O trabalho docente numa escola rural: entre o “quintal”, a “casa” e a “rua” Eloiza Dias Neves UFF/PUCG/NEEPEd [email protected] A escola no meio rural é um tema periférico no meio acadêmico educacional brasileiro. Conhecer quem são os professores brasileiros que atuam em contexto rural constitui condição essencial para que se possam efetivar as expectativas ligadas à profissão e à valorização deste trabalhador. O presente relato é o resultado de uma pesquisa de doutorado que se situa no universo das pesquisas sobre o trabalho dos profissionais docentes, sua formação e o exercício do seu ofício. Filia-se aos estudos que privilegiam, por um lado, a importância dos contextos e organizações escolares, e, por outro, o realce da singularidade dos sujeitos. O objetivo foi conhecer os modos de exercício do ofício de professores que lecionam várias disciplinas, em todas as séries, há mais de dez anos, em uma escola pública situada no meio rural fluminense, cujos estudantes têm tido o melhor desempenho regional no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). O estudo de caso de base etnográfica fez uso de técnicas associadas à etnografia (observação participante, análise de documentos e entrevista biográfica), além de questionário, e procurou compreender quais os sentidos os professores dão àquela escola, qual a imagem que têm de si e de sua profissão, assim como quais os estilos de ensinar desenvolvem. Para a interpretação dos dados, a interlocução foi feita com autores da sociologia, história e antropologia, como Dubar, Dubet, Canário, Tardif, Geertz e Roberto DaMatta. O grupo docente parece ter elevada auto-estima, sendo a escola percebida pelo menos por três modos: uma “escolafamília”; um espaço de se ensinar-aprender; e, ainda, o “quintal da casa” (baseada em categorização do antropólogo Roberto DaMatta). Os estilos de ensinar variam de acordo com estas representações anteriores tanto sobre a escola como sobre os estudantes. Trabalho apresentado no 4º. Seminário de Pesquisa do Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional da UFF, realizado em Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil, em março de 2011. 2 Palavras iniciais Analisar práticas docentes em uma escola no meio rural significa reconhecer que a instituição se inscreve numa questão mais ampla, que diz respeito ao mundo rural, e, consequentemente, à configuração global da sociedade brasileira contemporânea. E não há como analisar práticas docentes sem localizá-las no seu espaço de produção. Por isso, num primeiro momento, a escola e um esboço da pesquisa nela realizada serão apresentados, antes da reflexão acerca das práticas docentes. A escola e a pesquisa A escola de Vista Alegre1 tinha, em 2005, quando lá cheguei pela primeira vez, suas paredes brancas salpicadas de muitos desenhos coloridos que, descobri depois, foram feitos por todos os estudantes e professores no ano de 2004. O muro é o limite entre o “mundo da escola” e o “mundo de fora” e marca um novo cenário que eu estava prestes a conhecer. O “mundo de fora” é Vista Alegre, um distrito centenário de um pequeno município do interior do estado do Rio de Janeiro, onde vivem cerca de três mil pessoas, a maioria das quais pequenos agricultores familiares descendentes de colonizadores portugueses, suíços e alemães, que começaram a chegar à região em meados do século XIX. A cultura cafeeira foi a principal atividade agrícola e perdurou por muito tempo, até entrar em declínio e ser complementada pela chamada “lavoura branca” (cultivo de inhame, batatas, hortaliças etc), comercializada nos centros urbanos do centro-sul do estado do Rio. Os pequenos e médios proprietários cultivam, ainda, as lavouras de subsistência, como o arroz, feijão e frutas. Entretanto, desde 2006 nada menos do que quatro indústrias (embalagens e potes plásticos, ração, fralda descartável) foram criadas na região, somando-se a algumas pequenas e caseiras confecções de moda íntima2. Segundo os dados do IBGE de 2007, 55,3% da população brasileira era rural em 1960 e diminuiu para 18% em 2002, dados estes considerados subestimados, porque a definição de rural utilizada pelo IBGE não incorpora com fidedignidade a ruralidade existente no Brasil3. Embora a escola de Vista Alegre seja catalogada pela Secretaria Estadual de 1 Como é de praxe em trabalhos em que se querem preservar os sujeitos envolvidos, todos os nomes são fictícios neste artigo. 2 Apesar de alguns problemas, a infra-estrutura da localidade é boa quando comparada a outras regiões do país, pois há energia elétrica em muitas propriedades rurais, as estradas de acesso são trafegáveis durante o ano todo, com raras exceções. A comunidade tem sofrido com a enorme queda da produção agrícola e a dificuldade na comercialização dos produtos, o que faz com que muitos jovens busquem outras opções nos centros urbanos. Como grandes problemas sociais locais, a falta de emprego para os jovens e o alcoolismo podem ser citados, ambos aparentemente relacionados entre si. 3 Segundo Veiga (2002), os censos demográficos obrigam os municípios a indicar sua zona urbana e rural, chegando-se a uma contagem como urbana de toda a população de pequenos municípios com baixa densidade populacional, valores e cultura essencialmente rurais. A estratificação proposta por Veiga (na qual ele utilizase de critérios usados internacionalmente para a localização dos municípios, densidade demográfica e tamanho de sua população) indica um total de 4.490 municípios que deveriam ser classificados como rurais e a população essencialmente urbana em 58%. 3 Educação como urbana, por estar localizada dentro da vila, a região é marcadamente rural, uma noção bastante controversa4. Embora as pesquisas sobre a educação e escola rural sejam raras, sabe-se que no Brasil de hoje a área rural concentra mais de 50% dos estabelecimentos de ensino de educação básica (107.432 para 106.756 escolas em área urbana), mas, aproximadamente, apenas 14,9% da população em idade escolar para o ensino fundamental (Brasil, 2006, p.24). O lado de dentro do muro colorido revelou uma escola de vários nomes: escola de Vista Alegre, Colégio CELOS e escola-da-dona Clair, este último o mais usado e uma referência a sua diretora nos últimos 51 anos5. A escola atende a mais de trezentas crianças, em dois turnos: pela manhã, frequentam os estudantes do primeiro ao quinto ano, e à tarde, adolescentes estudantes do sexto ano do ensino fundamental até o terceiro ano do ensino médio. O número significa que ela está entre as apenas 2,8% das escolas brasileiras situadas em zona rural com mais de 300 alunos (Brasil, 2006)6. O estudo de caso realizado neste espaço buscou conhecer o exercício do ofício de professores que atuam em meio rural brasileiro. Com ele, procurou-se compreender quais os sentidos os professores dão àquela escola assim como quais os estilos de ensinar desenvolvem. A leitura privilegia a dimensão política da rede escolar, vista sob uma ótica menos da eficácia e mais de sua eficiência e do sentido do trabalho escolar, a fim de não acentuar o caráter interno da escola e omitir a sua dimensão social. O trabalho é fruto de três anos de contato quinzenal com a escola e a comunidade. Fiz uso de todas as técnicas associadas à etnografia: a observação participante, a análise de documentos e a entrevista intensiva. No intuito de obter dados contextuais do meu universo 4 Para a antropóloga Maria José Carneiro (1998), o rural é frequentemente definido e tratado a partir da ótica do seu par oposto, a sociedade urbano-industrial, por um processo de exclusão. O rural é tudo aquilo que está fora desses referenciais urbanos. No entanto, é possível encontrar uma ruralidade também no interior da sociedade que se pretende apenas urbano-industrial. Para resumir, o rural será considerado aqui levando-se em conta os seguintes aspectos: a) a categoria geográfica específica; b) a produção agrícola ou agropecuária; c) a representação social e simbólica, sendo que esta é uma concepção de mundo, ou seja, um modo como as pessoas e os grupos organizam suas relações sociais e produtivas (Pessoa, 2003). 5 Dona Clair é uma senhora baixinha, mãe de cinco filhos, católica fervorosa, calma (“a maneira de ela tratar é que até quando ela está aborrecida ela está calma”, diz um professor), de olhinhos muito vivos, nos seus 70 anos. Em 1957, então com 19 anos, assumiu o colégio de Vista Alegre, local onde vivia desde criança (e no qual seu pai, “comerciante do tempo antigo, vendia de tudo, do pano de cueiro até pano de caixão”), fato que se recorda assim: “Eu cheguei na escola, muito animada no primeiro dia, querendo conhecer tudo. Não tinha servente. Não tinha ninguém. Eu mesma limpei tudo. Trouxe a empregada lá de casa para me ajudar a arrumar [risos]. Para começar a aula no dia seguinte”. Vale lembrar que essa diluição de fronteiras entre o trabalho docente e a casa parece ser uma realidade do profissional que atua no meio rural, como analisou Capelo (2008) em relação às professoras de áreas rurais cafeicultoras paranaenses, de 1940 a 1960. 6 Pelo menos duas observações merecem destaques aqui: primeiro, a escola está entre os 4,45% de estabelecimentos do Brasil rural que oferecem o ensino médio (Brasil, 2006); segundo, no ano de 2005, o atendimento abrangia desde o maternal até o quarto ano Normal, o que quer dizer que o Estado vem comendo pelas beiradas a oferta de vagas à comunidade. Um caminho inverso ao da história da escola, que nos últimos 51 anos mobilizou esforços para expandir sua oferta de serviço público, história que se confunde com a história da dona Clair. 4 de pesquisa, realizei um levantamento de dados sobre as famílias, que a escola não possuía, fazendo uso de um instrumento de mensuração típico de pesquisas ditas quantitativas: o questionário. Vale destacar que, além disso, me utilizei de questionários para obter os mesmos tipos de dados acerca dos professores envolvidos na pesquisa. Ademais, uma vez que meu objetivo era descrever o ofício docente e estava referenciada na singularidade individual dos sujeitos e nos processos de apropriação das oportunidades formativas, realizei entrevistas na linha de histórias de vida. Instigada pela realidade do bom desempenho dos estudantes, a pesquisa partiu da ideia do português Rui Canário de que o ofício docente é o resultado do cruzamento da história pessoal com o contexto de trabalho, articulando, assim, as dimensões organizacional e pessoal. Apesar dessa ideia estrutural, assumi no estudo uma lógica da descoberta, sem, portanto, ter hipótese anteriormente assumida, ou querer provar alguma teoria pré-estabelecida. Optei por uma abordagem sistêmica da escola, o que implicou na valorização também dos atores e de suas subjetividades. Acredito que tanto a pesquisa acadêmica como, principalmente, a formação docente devam ser encaradas na lógica do reconhecimento da organização como um local de interação de sujeitos que buscam coletivamente a aprendizagem. Em outras palavras, trata-se da percepção da ineficácia da formação dos professores com tempos e espaços diferentes da prática cotidiana e, concomitante, do favorecimento da formação docente centrada no estabelecimento escolar e na singularidade das histórias dos sujeitos docentes. E, nas palavras de Perrenoud (1993, p.180), “fazer face à complexidade e à relação exige, pois, muito mais que representações e esquemas.(...) A formação de professores é, portanto, necessariamente uma formação global da pessoa.”. De todos os aspectos que definem a identidade da escola-da-dona-Clair, destaco alguns que considero melhores indicadores do bom funcionamento da escola, “as razões do improvável” (Lahire, 1997), todos ligados entre si: § Por considerarem a escola como o espaço da sociabilidade e do encontro (além de acesso à cultura acadêmica), os estudantes gostam e as faltas são raras, em que pesem os aspectos penosos do trabalho escolar; § Os professores respeitam e/ou valorizam o mundo rural, consideram o ambiente bom e o público escolar interessado, e esta visão positiva motiva-os ao trabalho; § O quadro de professores mantém-se estável, apesar da distância da escola em relação às residências; § A direção gere a escola pública como se ela fosse particular (com diluição das fronteiras entre a casa e a escola), não economizando esforços e “jeitinhos”. De fato, a escola está situada em duas dimensões simultaneamente: no mundo público, enquanto espaço de socialização, e no mundo privado, enquanto espaço de sociabilidade. Ademais, a direção transgride o regime burocrático da organização escolar, aproximando-o de um modelo anárquico de organização, o que, por sua vez, libera os professores, que têm autonomia para realizarem seu ofício. Um total de 15 professores compõe a amostra, o que corresponde a 62,5% do quadro de docentes do colégio. São 75% de mulheres e 25% de homens que lecionam no segundo e terceiro e quarto anos e numa turma de aceleração; ciências, matemática, português e artes, para sexto e sétimo anos; educação física, inglês, história, geografia para todas as turmas a 5 partir do sexto ano; língua portuguesa para ensino médio; filosofia e sociologia, ensino médio. Independentemente da série lecionada, os docentes pesquisados têm perfil tanto de professores das séries iniciais como do secundário. Além de gozarem de certa autonomia para exercerem o ofício, desfrutam de um bom status social, dizem respeitar seus estudantes e procurar dar o máximo de si para o trabalho. A atribuição revela uma lógica identitária de construção da experiência docente baseada na relação pessoal e afetiva com os estudantes, o que os alinha a uma identidade tradicional do antigo professor primário. Por outro lado, outra característica do grupo é a valorização do conhecimento da disciplina a ser ensinada, o que os aproxima do perfil dos professores secundários. Três características identitárias marcam os docentes da escola. Apesar da consciência dos problemas profissionais dos professores do Brasil e do estado do Rio, o grupo desfruta de alta auto-estima, fez a escolha profissional possível (mais por uma questão de localização de moradia, longe das universidades, do que em decorrência do gênero ou classe social, como é comum aos professores brasileiros) e tem uma formação na prática iniciada majoritariamente em escolas rurais unidocentes ou multisseriadas e continuada em experiências múltiplas nas escolas em que trabalham. Importante destacar que, além de uma visão positiva de seus estudantes, os professores percebem a escola-da-dona-Clair como “a casa”, “a rua” e o “quintal”, respectivamente, como uma família, como um local de trabalho e como um espaço de criação, este situado entre a “casa” e a “rua”. A análise dos modos diversos que os professores percebem seu trabalho e concebem a escola e o seu estudante revela que também há estilos diferentes de trabalhar. Foram observados pelo menos três diferentes tipos de estilos de trabalho, que resumo a seguir, ao modo de um esboço, pois não tenho a pretensão de elaborar tipos-ideais de professores (ao modo de Max Weber). Os modos de trabalhar: na “casa”, na “rua” e no “quintal” A fim de interpretar os modos de trabalhar dos docentes, parti da crença de que há no cotidiano da organização escolar uma diferença entre as maneiras de olhar dos distintos atores, quando engajados na ação. Nesse sentido, concordo com Boudon (1989), quando ele afirma que a racionalidade da ação dos atores institucionais é o produto de uma tensão conjunta de efeitos de situação, que compreendem os efeitos de posição e de disposição7. A análise aqui empreendida vai focar-se mais nos efeitos de posição e menos nos de disposição, por limitação de espaço. Na escola como na “casa” 7 Por efeitos de disposição Boudon (1989, p. 134) entende “o conjunto de uma experiência e de um saber anteriormente adquiridos, mobilizados pelo agente na interpretação de todo e qualquer fenômeno social”. Eles dependem das disposições mentais, cognitivas e afetivas desse ator, e que são sempre, em parte, pré-formadas por uma socialização passada. Isto quer dizer que os agentes sociais estão socialmente situados, ou seja, que possuem papéis sociais e, em razão de processos de socialização, interiorizam um certo número de saberes e representações. O que os faz, assim, sujeitos a efeitos de situação (idem, ibidem, p.123). Os efeitos de posição dependem da posição que um ator ocupa num contexto determinado, e condicionam seu acesso a informações pertinentes. 6 Professor tem que gostar, tem que vibrar com aquilo que seu aluno faz. Tem dia que a gente fica igual a um bobo: ‘Ah, fulano fez isso! Foi tão engraçadinho!’ (professoraMariana - geografia) No meio rural brasileiro, o espaço privado da casa, o espaço doméstico, sempre coube à mulher, uma espécie de gestora e também executora do lar. Para dona Clair, exercer a função docente nesses cinquenta anos significou menos se enquadrar no espaço público do mundo do trabalho e mais no espaço privado e íntimo das vidas das pessoas da comunidade de Vista Alegre. Também para muitos professores, a escola-da-dona-Clair constitui-se uma continuação de suas casas, ocorrendo uma diluição entre as fronteiras do trabalho docente e da casa, uma inseparabilidade entre o mundo privado da casa e o mundo público da profissão docente. Ao caracterizar a escola como uma “escola-família”, a professora Sofia ajuda a revelar uma visão recorrente do colégio, tida a partir “da casa”, na ótica de Roberto DaMatta (1997), uma das categorias sociológicas usadas pelo autor para compreender a sociedade brasileira8. Grosso modo, a casa é o espaço das relações calorosas, onde há lugar para todos, em distinção à rua, local do público e do estranho. Nesta lógica, a organização escolar tem como missão menos ensinar conteúdos escolares e mais formar seres humanos moral e religiosamente. Essas professoras dizem que consideram seus alunos como filhos ou parentes, sendo que sentem por eles orgulho (percebido na fala de Mariana que inicia este segmento), carinho e até pena. Maria, professora do Ensino Médio, considera-se uma “mãe amorosa e exigente” para seus alunos e que diz gostar de dar aulas porque “é bom trabalhar com as pessoas, conversar, estar com as pessoas e procurar ajudá-las”. Outro exemplo vem de Mariana, que afirma que seu objetivo é “de formar o ser humano quase na totalidade”. Por isso, “não adianta ser um excelente professor de matemática, saber ensinar aos alunos todas as operações, se não conversar com ele sobre ser ético, ser cidadão”. Ou seja, elas dizem oferecer uma formação moral e religiosa. Todas as professoras do grupo rezam antes de iniciarem as aulas. Apesar da certa uniformidade da sua “missão”, essas professoras criam estratégias didáticas múltiplas e pessoais, que vão desde o uso de computadores conectados à internet até um estilo de aula mais tradicional (uso de quadro negro, cópias, exercícios mimeografados, adoção de livro didático, exigência de silêncio e concentração). Deste modo, apesar de estas professoras serem uma espécie de encarnação da instituição escolar, enquanto imbricação escola-família, exercendo as funções de homogeneizar e tratar a todos os “filhos” igualmente, os modos como as docentes se relacionam e se comunicam pedagogicamente não podem ser separados de suas personalidades. Em outras palavras, tais atitudes maternais desse conjunto de professoras diante do aluno e de sua profissão impactam o contrato pedagógico que estabelecem com seus estudantes, o denominado clima da sala de aula por Perrenoud (2001), para quem uma maior ou menor adesão dos alunos às tarefas propostas, o uso do tempo, a tomada da palavra, em resumo, a construção de um clima propício às aprendizagens depende diretamente do tipo de comunicação instaurada em sala de aula. 8 Na íntegra: “Por isso, eu caracterizo nossa escola como uma escola-família. Muitos professores têm seus filhos, sobrinhos, netos. A clientela básica é de filhos de agricultores”. (professora Sofia). 7 Assim, as ações destas docentes estão pautadas nas tradições do ofício, mas também nas afeições, nos comportamentos de seus alunos, na interação com eles. Com este grupo, pode-se perceber a personalidade do professor como elemento evidente de seu trabalho. E todas consideram a diretora como uma grande “mãe” Na escola como na “rua” Eu sou rigoroso porque eu não acho que meu aluno seja um coitadinho, mas alguém que está ali para aprender. (professor Jéferson - História) A fala acima do professor é ilustrativa do modo predominante como este grupo concebe os seus alunos: eles são aprendentes na escola e trabalhadores em casa, a maioria, filhos de lavradores. E são encarados mais como alunos e menos como crianças ou adolescentes. Neste grupo de professores estão todos os homens participantes da pesquisa e duas mulheres. Eles assumem uma perspectiva de ser a escola-da-dona-Clair um local de trabalho, majoritariamente, ainda que acolhedor e amigável. Se o espaço privado está associado ao individual, à intimidade, à afetividade, à casa, do mesmo modo, em oposição, o público tem a ver com os negócios, com a liberdade, com a rua (DaMatta, 1997).9 Desse ponto de vista, escola é o “mundo da rua”, lugar perigoso, “local de individualização, de luta e de maladragem. Zona onde cada um deve zelar por si, enquanto Deus olha por todos (...)” (DaMatta, 1997, p.55). Dentro dessa lógica, o grupo atua numa dinâmica mais ligada a um desempenho de função e a adesão a valores e a papéis específicos. O mundo público é entendido como “a rua” e a escola, uma instituição moderna, é o lugar destinado à realização do processo de ensino-aprendizagem das crianças e adolescentes. Ensinar conteúdos, moralizar e promover a socialização escolar (distinta da familiar e comunitária) a um coletivo (até certo ponto) impessoal requer um sistema de práticas codificado (exercícios, repetições, deveres, provas). Deste modo, esse grupo realiza seu ofício no planejamento, na disciplina e no exercício da autoridade, assim como no cumprimento de um plano de trabalho. Aquiles (educação física) considera o planejamento o item mais importante de um trabalho docente bem sucedido: “você tem que saber quando começa, para onde vai e como chegar. Eu tenho planejamento”, por ano, bimestre e mês, diz ele. Por tudo isso e frente às mutações da instituição escolar (Canário, 2005), os professores que atuam na “rua” sentem o fenômeno do mal-estar docente, ou seja, têm uma visão negativa da profissão e notam uma desvalorização do estatuto social. Também se encontram no grupo os docentes que percebem que, apesar de serem os melhores que têm, os estudantes da escola-da-dona-Clair estão mudados, menos interessados nas aulas10. São eles, ainda, que levantam críticas à instituição escolar, que tem sido o espaço formal e 9 Lembro que tais condições não são exclusivas desses espaços e que tudo é relacional. Deste modo, embora concebam a escola como um espaço do trabalho (do público, em princípio, portanto, no “mundo da rua”), por outro lado eles sentem este local como familiar, de “brincadeiras entre os colegas” onde há “professores espetaculares e sérios”, “comprometidos”, “integrados” etc. Ou seja, uma vivência na perspectiva do “mundo da casa”. Para efeito desta análise, foco minha interpretação no que é mais determinante na visão do grupo. 10 Entretanto, a maior parte dos 15 professores estudados não tem a sensação de uma crise do ofício, porque de algum modo reconhecem o seu trabalho como sua própria obra (Dubet, 2002). Com a experiência e os materiais disponíveis, construíram seus próprios métodos, seus modos pessoais de atuar e de fazer funcionar. 8 privilegiado para o exercício do ato educativo nos últimos três séculos (Nóvoa, 1991a), mas cujo problema central na atualidade está no seu déficit de legitimidade e o principal requisito para ela ser eficaz é a construção de sentido positivo para o trabalho escolar de professores e estudantes (Canário, 2005). Por fim, segundo eles, dona Clair é representada como uma senhora “maravilhosa”, “admirável”, “calma”, mas, antes e acima de tudo, uma diretora, que “tem dificuldade de se impor” e “trata os professores com diferenças”, que “se recolhe na parte burocrática”, que “parece cansada” e “desanimada”, e que “não está tão mais presente como antes”. Uma gestora, uma profissional. Na escola como no “quintal” Eu gosto de livro, porque acho que o aluno precisa ver como o autor explica, como aquilo vem registrado, além do eu tento passar para ele e do que ele passa para mim. Porque o pessoal da roça sabe muita coisa! (Iara – ciências) Eles [os estudantes] têm muitos conhecimentos que o povo da cidade maior banaliza. E são coisas com que eu me identifico. (Bel – séries iniciais) Do ponto de vista das professoras que percebem a escola como um “quintal”11, o exercício do ofício parece implicado com uma relação próxima e íntima com seus estudantes, de muitas trocas de experiência. Sabemos que parte importante do sucesso escolar vem do domínio da distância cultural, o que acontece via comunicação (verbal ou não-verbal), aceitação do outro, afetividade, afinidades de gostos e de modo de vida, a fim de que o aluno encontre seu lugar na aula e entre em contato com o professor (Perrenoud, 1993). As narrativas apontam para a existência de um espaço da sociabilidade, a “forma lúdica da socialização”, “o mais puro, transparente, atraente, tipo de interação”, forma esta que depende totalmente das personalidades entre as quais ocorre (Simmel, 1978, p.169). O que possivelmente permite às professoras atuarem ao modo de um bricoleur, alguém que (re)constrói cotidianamente o seu saber profissional, com especial disposição em considerar seus estudantes como parceiros a quem buscam ajudar a construir atitudes autônomas. Elas apresentam, ainda, uma atitude interdisciplinar (Fazenda, 1994) e generalista em relação aos conteúdos disciplinares. Tais práticas educativas afirmam a escola como uma instituição de produção e comunicação de saberes significativos para os estudantes, promovendo a cultura local e o desenvolvimento comunitário: “comecei a me colocar no lugar dos alunos e dos pais. Comecei a enxergar de fora da escola. E a colocar aquilo como objetivo dentro da escola”, 11 Essa é, igualmente, uma categoria nativa. A professora Tarsila (séries iniciais) foi quem criou a categoria “quintal”, um lugar intermediário entre “a casa”, e “a rua”, onde acontecem situações que fogem do controle da “mãe” e do “pai” e que são ligadas ao prazer, ao lazer e ao encontro: Olha, a escola era uma coisa interessante. Não sei como a gente conseguiu aprender (...) minha tia morava perto da escola e você sabe que eu saía da sala de aula, ia à casa de minha tia, com minha prima, fazia suco, cozinhávamos ovo, comíamos e voltávamos para a escola? [risos]. (...) íamos na casa da outra ver a casinha de boneca dela e voltar (...) A escola era o point: era na escola que eu encontrava as pessoas, na escola que a gente via de quem a gente gostava na época(...) Brincava de tudo quanto é coisa. Não tinha eletricidade: nós nem a escola tinha geladeira. Às vezes, a gente levava suco em garrafa, fazia um buraco no chão e fechava. Nem sei se refrescava, mas a gente colocava. Depois desenterrava na hora do recreio. Era muito bom, muito bom! 9 disse a professora Bel em seu relato. Ao fazer o estudo dessas práticas, lembrei das antigas, embora atuais, palavras de Gilberto Freyre (no já citado discurso) dirigidas às professoras rurais nordestinas em 1957: Para sermos nós mesmos, os brasileiros, como cultura, como civilização, como conjunto de valores em que os elementos intelectuais, artísticos, éticos não se tornem insignificâncias ao lado dos técnicos, materiais, mecânicos - vários deles simplesmente importados do estrangeiro - temos que procurar valorizar o que é entre nós esforço vindo da terra, da gente telúrica, do trabalho cotidiano em circunstâncias peculiares ao Brasil - trabalho em grande parte rural - das grandes inteligências e das grandes sensibilidades que têm sabido interpretar essa terra e essa gente ou procuram resolver problemas peculiares ao Brasil dentro das condições brasileiras de espírito e de ambiente; dentro da diversidade regional brasileira; e não arbitrariamente, ou favorecendo-se uma região contra as demais; protegendo-se uma atividade - no momento a indústria urbana - contra as outras. (Freyre , 1957, p.47) Bel, Tarsila e Iara trabalham principalmente por projetos que defendem o que resta do “ambiente” rural tradicional fluminense. Mais do que somente respeitar a cultura de seus estudantes, elas valorizam e mobilizam seu trabalho com esse “espírito” rural. Será que ao trabalharem desta forma não oferecem um contraponto à sociedade industrial e do mercado, contrariando uma visão determinista de que só há um futuro possível? Com jeito de conclusão Seria também pertinente interpretar o conjunto da experiência profissional dos professores da escola-da-dona-Clair sob a ótica de Dubet (1994), para quem a ação social não tem unidade e a identidade é fruto de uma construção, de uma experiência12. E, desta forma, dizer que eles trabalham ora como numa comunidade familiar (dentro da nomeada “lógica da integração”), ora como numa hierarquia concorrencial (na “lógica da concorrência”) e, ainda, tomam a escola como o lugar do encontro e da (re)invenção de diferentes papéis do professor (na perspectiva da subjetivação). O certo é que foram deixadas de lado não somente várias interpretações, mas também temas e problemas do ofício docente, como, por exemplo, a influência da considerável femilização do magistério na desvalorização profissional da categoria. Ou, ainda, a questão da profissionalização e do profissionalismo docentes. As notas dos estudantes da escola continuam melhorando e me pergunto se não haveria uma ligação entre este fato e as mudanças nas percepções dos professores sobre os novos alunos e/ou a chegada de inovações, como os computadores e a internet à escola. Depois desta compreensão e descrição do trabalho desses professores, arrisco dizer que o ofício docente na escola-da-dona-Clair pode ser definido como o resultado dos modos de ser e fazer, difusos, entre o âmbito da “casa”, da “rua” e do “quintal”, este entendido como um espaço entre os outros dois. Admito, desta maneira, que o ofício docente supõe a coexistência de combinações variáveis destes três elementos. 12 Para Dubet (1994, p. 107), a experiência é “uma combinação de lógicas de acção, lógicas que ligam o actor a cada uma das dimensões de um sistema.”. A subjetividade do ator e sua refletividade são constituídas pela dinâmica de articulação dessas lógicas diferentes de ação, cada uma ligada a um sistema: o primeiro sistema é o da integração, quando o ator é definido pelos seus vínculos na comunidade; o segundo, da competição, em que o ator é definido por seus interesses num mercado; e o terceiro, o da criatividade humana, no qual o ator passa a um sujeito crítico frente a uma sistemática de produção/dominação, de alienação. 10 E lembro que a longa história do ofício docente é povoada por imagens, como a do socrático-platônico ou a do sofista (Fernandes, 1998), ou a do mestre-sacerdote-apóstolo, o do trabalhador-militante, o do mestre-profissional (Tedesco e Fanfani, 2004). Mas, segundo Lelis et al (2008), na definição do ofício de professor, hoje, combinações variadas desses elementos podem ser encontradas. No caso desta pesquisa, foram. Referências bibliográficas ADORNO, T. W. Educação e Emancipação. 2ª edição. 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