde trabalhava. “Mas o seu mal estar devia ser profundo”, acrescentou. Os sindicatos denunciaram durante vários anos o estresse na France Télécom e as pressões sobre o pessoal, principalmente, pressionando-os à demissão voluntária, para atender um plano de reestruturação que se traduziu em mais de 22.000 “partidas voluntárias” entre 2005 e 2008. Fabienne Viala, representante de um dos sindicatos, denunciou sobrecargas de trabalho ligadas à baixa de efetivos e às responsabilidades cada vez mais pesadas, principalmente para as chefias, como era um dos empregados falecidos. Diante deste quadro, a Direção da France Télécom instaurou um dispositivo de escuta para os colegas envolvidos nas perdas. No entanto, nos perguntamos se este dispositivo não deveria ter surgido no momento em que houve a decisão da privatização. Nos perguntamos ainda se a área de Recursos Humanos da France Télécom instaurou algum dispositivo para identificar os impactos que essa mudança poderia gerar, e efetivamente acabou gerando, em seus trabalhadores. Questionamos ainda se a área de Recursos Humanos pode ter voz para agir estrategicamente neste processo e minimizar os impactos que seriam facilmente identificados, se pudesse atuar neste processo. Os seis sindicatos envolvidos com a empresa tiveram uma esperança ao serem atendidos em uma reunião com o Diretor de Recursos Humanos, Olivier Barberot, um deles saindo da reunião dizendo: “Começa a haver uma escuta na France Télécom …”. Na véspera deste encontro, a direção tentava minimizar o sentido a dar a estes suicídios, mas a pressão e os alertas foram finalmente entendidos. 70 Todos saíram da reunião com vários compromissos de multiplicação das iniciativas. Como a “Comissão Estresse” criada no CHSCT; a formação dos seus gerentes para a detecção dos sinais de fragilidade em seus empregados - índices que levam a suspeita que um empregado encontra-se em dificuldade; além dos espaços de escuta e de acompanhamento. Mas apesar de todos os esforços, após algum tempo, o acompanhamento dessas ações acordadas foram criticadas pelos sindicalistas que denunciaram a falta de reuniões da comissão para redução do estresse, assim como a inoperância da escuta realizada pelos gestores, visto que os empregados se sentiam intimidados em relatar seus problemas frente aos seus superiores hierárquicos. A empresa insistiu no acompanhamento dos empregados através de seus 70 médicos do trabalho e seus 40 assistentes sociais. Porém reconheceram que não eram bastante numerosos. É aqui que a atuação do profissional de Recursos Humanos é crucial, de forma estratégica, estruturada e antecipatória na sua escuta da organização e de seus trabalhadores, tornando-se parte importante na forma de organização do trabalho, nos processos de mudança e outras ações que envolvem pessoas, de modo a apoiar e direcionar as demandas dos trabalhadores às instâncias passíveis de ação. Sabendo que a essência do homem o conflito e certo grau de insatisfação, o que nos resta é escutar em que bases foram estabelecidas as identificações para formação dos grupos e o quanto o trabalho, através de seus códigos, proibições e exigências amarram o trabalhador de forma a que a única saída para dar conta desta renúncia seja agressão contra si mesmo ou contra o outro. Entendemos, por fim, que é a partir da escuta que podemos apontar para uma possibilidade de ações que mantenham minimamente esses investimentos libidinais sustentando esse lugar seguro da realidade. 71 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Nossa afinidade com a teoria psicanalítica, e nossa atuação como profissional de RH, muitas vezes, escutando o trabalhador para além do que seria nossa função, nos impulsionou a mergulhar nas contribuições possíveis da psicanálise para o entendimento das questões do trabalhador frente às relações de trabalho. Nos propusemos ainda a discorrer sobre a questão da escuta analítica nos subsistemas de recursos humanos, acreditando que poderemos nos apropriar de alguns referenciais da psicanálise para instrumentalizar os profissionais de RH a serem melhores ouvintes, atuando fora do contexto de instrumentalização da subjetividade, Para nos amparar neste desafio, discorremos sobre a atual dinâmica do trabalho, onde tempo e espaço são fluidos, e as relações humanas estabelecidas são intermediadas pelo mundo virtual, não havendo mais certezas. Giddens nos diz que estamos em um mundo cada vez mais fantasmagórico. O que conhecemos hoje poder ser refutado amanhã, trazendo para nós o campo da angústia. Acrescentamos a visão de Bauman sobre a modernidade, como produtora de uma profunda mudança na condição humana e em seus conceitos básicos de: individualidade, relação tempo/espaço, vínculos de trabalho e a participação em comunidade. Consideramos, ainda, Sennet como o autor que caracteriza as empresas pela "força dos laços fracos", pela falta de vínculos mais estáveis e da falta de uma perspectiva de compromisso duradouro com a empresa, levando os trabalhadores a terem uma relação menos fiel do que aquela existente no passado. Sennet acrescenta que diante da destruição da esperança e do desejo, a preservação de nossa voz ativa é a única maneira de tornar o sofrimento suportável, tentando uma espécie de saída através da palavra. Neste ponto nos 72 apoiamos no autor em nossa crença de que, ao ouvir o trabalhador, talvez haja uma possibilidade de redução da insatisfação na relação com o seu trabalho. Falamos dos impactos deste novo modelo de trabalho, que exige dinamismo e enfrentamento de incertezas. O que poderia ser um catalisador para um retorno aos vínculos mais densos, se traduz na evitação desses vínculos, onde os grupos tendem a manter-se juntos na superfície das coisas. Além disso, há a perda da identificação entre o ato e o ator do trabalho. A alienação e a indiferença, no que se refere ao produto do trabalho, se instauram e o trabalhador não tem mais o domínio, mesmo que parcial, do seu processo produtivo, desconhecendo o seu valor dentro dele. Podemos exemplificar esta perda, com a fala de uma psicóloga, em um posto de saúde, que precisa alcançar as metas estabelecidas pela gestão, atendendo certo número de pacientes por dia. Questionamos onde está o seu ofício original durante o processo de alcance de metas e onde está o operador deste ofício impregnado por elas. Após visitarmos o contexto social consideramos importante, e necessário, discorrer sobre os principais movimentos da administração do trabalho, para que a posteriori pudéssemos articular os laços sociais estabelecidos na atualidade dentro das empresas e assim posicionar a atuação do profissional de recursos humanos. Vários foram os movimentos da administração, alguns com foco nas tarefas, outros na estrutura, nas pessoas, nos ambientes e por último na tecnologia. Porém circunscrevemos somente alguns dos movimentos da administração, a fim de pontuar suas reminiscências nos dias de hoje dentro das empresas. O Taylorismo, ou a chamada Administração Científica, constituído basicamente de um modelo de desenvolvimento dos empregados e seus resultados, através 73 de instruções e procedimentos, para que pudessem fazê-los produzir mais e com qualidade melhor. O Fordismo que revolucionou a indústria automobilística a partir de 1914, quando introduziu a automatização da linha de montagem de seus carros, utilizando os princípios de padronização e simplificação de Taylor. Seu grande objetivo era popularizar o automóvel através da redução dos custos da produção. Em 1970, a General Motors flexibiliza sua gestão e sua produção, cria diversos modelos de carro com cores variadas e adota um sistema de gestão profissionalizado, assim ultrapassando a Ford como maior montadora do mundo. Neste mesmo período com a crise do petróleo e a entrada de competidores japoneses neste mercado, um novo modelo de produção se inicia baseado no Toyotismo e em 2007, a Toyota se torna a maior montadora de veículos do mundo colocando fim ao Fordismo. Apesar das maravilhas e novidades que o Toyotismo trouxe através da tecnologia nos modos de produção atual, esse mesmo modo desencadeou um elevado aumento das disparidades socioeconômicas e uma necessidade desenfreada de aperfeiçoamento tecnológico para se manter no mercado. Em setembro de 2008, vivemos uma nova crise econômica mundial e Richard Sennett coloca que ela representa uma profunda ruptura com a visão de trabalho predominante no século XX. Esta ruptura vinha se processando com a emergência das novas tecnologias da era digital que, por si, já modificaram a natureza do trabalho contemporâneo. No ambiente de crise, essas mudanças derivadas da técnica, criam um quadro potencialmente explosivo em curto prazo. Os vínculos que se estabelecem com as empresas já não são mais fantasiosos, cumprindo uma promessa de convivência eterna e de plena satisfação. A relação de uso entre as coisas e as pessoas, muito bem colocado por Bauman, é também 74 vivenciada nas relações de trabalho que estabelecem vínculos frágeis e sem envolvimento subjetivo. Diferentemente de se pensar em uma nova forma de subjetividade que estaria surgindo a partir de todas as mudanças no mundo do trabalho, pensamos em uma forma de subjetividade reativa a uma sociedade que trás para cada sujeito a necessidade de sobreviver em meio à fluidez de ideais, vínculos frágeis, descrenças nas autoridades e tantas outras inconstâncias advindas do Outro. Freud afirma ainda, no texto, Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921), que somente através da identificação mútua entre os membros da massa e do controle da expansão narcísica pode haver possibilidade de coesão social, indicando a importância dos vínculos libidinais para a limitação do narcisismo e os compromissos primordiais para a existência de um grupo. Porém, no ambiente de trabalho, essa esperança de estabelecimento de vínculos está capturada pelas organizações capitalistas, amarrando o trabalhador no ideário narcisista, tendo em vista que, quanto mais fluidas são as relações, muito bem descrito por Bauman, mais submetido às regras como ponto de apoio para sua sobrevivência e mais submetido aos seus próprios interesses em detrimento do todo, gerando uma competitividade por vezes doentia e que adoece o trabalhador. Sennet coloca que a corrosão do caráter acontece para fazer frente a esta constante desconstrução do que se é diante de um vínculo de trabalho. Se o trabalhador não pode mais criar laços com a empresa, pois não há mais garantias de longo prazo, se não pode criar laços com seus colegas de trabalho, pois existe uma competição acontecendo por melhores resultados, se o ideário da empresa pode mudar a qualquer momento devido a fusões, compra, venda ou internacionalização de outras culturas, o que resta é a sustentação de um mínimo de narcisismo para a proteção do ego. 75 Quanto menos vínculos existirem, quanto mais autônomo e auto-suficiente o trabalhador for, maior a possibilidade de sobreviver tanto no atual mundo do trabalho quanto emocionalmente, visto que a insistência das organizações capitalistas é a redução ou coisificação da subjetividade do trabalhador. Exemplificamos as conseqüências deste fato com o caso da France Telecom, principal empresa francesa de telecomunicações que para responder a uma diretiva européia transforma-se em 2004 em uma empresa privada. Assim, temos uma instituição pública com códigos de conduta, valores, vínculos de trabalho e relações humanas próprias, que regem este tipo de instituição. Há então uma mudança radical da instituição de pública para privada, com novas regras, valores, vínculos e uma mudança estratégica drástica do posicionamento de seus Recursos Humanos. Entendemos que trabalhadores foram forçados a se filiar a outra instituição submetidos a códigos de competitividade e rotatividade que desconheciam. As conseqüências desta mudança foi o grande número de suicídios nessa empresa e o reconhecimento de sua relação com as modificações no modelo de gestão dessa empresa. Entre 2008 e 2010, ocorreram mais de 30 suicídios e mais 20 tentativas. Em alguns de seus pronunciamentos, a empresa admite que as mudanças organizacionais necessárias durante a transição de uma companhia estatal para uma multinacional competitiva poderiam ser consideradas estressantes e como conseqüência ter motivado os suicídios. Foram utilizados artifícios para obrigar os empregados a deixarem a companhia, como transferências forçadas para outras regiões ou mudanças nas atividades e cargos dos funcionários. 76 Mesmo que tardiamente, a direção da France Telecom se rende a necessidade de ao menos apoiar os colegas daqueles que se suicidaram, instaurando “um dispositivo de escuta”. No entanto, nos perguntamos se este dispositivo não deveria ter surgido no momento em que houve a decisão da privatização, quando no processo de mudança, muitos desses trabalhadores poderiam ser ouvidos em suas inseguranças. Questionamos ainda se a área de Recursos Humanos da France Télécom instaurou algum dispositivo antecipatório para identificar os impactos que essa mudança poderia gerar em seus trabalhadores e se pode ter voz para agir estrategicamente neste processo e minimizar os impactos que seriam facilmente identificados se pudesse atuar neste processo. Diante deste caso e da realidade encontrada dentro das empresas, utilizamos os textos culturais de Freud. Observamos as similaridades entre os totens e tabus nas tribos primitivas, com os totens e os tabus nas empresas, numa tentativa de realizar uma analogia deste traço primário da existência humana com os complexos grupos que se formam dentro das organizações. Discorremos sobre os fenômenos do indivíduo em grupo, indagando o porquê, sob certa condição grupal, um indivíduo age de maneira inteiramente diferente daquela que seria esperada e qual seria a natureza desta força que produz este tipo alteração mental. Le Bon tenta responder a este questionamento dizendo que os indivíduos em grupo tomam posse de uma mente coletiva que os fazem agir de forma diferente de quando isolados. Ele trata este fenômeno como grupo psicológico que é um ser provisório com características diversas daquelas dos indivíduos que o compõe. Para a psicanálise, porém, diz-se que o indivíduo é colocado sob condições que permitem o surgimento das repressões dos impulsos instintuais inconscientes, as 77 características que aparentemente são novas, na realidade são as manifestações desse inconsciente e que quando se reúnem em certo número, se colocam instintivamente sob a influência de um chefe, pois possui tal anseio de obediência, que se submete instintivamente a qualquer um que se indique a si próprio como chefe. No filme infantil “Onde moram os monstros?”, baseado no livro de Maurice Sendak, é retratado um mergulho na mente de Max, um menino de aproximadamente 8 anos que, depois de ser mandado para a cama sem jantar, "cria" uma enorme floresta em seu quarto. A floresta torna-se um mundo, que Max explora com um barquinho a vela. Ao chegar à terra firme, ele conhece monstros assustadores, dos quais se torna rei, simplesmente nomeando-se como tal. Mas embora tornar-se rei não tenha sido tão difícil, pois os monstros que moravam na ilha ansiavam por liderança, manter-se como tal foi um desafio. Este filme é uma alegoria de questões como liderança, trabalho em equipe, e a necessidade natural de liderança, retratadas com profundidade no texto de Freud, Psicologia das Massas e Análise do Eu (1923). Podemos observar, ainda neste filme, logo em seu início, a resistência e o desapontamento dos monstros na tentativa de se submeter às demandas impostas pelo líder, em especial o retorno dos relacionamentos entre os monstros. Esta passagem nos remeteu ao texto de Freud, O Mal estar na Cultura, onde coloca que a infelicidade causada pelos relacionamentos sociais pode nos remeter à idéia de que a grande responsável por nossa desgraça seria a civilização, supondo equivocadamente que um retorno às condições primitivas nos proporcionaria maior felicidade. Freud coloca ainda que o controle da massa (entendida como grupo) por uma minoria e a coerção no trabalho da civilização é condição básica para a manutenção do processo civilizatório. Só através de um processo de influência de indivíduos que possam fornecer exemplo, e que sejam reconhecidos como líderes, o grupo poderá ser induzido a efetuar o trabalho e a suportar as renúncias de que a existência depende. 78 O mal estar então resultaria da renúncia pulsional que a civilização exige, a substituição do poder do indivíduo pelo poder do grupo instaurado pelo líder. Na tentativa de reduzir a insatisfação diante da força da civilização, a humanidade luta pelo controle sobre o espaço e o tempo, porém os resultados dessa luta não aumentaram a quantidade de satisfação prazerosa nem nos tornou mais felizes, o que nos permite concluir que esse poder sobre a natureza não é a única precondição de felicidade humana. FREUD, em O Futuro de uma Ilusão, relata que: "Nenhuma outra técnica para a conduta da vida prende o indivíduo tão firmemente à realidade quanto à ênfase concedida ao trabalho, pois este, pelo menos, fornece-lhe um lugar seguro numa parte da realidade, na comunidade humana. A possibilidade que essa técnica oferece de deslocar uma grande quantidade de componentes libidinais, sejam eles narcísicos, agressivos ou mesmo eróticos, para o trabalho profissional, e para os relacionamentos humanos a ele vinculados, empresta-lhe um valor que de maneira alguma está em segundo plano quanto ao de que goza algo indispensável à preservação e justificação da existência em sociedade. A atividade profissional constitui fonte de satisfação especial, se for livremente escolhida, isto é, se, por meio de sublimação, tornar possível o uso de inclinações existentes, de impulsos instintivos persistentes ou constitucionalmente reforçados." (Freud, 1930, p.99 nota 1) Pensando neste recorte podemos inferir então que o trabalho profissional tem uma função importante para a sociedade e, se também constitui uma fonte de satisfação, nos arriscamos então a pensar que a atuação do profissional de RH pode estar, mesmo que indiretamente, vinculada ao entendimento do direcionamento satisfatório dos componentes libidinais. Mas analisadas, mesmo que superficialmente, as atividades de RH, verificamos que embora sua configuração de conceitos e práticas apontem para uma 79 possibilidade de incremento da performance do trabalhador e do aumento de satisfação no trabalho, o que pudemos perceber, ao longo do nosso percurso profissional, acompanhando trabalhadores dentro da empresas, é um distanciamento entre os resultados esperados dessas ações e o que se traduz em realidade. Em muitas entrevistas individuais e dinâmicas de grupo, por nós realizadas, pudemos registrar algumas falas de candidatos, como: “existe vida após o trabalho”; “é importante separar a vida profissional da pessoal”; “precisamos ter um tempo depois do trabalho para se fazer aquilo que se gosta”. Pensando nestas falas extraídas do contexto de avaliação e exposição profissional do trabalhador sobre suas expectativas pessoais e profissionais, nos questionamos, sobre as conseqüências da não escuta de seus significantes em relação ao trabalho. Encontramos, em algumas empresas, situações onde os trabalhadores não são consultados quanto aos treinamentos que irão realizar e quando o são, (através de formulários ou em raros momentos em entrevistas) percebe-se que a visão da empresa sobre a capacitação e desenvolvimento daquele trabalhador está, muitas vezes, dissonante com a sua necessidade ou desejo. Foi ouvindo as empresas, na figura de seus gestores, e ouvindo os trabalhadores; que consideramos uma pergunta recorrente: que relevância há neste ouvir que nos impele a contribuir para a melhoria das relações entre a organização e o trabalhador. Ao escutar os trabalhadores sobre suas questões profissionais e também aquelas de cunho mais pessoal, percebe-se que a função de escuta, nos processos de seleção, avaliação de desempenho, treinamento e outros subsistemas que nos confrontam com a fala do trabalhador, fica à deriva, não havendo porto seguro que a acolha dentro das organizações, no sentido de uma prática habitual dos 80 profissionais que se dizem agentes da melhoria das relações humanas no trabalho. Nas possibilidades que se apresentam, dentro dos subsistemas de RH, temos atuado nesta função faltosa apoiando-nos na escuta dos trabalhadores para além dos dados quantitativos esperados, traduzindo essas falas em ações concretas de melhoria de processos e relações de trabalho. Uma dessas ações já praticadas em nosso trabalho é o treinamento de consultores em avaliações de RH, sejam entrevistas, dinâmicas, análise de desempenho, levantamento de clima e cultura, tendo como base o arcabouço da psicanálise, para que utilizem a palavra do trabalhador para além da informação, ou seja, para que se aprofundem, dentro dos objetivos da atividade executada, nas questões subjetivas do trabalhador. É importante afirmar que o profissional de RH não atua na posição de analista, onde o sujeito fala na busca de um sentido. Mas fala em um espaço de elaboração de hipóteses e sugestões de ações, que podem ser direcionadas ao próprio trabalhador, ao gestor ou para a empresa como visão global de sua organização, tendo como norte a ética e a confidencialidade. O que propomos é escutar em que bases foram estabelecidas as identificações para formação dos grupos, através de seus códigos, proibições e exigências amarram o trabalhador de forma que possamos ver outras saídas para dar conta desta renúncia, e não tão somente a agressão contra si mesmo ou contra o outro. Diante do exposto, entendemos que o profissional de RH não pode ser um agente mudo da organização, só o será se for surdo àqueles que falam. Entendemos ainda que na formação do psicólogo, que irá atuar nos processos de RH, não é considerado o saber da Psicanálise como uma possibilidade de articulação com sua prática, por isso nos propomos a atuar na formação dos profissionais que se interessam pela prática organizacional e pela psicanálise a 81 fim de instrumentalizá-los com premissas significativas para a escuta da cultura organizacional através da voz do trabalhador. Nesta proposta de formação, entendemos que devemos apontar os movimentos e teorias da administração e suas reminiscências nas estruturas organizacionais atuais; percorrer o contexto social do trabalho; discutir os textos culturais de Freud realizando analogias com o cotidiano no trabalho e, por fim, enfatizar a importância da apropriação da escuta analítica para que o profissional de RH possa potencializar sua função dentro das organizações, se apropriando de outro saber que saia do modelo de instrumentalização do trabalhador. Por fim, não podemos deixar de nos remeter a Lacan, no texto Função e campo da fala e da linguagem, que se tornou fundamental para esta dissertação: “Quer se pretenda agente de cura, de formação ou de sondagem, a psicanálise dispõe de apenas um meio: a fala do paciente. A evidência desse fato não justifica que se o negligencie. Ora, toda a fala pede uma resposta. Mostraremos que não há fala sem resposta, mesmo que depare apenas com o silêncio, desde que ela tenha um ouvinte, e que é esse o cerne de sua função em análise.” (Lacan, 1953, p.248) 82 6. REFERÊNCIAS AGUIAR, Maria Aparecida Ferreira de. Psicologia aplicada à Administração – uma abordagem interdisciplinar. São Paulo: Saraiva, 2006. ALONSO, Silvia Leonor. A escuta psicanalítica. Disponível em: http://www2.uol.com.br/percurso/main/pcs35/35Alonso1.htm . 27/06/2010. Acesso em: 27 de junho de 2010. ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do Trabalho: Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2007. ________. Adeus ao trabalho?: ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 1995. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. ________. O Mal estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. BIRMAN, Joel. Mal-estar na Atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. 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