GESTÃO DEMOCRÁTICA DA EDUCAÇÃO EM TEMPOS DE CONTRADIÇÃO Carlos Roberto Jamil Cury – PUCMG [email protected] Resumo: No momento em que boa parte do mundo se impunha um modelo macro-econômico liberal-conservador, em que despontavam líderes como Ronald Reagan e Margareth Thatcher, sob o denominado Consenso de Washington, o Brasil, sob o impacto de um movimento social amplo de desconstrução do regime autoritário, lutava pela construção de um regime democrático com garantias sociais e liberdades civis. Esse movimento, tendo desaguado na Constituinte, gerou capítulos e artigos na Constituição da República de 1988 cujos conteúdos se tornaram anteparos frente ao impacto das políticas liberais conservadoras. Nessa tensão e dela se insere o princípio da gestão democrática no âmbito da educação pública. Palavras-chave: autoritarismo, democracia e educação; gestão democrática da educação. NO MOMENTO em que boa parte do mundo se impunha um modelo macro – econômico sob a vaga conservadora, postulando a retirada do Estado da economia e o seu recuo na proteção aos direitos sociais, o Brasil, lutava pela construção de um regime político democrático com ampliação e garantias de direitos sociais e de direitos civis. Se nos países centrais despontavam lideranças como as de Ronald Reagan e de Margareth Tatcher, e na América Latina, a figura despótica de Augusto Pinochet, o Brasil, sob o impacto de um forte movimento popular queria a desconstrução do regime militar autoritário e corrigir as desigualdades advindas do passado. O primeiro movimento, em um processo de recomposição do capital internacional, desaguou no denominado “Consenso de Washington”, inspirado na insistência das teorias de Friedrich Hayek (1990), para quem as teses e as práticas dos direitos sociais juridicamente protegidos pelo Estado são a via mais fácil tanto para a crise fiscal dos erários públicos na manutenção desses direitos quanto para a acomodação individual dos indivíduos. Para ele, planejamento, intervenção estatal, direitos sociais são um Caminho da Servidão e a saída é menos Estado e mais liberdade econômica. Afinal, -- e nisso cabe razão aos próceres desse movimento conservador --, os direitos sociais são um investimento que possuem um custo e cuja fonte de financiamento deve ficar clara. E, para essa teoria, esse investimento tem que ser custeado pelo indivíduo produtivo ou por associações de indivíduos e não pelo Estado. Nesse sentido, a reversão dos direitos sociais deveria contar com uma outra maneira de se administrar o Estado e suas políticas. Enfatiza-se o recuo da administração direta do Estado no campo do capital estatal em favor de uma 1 coordenação geral de ações econômicas e sua remissão para o empreendimento próprio do sistema contratual de mercado. No âmbito dos direitos sociais, repassam-se os mesmos ou para esferas próprias da “responsabilidade social” da sociedade civil sob a forma de assistência social ou de filantropia, e na perspectiva mais conservadora, para a responsabilidade do próprio indivíduo. Seguem-se daí, de um lado, a tese do imposto de renda negativo à luz do pensamento de Friedman (1977) e, de outro lado, cortes nos investimentos sociais com a focalização em grupos específicos ou mesmo com a desativação de programas sociais mantidos pelo Estado. Está-se, pois, diante de uma nova dialética entre o Estado (primeiro setor), o Mercado (segundo setor) e a Sociedade Civil sem fins lucrativos (terceiro setor) com a chamada responsabilidade social1. A proeminência do Estado, enquanto fautor do bemestar social, deveria ceder lugar para o Mercado nas ações econômicas e para a Sociedade Civil nas ações de cunho social. O Estado, como res publica, não é a família, não é a sociedade civil e nem o mercado, deve cumprir certas funções gerais de coordenação de ações e de definição de regras do direito que têm a ver com interesses comuns e de todos. Mas na perspectiva liberal conservadora, ao Estado caberiam apenas as tarefas clássicas da segurança das fronteiras, da moeda, da diplomacia, da guerra e da paz, da justiça e das grandes diretrizes e coordenadas das ações. E dada a complexificação cada vez maior da sociedade, a ligação do Estado com o cidadão deveria obedecer a uma descentralização sob o princípio da subsidiariedade. E, por esse veio, constituem-se, então, novos espaços de articulação entre Estado e Sociedade por meio dos Conselhos e das Agências Reguladoras. Desse modo, do ponto de vista da chamada governabilidade2, constituíram-se entidades intermediárias entre governo e sociedade mediante os já tradicionais Conselhos de participação e controle e as chamadas agências reguladoras3. No caso brasileiro, tanto uns como outros criados ou por lei ou por decreto. Assim, ao mercado cabem as ações e iniciativas próprias do sistema contratual da propriedade e à sociedade civil, sob a figura de entidades sociais sem fins lucrativos, a responsabilidade por projetos humanitários ou relativos a interesses comunitários. O 1 Cf. a esse respeito o art. 5º , XXIII e art. 170 da Constituição. A governabilidade diz respeito à legalidade, às condições institucionais e sistêmicas do exercício do poder e à capacidade política do mesmo exercício com liberdade, eqüidade, tranqüilidade sob a ordem democrática. Já a governança diz respeito à capacidade financeira e administrativa em organizar e implementar políticas com eficácia e transparência. Cf. Diniz, 1995 e Diniz, 1996. 333 Cf. Gohn (2001) e Moreira Neto (2001) 2 2 mercado, lugar de encontro sistemático entre vendedores e compradores no âmbito do sistema moderno de economia supõe a existência dos direitos civis entre os quais avultam o das liberdades civis e o da propriedade. As liberdades civis, protótipo das liberdades negativas, são liberdades individuais, isto é, inerentes ao indivíduo singular: com efeito, são historicamente o produto das lutas pela defesa do indivíduo, considerado pessoa moral (e, portanto, tendo um valor em si mesmo) ou como sujeito de relações econômicas, contra a intromissão de entes coletivos como a Igreja e o Estado; filosoficamente, são uma manifestação de concepções individualistas da sociedade, ou seja, de teorias para as quais a sociedade é uma soma de indivíduos... (Bobbio, 1996, p. 57) À sociedade civil, lugar dos organismos privados com função social, a qual, à margem das relações próprias do poder estatal, cabe a busca e a disputa pela direção cultural da vida social por meio da formação e transmissão de valores em busca de um consenso. Ao mesmo tempo, essas décadas conhecerão, de modo veloz, o circuito das tecnologias aplicadas à comunicação e informação tornarão os espaços territoriais mais próximos gerando o fenômeno da denominada “globalização”. Esse primeiro movimento se guiará, fundamentalmente, pelo princípio da liberdade, entendida tanto como liberdade de iniciativa própria do sistema contratual de mercado embora considere desejáveis as liberdades civis protegidas por direitos e deveres individuais correspondentes tais como de expressão, de consciência, de culto, de organização entre outras. Nesse momento, cumpre relembrar um dos primeiros observadores das origens do início do sistema de mercado -- Thomas Hobbes (1993) – quando ele, no De Cive, assevera que “fora do Estado, tem-se o domínio das paixões, a guerra, o medo”. (De Cive, X, 1) Isso quer dizer que, pelo menos no tocante à vida de relação, às condições de existência da liberdade externa, o Estado tem um valor intrínseco absoluto... não é um expediente, um remédio, cujo valor dependa do valor da finalidade, mas é um ente moral . ... O indivíduo não é livre (no que se refere à liberdade externa) se não ingressa no reino do direito; mas o reino do direito perfeito é aquele no qual o direito privado-natural é submetido ao direito público-positivo... (Bobbio, 1986, p. 92-93) O segundo movimento, interno ao nosso país, empurrado pela crítica à ditadura e à concentração de renda que a caracterizou, mediado pelo impulso das “Diretas Já”, desaguará na Constituinte. Com uma participação poucas vezes vista na sociedade civil nacional, a Constituição de 1988, com razão, leva a marca da busca da cidadania olhando, ao mesmo tempo, para frente e para trás. Para frente, em vista de uma sociedade mais equânime e justa, para trás, a fim de desconstruir as barreiras e as heranças de uma sociedade desigual, discriminatória e díspar. A renitente desigualdade 3 social associada a heranças discriminatórias não havia conhecido vias consistentes de superação. Assim, capítulos e artigos dessa Constituição ficaram imbuídos de uma natureza sócio-distributiva, sob o concurso do Estado, muito próxima a da proteção dos direitos humanos e no horizonte do Estado do Bem-Estar Social. E ela não cessa de convocar para uma democracia eivada de espaços públicos de construção coletiva. Esse mesmo Estado abriu para todos, explicitamente, as portas da cidadania para algo que vinha da cidadania ateniense: a convocação à participação consciente em novas arenas de deliberação. Considere-se o artigo 14 da nossa Constituição que, decorrente do art. 1o. e do Preâmbulo da mesma, reconhece o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular como formas alternativas e complementares do processo democrático representativo e expressivas do que diz o § único do art. 1º: todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. A ordem constitucional, nascida desse movimento consagrou, em 1988, princípios caros à democracia e à educação democrática. Oposta ao que até então vigia em termos de despotismo e de medo, ela propõe uma nova maneira de se administrar a coisa pública ou seja sob a forma da virtude como amor pela coisa pública. Isto não significa que a construção da ordem democrática tenha se estendido do campo jurídico automaticamente para o conjunto das práticas sociais e políticas já que o autoritarismo, entre nós, no Brasil, possui raízes bem mais fundas em nossa história do que o do período militar. De um lado, tradições arcaicas próprias do Coronelismo, Enxada e Voto de Nunes (1995), já vinham de longa data fazendo da impessoalidade burocrática da modernidade weberiana, especialmente nos aparelhos de Estado, um degrau ainda a se conquistar. De outro, a exigência, pelo menos formal, de crescentes aparatos técnicoburocráticos com aspectos decisórios conflita com a dinâmica seja representativa, seja participativa, consagrada na Constituição. Chegávamos assim a uma definição de Estado Social encarregado da diminuição de condicionantes sociais ao acesso a determinados bens considerados indispensáveis para uma vida cidadã e da qual derivaria a igualdade de oportunidades. Esse circuito virtuoso, juridicamente positivado no campo da educação escolar, da saúde, da justiça, da segurança e em outros tantos, mesmo que nem sempre efetivado, está estabelecido sob um regime democrático que 4 reconhece ao cidadão direitos sociais antes jamais proclamados como tais. Esse Estado Democrático Social de Direito não ignorou a defesa do indivíduo, nem as liberdades civis e muito menos a propriedade privada ainda que reconhecendo sua função social. É dessa característica de Estado Democrático de Direito que a letra dos vários artigos do capítulo da Educação ganhará uma nova concepção e, sob ela, se afirmará o princípio da gestão democrática na educação pública. Desse modo, os anos 80 e o início dos anos 90 farão o Brasil conviver com uma primeira tensão: a afirmação, no âmbito internacional do princípio da liberdade sob o signo de políticas liberais conservadoras e, simultaneamente, no circuito nacional, a afirmação do princípio da igualdade sob o marco de políticas sociais próprias do Estado do Bem Estar Social. E mais, esse Estado Social, do qual se espera políticas públicas concernentes à superação das crônicas e históricas desigualdades, se afirmará Democrático pelo anseio de participação dos grupos e dos indivíduos nos destinos dos campos relativos aos direitos civis, políticos, sociais e culturais. Mas se não houve o desconhecimento dos direitos civis entre os quais o da liberdade e o da propriedade, a nossa Constituição não ignorou a necessidade de uma administração conscienciosa, responsável e transparente dos recursos públicos. E ela, ao enfatizar a dialética entre igualdade e liberdade, consagrou a crítica a toda e qualquer forma de discriminação e reconheceu, de modo solene, os direitos culturais de indivíduos e grupos marcados por séculos de preconceitos. Portanto, a partir da Constituição e no seu interior mesmo, se dá a segunda tensão: a tensão entre igualdade social e liberdade individual, entre liberdade de mercado e função social da propriedade, entre dever do Estado. Esse choque entre uma tendência igualitária distributiva face à dívida social com papel interventor do Estado e a tendência afirmadora da liberdade de mercado teria, justamente, sua face mais aguda nas fontes dos recursos e no modo de administrá-los. Daí a balança pendendo para a face internacional da economia mundial nas quais sobressaem as temáticas de ajuste fiscal, de estabilização econômica e do controle da inflação e dos gastos públicos e que são próprias do quadro econômico internacional que se impunha. No campo das políticas sociais, os elementos híbridos entre o público e o privado até então recessivos, ganharão mais força por meio de deslocamentos ora num, ora noutro. E a chamada à participação da sociedade civil poderá conhecer a terceira tensão envolvendo a ocupação dos aparatos burocráticos, nem sempre consagrados aos 5 seus fins, com a expectativa de real participação e com a realidade da democracia representativa. Essas tensões conheceriam uma razão ainda mais enfática dado que o Brasil se reconhece como um país sob regime federativo em cuja realidade não se disfarçam os contornos de disparidades regionais acentuadas e nem a reprodução de vícios e virtudes em nível nacional. No regime federativo, disparidades reais se associam a uma frágil repartição de poderes e de tributos entre as instâncias governamentais por meio de campos de competências legalmente definidas e dos recursos advindos dos tributos. Não é por acaso que o art. 3º da Constituição da República põe, em seu inciso III, como um dos seus objetivos fundamentais o de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. Dessas tensões emerge uma quarta tensão: uma expectativa muito alta no sentido da superação das várias formas de discriminação, de desigualdade, e de disparidades regionais e a tentação de esvaziar o caráter desses direitos proclamados ao colocá-los como meros discursos declaratórios de princípios em face das pressões internacionais, da crise fiscal e do controle inflacionário. Contudo, ao apontarmos a democracia como conatural à república, impõe-se como conseqüência mais uma reflexão: ...a busca pela igualdade passa pela busca dos mecanismos capazes de efetivá-la. ...quando pensamos em sociedades como a nossa, na qual o ponto de partida para a efetivação da igualdade política é uma profunda desigualdade social e econômica. ... Se olharmos para o Brasil de hoje, veremos que ainda enfrentamos o desafio de construção de uma república baseada na liberdade, na igualdade de condições e na estabilidade do ordenamento jurídico. (Bignotto, 2004, p. 29) Contudo, há que se entender que tais tensões não se dão sob forma linear de dominação. Elas se dão por contradição. Nesse sentido, supondo-se a resistência a determinadas políticas, não tardou muito a consciência das contradições entre a declaração dos direitos, os recursos existentes, as prioridades político-econômicas e o impacto das políticas internacionais. Deve-se dar o devido destaque ao campo das políticas tributárias tornadas ainda mais cruciais tanto quanto a fonte dos recursos para a garantia dos direitos Declarar, em especial na Constituição, é mais do que uma proclamação solene. Declarar é retirar do esquecimento e dizer aos que não sabem ou se esqueceram que somos portadores de um direito importante. Declarar, sob esse enfoque, resulta na 6 necessária cobrança de quem de direito (dever) e na indispensável assunção de responsabilidades por quem de dever (direito) em especial quando ele não é respeitado. O enfrentamento de tais contradições encontrou, de um lado, a insistência na busca de maior igualdade que a formalização jurídica propiciava, de outro lado, o peso material dos ajustes estruturais. Estava armada uma situação propiciadora da tradicional linha de esvaziamento ou ressignificação de direitos vinculantes que, no final das contas, levaria a uma busca do esvaziamento da substância dos direitos por meio de ações obstaculizadoras da efetivação e implementação dos objetivos maiores postos nos artigos 3º e 6º da Constituição da República de 1988. O governo Sarney, logo proclamada a nova Constituição, declarou que sem reformas institucionais e mesmo constitucionais "o país ficará cada vez mais ingovernável". O denominado Plano Verão trabalhava com a proposta de uma “desestatização”. E o então presidente do PFL afirmou que "a Carta de 1988 é totalmente inflacionária".4 Coube ao governo Collor desencadear o Plano Nacional de Desestatização (PND) argumentando que as empresas estatais eram ineficientes e geradoras de prejuízos, além de, com a venda das mesmas, livrar-se de encargos e empregar os recursos em áreas sociais. Na verdade, foi mesmo um Plano de Desmonte do Estado especialmente de órgãos de controle. No caso desse governante tratou-se de uma privatização que, sob a capa da modernidade, reproduziu um fenômeno já tradicional no país: a ocupação do aparelho de Estado com o que havia de mais atrasado e anacrônico em matéria de política: o da privatização nepotista do público. O senador Fernando Henrique Cardoso, já presidente eleito, ao despedir-se da casa senatorial, pronunciou discurso memorável no qual diz claramente que seu futuro governo poria fim à “Era Vargas”. Já empossado, cria o Conselho Nacional de Desestatização (CND) daí decorrendo os planos de privatização de várias estatais. E, no campo dos direitos sociais, já se tornaram constantes nas análises a crítica que diz ser o Estado incapaz de, por si só, promover o bem estar social e daí a assinalação das políticas de focalização, de descentralização e de terceirização. 4 Cf. Melo, 2005 7 Datam dessa época o projeto de Reforma do Estado do então ministro Luiz Carlos Bresser Pereira (cf. Pereira, 1999) e das leis das Organizações Sociais (OS - lei n. 9.637/98) e das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP – lei n. 9.790/99).5 A tais associações foram atribuídas a maior rapidez na prestação de serviços, a capilaridade territorial e a continuidade dos programas. Seja pelo lado do esvaziamento, seja pelo lado da ressignificação, seja mesmo pela necessidade de retirar do Estado certas áreas de atuação não cabíveis ao mesmo, seja pela criação de órgãos híbridos de interface Estad/Sociedade, vale registrar a importância da constitucionalização dos direitos, princípios e fundamentos expressos na Constituição e no capítulo da Educação. O impacto dessas tendências conservadoras existentes frente aos dispositivos constitucionais será distinta face aos diferentes campos de atingimento. No caso da economia, o impacto foi direto com alterações significativas nas comunicações telefônicas, na mineração e mesmo no âmbito de determinados capitais nacionais. Quanto ao caso dos direitos sociais, o impacto das políticas próprias da vaga conservadora poderia encontrar verdadeiros amortecedores impedindo conseqüências mais sérias como é o caso de certos princípios da educação escolar. Aponte-se a gratuidade em todo o ensino público, a vinculação de impostos para a sustentabilidade mínima da área e a gestão democrática na educação pública. Por outro lado, o regime federativo propicia, dada a relativa autonomia dos Estados e dos Municípios, orientações subnacionais diferenciadas.6 Essas orientações, muitas vezes, foram levadas adiante por administradores e gestores identificados com os valores sócio-republicanos. Outrossim, não se pode esquecer nem a capacidade de reinterpretação restritiva ou restrita de direitos sociais e nem a resistência levada adiante por segmentos inconformados com a desfiguração de valores sócio-republicanos ou com a lentidão em efetivá-los. E o campo educacional, junto com a derrubada do autoritarismo e com o processo em andamento de uma nova ordem constitucional propugnou a inclusão do 5 Apesar de terem nomes semelhantes e muitos elementos em comum, são diferentes até por responderem a distintas leis. As organizações sociais não podem se qualificar como organizações da sociedade civil de interesse público. As primeiras são privadas e criadas pelo poder público e já nascem sob a forma de contrato de gestão de um patrimônio público. As Oscips já eram privadas e se relacionam com o Estado por meio de parcerias. Entretanto a existência de ambas indica o fenômeno da publicização do Direito Privado e da privatização do Direito Público. 6 Aqui torna-se importante atentar para a contradição entre o caráter assimétrico real de nosso federalismo e sua formalização constitucional na busca de um federalismo simétrico. Cf. a esse respeito, Ramos, 1998. 8 princípio da gestão democrática na Constituição. Todo o capítulo da educação na Constituição da República de 1988 tornou-se uma referência tanto para a construção de uma educação pública de qualidade quanto a promessa de realização de uma igualdade de oportunidades. Dentro desse espírito, o art. 206, VI da Constituição Federal formaliza a gestão democrática para as escolas oficiais. O mesmo é recolocado no art. 3o. VIII da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. E no art. 14 da mesma lei o princípio é reposto e remetido a uma aplicação mais concreta nas leis ou normatizações dos sistemas de ensino. Junto a isso, não se pode esquecer que a LDB põe como próprio da educação a vinculação entre teoria e prática. Logo, a gestão democrática só o é mediante uma prática que articule a participação de todos, o desempenho administrativo-pedagógico e o compromisso sócio-político. Ela se instaura como um novo espaço de gestão enquanto esfera pública em que os sujeitos da escola e na escola são convocados a essa participação. Se ela se impõe como crítica das versões autoritárias até então vigentes, agora ela passa a ser um espaço crítico na medida em que participa da contradição maior que o país passou a viver logo após a promulgação da Constituição. Desse modo, a gestão democrática não está fora dessa dinâmica conflitiva e mesmo contraditória. Assim, tanto ela pode descair para uma concepção em que a sociedade civil à moda liberalismo clássico da qual o Estado recua e se descompromete, quanto ela pode pender para decisões compartilhadas e informações difundidas próprias de uma democratização do Estado. No primeiro caso, a responsabilização do desempenho da escola caminha no sentido de exigir do gestor, como líder do estabelecimento, uma qualidade cujas premissas contextuais estão longe de serem preenchidas para um atendimento qualificado.7 Essa descentralização para baixo, na qual o gestor se vê tentado a repartir com as famílias dos estudantes os encargos necessários no vácuo do Estado, significa um esvaziamento da educação como princípio e como direito. No segundo caso, a dinâmica de interação entre a sociedade civil e o Estado, considera a educação como responsabilidade dos poderes públicos e direito dos estudantes ao que a Constituição denomina padrão de qualidade (cf. art. 208, VII) com apoio financeiro (cf. art. 75 da LDB). 77 Considere-se a esse respeito os vetos, até hoje não votados, ao financiamento do Plano Nacional de Educação. 9 Esse padrão de qualidade, assim efetivado nessa interatividade entre o gestor, o sistema e a unidade escolar, desagüa no Colegiado da escola e na proposta pedagógica. Expressões da autonomia pedagógica da escola, o órgão colegiado busca definir em conjunto os rumos da escola, seu cotidiano, seu ambiente, seus problemas e possibilidades. A proposta pedagógica, fruto desse Colegiado ampliado para a totalidade do corpo docente, realiza (ou não) o dever de ensinar, em vista do aprendizado qualificado, assumido por todos como expressão do princípio da gestão democrática. Ao mesmo tempo, ela deve ser o momento de síntese: síntese de uma concreção curricular que contenha o caminho federativo das diretrizes nacionais, estaduais e/ou Municipais, até a sua apropriação específica na unidade escolar local. Por outro lado, tanto o Colegiado como o projeto pedagógico devem ser momentos de autoconsciência do estabelecimento frente aos objetivos maiores da educação, face à realidade daquela unidade trazida por avaliações e estatísticas além de propor caminhos de superação. Nesta autoconsciência, a proposta pedagógica expressará tanto o pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas (art. 3o., III da LDB), os diversos métodos, quanto a pluralidade de uma República Federativa. E, no que se refere à comunidade escolar mais ampla, a gestão democrática pode possibilitar a participação dos interessados na construção de um espaço público sem que tal esfera signifique a diminuição das responsabilidades do Estado em face de uma educação de qualidade. Tal é o caso dos múltiplos Conselhos não propriamente Escolares que circundam os estabelecimentos: o dos pais e mestres, o da merenda e o do FUNDEB. Um gestor, sob a égide da gestão democrática é, antes de tudo, um sujeito com fé pública voltado para garantir, na sua especificidade, um direito constitucional da cidadania.8 Eis porque um gestor, membro maior de um colegiado escolar, faz as informações circularem, as atualiza, dialoga, luta por melhoramentos, ingressa no âmbito do projeto pedagógico em constante busca do padrão de qualidade cujo princípio é o direito à educação escolar. Essa leitura possibilita aos gestores da coisa pública ações reivindicatórias ad extra e orientações ad intra nas quais a educação escolar 8 A noção de fé pública aqui assinalada se assemelha à fé pública notarial. Essa semelhança ( e não igualdade) compreende a representação que um gestor de unidade escolar ou de sistema, investido para certas funções, recebe do Estado para atestar certas tarefas que caracterizam as atividades de Estado como, por exemplo, o atestar a validade de certificados e diplomas escolares. A ancoragem em provisão legal é indispensável. 10 liberando os estudantes da ignorância e de uma visão espontânea do real possam ter mais um patamar de sua consciência de si como sujeitos e de seus direitos como cidadãos. A res publica contém a democracia na qual e da qual se espera a existência de cidadãos (todos) livres e ativos na ágora, cidadãos que superem a condição de súditos subordinados (servos), de meros indivíduos disputantes de bens privados no mercado ou de membros de um órgão familiar. Participar de modo consciente dos destinos de sua comunidade política, eis o sentido maior da ação livre, autônoma, inclusiva e igualitária dos cidadãos. Ora, essa dimensão política se defronta com a desigualdade inerente à sociedade de classes e, então, instaura-se um campo de dissensos políticos que abarca desde o conflito distributivo até o reconhecimento ou não de direitos culturais. Retorno, assim, a um tema que me é caro: gestar é produzir o novo e gestar é crescer junto. Gestar é um ato pelo qual se traz em si e dentro de si algo novo, diferente: um novo ente. Isso significa que o gestor não pode ter um contrato com a desesperança. A gestão implica um ou mais interlocutores com os quais se dialoga pela arte de interrogar e pela paciência em buscar respostas que possam auxiliar no governo da educação segundo a justiça. Nesta perspectiva, a gestão implica o diálogo como forma superior de encontro das pessoas e solução dos conflitos. De Porto Alegre, e mais de uma vez, se gestou uma voz: um outro modo, um outro mundo, um modo novo de ser mundial é possível. Uma outra globalização é possível dentro de um novo espaço de articulação que seja diferente dos rumos de uma globalização assimétrica, desigual e perversa. As necessidades coletivas não podem ficar sujeitas ao pensamento único, à unanimidade forjada e nem estão à venda. Para tanto, é preciso um novo modo de governar. Pode-se ter governabilidade e governança sem abdicar da participação dos cidadãos nas tomadas de decisão. Esse dever ser gestado nessa cidade é um sinal de que sementes de uma nova realidade já estão germinando no sentido da mudança. Porto Alegre é, assim, um palco real e simbólico de nossa capacidade de abrir portas e janelas para um futuro melhor brotado desde o presente. Entre essas sementes está a gestão democrática, desde os escalões centrais da administração até o exercício da mesma nas unidades escolares. Levada adiante, pelo exercício do diálogo, ela contém em si e no que ela representa a consciência e a ação de uma educação que torne o sistema de ensino e a unidade escolar lugares de democracia do saber e do compartilhar. 11 BIBLIOGRAFIA Bignotto, Newton. Problemas Atuais da Teoria Republicana. In: Cardoso, Sérgio (org). Retorno ao Republicanismo. Belo Horizonte: UFMG, 2004 Bobbio, Norberto. Igualdade e Liberdade. Rio de Janeiro : Ediouro, 1996. Diniz, Eli. Governabilidade, Democracia e Reforma do Estado: os desafios da construção de uma nova ordem no Brasil nos anos 90. Revista Dados, vol. 38, n. 3, p. 385-415, 1995. Diniz, Eli. Governabilidade, governança e reforma do Estado: considerações sobre o novo paradigma. Revista do Serviço Público, nº 2, pp. 5-20, Maio-Agosto 1996. Gohn, Maria da Glória. Conselhos gestores e participação sociopolítica. São Paulo : Cortez, 2001. Hayek, Friedrich A. von. O caminho da servidão. Rio de Janeiro : Instituto Liberal, 1990 Hobbes, Thomas. De Cive, Filósofos a Respeito do Cidadão. Petrópolis, Vozes, 1993. Melo, Marcus A.. Ingovernablidade: desagregando o argumento, in Licia Valladares e Magda Prates. Governabilidade e pobreza no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005, pp. 23-48 Moreira Neto, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo. Rio de Janeiro : Renovar, 2001. Nunes, Victor Leal. Coronelismo, Enxada e Voto. Rio de Janeiro : Editora Alfa e Ômega, 2005. Pereira, Luiz Carlos Bresser e Spink. Reforma do Estado e Administração Pública Gerencial. Rio de Janeiro : FGV, 1999. Ramos, Dirceu Torrecillas. O federalismo assimétrico. São Paulo : Plêiade, 1998. 12