POPULAÇÃO E CONSUMO URBANO DE ÁGUA NO BRASIL: INTERFACES E DESAFIOS CARMO, Roberto Luiz do 1*; DAGNINO, Ricardo de Sampaio 2; FEITOSA, Flávia da Fonseca3; JOHANSEN, Igor Cavallini 4; CRAICE, Carla5 Resumo – O Brasil vive um momento de transições importantes, que afetam a relação entre população e consumo de água. Por um lado, a transição demográfica (diminuição dos níveis de mortalidade e de natalidade), que no caso brasileiro foi marcada pela rápida queda da taxa de fecundidade total, passando de cerca de 6 filhos por mulher na década de 1960 para menos de 2 filhos por mulher no final da década de 2000. Por outro lado, observa-se uma transição do consumo, abordada aqui através da relação entre a melhoria da situação econômica e o consumo da água, que pode ocorrer tanto pela expansão do sistema de abastecimento nas áreas urbanas quanto pelo aumento da renda da população. Assim, embora exista uma diminuição significativa da velocidade do crescimento populacional, o consumo de água tende a aumentar, em decorrência de transformações econômicas e comportamentais. Por intermédio da aplicação de técnicas de modelagem estatística espacial, este trabalho apresenta evidências empíricas sobre a relação entre renda e consumo de água nos municípios brasileiros e demonstra como esta relação estabelece-se de maneira e intensidade diferenciada nas distintas regiões do país. Palavras-Chave – transição demográfica, água, consumo. POPULATION AND URBAN WATER CONSUMPTION IN BRAZIL: INTERFACES AND CHALLENGES Abstract – It is demonstrated in this paper that, although the volume of population is an important aspect to be considered in the relationship between population and environment, Brazil is experiencing a period of important transitions. On the one hand, the demographic transition (decreased levels of mortality and birth rates), which in the case of Brazil was marked by the rapid decline in the total fertility rate, from approximately 6 children per woman in the 1960s to less than 2 children per woman in the late 2000s. On the other hand, there is a transition of consumption, discussed here through the relationship between the improvement of the economic situation and the consumption of water, which is related both to the expansion of the supply system in urban areas and the increase in population income. Thus, although there is a significant decrease in population growth rates, water consumption tends to increase as a result of economic and behavioral changes. Through the application of spatial statistical modeling techniques, this paper presents empirical evidence on the relationship between income and water consumption in Brazilian cities and demonstrates how this relationship is differently established in the various regions of the country. Keywords – demographic transition, water, consumption. 1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Demografia. Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), e-mail: [email protected] Doutorando em Demografia. Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), e-mail: [email protected] 3 Pesquisadora Associada do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), e-mail: [email protected] 4 Mestrando em Demografia. Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), e-mail: [email protected] 5 Doutoranda em Demografia. Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), e-mail: [email protected] * Autor responsável pela submissão. 2 XX Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos 1 1. INTRODUÇÃO O Brasil é um país extenso, com 8,5 milhões de km², que possui uma população de 190,7 milhões de pessoas (IBGE, 2010). Desse total, 84% residem em áreas urbanas. No ano de 1950, cerca de 36,2% da população (18,8 milhões de pessoas) viviam nas áreas definidas como urbanas; em 2010 a população urbana brasileira atingiu 160,9 milhões de pessoas (84,4% do total), o que significou o acréscimo de 142,1 milhões de pessoas nas áreas urbanas. Nesse contexto, composto por 5.565 municípios, com 21 áreas metropolitanas ao todo, a questão do abastecimento de água tem sido uma preocupação constante pelo rápido e intenso aumento da demanda de água, além da geração de efluentes que historicamente foram carreados sem tratamento para os cursos d´água. O Brasil possui cerca de 12% da água doce disponível no planeta, contudo ela não está acessível necessariamente onde estão as grandes concentrações urbanas. Mesmo com avanços ocorridos nas décadas recentes em termos de aumento do número de domicílios atendidos pelo sistema de água tratada3 ainda existe um contingente significativo de populações urbanas sem acesso a serviços de água de qualidade e uma série de localidades onde existe infraestrutura (sistema e redes de abastecimento), mas não existe garantia de que exista efetivamente água durante todo o dia. O objetivo deste texto é mostrar que, por um lado, a questão do volume populacional residindo em áreas definidas como urbanas é sim importante. Ou seja, não se pode negar que um número maior de pessoas exige maior investimento em termos de infraestrutura e serviços básicos, que são necessários inclusive para diminuir a vulnerabilidade social frente às variações climáticas. Entretanto, por conta da transição demográfica, o crescimento populacional do país está próximo ao seu final e a tendência será de diminuição do seu volume nas próximas décadas. Além da questão do volume populacional, conforme já salientado, existem outros aspectos a serem considerados na relação entre população e ambiente, como o consumo da população. Dois dos mais importantes aspectos do consumo são o padrão (como se consome) e o nível (quanto se consome). Assim, uma população reduzida, mas com um nível de consumo elevado pode gerar problemas ambientais significativos. A hipótese que procuramos demonstrar é que o padrão de consumo, condicionado pela capacidade econômica, pode ser o fator decisivo no aumento da demanda sobre recursos. Para desenvolver essa argumentação observamos o aumento de renda que a população brasileira passou na década de 2000 juntamente com o caso específico do consumo de água. Com o período recente de crescimento econômico do país, houve paralelamente um aumento do consumo de água. Dois conjuntos de elementos estariam atuando juntos para aumentar a demanda por esse recurso: 1) a necessidade de expansão do sistema, para atender ao conjunto total da população, inclusive a população que ainda será acrescida às cidades nas próximas décadas e 2) a mudança no padrão e nível de consumo, em decorrência do aumento da renda da população do país. Em nossas análises anteriores contidas em Carmo et al.(2013), observamos a evolução histórica da dinâmica demográfica brasileira durante o século XX e seus efeitos nas tendências recentes de consumo de água da população em áreas urbanas; e, também, realizamos análises do crescimento do consumo de água no país, apresentando a relação entre renda per capita da população e consumo de água nas capitais brasileiras em 2000 e 2010. Neste artigo, expandimos a discussão sobre a relação entre capacidade econômica e consumo de água para os demais municípios do país, demonstrando como esta relação constrói-se de maneira diferenciada nas distintas regiões brasileiras. A partir de dados de renda e consumo 3 Dados da Pesquisa Nacional de Saneamento Básico (PNSB-IBGE, 2000 e 2008) analisados por Carmo et al. (2013) apontam que o volume de água tratada distribuída por dia no Brasil subiu de 44 milhões de metros cúbicos em 2000 para 61 milhões de metros cúbicos em 2008, o que corresponde a um aumento de 4,2% ao ano. XX Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos 2 residencial per capita nos municípios em 2010, são apresentadas análises baseadas na utilização de ferramentas estatísticas de análise espacial, mais especificamente na construção de modelos de regressão geograficamente ponderados. 2. TRANSIÇÃO DEMOGRÁFICA E CONSUMO DE ÁGUA NO BRASIL: TENDÊNCIAS RECENTES As mudanças na dinâmica demográfica podem trazer novas situações e possibilidades em termos da configuração da demanda por água no Brasil. Vislumbra-se para as próximas décadas a continuidade da diminuição significativa da velocidade do crescimento populacional, e até mesmo o início do declínio em termos de volume em meados do século XXI (CAMARANO e KANSO, 2009). 2.1 Transição Demográfica No contexto histórico recente, um dos processos mais marcantes da dinâmica demográfica é a chamada Transição Demográfica: processo decorrente da diminuição das taxas de mortalidade e natalidade, que ao longo do tempo declinam e tendem a se equilibrar em patamares mais baixos. Em uma situação em que a migração seja insignificante em termos de volume, essas mudanças na natalidade e mortalidade acarretam transformações na estrutura etária da população, provocando o “envelhecimento populacional” – aumento do peso relativo dos idosos no conjunto da população, conforme observam Wong e Carvalho (2006). Como resultado da dinâmica demográfica, a população do Brasil cresceu de maneira significativa durante o século XX, chegando a 190,7 milhões de habitantes segundo o Censo Demográfico 2010, tendo aumentado 21 milhões de habitantes durante a primeira década do século XXI. Embora o crescimento tenha sido expressivo em valores absolutos, verificou-se a diminuição das taxas geométricas anuais de crescimento da população brasileira, que atingiram seu ápice na década de 1950 (3,17% ao ano) e desde então apresentaram declínio constante, tendo registrado um crescimento da população total do país da ordem de 1,17% ao ano na década de 2000. O principal componente demográfico envolvido nessa mudança foi a queda da fecundidade, que passou de uma taxa total de fecundidade da ordem de 6 filhos por mulher na década de 1960 para menos de 2 filhos por mulher na década de 2000, portanto abaixo do nível de reposição populacional, conforme apontam Carmo et al.(2013).Seguindo essa tendência o volume máximo populacional deverá ser atingido na década de 2030 (230 milhões de habitantes), a partir da qual a população brasileira entrará em declínio (CAMARANO e KANSO, 2009). Os efeitos dessas mudanças recentes na estrutura da população sobre o consumo de água ainda são desconhecidos, mas esses processos demográficos colocam em evidência que não se pode considerar para esta análise apenas o volume da população. Portanto, é preciso ir além do volume de população e focalizar outros elementos que estão envolvidos na dinâmica demográfica, como a composição e a redistribuição espacial da população – especialmente através da concentração em áreas urbanas ao longo da segunda metade do Século XX – e seus reflexos nas mudanças no nível e padrão de consumo da população brasileira, com a ampliação do uso e acesso à água tratada nessas áreas urbanas e relativo aumento da renda. 2.2 Tendências recentes do consumo de água para a população brasileira Nosso foco neste trabalho se situa no âmbito do crescimento econômico brasileiro da última década. Sawyer (2002) salienta o papel do crescimento econômico para compreender o crescimento do consumo no país. A partir da década de 1990 a economia do país se estabilizou em razão da implementação do Plano Real em 1994 e, como consequência, aconteceu o crescimento da renda da XX Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos 3 população como um todo, promovido tanto pelo crescimento econômico quanto pela eliminação das altas taxas de inflação. Já o período entre 2001 e 2005 se destacou pela redução acentuada da desigualdade de renda da população brasileira (BARROS et al., 2007). O aumento da renda dos mais pobres não se deu pelo crescimento econômico como na década anterior - que na verdade é menor que no período do Plano Real -, mas principalmente pela redução da desigualdade de renda entre os estratos mais baixos e os mais altos da população. Isso significa dizer que o crescimento da renda dos mais pobres foi muito maior que a média brasileira: o quadriênio, a renda dos 10% mais pobres cresceu a uma taxa quase nove vezes maior que a média nacional. Isso estaria relacionado ao crescimento econômico estável acompanhado de mudanças reais da desigualdade desde o início da década de 2000. O governo redesenhou as políticas redistributivas de transferência de renda (e.g. Bolsa Família) que passaram a ser direcionadas à redução da pobreza e extrema pobreza, com efeito no aumento da renda média e na diminuição das desigualdades locais e regionais de todo o território nacional (IPEA, 2010). Uma das consequências desse processo é a ampliação do poder de consumo das famílias, refletindo no crescimento da demanda por recursos. Torres et al. (2006) verificam o aumento do acesso a bens (como máquinas de lavar, geladeira e telefonia) e também os serviços (como lixo e água) entre 1995 e 2004 de famílias em situação de pobreza. Apesar do estudo ser relativo à população de regiões metropolitanas, os resultados apontam para uma pobreza “diferente” em termos de padrão de consumo. Os autores associam estes resultados com políticas sociais de educação, de saúde e de transferência de renda, que funcionariam como redes de proteção social e apoiaria o acesso aos serviços, proporcionando melhores condições sociais. Após 2004, esse quadro se intensifica primeiro pela ampliação das políticas sociais, com destaque para reestruturação do salário mínimo, e também por políticas mais diretas de estímulo ao consumo, como oferta de crédito ou ações diretas de redução de impostos. Contudo a principal diferença desse segundo momento da década de 2000 foi a retomada do crescimento econômico, saindo do período considerado de semi estagnação vivido no período anterior (IPEA, 2010). Cabe observar que a redução da pobreza aconteceu de forma desigual entre as regiões brasileiras. Entre 1995 e 2004, as melhorias se concentravam principalmente nas regiões Norte e Nordeste, principalmente por conta da redução da desigualdade. Após 2004 as regiões com maior impacto foram a Sul e Sudeste com o aumento de renda média da população como um todo, que são áreas mais industrializadas e respondem mais rapidamente à expansão econômica (ROCHA, 2009). Seria possível relacionar o cenário recente de estabilização econômica com mudanças no nível de consumo de água no Brasil? Certamente buscar estabelecer relações mecânicas e simplificadoras entre conjuntura macroeconômica e consumo de água não é condizente com a complexidade e dinâmica da realidade. Todavia, é sim possível identificar tendências que apontam, por exemplo, para mudanças no nível de consumo de água no Brasil em consonância com o nível de renda da população. Essa problemática, central da discussão aqui proposta, é desenvolvida lançando-se mão da base de dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), disponibilizada pelo Ministério das Cidades. Ao buscar possíveis relações existentes entre nível de renda per capita e consumo de água per capita para as capitais das unidades federativas brasileiras nos anos de 2000 e 2010, Carmo et al. (2013) concluíram que existe correlação significativa (R² = 0,50 em 2000 e 0,52 em 2010) entre renda e consumo de água, isto é, capitais com renda per capita elevada possuem alto consumo de água e capitais com renda per capita menor possuem baixo consumo de água. De maneira geral, demonstra-se que temos na categoria “renda” uma das possíveis variáveis capazes de ajudar a compreender o crescimento do consumo de água no Brasil atualmente. Para que isso possa ser afirmado com base em evidências empíricas adicionais, propomos uma análise da XX Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos 4 inter-relação entre renda e consumo de água para todos os municípios do Brasil no ano de 2010. Para tanto, lançamos mão de análises baseadas em estatística espacial que nos permitiram verificar que esta relação acontece de forma diferente nas distintas regiões do país, como se poderá observar de forma mais detalhada a seguir. 3. ANÁLISE ESPACIAL DAS RELAÇÕES ENTRE CONSUMO DE ÁGUA E CAPACIDADE ECONÔMICA Para investigar os padrões de consumo residencial de água no Brasil e sua relação com a renda da população, este estudo utiliza dados de 2010 disponibilizados pelo SNIS e pelo Censo Demográfico (IBGE) para 4417 municípios (de um total de 5178). As variáveis "consumo residencial de água per capita" (SNIS) e "renda per capita" (IBGE), ambas agregadas por municípios, foram selecionadas como variáveis proximais (proxies) de consumo de água e capacidade econômica, respectivamente (Figura 1). (a) CONSUMO RESIDENCIAL DE ÁGUA PER CAPITA (m3/dia/hab.) (b) RENDA PER CAPITA (R$/hab.) Figura 1. Distribuição espacial de consumo residencial de água e renda da população em 2010. Fonte: SNIS (2010) e IBGE (2010). Para estimar a associação entre ambas as variáveis, construiu-se inicialmente um modelo de regressão linear global (NETER et al., 1996). Neste caso, todas as observações consideradas na análise são utilizadas para estimar um único modelo: = + + (1) onde CONSUMOi representa o consumo de água per capita no município i (variável dependente), RENDAi representa a renda per capita da população no município i (variável independente), são os parâmetros a serem estimados, e representa o erro. Os resultados, apresentados na Tabela 2, revelam uma associação positiva (β = 41.(10-6)) e estatisticamente significante (estatística t = 49) entre o consumo de água e a renda per capita da população nos municípios brasileiros. Portanto, de acordo com este modelo, o incremento de uma unidade (R$ 1) XX Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos 5 na renda média per capita da população está associado a um incremento de 41 ml/dia (ou cm3/dia) no consumo residencial de água por habitante. Em relação à qualidade do ajuste, é possível constatar através do coeficiente de determinação 2 (R ) que o modelo estimado é capaz de descrever 36% da variabilidade observada na variável "consumo de água per capita". Tabela 2 - Modelo de regressão linear global da associação entre consumo residencial de água per capita (CONSUMO) e renda per capita da população (RENDA) nos municípios brasileiros em 2010. Variável β Desvio Padrão Estatística t (constante) 4,25.(10-3) 4,55.(10-4) 9,3 -6 -7 RENDA 41.(10 ) 8,2.(10 ) 49 Coeficiente de determinação: R2 = 0,36 Teste F: F = 2499,1 É importante ressaltar que o modelo apresentado na Tabela 1 representa de maneira constante a associação entre consumo e renda, gerando resultados globais que se pretendem válidos para todos os municípios brasileiros. No entanto, dada a heterogeneidade dos processos socioeconômicos vigentes em um país como o Brasil, é bastante provável que a relação entre as variáveis consideradas ocorra de maneira distinta nas várias regiões de seu território. Neste caso, dada sua incapacidade de incorporar variações espaciais, um modelo tradicional de regressão apresentaria um poder explicativo reduzido. Para testar a hipótese de que o processo investigado é não-estacionário, ou seja, varia ao longo das diferentes regiões do país, o modelo de regressão global estimado foi comparado a um modelo de regressão com efeitos espaciais contínuos, conhecido como regressão geograficamente ponderada (GWR - Geographically Weighted Regression, FOTHERINGHAM et al., 2002). Ao invés de estimar um modelo único, o GWR modela o processo analisado de maneira contínua, com parâmetros variando no espaço. A técnica GWR ajusta um modelo de regressão a cada ponto observado, ponderando todas as demais observações como função da distância a este ponto. Ou seja, observações mais próximas do ponto da regressão local são ponderadas mais fortemente do que as observações mais distantes. No caso deste trabalho, um conjunto de parâmetros foi estimado para cada ponto observado i (o centróide de cada município) localizado nas coordenadas geográficas (ui, vi): = ( , ) + ( , ). + (2) Assim, para cada um dos 4417 municípios considerados na análise foi obtido um conjunto de estimativas de parâmetros e outras estatísticas que, quando apresentados visualmente na forma de mapas, facilitam a análise sobre como varia espacialmente a associação entre consumo de água e renda no país. Para a ponderação das observações consideradas na estimativa de cada modelo local de regressão, foi utilizada uma função gaussiana com largura de banda adaptável à densidade dos dados, ou seja, menor em áreas com alta concentração de municípios e vice-versa. No experimento apresentado, a largura de banda utilizada para cada modelo local era equivalente à menor distância capaz de abranger 0,5% dos municípios mais próximos (22 municípios). Os resultados obtidos revelam uma associação positiva e significativa entre consumo de água e renda em mais de 95% dos modelos estimados (t-valor associado ao 1 > 1,96). Entretanto, corroborando com a hipótese apresentada, a visualização dos coeficientes estimados para a variável RENDA (Figura 2(a)) revela variações espaciais expressivas na relação entre consumo e renda. As XX Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos 6 regiões mais claras representam aquelas com coeficientes baixos, como o sul do Brasil, onde um incremento na renda está associado a um menor incremento no consumo de água. Já nas regiões mais escuras, como boa parte do nordeste brasileiro, um aumento na renda da população está relacionado a um maior incremento no consumo residencial de água por habitante. Os menores coeficientes estimados para a variável RENDA foram observados em municípios do Estado do Rio Grande do Sul e os maiores em Alagoas. O modelo estimado para o município de Traipu (AL), que apresentou o maior coeficiente estimado, revela que nesta região um aumento de R$ 1 na renda per capita da população está associado a um incremento do consumo de água de 100,3 ml/dia/hab. Em comparação, na região do município de Floriano Peixoto (RS), que apresentou um dos menores coeficientes significativos (t-valor > 1,96), o mesmo incremento na renda está associado a um aumento do consumo de 10,22 ml/dia/hab. De maneira geral, as regiões apresentadas na Figura 2(a) como aquelas onde a elevação da renda está relacionado um maior incremento do consumo (áreas mais escuras) tendem a coincidir com as áreas onde o aumento do poder de consumo - que acompanhou o recente processo de estabilização econômica, crescimento econômico e ampliação dos programas redistributivos apresentou os maiores impactos na redução da pobreza e extrema pobreza do país. São regiões onde a redução da pobreza ampliou de maneira expressiva o acesso a recursos básicos para a manutenção de vida desta população, entre eles a água potável. Já em regiões como a Sul, caracterizada por níveis mais elevados de renda, um aumenta na renda tende a gerar um impacto menor no consumo de bens essenciais como a água e maior no consumo de bens de outra natureza. (a) PARÂMETROS LOCAIS ESTIMADOS PARA A VARIÁVEL "RENDA PER CAPITA" (b) COEFICIENTE LOCAL DE DETERMINAÇÃO (r2) Figura 2. Resultados do modelo GWR: variação espacial dos (a) parâmetros locais estimados para a variável RENDA e (b) coeficientes locais de determinação (r2). O modelo GWR estimado foi capaz de descrever 64% da variabilidade observada na variável CONSUMO (R2 global = 0.64)4, embora a qualidade do ajuste não tenha sido constante ao longo do 4 O ajuste global de um modelo GWR sofre influência da largura de banda utilizada na análise: um aumento da largura de banda tende a diminuir o ajuste global. XX Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos 7 território brasileiro, conforme mostra o mapa dos coeficientes locais de determinação (r2) na Figura 2(b). As áreas mais escuras do mapa são aquelas onde o modelo estimado localmente foi capaz de descrever mais de 50% da variabilidade na variável CONSUMO (r2 > 0.5). As áreas mais claras, no entanto, apresentaram um ajuste pior, com r2 local inferior a 0.2. São locais onde outros fatores, como por exemplo a expansão do sistema de abastecimento de água, poderão estar mais expressivamente associados à variação do consumo residencial de água. CONCLUSÕES O Brasil passou por um processo intenso de mudança de sua dinâmica demográfica ao longo do Século XX através da transição demográfica e da transição urbana. Se fosse considerado apenas o volume populacional e a concentração da população nas cidades, já se poderia vislumbrar a estabilização da demanda por esse recurso essencial que é a água. Entretanto, além destes fatores, existe uma grande complexidade de elementos intervenientes na demanda por recursos hídricos, dentre os quais se destaca a questão das características do consumo e dos diferentes aspectos que estão envolvidos no seu padrão e crescimento, como a renda da população e a cobertura da rede de tratamento e distribuição de água. Partindo do pressuposto de que a renda da população representa um fator relevante para auxiliar na compreensão do crescimento do consumo residencial de água no Brasil, este trabalho constrói modelos de regressão com efeitos espaciais contínuos para investigar como a relação entre estas variáveis se configura em distintas localidades do país. Além de apresentar evidências empíricas adicionais quanto ao impacto do recente cenário de estabilização econômica e gradual elevação da renda da população sobre o aumento do consumo de água no país, os resultados revelam uma grande heterogeneidade da relação entre renda e consumo no território nacional. Através dos resultados do modelo, foi possível identificar áreas onde a esperada e desejada diminuição da pobreza tende a exercer uma maior pressão sobre recursos mais básicos como a água. Assim, mesmo com o decréscimo significativo nas taxas de crescimento populacional, o nível de consumo não apenas seguirá pressionando no sentido de aumentar a demanda por água, como também o fará de forma mais acentuada em certas regiões do país, incluindo algumas onde a escassez de água já representa um problema crônico, como é o caso do Nordeste. Esse é o cenário complexo com o qual as políticas públicas no Brasil terão de lidar, principalmente no médio e longo prazos. No que diz respeito ao acesso a um bem essencial como a água, o desafio será garantir que a redução da pobreza e o aumento da cobertura do sistema de abastecimento possam ser sustentados e ampliados, de modo a permitir que toda a população do país tenha acesso à água tratada, sem, entretanto, exaurir os mananciais existentes. REFERÊNCIAS BARROS, R.; CARVALHO, M.; FRANCO, S.; MENDONÇA, R. (2007). A importância da queda recente da desigualdade para a pobreza. In: BARROS, R.; FAGNEL, M.; ULYSSEA, G. (Orgs.). Desigualdade de renda no Brasil: uma análise da queda recente – Volume 1. Rio de Janeiro: Ipea. CAMARANO, A. A.; KANSO, S. (2009). Perspectivas de crescimento para a população brasileira: velhos e novos resultados. IPEA, Brasília, 30 p. (Texto para discussão, n. 1426). CARMO, R.L.; DAGNINO, R.S.; JOHANSEN, I.C. (2013). Transição demográfica e transição do consumo urbano de água no Brasil. Revista Brasileira de Estudos de População, São Paulo (no prelo). 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