Infectologia Resistência do Pneumococo aos Antimicrobianos no Brasil Prof. Dr. Cícero Dias* INTRODUÇÃO O A RESISTÊNCIA NO BRASIL: O QUE REVELAM NOSSOS ESTUDOS? coco) é uma das principais causas de Convivemos no Brasil com pneumococos doenças invasivas graves, como pneu- resistentes à penicilina há quase 20 anos. monias, bacteremias e meningites. Uma outra Em 1988 foi publicado o primeiro caso (uma face das infecções pneumocócicas é aquela criança com meningite) de pneumococo com relacionada com infecções de menor reper- resistência intermediária à penicilina, na cidade cussão clínica, porém muito freqüentes, como de São Paulo.(2) Durante a década de 90 foi sinusites e otites.(1) A resistência do pneumococo observada a disseminação de pneumococos aos antimicrobianos, penicilina em especial, vem com resistência aos antimicrobianos no Brasil. crescendo em praticamente todo o mundo, oca- Diversos estudos com enfoque de vigilância sionando limitações nas opções terapêuticas. O realizados durante aquele período mostraram Brasil não é exceção neste cenário. um perfil homogêneo de resistência à penicilina. Seja pelo tipo de relação do hospedeiro, seja Em geral, a resistência intermediária esteve pelas limitações para uma abordagem etiológica entre 10%-15% das amostras, ao passo que a de diagnóstico, as infecções pneumocócicas resistência plena à penicilina (MIC ≥ 2,0 µg/ml) são tipicamente tratadas dentro de um conceito apresentou uma prevalência inferior a 5%.(3-7) empírico. Tratamentos empíricos são baseados Estes estudos apresentam uma padronização em estudos de vigilância. É por intermédio deles metodológica adequada, um número consis- que conhecemos a prevalência da resistência tente de amostras analisadas e são, em sua aos diferentes agentes antimicrobianos. Há ampla maioria, provenientes de pacientes da consideráveis diferenças na prevalência de re- Região Sudeste. Em conjunto, constituem a sistência em regiões geográficas específicas e base do conhecimento que dispomos sobre em grupos especiais de pacientes. Deve ainda esta questão em nosso país. Resistências aos ser considerada a dinâmica da resistência, com macrolídeos e às tetraciclinas foram também variações ao longo do tempo, mesmo dentro de observadas em alguns destes estudos, com uma mesma região. prevalências inferiores a 10%, não havendo re- J. L. Rocha Streptococcus pneumoniae (pneumo- * Professor Assistente de Microbiologia da Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre - RS. Microbiologista do Hospital Mãe de Deus, Porto Alegre - RS. Prática Hospitalar • Ano VIII • Nº 46 • Jul-Ago/2006 223 lato de resistência às fluorquinolonas ou à A questão da resistência do pneumococo aos antimicrobianos permanece sob investigação no país. Estudos regionais e multicêntricos têm permitido uma visão mais atualizada sobre este problema vancomicina. Especificamente em relação à eritromicina, a resistência verificada em um estudo que contou com 931 amostras originárias dos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul (período 1990-1999) foi de 4,3%.(8) Em relação a amostras isoladas de portadores, um único estudo realizado neste período enfocou amostras de crianças sadias, portadoras do pneumococo em Fortaleza, CE, sendo que a resistência plena à penicilina foi de 3,6%, e a resistência intermediária foi de 44,9%. (9) A questão da resistência do pneumococo aos antimicrobianos permanece sob RESISTÊNCIA, SOROTIPOS E CLONES A relação com os sorotipos capsulares do pneumococo é um passo crucial para que se entenda a disseminação da resistência aos antimicrobianos. De acordo com estudos que estabeleceram esta relação, os sorotipos 6A, 6B, 14, 19A, 19F e 23F estão entre os mais freqüentemente encontrados entre amostras resistentes à penicilina,(3,4,16) o que, em geral, aparece em concordância com resultados de outros países. Os sorotipos relacionados à resistência à eritromicina foram 14, 19A e 23F em outra investigação.(8) investigação no país. Estudos regionais e voca tendência de alta na prevalência Para avançar no conhecimento da dis- multicêntricos têm permitido uma visão de resistência aos beta-lactâmicos. É o seminação de pneumococos resistentes mais atualizada sobre este problema. Dois que se verifica em estudo que incluiu 315 aos antimicrobianos, estudos envolvendo estudos regionais, dirigidos para amostras amostras isoladas entre 2001 e 2002, com técnicas de epidemiologia molecular são encontradas em infecções pneumocócicas predomínio de pacientes com infecção necessários. Em 1997 foi estabelecida a invasivas foram recentemente publicados: respiratória e de cidades das regiões Sul Pneumococcal Molecular Epidemiology em Salvador, BA, a resistência plena obser- e Sudeste, com 7,9% de resistência plena Network (www.sph.emory.edu/PMEN), vada entre 70 amostras de crianças e ado- e 22,2% de resistência intermediária, su- uma rede cujo objetivo é a vigilância global lescentes foi de 1,43%, enquanto 18,6% periores aos 4,2% no período 1997-1998 de pneumococos resistentes aos antimi- das amostras apresentaram resistência e de 2,9% no período 1999-2000 (dados crobianos. Esta rede reconhece atualmente intermediária; referentes à resistência plena). (10) em Uberlândia, MG, 2,7% Esta ten- 43 clones, sendo que a presença de pelo das amostras foram caracterizadas como dência de aumento da resistência é mais menos cinco destes clones já foi detectada resistentes e 12,8% como resistência inter- evidente em uma investigação abrangente, entre amostras circulantes no Brasil. São mediária entre 148 amostras de pacientes conduzida como parte do programa na- os clones Spain23F1, com resistência à de diferentes faixas etárias. cional de vigilância epidemiológica, com penicilina (MIC = 2 µg/ml), ao cloranfenicol, Estudos multicêntricos permitem uma um total de 6.470 amostras coletadas à tetraciclina e a sulfametoxazol-trime- visão mais ampla sobre a questão da re- de infecções invasivas durante o período toprima;(17) Spain6B2, com resistência à sistência. Foi constado por Castanheira et 1993-2004. A proporção de resistência penicilina (MIC = 2 µg/ml), ao cloranfenicol, al. que entre 497 amostras obtidas entre plena e intermediária era de 1,1% e 9,1%, à tetraciclina e a sulfametoxazol-trimetopri- 1997 e 2001, a resistência à penicilina respectivamente, em 1993, atingindo 5,9% ma;(17) Spain9V3, que apresenta resistência foi de 3,9% (resistência plena) e 18,0% e 22,0% no ano de 2004. A resistência a à penicilina (MIC = 2 µg/ ml) e a sulfameto- (resistência intermediária), sendo inferior sulfametoxazol-trimetoprima, tetraciclina, xazol-trimetoprima;(18) England149, resisten- à observada em outros países da Amé- cloranfenicol e rifampicina foi de, respec- te à eritromicina(8) e o clone Colômbia23F26, rica Latina. A resistência a cefuroxima, tivamente, 65,0%, 14,6%, 6,2%, 1,3% e resistente à penicilina (MIC = 0,12 µg/ml)(19). ceftriaxona, eritromicina e sulfametoxazol- 0,7%; não sendo observada resistência à Consideradas as dimensões do Brasil e trimetoprima foi de 6,5%, 1,4%, 11,5% vancomicina e à levofloxacina(14). Em 2003, sua população, pode-se considerar que e 50,3%, respectivamente. Contudo, a chance de obter-se um pneumococo nosso conhecimento sobre a dissemina- resultados de estudos mais recentes que resistente à penicilina no Brasil era de ção de clones de pneumococos resisten- apresentam comparações com resultados aproximadamente quatro vezes em relação tes é ainda incompleto. Somente estudos de anos anteriores revelam uma inequí- a 1999 (razão de chances = 3,99). de vigilância que agreguem ferramentas (11) (12) 224 Prática Hospitalar • Ano VIII • Nº 46 • Jul-Ago/2006 (13) (15) Infectologia de epidemiologia molecular poderão fornecer um quadro mais preciso sobre esta questão. PERSPECTIVAS FUTURAS A natureza cumulativa da resistência do pneumococo à penicilina e a disseminação de clones com resistência já definida convergem para o aumento da resistência aos beta-lactâmicos e outros antimicrobianos. Em contrapartida, o uso da vacina conjugada heptavalente administrada em crianças parece ter a capacidade de reverter ao menos parcialmente esta tendência em países em que a aplicação da vacina é universal. Em estudo multicêntrico espanhol, foi observado um decréscimo de 60,4% para 41,2% na resistência à penicilina em crianças entre 2001 e 2003.(20) A diminuição na resistência foi supostamente atribuída à redução no consumo de antimicrobianos, sendo esta redução relacionada ao uso da vacina. No Brasil, a vacina conjugada heptavalente está disponível apenas em clínicas privadas. De qualquer forma, estudos de vigilância sobre a resistência do pneumococo no Brasil devem futuramente considerar a premissa do impacto da vacina heptavalente. É por intermédio da continuidade destes estudos de vigilância que poderemos monitorar tendências regionais e nacionais de resistência dos pneumococos no Brasil. t REFERÊNCIAS 1. Advisory Committee on Immunization Practices. 1997. Prevention of pneumococcal disease: recommendations of the Advisory Committee on Immunization Practices (ACIP). Morb. Mortal. Wkly. Rep. 46 (RR-08):1-24. 2. De Souza Marques HH, Yamamoto M, Sakane PT, Caiaffa-Filho HH, Mendes CMF. Relatively penicillin-resistant pneumococcal meningitis in a Brazilian infant. Pediatr Infect Dis J. 1988;7:433-434. 3. Sessegolo JF, Levin ASS, Levy CE, Asensi M, Facklam RR, Teixeira LM. Distribution of Estudos de vigilância sobre a resistência do pneumococo no Brasil devem futuramente considerar a premissa do impacto da vacina heptavalente serotypes and antimicrobial resistance of Streptococcus pneumoniae strains isolated in Brazil from 1988-1992. J Clin Microbiol. 1994;32:906-911. 4. 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