GESTÃO DEMOCRÁTICA DA EDUCAÇÃO EM TEMPOS DE
CONTRADIÇÃO
Carlos Roberto Jamil Cury – PUCMG
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Resumo: No momento em que boa parte do mundo se impunha um modelo macro-econômico
liberal-conservador, em que despontavam líderes como Ronald Reagan e Margareth Thatcher,
sob o denominado Consenso de Washington, o Brasil, sob o impacto de um movimento social
amplo de desconstrução do regime autoritário, lutava pela construção de um regime
democrático com garantias sociais e liberdades civis. Esse movimento, tendo desaguado na
Constituinte, gerou capítulos e artigos na Constituição da República de 1988 cujos conteúdos se
tornaram anteparos frente ao impacto das políticas liberais conservadoras. Nessa tensão e dela
se insere o princípio da gestão democrática no âmbito da educação pública.
Palavras-chave: autoritarismo, democracia e educação; gestão democrática da educação.
NO MOMENTO em que boa parte do mundo se impunha um modelo macro –
econômico sob a vaga conservadora, postulando a retirada do Estado da economia e o
seu recuo na proteção aos direitos sociais, o Brasil, lutava pela construção de um regime
político democrático com ampliação e garantias de direitos sociais e de direitos civis. Se
nos países centrais despontavam lideranças como as de Ronald Reagan e de Margareth
Tatcher, e na América Latina, a figura despótica de Augusto Pinochet, o Brasil, sob o
impacto de um forte movimento popular queria a desconstrução do regime militar
autoritário e corrigir as desigualdades advindas do passado.
O primeiro movimento, em um processo de recomposição do capital
internacional, desaguou no denominado “Consenso de Washington”, inspirado na
insistência das teorias de Friedrich Hayek (1990), para quem as teses e as práticas dos
direitos sociais juridicamente protegidos pelo Estado são a via mais fácil tanto para a
crise fiscal dos erários públicos na manutenção desses direitos quanto para a
acomodação individual dos indivíduos. Para ele, planejamento, intervenção estatal,
direitos sociais são um Caminho da Servidão e a saída é menos Estado e mais liberdade
econômica. Afinal, -- e nisso cabe razão aos próceres desse movimento conservador --,
os direitos sociais são um investimento que possuem um custo e cuja fonte de
financiamento deve ficar clara. E, para essa teoria, esse investimento tem que ser
custeado pelo indivíduo produtivo ou por associações de indivíduos e não pelo Estado.
Nesse sentido, a reversão dos direitos sociais deveria contar com uma outra
maneira de se administrar o Estado e suas políticas. Enfatiza-se o recuo da
administração direta do Estado no campo do capital estatal em favor de uma
1
coordenação geral de ações econômicas e sua remissão para o empreendimento próprio
do sistema contratual de mercado. No âmbito dos direitos sociais, repassam-se os
mesmos ou para esferas próprias da “responsabilidade social” da sociedade civil sob a
forma de assistência social ou de filantropia, e na perspectiva mais conservadora, para a
responsabilidade do próprio indivíduo.
Seguem-se daí, de um lado, a tese do imposto de renda negativo à luz do
pensamento de Friedman (1977) e, de outro lado, cortes nos investimentos sociais com a
focalização em grupos específicos ou mesmo com a desativação de programas sociais
mantidos pelo Estado.
Está-se, pois, diante de uma nova dialética entre o Estado (primeiro setor), o
Mercado (segundo setor) e a Sociedade Civil sem fins lucrativos (terceiro setor) com a
chamada responsabilidade social1. A proeminência do Estado, enquanto fautor do bemestar social, deveria ceder lugar para o Mercado nas ações econômicas e para a
Sociedade Civil nas ações de cunho social.
O Estado, como res publica, não é a família, não é a sociedade civil e nem o
mercado, deve cumprir certas funções gerais de coordenação de ações e de definição de
regras do direito que têm a ver com interesses comuns e de todos. Mas na perspectiva
liberal conservadora, ao Estado caberiam apenas as tarefas clássicas da segurança das
fronteiras, da moeda, da diplomacia, da guerra e da paz, da justiça e das grandes
diretrizes e coordenadas das ações. E dada a complexificação cada vez maior da
sociedade, a ligação do Estado com o cidadão deveria obedecer a uma descentralização
sob o princípio da subsidiariedade. E, por esse veio, constituem-se, então, novos
espaços de articulação entre Estado e Sociedade por meio dos Conselhos e das Agências
Reguladoras.
Desse modo, do ponto de vista da chamada governabilidade2,
constituíram-se entidades intermediárias entre governo e sociedade mediante os já
tradicionais Conselhos de participação e controle e as chamadas agências reguladoras3.
No caso brasileiro, tanto uns como outros criados ou por lei ou por decreto.
Assim, ao mercado cabem as ações e iniciativas próprias do sistema contratual
da propriedade e à sociedade civil, sob a figura de entidades sociais sem fins lucrativos,
a responsabilidade por projetos humanitários ou relativos a interesses comunitários. O
1
Cf. a esse respeito o art. 5º , XXIII e art. 170 da Constituição.
A governabilidade diz respeito à legalidade, às condições institucionais e sistêmicas do exercício do
poder e à capacidade política do mesmo exercício com liberdade, eqüidade, tranqüilidade sob a ordem
democrática. Já a governança diz respeito à capacidade financeira e administrativa em organizar e
implementar políticas com eficácia e transparência. Cf. Diniz, 1995 e Diniz, 1996.
333
Cf. Gohn (2001) e Moreira Neto (2001)
2
2
mercado, lugar de encontro sistemático entre vendedores e compradores no âmbito do
sistema moderno de economia supõe a existência dos direitos civis entre os quais
avultam o das liberdades civis e o da propriedade.
As liberdades civis, protótipo das liberdades negativas, são liberdades individuais, isto
é, inerentes ao indivíduo singular: com efeito, são historicamente o produto das lutas
pela defesa do indivíduo, considerado pessoa moral (e, portanto, tendo um valor em si
mesmo) ou como sujeito de relações econômicas, contra a intromissão de entes
coletivos como a Igreja e o Estado; filosoficamente, são uma manifestação de
concepções individualistas da sociedade, ou seja, de teorias para as quais a sociedade é
uma soma de indivíduos... (Bobbio, 1996, p. 57)
À sociedade civil, lugar dos organismos privados com função social, a qual, à
margem das relações próprias do poder estatal, cabe a busca e a disputa pela direção
cultural da vida social por meio da formação e transmissão de valores em busca de um
consenso. Ao mesmo tempo, essas décadas conhecerão, de modo veloz, o circuito das
tecnologias aplicadas à comunicação e informação tornarão os espaços territoriais mais
próximos gerando o fenômeno da denominada “globalização”.
Esse primeiro movimento se guiará, fundamentalmente, pelo princípio da
liberdade, entendida tanto como liberdade de iniciativa própria do sistema contratual de
mercado embora considere desejáveis as liberdades civis protegidas por direitos e
deveres individuais correspondentes tais como de expressão, de consciência, de culto,
de organização entre outras. Nesse momento, cumpre relembrar um dos primeiros
observadores das origens do início do sistema de mercado -- Thomas Hobbes (1993) –
quando ele, no De Cive, assevera que “fora do Estado, tem-se o domínio das paixões, a
guerra, o medo”. (De Cive, X, 1)
Isso quer dizer que, pelo menos no tocante à vida de relação, às condições de existência
da liberdade externa, o Estado tem um valor intrínseco absoluto... não é um expediente,
um remédio, cujo valor dependa do valor da finalidade, mas é um ente moral . ... O
indivíduo não é livre (no que se refere à liberdade externa) se não ingressa no reino do
direito; mas o reino do direito perfeito é aquele no qual o direito privado-natural é
submetido ao direito público-positivo... (Bobbio, 1986, p. 92-93)
O segundo movimento, interno ao nosso país, empurrado pela crítica à
ditadura e à concentração de renda que a caracterizou, mediado pelo impulso das
“Diretas Já”, desaguará na Constituinte. Com uma participação poucas vezes vista na
sociedade civil nacional, a Constituição de 1988, com razão, leva a marca da busca da
cidadania olhando, ao mesmo tempo, para frente e para trás. Para frente, em vista de
uma sociedade mais equânime e justa, para trás, a fim de desconstruir as barreiras e as
heranças de uma sociedade desigual, discriminatória e díspar. A renitente desigualdade
3
social associada a heranças discriminatórias não havia conhecido vias consistentes de
superação.
Assim, capítulos e artigos dessa Constituição ficaram imbuídos de uma
natureza sócio-distributiva, sob o concurso do Estado, muito próxima a da proteção dos
direitos humanos e no horizonte do Estado do Bem-Estar Social. E ela não cessa de
convocar para uma democracia eivada de espaços públicos de construção coletiva. Esse
mesmo Estado abriu para todos, explicitamente, as portas da cidadania para algo que
vinha da cidadania ateniense: a convocação à participação consciente em novas arenas
de deliberação.
Considere-se o artigo 14 da nossa Constituição que, decorrente do art. 1o. e do
Preâmbulo da mesma, reconhece o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular como
formas alternativas e complementares do processo democrático representativo e
expressivas do que diz o § único do art. 1º: todo o poder emana do povo, que o exerce
por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
A ordem constitucional, nascida desse movimento consagrou, em 1988,
princípios caros à democracia e à educação democrática. Oposta ao que até então vigia
em termos de despotismo e de medo, ela propõe uma nova maneira de se administrar a
coisa pública ou seja sob a forma da virtude como amor pela coisa pública. Isto não
significa que a construção da ordem democrática tenha se estendido do campo jurídico
automaticamente para o conjunto das práticas sociais e políticas já que o autoritarismo,
entre nós, no Brasil, possui raízes bem mais fundas em nossa história do que o do
período militar.
De um lado, tradições arcaicas próprias do Coronelismo, Enxada e Voto de
Nunes (1995), já vinham de longa data fazendo da impessoalidade burocrática da
modernidade weberiana, especialmente nos aparelhos de Estado, um degrau ainda a se
conquistar. De outro, a exigência, pelo menos formal, de crescentes aparatos técnicoburocráticos com aspectos decisórios conflita com a dinâmica seja representativa, seja
participativa, consagrada na Constituição. Chegávamos assim a uma definição de
Estado Social encarregado da diminuição de condicionantes sociais ao acesso a
determinados bens considerados indispensáveis para uma vida cidadã e da qual
derivaria a igualdade de oportunidades. Esse circuito virtuoso, juridicamente positivado
no campo da educação escolar, da saúde, da justiça, da segurança e em outros tantos,
mesmo que nem sempre efetivado, está estabelecido sob um regime democrático que
4
reconhece ao cidadão direitos sociais antes jamais proclamados como tais. Esse Estado
Democrático Social de Direito não ignorou a defesa do indivíduo, nem as liberdades
civis e muito menos a propriedade privada ainda que reconhecendo sua função social.
É dessa característica de Estado Democrático de Direito que a letra dos vários
artigos do capítulo da Educação ganhará uma nova concepção e, sob ela, se afirmará o
princípio da gestão democrática na educação pública. Desse modo, os anos 80 e o início
dos anos 90 farão o Brasil conviver com uma primeira tensão: a afirmação, no âmbito
internacional do princípio da liberdade sob o signo de políticas liberais conservadoras e,
simultaneamente, no circuito nacional, a afirmação do princípio da igualdade sob o
marco de políticas sociais próprias do Estado do Bem Estar Social. E mais, esse Estado
Social, do qual se espera políticas públicas concernentes à superação das crônicas e
históricas desigualdades, se afirmará Democrático pelo anseio de participação dos
grupos e dos indivíduos nos destinos dos campos relativos aos direitos civis, políticos,
sociais e culturais.
Mas se não houve o desconhecimento dos direitos civis entre os quais o da
liberdade e o da propriedade, a nossa Constituição não ignorou a necessidade de uma
administração conscienciosa, responsável e transparente dos recursos públicos. E ela, ao
enfatizar a dialética entre igualdade e liberdade, consagrou a crítica a toda e qualquer
forma de discriminação e reconheceu, de modo solene, os direitos culturais de
indivíduos e grupos marcados por séculos de preconceitos.
Portanto, a partir da Constituição e no seu interior mesmo, se dá a segunda
tensão: a tensão entre igualdade social e liberdade individual, entre liberdade de
mercado e função social da propriedade, entre dever do Estado. Esse choque entre uma
tendência igualitária distributiva face à dívida social com papel interventor do Estado e
a tendência afirmadora da liberdade de mercado teria, justamente, sua face mais aguda
nas fontes dos recursos e no modo de administrá-los. Daí a balança pendendo para a
face internacional da economia mundial nas quais sobressaem as temáticas de ajuste
fiscal, de estabilização econômica e do controle da inflação e dos gastos públicos e que
são próprias do quadro econômico internacional que se impunha.
No campo das políticas sociais, os elementos híbridos entre o público e o
privado até então recessivos, ganharão mais força por meio de deslocamentos ora num,
ora noutro. E a chamada à participação da sociedade civil poderá conhecer a terceira
tensão envolvendo a ocupação dos aparatos burocráticos, nem sempre consagrados aos
5
seus fins, com a expectativa de real participação e com a realidade da democracia
representativa.
Essas tensões conheceriam uma razão ainda mais enfática dado que o Brasil se
reconhece como um país sob regime federativo em cuja realidade não se disfarçam os
contornos de disparidades regionais acentuadas e nem a reprodução de vícios e virtudes
em nível nacional. No regime federativo, disparidades reais se associam a uma frágil
repartição de poderes e de tributos entre as instâncias governamentais por meio de
campos de competências legalmente definidas e dos recursos advindos dos tributos. Não
é por acaso que o art. 3º da Constituição da República põe, em seu inciso III, como um
dos seus objetivos fundamentais o de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir
as desigualdades sociais e regionais.
Dessas tensões emerge uma quarta tensão: uma expectativa muito alta no
sentido da superação das várias formas de discriminação, de desigualdade, e de
disparidades regionais e a tentação de esvaziar o caráter desses direitos proclamados ao
colocá-los como meros discursos declaratórios de princípios em face das pressões
internacionais, da crise fiscal e do controle inflacionário. Contudo, ao apontarmos a
democracia como conatural à república, impõe-se como conseqüência mais uma
reflexão:
...a busca pela igualdade passa pela busca dos mecanismos capazes de efetivá-la.
...quando pensamos em sociedades como a nossa, na qual o ponto de partida para a
efetivação da igualdade política é uma profunda desigualdade social e econômica. ... Se
olharmos para o Brasil de hoje, veremos que ainda enfrentamos o desafio de construção
de uma república baseada na liberdade, na igualdade de condições e na estabilidade do
ordenamento jurídico. (Bignotto, 2004, p. 29)
Contudo, há que se entender que tais tensões não se dão sob forma linear de
dominação. Elas se dão por contradição. Nesse sentido, supondo-se a resistência a
determinadas políticas, não tardou muito a consciência das contradições entre a
declaração dos direitos, os recursos existentes, as prioridades político-econômicas e o
impacto das políticas internacionais. Deve-se dar o devido destaque ao campo das
políticas tributárias tornadas ainda mais cruciais tanto quanto a fonte dos recursos para a
garantia dos direitos
Declarar, em especial na Constituição, é mais do que uma proclamação solene.
Declarar é retirar do esquecimento e dizer aos que não sabem ou se esqueceram que
somos portadores de um direito importante. Declarar, sob esse enfoque, resulta na
6
necessária cobrança de quem de direito (dever) e na indispensável assunção de
responsabilidades por quem de dever (direito) em especial quando ele não é respeitado.
O enfrentamento de tais contradições encontrou, de um lado, a insistência na
busca de maior igualdade que a formalização jurídica propiciava, de outro lado, o peso
material dos ajustes estruturais. Estava armada uma situação propiciadora da tradicional
linha de esvaziamento ou ressignificação de direitos vinculantes que, no final das
contas, levaria a uma busca do esvaziamento da substância dos direitos por meio de
ações obstaculizadoras da efetivação e implementação dos objetivos maiores postos nos
artigos 3º e 6º da Constituição da República de 1988.
O governo Sarney, logo proclamada a nova Constituição, declarou que sem
reformas institucionais e mesmo constitucionais "o país ficará cada vez mais
ingovernável". O denominado Plano Verão trabalhava com a proposta de uma
“desestatização”. E o então presidente do PFL afirmou que "a Carta de 1988 é
totalmente inflacionária".4
Coube ao governo Collor desencadear o Plano Nacional de Desestatização
(PND) argumentando que as empresas estatais eram ineficientes e geradoras de
prejuízos, além de, com a venda das mesmas, livrar-se de encargos e empregar os
recursos em áreas sociais. Na verdade, foi mesmo um Plano de Desmonte do Estado
especialmente de órgãos de controle. No caso desse governante tratou-se de uma
privatização que, sob a capa da modernidade, reproduziu um fenômeno já tradicional no
país: a ocupação do aparelho de Estado com o que havia de mais atrasado e anacrônico
em matéria de política: o da privatização nepotista do público.
O senador Fernando Henrique Cardoso, já presidente eleito, ao despedir-se da
casa senatorial, pronunciou discurso memorável no qual diz claramente que seu futuro
governo poria fim
à
“Era Vargas”. Já empossado, cria o Conselho Nacional de
Desestatização (CND) daí decorrendo os planos de privatização de várias estatais. E, no
campo dos direitos sociais, já se tornaram constantes nas análises a crítica que diz ser o
Estado incapaz de, por si só, promover o bem estar social e daí a assinalação das
políticas de focalização, de descentralização e de terceirização.
4
Cf. Melo, 2005
7
Datam dessa época o projeto de Reforma do Estado do então ministro Luiz
Carlos Bresser Pereira (cf. Pereira, 1999) e das leis das Organizações Sociais (OS - lei
n. 9.637/98) e das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP – lei n.
9.790/99).5 A tais associações foram atribuídas a maior rapidez na prestação de
serviços, a capilaridade territorial e a continuidade dos programas.
Seja pelo lado do esvaziamento, seja pelo lado da ressignificação, seja mesmo
pela necessidade de retirar do Estado certas áreas de atuação não cabíveis ao mesmo,
seja pela criação de órgãos híbridos de interface Estad/Sociedade, vale registrar a
importância da constitucionalização dos direitos, princípios e fundamentos expressos na
Constituição e no capítulo da Educação.
O impacto dessas tendências conservadoras existentes frente aos dispositivos
constitucionais será distinta face aos diferentes campos de atingimento. No caso da
economia, o impacto foi direto com alterações significativas nas comunicações
telefônicas, na mineração e mesmo no âmbito de determinados capitais nacionais.
Quanto ao caso dos direitos sociais, o impacto das políticas próprias da vaga
conservadora poderia encontrar verdadeiros amortecedores impedindo conseqüências
mais sérias como é o caso de certos princípios da educação escolar.
Aponte-se a gratuidade em todo o ensino público, a vinculação de impostos
para a sustentabilidade mínima da área e a gestão democrática na educação pública. Por
outro lado, o regime federativo propicia, dada a relativa autonomia dos Estados e dos
Municípios, orientações subnacionais diferenciadas.6 Essas orientações, muitas vezes,
foram levadas adiante por administradores e gestores identificados com os valores
sócio-republicanos.
Outrossim, não se pode esquecer nem a capacidade de reinterpretação
restritiva ou restrita de direitos sociais e nem a resistência levada adiante por segmentos
inconformados com a desfiguração de valores sócio-republicanos ou com a lentidão em
efetivá-los. E o campo educacional, junto com a derrubada do autoritarismo e com o
processo em andamento de uma nova ordem constitucional propugnou a inclusão do
5
Apesar de terem nomes semelhantes e muitos elementos em comum, são diferentes até por responderem
a distintas leis. As organizações sociais não podem se qualificar como organizações da sociedade civil de
interesse público. As primeiras são privadas e criadas pelo poder público e já nascem sob a forma de
contrato de gestão de um patrimônio público. As Oscips já eram privadas e se relacionam com o Estado
por meio de parcerias. Entretanto a existência de ambas indica o fenômeno da publicização do Direito
Privado e da privatização do Direito Público.
6
Aqui torna-se importante atentar para a contradição entre o caráter assimétrico real de nosso federalismo
e sua formalização constitucional na busca de um federalismo simétrico. Cf. a esse respeito, Ramos,
1998.
8
princípio da gestão democrática na Constituição. Todo o capítulo da educação na
Constituição da República de 1988 tornou-se uma referência tanto para a construção de
uma educação pública de qualidade quanto a promessa de realização de uma igualdade
de oportunidades.
Dentro desse espírito, o art. 206, VI da Constituição Federal formaliza a gestão
democrática para as escolas oficiais. O mesmo é recolocado no art. 3o. VIII da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional. E no art. 14 da mesma lei o princípio é
reposto e remetido a uma aplicação mais concreta nas leis ou normatizações dos
sistemas de ensino. Junto a isso, não se pode esquecer que a LDB põe como próprio da
educação a vinculação entre teoria e prática.
Logo, a gestão democrática só o é mediante uma prática que articule a
participação de todos,
o desempenho administrativo-pedagógico e o compromisso
sócio-político. Ela se instaura como um novo espaço de gestão enquanto esfera pública
em que os sujeitos da escola e na escola são convocados a essa participação.
Se ela se impõe como crítica das versões autoritárias até então vigentes, agora
ela passa a ser um espaço crítico na medida em que participa da contradição maior que o
país passou a viver logo após a promulgação da Constituição. Desse modo, a gestão
democrática não está fora dessa dinâmica conflitiva e mesmo contraditória. Assim, tanto
ela pode descair para uma concepção em que a sociedade civil à moda liberalismo
clássico da qual o Estado recua e se descompromete, quanto ela pode pender para
decisões compartilhadas e informações difundidas próprias de uma democratização do
Estado.
No primeiro caso, a responsabilização do desempenho da escola caminha no
sentido de exigir do gestor, como líder do estabelecimento, uma qualidade cujas
premissas contextuais estão longe de serem preenchidas para um atendimento
qualificado.7 Essa descentralização para baixo, na qual o gestor se vê tentado a repartir
com as famílias dos estudantes os encargos necessários no vácuo do Estado, significa
um esvaziamento da educação como princípio e como direito.
No segundo caso, a dinâmica de interação entre a sociedade civil e o Estado,
considera a educação como responsabilidade dos poderes públicos e direito dos
estudantes ao que a Constituição denomina padrão de qualidade (cf. art. 208, VII) com
apoio financeiro (cf. art. 75 da LDB).
77
Considere-se a esse respeito os vetos, até hoje não votados, ao financiamento do Plano Nacional de
Educação.
9
Esse padrão de qualidade, assim efetivado nessa interatividade entre o gestor,
o sistema e a unidade escolar, desagüa no Colegiado da escola e na proposta
pedagógica. Expressões da autonomia pedagógica da escola, o órgão colegiado busca
definir em conjunto os rumos da escola, seu cotidiano, seu ambiente, seus problemas e
possibilidades. A proposta pedagógica, fruto desse Colegiado ampliado para a
totalidade do corpo docente, realiza (ou não) o dever de ensinar, em vista do
aprendizado qualificado, assumido por todos como expressão do princípio da gestão
democrática. Ao mesmo tempo, ela deve ser o momento de síntese: síntese de uma
concreção curricular que contenha o caminho federativo das diretrizes nacionais,
estaduais e/ou Municipais, até a sua apropriação específica na unidade escolar local.
Por outro lado, tanto o Colegiado como o projeto pedagógico devem ser
momentos de autoconsciência do estabelecimento frente aos objetivos maiores da
educação, face à realidade daquela unidade trazida por avaliações e estatísticas além de
propor caminhos de superação. Nesta autoconsciência, a proposta pedagógica
expressará tanto o pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas (art. 3o., III da
LDB), os diversos métodos, quanto a pluralidade de uma República Federativa.
E, no que se refere à comunidade escolar mais ampla, a gestão democrática
pode possibilitar a participação dos interessados na construção de um espaço público
sem que tal esfera signifique a diminuição das responsabilidades do Estado em face de
uma educação de qualidade. Tal é o caso dos múltiplos Conselhos não propriamente
Escolares que circundam os estabelecimentos: o dos pais e mestres, o da merenda e o do
FUNDEB.
Um gestor, sob a égide da gestão democrática é, antes de tudo, um sujeito com
fé pública voltado para garantir, na sua especificidade, um direito constitucional da
cidadania.8 Eis porque um gestor, membro maior de um colegiado escolar, faz as
informações circularem, as atualiza, dialoga, luta por melhoramentos, ingressa no
âmbito do projeto pedagógico em constante busca do padrão de qualidade cujo princípio
é o direito à educação escolar. Essa leitura possibilita aos gestores da coisa pública
ações reivindicatórias ad extra e orientações ad intra nas quais a educação escolar
8
A noção de fé pública aqui assinalada se assemelha à fé pública notarial. Essa semelhança ( e não
igualdade) compreende a representação que um gestor de unidade escolar ou de sistema, investido para
certas funções, recebe do Estado para atestar certas tarefas que caracterizam as atividades de Estado
como, por exemplo, o atestar a validade de certificados e diplomas escolares. A ancoragem em provisão
legal é indispensável.
10
liberando os estudantes da ignorância e de uma visão espontânea do real possam ter
mais um patamar de sua consciência de si como sujeitos e de seus direitos como
cidadãos.
A res publica contém a democracia na qual e da qual se espera a existência de
cidadãos (todos) livres e ativos na ágora, cidadãos que superem a condição de súditos
subordinados (servos), de meros indivíduos disputantes de bens privados no mercado ou
de membros de um órgão familiar. Participar de modo consciente dos destinos de sua
comunidade política, eis o sentido maior da ação livre, autônoma, inclusiva e igualitária
dos cidadãos. Ora, essa dimensão política se defronta com a desigualdade inerente à
sociedade de classes e, então, instaura-se um campo de dissensos políticos que abarca
desde o conflito distributivo até o reconhecimento ou não de direitos culturais.
Retorno, assim, a um tema que me é caro: gestar é produzir o novo e gestar é
crescer junto. Gestar é um ato pelo qual se traz em si e dentro de si algo novo, diferente:
um novo ente. Isso significa que o gestor não pode ter um contrato com a desesperança.
A gestão implica um ou mais interlocutores com os quais se dialoga pela arte de
interrogar e pela paciência em buscar respostas que possam auxiliar no governo da
educação segundo a justiça. Nesta perspectiva, a gestão implica o diálogo como forma
superior de encontro das pessoas e solução dos conflitos.
De Porto Alegre, e mais de uma vez, se gestou uma voz: um outro modo, um
outro mundo, um modo novo de ser mundial é possível. Uma outra globalização é
possível dentro de um novo espaço de articulação que seja diferente dos rumos de uma
globalização assimétrica, desigual e perversa. As necessidades coletivas não podem
ficar sujeitas ao pensamento único, à unanimidade forjada e nem estão à venda. Para
tanto, é preciso um novo modo de governar. Pode-se ter governabilidade e governança
sem abdicar da participação dos cidadãos nas tomadas de decisão.
Esse dever ser gestado nessa cidade é um sinal de que sementes de uma nova
realidade já estão germinando no sentido da mudança. Porto Alegre é, assim, um palco
real e simbólico de nossa capacidade de abrir portas e janelas para um futuro melhor
brotado desde o presente. Entre essas sementes está a gestão democrática, desde os
escalões centrais da administração até o exercício da mesma nas unidades escolares.
Levada adiante, pelo exercício do diálogo, ela contém em si e no que ela representa a
consciência e a ação de uma educação que torne o sistema de ensino e a unidade escolar
lugares de democracia do saber e do compartilhar.
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BIBLIOGRAFIA
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Republicanismo. Belo Horizonte: UFMG, 2004
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12
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