Lazer Momento de leitura Extrato de O Processo, de Franz Kafka “ O procurador Apesar do conhecimento dos homens e da experiência da vida que K. adquirira durante os longos anos de serviço no banco, a sociedade que os seus amigos da mesa do costume formavam tinha-lhe sempre parecido digna duma atenção especial, e nunca negara a si próprio que pertencer a um tal círculo era para si uma grande honra. Era aquele quase exclusivamente constituído por juízes, procuradores e advogados; admitiam-se, também, alguns funcionários e ajudantes do tribunal muito jovens, que, no entanto, se sentavam ao fundo da mesa e só tinham autorização para participar nos debates quando lhes faziam perguntas directas. Todavia, a maior parte dessas perguntas tinham como objectivo divertir a sociedade; era sobretudo o procurador Hasterer, o vizinho habitual de K., quem gostava de empregar esse método para envergonhar os rapazes. Quando espalmava no meio da mesa a sua grande mão, forte e cabeluda, e se voltava para os ocupantes do fundo da mesa, toda a gente prestava atenção. E quando um deles, depois de ouvir a pergunta, nem sequer era capaz de atinar com o sentido dela ou olhava pensativamente para a cerveja que tinha em frente, ou em vez de falar movia apenas as maxilas, ou chegava ao ponto ― e isso era o pior ― de defender uma opinião falsa ou não comprovada com uma torrente impetuosa de argumentos, os presentes mais velhos, sorrindo, voltavam-se nos seus lugares e pareciam então começar a achar agradável o ambiente. Só eles tinham o privilégio de falar de assuntos sérios versando a sua especialidade. K. fora introduzido nessa sociedade por um advogado, o procurador do banco. Tinha havido uma altura em que K. fora obrigado a ficar até tarde no banco em reunião com esse advogado; daí adviera o facto de ter ceado com o advogado na mesa habitual deste e ter gostado das pessoas que aí se encontravam. Viu que se tratava unicamente de homens instruídos, considerados e, em certo sentido, poderosos, cuja distracção consistia em procurar afanosamente a solução de questões difíceis que só remotamente se relacionavam com a vida de todos os dias. Embora, como é óbvio, pouco pudesse participar activamente, tinha assim a possibilidade de adquirir um elevado número de conhecimentos que, mais cedo ou mais tarde, lhe podiam servir no banco e de, além disso, travar relações com gente da justiça, relações essas que eram sempre úteis. Mas também os ocupantes habituais da mesa pareciam simpatizar com ele. Não tardou a ser reconhecido como um perito em negócios e as suas opiniões em tais assuntos passaram a ser aceites ― ainda que nisso houvesse uma ponta de ironia ― como qualquer coisa de irrefutável. Não foram raras as vezes em que se deu o caso de dois dos presentes encararem diferentemente uma questão de direito comercial e pedirem a opinião de K. sobre o assunto em discussão, a ponto de o seu nome andar no vaivém da argumentação e contra-argumentação até ser levado às especulações mais abstractas, que desde há muito ele deixara de ser capaz de seguir. Contudo, a pouco e pouco, foi ficando esclarecido sobre muitas coisas, em grande parte devido a ter um bom conselheiro no procurador Hasterer, que também se interessava por ele como amigo. À noite, Hasterer acompanhava-o por vezes a casa. No entanto, durante muito tempo, K. não se pôde habituar a andar de braço dado com aquele homem gigantesco, que teria podido escondê-lo sob a sua capa sem que ninguém desse por isso. Mas com o decorrer do tempo encontraram tais pontos de contacto entre eles que todas as diferenças de cultura, de profissão e de idade se diluíram. Davam-se como se fossem velhos conhecidos, e se algumas vezes, na sua convivência, um deles parecia superior, esse não era Hasterer, mas sim K., cuja experiência prática, adquirida directamente ― coisa que nunca pode acontecer à gente da justiça ―, punha na maior parte das vezes a razão do seu lado. Esta amizade, como é natural, em breve foi conhecida por todos quantos habitualmente se sentavam à mesa; já não se sabia ao certo quem havia introduzido K.; em todo o caso era Hasterer quem agora respondia por ele; se o direito de K. se sentar à mesa fosse posto em dúvida, aquele podia com toda a razão recorrer a Hasterer. Desse modo, K. obteve uma situação particularmente privilegiada, pois Hasterer era tão conceituado como temido. A força e a perícia dos seus raciocínios em matéria jurídica eram na verdade admiráveis e, embora neste aspecto muitos dos seus interlocutores fossem, pelo menos, tão bons como ele, nenhum o igualava na ferocidade com que defendia os seus pontos de vista. K. tinha a impressão de que Hasterer, se não podia convencer o seu adversário, pelo menos o assustava; já muitos haviam recuado perante o seu indicador estendido. (…) No entanto, estes incidentes eram relativamente raros; acima de tudo, eram quase só questões jurídicas o que o levava a irritar-se e muito especialmente as que se referiam aos processos de que ele estava ou estivera encarregado. Se se tratasse de qualquer outra coisa, era amável e calmo, o seu riso agradável e concentrava o seu ardor no comer e no beber. (…) K. era muito delicado e modesto no trato com todos, e compreendia que, mais importante do que a modéstia e a delicadeza era a noção exacta das diferenças hierárquicas entre aqueles homens e o tratamento adequado à categoria de cada um. Na verdade, Hasterer dava-lhe continuamente lições a esse respeito; essas regras eram as únicas que ele, mesmo nos debates mais acesos, nunca infringia. Era essa a razão por que ele se dirigia sempre aos jovens do fundo da mesa ― que ainda pouca categoria tinham ― de uma maneira geral como se aqueles não fossem indivíduos mas apenas um amontoado homogéneo. Mas eram justamente estes senhores quem lhe prestava as honras mais elevadas, e, quando pelas onze horas se levantava a fim de ir para casa, havia logo um pronto a ajudá-lo a vestir o pesado sobretudo, e um outro que, com uma profunda vénia, lhe abria a porta e, naturalmente, a conservava aberta quando K. deixava a sala atrás de Hasterer. (…) de“O Processo”, de Franz Kafka (em “Os capítulos incompletos”), tradução de Gervásio Álvaro, revisão de Joana Taborda, Editora Livros do Brasil, Lisboa - maio de 2011 Revisores Auditores ABRIL_JUNHO 2014 62