CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO stricto sensu - MESTRADO EM DIREITO GUILHERME OLIVEIRA DE ANDRADE O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA E O DIREITO PENAL DE RISCO CURITIBA 2009 CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO stricto sensu - MESTRADO EM DIREITO GUILHERME OLIVEIRA DE ANDRADE O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA E O DIREITO PENAL DE RISCO CURITIBA 2009 GUILHERME OLIVEIRA DE ANDRADE O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA E O DIREITO PENAL DE RISCO Dissertação Mestrado apresentada em Direito ao Curso de Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba, como requisito parcial para a obtenção do Título de Mestre em Direito. Orientador: Professor Doutor Fábio André Guargni. CURITIBA 2009 GUILHERME OLIVEIRA DE ANDRADE O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA E O DIREITO PENAL DE RISCO Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do Título de Mestre em Direito pelo Centro Universitário Curitiba. Banca Examinadora constituída pelos seguintes professores: Presidente: ___________________________________ FÁBIO ANDRÉ GUARAGNI ___________________________________ PAULO CÉSAR BUSATO (MEMBRO EXTERNO) ___________________________________ LUIZ ANTONIO CÂMARA (MEMBRO INTERNO) Curitiba, de de 2009. RESUMO O presente trabalho tem como proposta analisar de que forma o princípio da intervenção mínima do Direito Penal se sustenta em face do novo modelo de configuração social de uma sociedade de risco. A fim de permitir tal análise, demonstrar-se-á que os princípios penais, dentre ele o princípio da intervenção mínima do Direito Penal, possuem seu fundamento na pretensão iluminista de estabelecerem-se limites ao exercício do poder penal pelo Estado. O princípio da intervenção mínima, assim, caracteriza-se pelo mandamento de que o Direito Penal apenas atuará quando sua intervenção se mostrar absolutamente necessária, através de critérios de fragmentariedade e subsidiariedade. Com a transformação do modelo de configuração social de uma primeira modernidade para a segunda modernidade e o advento de novos riscos tecnológicos, o Direito Penal é chamado a atuar sobre novas áreas, para as quais não se mostra devidamente equipado. Em virtude de tal inadequação dos instrumentos penais, o mesmo passa a sofrer uma série de flexibilizações que visam permitir uma antecipação do momento de sua atuação, a fim de que o mesmo se compatibilize com ideais de precaução. Frente estas flexibilizações, o princípio da intervenção mínima do Direito Penal é colocado em dúvida, uma vez que aparentemente incompatível com a nova missão adotada pelo Direito Penal. Tal incompatibilidade, no entanto, deve ser superada, pela manutenção do princípio da intervenção mínima do Direito Penal assentada no estabelecimento do princípio da dignidade da pessoa humana como critério de verificação da legitimidade penal de tutela de bens jurídicos supra-individuais. Palavras-Chave: Intervenção Mínima, Direito Penal, Direito Penal do Risco, Sociedade do Risco. ABSTRACT The present work has the intent to make an analysis of in which form the minimal intervention of the criminal law principle sustains itself in the new social configuration model of a risk society. To allow that analysis, it will be demonstrated that the criminal principles, and among them the minimal intervention of the criminal law principle, have their fundament in the iluminst intent to establish limits to the State’s punitive power. The minimal intervention of the criminal law principle, therefore, rule that the Criminal Law will only act when its intervention reveals itself as absolutely necessary, through criterions of fragmentary and subsidiary. With the transformation of the social configuration model from a first modernity to a second modernity, and the advent of new technological risks, Criminal Law is called to act over new areas, to which it’s not duly equipped. Because of that inadequacy of the criminal instruments, Criminal Law starts to suffer a series of flexibilizations, which aim to allow an anticipation of its acting moment, in order so that it may conform with precaution goals. Opposed to those flexibilizations, the minimal intervention of the criminal law principle is questioned, once its apparent incompatibility with the new mission adopted by Criminal Law. That incompatibility, notwithstanding, must be overcome by the maintenance of the minimal intervention of the criminal law principle settled in the establishment of the human person dignity principle as the supraindividual legal assets criminal protection legitimacy verification criterion Key-Words: Minimal Intervention, Criminal Law, Risk Criminal Law, Risk Society. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 9 2 O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA DO DIREITO PENAL 11 2.1 FUNDAMENTOS DOS PRINCÍPIOS PENAIS 11 2.2 PRINCÍPIOS PENAIS 25 2.2.1 Princípio da Legalidade 26 2.2.1.1 Proibição da Retroatividade da Lei Penal 30 2.2.1.2 Proibição de Incriminação Pelos Costumes 31 2.2.1.3 Proibição da Analogia Incriminadora 33 2.2.1.4 Proibição de Incriminações Incertas 34 2.2.2 LESIVIDADE 36 2.2.2.1 Proibir a Incriminação de uma Atitude Interna 38 2.2.2.2 Proibir a Incriminação de uma Conduta que Não Exceda o Âmbito 38 do Próprio Autor 2.2.2.3 Proibir a Incriminação de Simples Estados ou Condições 39 Existenciais 2.2.2.4 Proibir a Incriminação de Condutas Desviadas que não Afetem 40 Qualquer Bem Jurídico 2.3 O PRINCÍPIO PENAL DA INTERVENÇÃO MÍNIMA 41 2.3.1 Conceito 41 2.3.2 Elementos 45 2.3.2.1 Fragmentariedade, Dignidade Penal ou Merecimento de Tutela 45 Penal 2.3.2.2 Subsidiariedade, Carência de Tutela Penal e Necessidade de 49 Tutela Penal 3 SOCIEDADE DE RISCOS 55 3.1 A PASSAGEM DE UMA SOCIEDADE INDUSTRIAL PARA UMA 55 SOCIEDADE DE RISCOS 3.1.1 Primeira Modernidade 56 3.1.2 Modernização Reflexiva e Segunda Modernidade 60 3.1.2.1 Reflexividade 62 3.1.2.2 Reflexão 65 3.2 OS NOVOS RISCOS 67 3.2.1 Riscos e Perigos 69 3.2.2 Características dos Novos Riscos 74 3.3 DAS CRISES DA SOCIEDADE DE RISCO E DA CONFIGURAÇÃO 87 DA SOCIEDADE DA INSEGURANÇA SENTIDA 3.3.1 A Perda de Credibilidade pela Ciência 87 3.3.2 A Falência dos Sistemas de Cálculo de Risco e das Regras de 96 Seguro 3.3.3 A Irresponsabilidade Organizada 100 3.3.4 A Sociedade da Insegurança Sentida 107 4 DIREITO PENAL DO RISCO E INTERVENÇÃO MÍNIMA 111 4.1 O PRINCÍPIO DA PREUCAÇÃO 112 4.2 O DIREITO PENAL DO RISCO 121 4.2.1 A Desmaterialização do Bem Jurídico 125 4.2.2 Os Crimes de Perigo Abstrato 132 4.2.3 A Administrativização do Direito Penal 138 4.2.3.1 Os Delitos de Acumulação 139 4.2.3.2 A Tutela do Estado de Prevenção 141 4.3 MANIFESTAÇÕES DOUTRINÁRIAS ACERCA DO DIREITO PENAL 145 DO RISCO 4.3.1 A Posição de Winfried Hassemer 146 4.3.2 A Posição de Stratenwerth 154 4.3.3 A Posição de Bernd Schünemann 156 4.3.4 A Posição de Jésus-María Silva Sánchez 160 4.4 O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA DO DIREITO PENAL E O 166 DIREITO PENAL DO RISCO 4.4.1 A Dignidade da Pessoa Humana Como Fundamento do Sistema 168 Jurídico 4.4.2 A Manutenção do Princípio da Intervenção Mínima do Direito Penal 173 na Sociedade de Risco 5 CONCLUSÃO 183 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 189 9 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como objetivo analisar de que forma o princípio da intervenção mínima do Direito Penal se sustenta frente à nova configuração social de uma sociedade de risco. Para tanto, considerar-se-á que a partir sobretudo do século XVIII, com a eclosão do movimento iluminista, as teorias políticas, filosóficas e jurídicas vigentes no pensamento ocidental passaram por grandes transformações, que culminam com a superação do antigo regime e o advento do Estado Moderno. Neste contexto, buscando a superação das contestadas práticas judiciárias em matéria criminal do período pré-moderno, surge um Direito Penal liberal com específicas preocupações acerca da limitação do poder punitivo estatal. Este modelo de Direito Penal Clássico deu origem aos princípios limitadores do ius puniendi, como os princípios da legalidade, da lesividade e da intervenção mínima. Este último, verdadeiro limite material ao poder criminalizador do Estado, assevera que a intervenção penal só se faz legítima quando necessária, sendo modulada por critérios de fragmentariedade e subsidiariedade da tutela penal. Em suma, o Direito Penal apenas poderia ser chamado a agir na tutela de bens jurídicos especialmente relevantes ao homem, e, ainda, apenas quando os demais ramos do direito se mostrarem insuficientes e ineficazes para esta tutela. No entanto, com a transformação do modelo social industrial em um modelo de sociedade de risco, novas realidades foram trazidas à tona pela vitória do capitalismo e pelo avanço das tecnologias, culminando-se em uma nova configuração de modernidade, caracterizada pelas conseqüências das vitórias obtidas na primeira modernidade, onde se colapsam a idéia de controle, segurança e certezas, bem como pela criação sistêmica de riscos globais como fenômeno social estrutural. Esta alteração da configuração social, de uma sociedade industrial oitocentista para uma sociedade de risco, traz demandas de que o Direito Penal, sobretudo na sua vertente econômica, seja repensado. Não se vive mais sob as mesmas ameaças estatais que foram o fundamento das revoluções humanistas do século XVIII, sendo certo que hoje indivíduo e sociedade encontram-se frente a uma série de novas ameaças. Para o enfrentamento destas, demanda-se uma nova 10 estrutura jurídica, bem como uma nova estrutura jurídico-penal, diferente daquela fundada nos ideais iluministas e que se mostrou adequada para a superação do antigo regime e o estabelecimento de garantias ao cidadão frente ao Estado. Nesta seara, este trabalho propõe-se a uma análise acerca do princípio da intervenção mínima do Direito Penal, indagando-se se o mesmo se sustenta frente ao advento de um modelo de sociedade de risco. 11 2 O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA DO DIREITO PENAL 2.1 FUNDAMENTOS DOS PRINCÍPIOS PENAIS Para que se possibilite uma análise acerca do princípio penal da intervenção mínima, é fundamental que se discorra, ainda que não com o ânimo de se exaurir ou esgotar o tema, sobre duas questões preliminares relevantes ao estudo daquele instituto. A fim de se estabelecer uma base sobre a qual se dará a análise do referido princípio, é necessário que se estude acerca dos princípios penais clássicos, bem como sobre o fundamento histórico-político dos mesmos. Neste sentido, é essencial uma abordagem sobre aqueles que se consideram os dois pilares de sustentação do Direito Penal Clássico: a secularização do direito e a teoria do contratualismo social. Cumpre aqui ressaltar que a expressão Direito Penal Clássico, que se utilizará repetidamente neste trabalho refere-se ao Direito Penal fundado nas idéias do contratualismo social e na secularização do direito, que corresponde ao Direito Moderno, sobretudo o referente ao período pós-século XVIII. Em contraposição a este Direito Penal Clássico, far-se-á referência ao Direito Penal Moderno, este referente ao período de uma modernidade tardia, uma segunda modernidade, caracterizada principalmente pela globalização e pelo surgimento dos novos riscos tecnológicos. Esta análise preliminar parece fundamental para a justificação da importância e validade do princípio da intervenção mínima do Direito Penal, uma vez que este decorre diretamente daqueles. A doutrina aponta o século XVIII como sendo o período histórico em que se iniciou o movimento filosófico da ilustração e que viria a culminar em uma série de sucessivas quebras de paradigmas, desembocando nas revoluções francesa e americana e produzindo efeitos até os dias de hoje. No entanto, este movimento, como não poderia deixar de ser, não é fato histórico isolado, estando umbilicalmente ligado a toda a história política e filosófica mundial, e, neste contexto, notadamente, mas não exclusivamente, européia. Neste sentido, bem aponta Heleno Fragoso que 12 o movimento de reforma nas leis e na administração da justiça penal surgido no fim do séc. XVIII é resultado do extraordinário movimento de idéias que constituiu o Iluminismo. Essa expressão refere-se à atmosfera cultural do séc. XVIII, na qual pensadores e publicistas de várias tendências, fundados nas concepções filosóficas que resultavam do empirismo e do ceticismo e nas grandes descobertas científicas de Copérnico, Galileu, Kepler e Newton, deram grande impulso ao livre 1 pensamento em matéria política e social... De fato, este período que se notabilizou pela substituição de um modelo teocêntrico por um modelo antropocentrista, só foi possível uma vez que, como aponta Hespanha, “encontrou no ambiente filosófico de seu tempo elementos que contribuíram para formar a sua concepção de um direito natural, estável como a própria razão”.2 O principal destes elementos, continua ele, é o idealismo cartesiano, que remonta à primeira metade do século XVII, que, voltando-se criticamente às incertezas, contradições e disputas da filosofia daquela época, buscou estabelecer às disciplinas sociais bases metodológicas sólidas, acabando por encontrar na razão individual seu ponto de sustentação.3 Embora Descartes não tenha se voltado especificamente para o estudo das ciências jurídicas, suas considerações foram a base sobre a qual se ergueram as teorias sobre um novo direito natural racionalista. Este novo modelo de direito natural substitui seu antecessor, fundado na teologia, ainda no século XVII. Conforme aponta Hespanha: o pensamento social e jurídico laicizara-se. O que não é estranho ao facto de, pela primeira vez, se ter quebrado a unidade religiosa da Europa (com a Reforma) e de se ter entrado em contacto com povos totalmente alheios 4 à tradição religiosa européia. A laicização, ou secularização, do Direito, como bem aponta Salo de Carvalho, tem, no entanto, sua origem em momento ainda anterior ao surgimento do idealismo cartesiano. Ensina ele que, ao realizar a genealogia da secularização, 1 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. 16. Ed. Rio de 47. 2 HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia: síntese de Boiteux, 2005. p. 296. 3 HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia: síntese de Boiteux, 2005. p. 297. 4 HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia: síntese de Boiteux, 2005. p. 297-298. Janeiro: Forense, 2004. p. um milênio. Florianópolis: um milênio. Florianópolis: um milênio. Florianópolis: 13 Enrique Dussel aponta como termo inicial deste processo a obra De Docta Ignorantia, de Nicolau de Cursa, datada de 1440.5 Essa secularização do Direito nada mais representou do que “os processos pelos quais a sociedade, a partir do século XV, produziu uma cisão entre a cultura eclesiástica e as doutrinas filosóficas, mais especificamente entre a moral do clero e o modo de produção das ciências”.6 De fato, até o advento destes processos, “toda explicação dos fenômenos mundanos era fornecida com base nas doutrinas cléricas, ocasionando não apenas um entrelaçamento entre moral e ciência, mas, fundamentalmente, entre moral e política, e, em decorrência, entre moral e direito”.7 O abandono da crença religiosa como modelo de explicação de todos os fenômenos mundanos gerou um vazio epistemológico em todos os campos da ciência. Tudo aquilo que anteriormente se fundamentava e justificava na vontade divina passou a carecer uma nova fundamentação. Foi quando a razão atingiu seu status de fonte científica maior. Neste sentido, Hespanha ensina que “ao prescindirem dos dados da fé, estes jusnaturalismos ficam a poder contar apenas com a observação e a razão como meios de acesso à ordem da natureza”.8 Conforme Salo de Carvalho, “o processo de secularização possibilita outra mudança copernicana nas ciências, pois o saber passa a ser fundado na razão do homem. A análise do homem racional funda o antropocentrismo”9, e continua ao afirmar categoricamente que “foi a secularização do direito natural (...) que, ao substituir a vontade divina pela “natureza ou razão das coisas”, deu origem a uma concepção laica do direito natural”.10 De fato, não se procede a uma superação dos modelos de direito natural, pelo menos não ainda neste momento. O que ocorre é uma substituição de um modelo de direito natural teológico para um modelo de direito natural 5 CARVALHO, Salo de, CARVALHO, Amilton Bueno de. Aplicação da Pena e Garantismo. 3. Ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2004. p. 5. 6 CARVALHO, Salo de, CARVALHO, Amilton Bueno de. Aplicação da Pena e Garantismo. 3. Ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2004. p. 5. 7 CARVALHO, Salo de, CARVALHO, Amilton Bueno de. Aplicação da Pena e Garantismo. 3. Ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2004. p. 6. 8 HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia: síntese de um milênio. Florianópolis: Boiteux, 2005. p. 298. 9 CARVALHO, Salo de, CARVALHO, Amilton Bueno de. Aplicação da Pena e Garantismo. 3. Ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2004. p. 6. 10 CARVALHO, Salo de, CARVALHO, Amilton Bueno de. Aplicação da Pena e Garantismo. 3. Ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2004. p. 6. 14 antropológico. Neste sentido, Salo de Carvalho bem aponta que “o ponto de mutação representado pelo avanço secularizador é precisamente o momento de passagem e transformação do jusnaturalismo teológico para o antropológico”.11 Por esta razão, é preciso que se discorde da afirmação de Salo de Carvalho de que neste ponto o homem racional passa a negar toda e qualquer perspectiva ontológica de verdade.12 É preciso que se compreenda que o modelo jusnaturalista antropológico é um modelo de direito natural revelado pela razão, que acredita ser esta o meio de se revelar a natureza e a verdade das coisas. Não obstante, esta concepção de direito natural racional, fundada na definição cartesiana de homem como ser racional, não era, como não poderia considerar-se ser, unânime. De fato, o que se segue é um confronto filosófico envolvendo racionalistas e voluntaristas. Hespanha, assim, bem aponta ser este jusnaturalismo racional moderno absolutamente paradoxal. Explica ele: tomado no seu conjunto, jusracionalismo moderno é, a este propósito, um tanto paradoxal. Na verdade, a insistência na razão e a aproximação do direito em relação a saberes como a matemática ou a lógica levaria a valorizar uma justiça objectiva e não arbitrária, correspondente ao caráter não voluntário das proposições das ciências formais, na determinação das quais a vontade não tem qualquer império. E, como veremos, há pensadores que apontam, mais ou menos radicalmente, neste sentido. No entanto, o racionalismo destas correntes é, antes de tudo, um racionalismo metodológico, ou seja, um método racional de atingir a natureza da sociedade e do homem e de concluir daí o tipo de ordem que preside às coisas humanas. No entanto, concluída esta análise racional, muitos dos autores identificam a liberdade e a auto-determinação (ou seja, o poder da vontade) como os traços mais característicos da natureza do homem e o contrato como fundamento da sociedade. Ou seja, um método racionalista de averiguação 13 desemboca num modelo voluntarista da ordem social”. Razão assiste ao autor. 11 CARVALHO, Salo de, CARVALHO, Amilton Bueno de. Aplicação da Pena e Garantismo. 3. Ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2004. p. 7. 12 De fato, Salo de Carvalho afirma que “a análise do homem racional funda o antropocentrismo, negando toda e qualquer perspectiva ontológica de verdade (verdade em si)” (CARVALHO, Salo de, CARVALHO, Amilton Bueno de. Aplicação da Pena e Garantismo. 3. Ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2004. p. 6.) Esta afirmação, como apontado acima, não pode ser aceita, uma vez que boa parte dos autores jusracionalistas acreditavam que a razão poderia revelar a verdade das coisas. No entanto, é preciso que se saliente que as correntes voluntaristas extremadas irão afirmar que o grande fundamento do direito moderno é a vontade do homem e, assim, de fato negarão qualquer perspectiva ontológica de verdade, em que pese este livre-arbítrio do homem seja considerado um dado ôntico. 13 HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia: síntese de um milênio. Florianópolis: Boiteux, 2005. p. 312. 15 Como o mesmo aponta, o jusnaturalismo moderno pode ser subdividido em outras tantas correntes doutrinárias. Sem pretender adentrar nas minúcias de cada uma, é preciso que se faça a distinção entre o jusnaturalismo cartesiano e o jusnaturalismo empirista. Fundamental compreender que dessas correntes inaugurou-se grande parte da tradição jurídica moderna, pois elas, “cada um a seu modo, definiram a natureza do homem e dela fizeram derivar direitos individuais, inalteráveis e necessários”.14 Neste sentido, explica ele que as doutrinas de direito natural cartesianas fundam-se na definição de que o homem é, antes de tudo, ser racional, e que, por isso, é por meio da razão que busca conhecer a verdade, recusando qualquer outra forma de conhecimento. Em decorrência de tais afirmações, se reconhecem ao homem dois direitos: o de usar livremente a sua razão e o de desenvolver racionalmente a sua personalidade. As doutrinas empiristas, por sua vez, partindo de uma observação do homem concreto, o definem, para além de um homem racional, como um ser comandado por seus instintos. Para esta doutrina, o que o direito deveria buscar é garantir o curso destes instintos, “podendo dizer-se que a sua satisfação (a felicidade) constituía um direito natural”.15 De fato, apesar de parecerem absolutamente opostas, estas duas doutrinas fazem surgir uma mesma conclusão: a de que o homem não é um animal político, como queria Aristóteles. Efetivamente, a existência da sociedade organizada chega, inclusive, a apresentar-se como um obstáculo para a plena realização das necessidades naturais, racionais ou instintivas, dos homens, uma vez que dentro dela não é possível exercer naturalmente seus direitos e atingir suas necessidades sem chocar-se com os direitos e necessidade dos outros. Neste sentido, “a instituição da sociedade organizada (sociedade política) representa a limitação dos direitos naturais”.16 Assim, para o jusracionalismo, a sociedade organizada deve ser considerada como algo artificial, o que faz surgirem as correntes do contrato social, nas suas diversas formas. De fato, 14 HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia: síntese de um milênio. Florianópolis: Boiteux, 2005. p. 302. 15 HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia: síntese de um milênio. Florianópolis: Boiteux, 2005. p. 302. 16 HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia: síntese de um milênio. Florianópolis: Boiteux, 2005. p. 303. 16 por tais razões é que se pode afirmar, sem qualquer dúvida, que as doutrinas contratualistas são decorrências diretas do processo secularizador. Neste contexto, veja-se por exemplo a lição de John Locke: se o homem no estado de natureza é tão livre, conforme dissemos, se é senhor absoluto da sua própria pessoa e posses, igual ao maior e a ninguém sujeito, por que abrirá ele mão dessa liberdade, porque abandonará o seu império e sujeitar-se-á ao domínio e controle de qualquer outro poder? Ao que é óbvio responder que, embora no estado de natureza tenha tal direito, a fruição do mesmo é muito incerta e está constantemente exposta à invasão de terceiros, porque, sendo todos reis tanto quanto ele, todo homem igual a ele, e na maior parte pouco observadores da equidade e da justiça, a fruição da propriedade que possui nesse estado é muito insegura, muito arriscada. Estas circunstâncias obrigam-no a abandonar uma condição que, embora livre, 17 está cheia de temores e perigos constantes”. Percebe-se das palavras de Locke que o homem, antes mesmo do estado político ou civil, possuía condições plenas de exercer sua autonomia, no entanto, a fim de melhor assegurar-se contra eventuais agressões de outros homens, voluntária e racionalmente ingressa em sociedade, com isso, limitando seus próprios direitos. Estas doutrinas contratualistas, sem embargo, acabam por adotar, em maior ou menor grau, concepções voluntaristas para explicar o surgimento e fundamento das sociedades organizadas. Assim, a afirmação de Hespanha anteriormente trazida de que o método racionalista de conhecimento desemboca em um modelo voluntarista de sociedade mostra-se correta e relevante. A teoria do contratualismo social é, como já foi referido acima, um dos pilares sobre o qual se sustenta o Direito Penal Clássico, juntamente com a secularização do direito. É importante que se compreenda que a teoria do contratualismo social não é una, possuindo diversas vertentes que, consequentemente, se aceitas, levarão a modelos de estado, direito e Direito Penal distintos. De fato, se por um lado algumas destas correntes deram fundamento às revoluções liberais do século XVIII, outras serviram de base para os regimes de depotismos esclarecidos do mesmo século.18 17 LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo. Trad. Anoar Aiex, E. Jacy Monteiro. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 82. 18 HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia: síntese de um milênio. Florianópolis: Boiteux, 2005. p. 304. 17 De fato, o caráter liberal ou autoritário dos regimes será decorrência direta do fundamento e dos limites do contrato social apontado por cada vertente do contratualismo. Neste sentido, correntes que sobrepõem o racionalismo ao voluntarismo desembocarão em regimes liberais, enquanto vertentes que dão maior ênfase ao voluntarismo culminarão em regimes com maiores tendências autoritárias. Neste sentido: assim, do ponto de vista das formas políticas, vamos ver o jusracionalismo desdobrar-se em duas grandes orientações: a demo-liberal, inaugurada por John Locke e desenvolvida pelos jusracionalistas franceses, e a absolutista, com origem em Thomas Hobbes e com um representante de 19 nota em Samuel Pufendorf. Fundamental compreender que as diversas vertentes do contratualismo têm em comum o fato de terem como suporte a teoria do voluntarismo, que será mitigado em maior ou menor grau pelo racionalismo. Para os voluntaristas, o direito tem como fonte não uma ordem préexistente, não direitos naturais inerentes ao homem, mas sim a vontade. De fato, por muito tempo utilizou-se o termo voluntarismo para se referir às correntes que fundamentavam o direito na vontade divina. Superada as concepções teocêntricas de mundo, o termo voluntarismo passou a representar as correntes que fundamentam o direito na vontade dos homens, nos termos que o fazem Scotto e Occam, por exemplo. Neste sentido, para uma concepção mais radical do voluntarismo, “a vontade não está sequer prisioneira da lógica, pois a conseqüência racional poderá ser ainda afastada pelo acordo de interesses”.20 É o voluntarismo adotado, por exemplo, por Thomas Hobbes para justificar a existência do Estado-Leviatã como fruto de um contrato social. Para tal autor, na celebração do pacto social, os envolvidos disporiam de todos os seus direitos em face do soberano, a fim de que este zelasse conforme seus juízos pelo bem comum. Desta forma, “a única limitação do príncipe seria a necessidade de governar racionalmente, ou seja, de forma adequada aos objectivos 19 HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia: síntese de um milênio. Florianópolis: Boiteux, 2005. p. 305. 20 HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia: síntese de um milênio. Florianópolis: Boiteux, 2005. p. 311. 18 que tinham estado na origem na instituição da sociedade política”21, ou seja, assegurar a paz social e a defesa da sociedade, de modo que dentro destes limites, tudo o mais lhe é possível. Em concepções voluntaristas extremistas, é possível, inclusive, que se chegue a modelos políticos onde não se reconhece qualquer limite à vontade, e, consequentemente, ao poder do soberano. De outro lado, para autores com cunho mais liberal, o contrato social apesar de criar o Estado, reconhecia a existência de direitos naturais anteriores a ele, decorrentes da natureza do homem. assim, se pelo contrato social se criava o direito objectivo, não se criavam direitos subjectivos: estes existiam antes da própria ordem jurídica objectiva, sendo o seu fundamento e a sua razão de ser. A origem da sua legitimidade está no caráter naturalmente justo do poder de vontade 22 (Willensmacht), através do qual o homem desdobra a sua personalidade. De fato, para os contratualistas liberais, não há qualquer incompatibilidade entre a razão e a vontade, posto que o homem é capaz de ao mesmo tempo conhecer racionalmente das leis da natureza e dominar seus instintos para pactuar apenas aquilo que esteja em conformidade com os ditames da razão. Desta forma, os liberais combinam vontade e razão, com base neste caráter racional da vontade. Neste sentido, se “por um lado, o advento do estado político não cancelaria essa lei da natureza que (...) continua a constituir um padrão para julgar as leis políticas”, como o faz, por exemplo, nos modelos contratualistas autoritários onde a instituição da sociedade organizada exclui de juridicidade qualquer lei não oriunda do soberano, “por outro lado, a vontade que está na origem das leis políticas é essa mesma vontade dos indivíduos”.23 Em decorrência desta assunção de que a vontade se limita pela razão, concluem estes autores por um estado muito mais limitado do que aquele decorrente do contratualismo hobbesiano, por exemplo. Para estes autores, é preciso que se leve em conta que certos direitos são tão importantes e essenciais ao homem que 21 HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia: síntese de um milênio. Florianópolis: Boiteux, 2005. p. 304. 22 HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia: síntese de um milênio. Florianópolis: Boiteux, 2005. p. 308. 23 HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia: síntese de um milênio. Florianópolis: Boiteux, 2005. p. 313. 19 eles jamais teriam, racionalmente, deles disposto. Neste sentido, Salo de Carvalho é categórico ao afirmar que ressaltamos, porém, o fato de que não são todas as liberdades pactuadas, e muito menos a vida ingressa nesta bilateralidade obrigacional. A esfera da liberdade de consciência e a vida, bem como a plenitude da liberdade de locomoção (ir, vir e permanecer), não estão entre os bens disponíveis ao indivíduo pactuar, visto serem inalienáveis, isto é, anteriores e insuscetíveis de pacto, pois são os seus próprios pressupostos. Como ensina Locke, um pacto efetuado sobre estes bens e nesses termos não seria realizado pelo cidadão, pois não traria benefícios e vantagens maiores ao indivíduo do que aqueles que já possui no estado de 24 natureza. Assim, o cidadão resguardaria boa parte de seus direitos, direitos estes oponíveis frente aos demais cidadãos e ao próprio estado. É o caso, como bem citado pelo autor, de direitos como o direito à vida e à liberdade de consciência. Desta forma, garantida a impossibilidade de ingerência do estado na esfera de consciência de cada um, assenta-se “como valor fundamental do pensamento político moderno, a tolerância”.25 De fato, para Locke, a principal característica da sociedade civil derivada do contrato social é a abdicação de todos do direito de fazer justiça castigando o outro, com a cessão deste poder ao Estado. Da mesma forma, cede o indivíduo o direito de fazer tudo aquilo que julgar conveniente, passando a submeterse às leis feitas pela sociedade, limitando seus direitos “até o ponto em que o exija a preservação dele próprio e do resto da sociedade”.26 Importante perceber que, para Locke, enquanto a cessão do direito de fazer justiça ao Estado é absoluta, a cessão dos demais direitos é apenas parcial, de forma que apenas são frações mínimas de cada direito, na medida estritamente necessária para o funcionamento do estado civil, uma vez que ser racional algum trocaria sua condição natural por uma pior. A posição que vem a ser consagrar com a revolução francesa de 1789 é, no entanto, uma posição intermediária, trazida por Jean-Jacque Rousseau. Para este autor, que escreveu já em meados do século XVIII, com a consolidação do 24 CARVALHO, Salo de, CARVALHO, Amilton Bueno de. Aplicação da Pena e Garantismo. 3. Ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2004. p. 11. 25 CARVALHO, Salo de, CARVALHO, Amilton Bueno de. Aplicação da Pena e Garantismo. 3. Ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2004. p. 12. 26 LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo. Trad. Anoar Aiex, E. Jacy Monteiro. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 82 20 estado, é preciso se reconhecer a soberania da vontade geral, expressão da vontade do estado como entidade autônoma e que se guia sempre movido pela razão. De fato, esta é precisamente a diferença entre a vontade geral, sempre justa e racional, e o conjunto das vontades de todos, onde se exprime não o interesse comum, mas interesses particulares de cada um.27 É com os enciclopedistas franceses, dentre eles Rousseau, Montesquieu e Voltaire que se chega propriamente ao período chamado de Iluminismo, onde se reclamam verdadeiras transformações no estado, como a reforma e independência do Poder Judiciário.28 Estes pensamentos, como não poderia deixar de acontecer, provocaram uma série de reflexos em todos os ramos do conhecimento social, e, por lógico, na ciência jurídica. O Direito Penal, por ser dos ramos do direito um daqueles que lida mais diretamente com os poderes e limites do estado, foi tema relevante neste contexto. Precisamente, o estudo da questão acerca do Direito Penal foi marcado pela superação dos modelos criminais do período pré-moderno. Neste sentido, Luiz Flávio Gomes afirma que o estudo do problema criminal (consoante bases humanistas) tem sua origem na atitude crítica (frente ao “antigo regime” ou regime monárquico) externada por insignes expoente (“precursores”) da Filosofia das Luzes (Beccaria, Lardizabal, etc.) bem como por ilustrados e enciclopedistas (Rousseau, Montesquieu, Voltaire etc.) que submeteram à luz da razão, do Direito Natural, ou – simplesmente – da utilidade social, os pressupostos e 29 o funcionamento do velho sistema (penal), isto é, do “velho regime”. Ademais, continua o autor afirmando que o iluminismo surgiu como reação contra o Direito e a Jurisprudência do “Ancién Regime” vigentes até finais do século XVIII; contra um sistema cujas leis correspondiam à única idéia da prevenção geral ou intimidação e tomava o acusado como mero “exemplo” para os demais. Leis vagas e atrozes, que eram aplicadas sob a égide de um processo penal arbitrário, secreto, inquisitorial, baseado na confissão e no tormento. É lógico, por isso, que a história reservava aos ilustrados e reformistas uma missão 27 HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia: síntese de um milênio. Florianópolis: Boiteux, 2005. p. 316-318. 28 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. 16. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 48. 29 GOMES, Luiz Flávio, et al. Direito Penal: introdução e princípios fundamentais. V. 1. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 75. 21 essencial e valiosa: a crítica do “antigo regime” assim como o 30 estabelecimento das bases filosóficas e políticas dos anos vindouros. De fato, o antigo regime se caracterizava por um regime jurídico onde se fundiam direito e moral. Por tratar-se de um modelo jusnaturalista teológico, anterior ao momento no qual o processo secularizador tomou corpo, esta confusão entre direito e moral representava, em verdade, uma confusão entre direito e religião. A defesa do estado era a defesa das convicções religiosas instituídas, num sistema híbrido de crime e pecado. Conforme aponta Salo de Carvalho, “a fusão entre moral e direito na esfera penal, presente no jusnaturalista teológico, abriu campo para a intervenção jurídica na esfera do pensamento, criminalizando e punindo indivíduos por convicções, idéias, pensamentos e opções pessoais”.31 Heleno Fragoso bem resume o sistema jurídico do antigo regime: o sentido geral das leis que acabamos de referir é o da repressão arbitrária e feroz, através de penas cruéis, que visavam apenas à intimidação. Consolidado o magistério punitivo ao poder público, este o exerce em defesa do Estado e da religião, cujos interesses, como ensina Aníbal Bruno, se confundiam, introduzindo o critério da razão de Estado no direito penal e o arbítrio judiciário, criando em torno da justiça punitiva uma atmosfera de incerteza, insegurança e justificado terror. As penas eram desiguais, dependendo da condição do réu. Aplicava-se largamente a pena de morte, através dos mais variados a bárbaros meios de execução (forca, fogueira, roda, empalamento, esquartejamento, etc.). O confisco e a infâmia acompanhavam muitas das penas. O processo era inquisitório e secreto, com emprego da tortura e sem qualquer espécie de garantia para a defesa. Era este o estado de coisas quando surgiu, à época do 32 Iluminismo, vigoroso movimento de reforma da justiça penal. Ante tal estado de verdadeira barbárie institucionalizada, e graças às contribuições recebidas pelas doutrinas da secularização, do jusnaturalismo racional e do contrato social, as críticas ao antigo regime ficaram cada vez mais acentuadas, e as pretensões por reformas ganharam cada vez mais corpo, de forma que a superação desta tradição se tornou imperiosa. Neste sentido, Luiz Flávio Gomes citando Radzinowicz, bem demonstra o estado de ânimo que se fazia presente na comunidade pensante. Aduz, ele, que 30 GOMES, Luiz Flávio, et al. Direito Penal: introdução e princípios fundamentais. V. 1. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 76.. 31 CARVALHO, Salo de, CARVALHO, Amilton Bueno de. Aplicação da Pena e Garantismo. 3. Ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2004. p. 8. 32 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. 16. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 46. 22 todos estavam afetados pelo auge da análise científica. Todos voltavam-se para a razão e o sentido comum como armas contra a antiga ordem. Todos se erguiam contra a aceitação não questionada da tradição e da autoridade. Todos encontravam fáceis objetivos na ineficácia, corrupção e caos das instituições existentes. Todos protestaram contra a notória superstição e crueldade. Sua visão dos direitos dos homem e dos deveres da sociedade estavam em conflito direto com o que viam a seu redor. Seu ponto de partida era a apelação à lei natural, aos direitos naturais e à 33 igualdade natural, interpretados pela voz da razão. Desta forma, as reformas que atingiram o pensamento humano como um todo se irradiaram para dentro do pensamento penal. É neste momento, de diagnóstico do problema penal, que a Ciência Penal conquista sua relativa autonomia como ciência jurídica. Os ideais de secularização e de um estado liberal adentram o discurso penal e dão início aos processos de humanização que se seguem. Neste momento, aponta Salo de Carvalho, “com a negação do fundamento teísta do Direito Penal pelas correntes doutrinárias contratualistas, opera-se uma irreversível lesão na espinha dorsal da estrutura repressiva”.34 A proteção das liberdades individuais em face do arbítrio estatal, a abolição das penas de morte e da tortura, e a acentuação da necessidade de finalidades para as penas, com o necessário afastamento do Direito Penal dos ideais da igreja e da moral, são os ideais fundamentais pleiteados pelos iluministas.35 De fato, “o processo de secularização, em realidade, operou, de imediato, uma minimização na intervenção do direito penal. (...) De plano, percebe-se que a laicização do direito implica em balizar uma política criminal de intervenção mínima”.36 Neste sentido, conforme, ainda, a lição de Salo de Carvalho, com estes movimentos, superam-se as noções de que o crime deve ser combatido de acordo com a perversidade do agente, numa concepção substancialista de crime-pecado como conduta ontologicamente má, mala in se, passando-se para modelos que pugnam por concepções formais de delito, mala in prohibita. No mesmo sentido, o movimento humanista pugna pela impossibilidade de se criminalizarem condutas 33 GOMES, Luiz Flávio, et al. Direito Penal: introdução e princípios fundamentais. V. 1. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 77. 34 CARVALHO, Salo de, CARVALHO, Amilton Bueno de. Aplicação da Pena e Garantismo. 3. Ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2004. p. 8. 35 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. 16. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 49. 36 CARVALHO, Salo de, CARVALHO, Amilton Bueno de. Aplicação da Pena e Garantismo. 3. Ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2004. p. 9. 23 interiores ao próprio agente, meros estados de consciência, defendendo que apenas podem o ser condutas que ultrapassem a esfera interna no agente, já no caminho que levaria à questão da exigência de lesão a bem jurídico-penal. De fato, fazendo referência a Ferrajoli, o autor conclui que a separação entre Direito Penal e moral trás como derradeira conseqüência o “estabelecimento dos fins e dos limites do direito penal”.37 Neste contexto, vários autores dedicaram seus trabalhos, senão integralmente pelo menos em parte, ao estudo do problema penal e da necessidade de superação do antigo regime. Dentre este, pode-se citar as contribuições de Montesquieu, que em seu Espírito das Leis clamou pela divisão de poderes, pela independência do Poder Judiciário e pela abolição de penas desmedidas e da tortura, bem como Voltaire, que militou pela legalidade penal, pela restrição dos arbítrios judiciais e pela proporcionalidade.38 No entanto, especial referência deve ser feita a Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria, cuja obra Dos Delitos e Das Penas, de 1764, pode ser considerada o “legítimo manifesto da orientação liberal no Direito Penal.”39 De fato, é na obra de Beccaria que costuma-se apontar o verdadeiro início do movimento humanitário.40 De fato, Eugenio Raúl Zaffaroni aponta que Beccaria deve ser considerado como sendo o pensador a quem coube a missão de estabelecer as bases do Direito Penal Cássico (Direito Penal contemporâneo, nas palavras do autor), uma vez que é em função de sua crítica, que a legislação penal européia começa a limpar-se, um pouco, de seu banho constante de sangue e tortura. Até esse momento, as idéias ilustradas não haviam sido transferidas adequadamente ao campo do direito penal, pois, em relação a este terrível 41 tema, somente haviam sido tratadas de passagem. 37 CARVALHO, Salo de, CARVALHO, Amilton Bueno de. Aplicação da Pena e Garantismo. 3. Ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2004. p. 13. 38 GOMES, Luiz Flávio, et al. Direito Penal: introdução e princípios fundamentais. V. 1. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 80. 39 GOMES, Luiz Flávio, et al. Direito Penal: introdução e princípios fundamentais. V. 1. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 77. 40 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. 16. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 48. 41 ZAFFARONI, Eugenio Raúl, PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 5. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 258. 24 Em sua obra, Beccaria, partindo do contratualismo social de Rousseau e das idéias de Montesquieu, critica a irracionalidade, a arbitrariedade e a crueldade das leis penais, defendendo a legalidade dos delitos e das sanções penais e expondo sua teoria utilitarista da pena, que teria a finalidade não de castigar o indivíduo, mas de prevenir delitos. Defende, ainda, a necessidade das penas, afirmando que “toda pena, que não derive da absoluta necessidade (...) é tirânica (...). todo ato de autoridade de homem para homem que não derive da absoluta necessidade é tirânico”.42 Neste sentido, Heleno Fragoso ensina que Beccaria parte da idéia do contrato social, afirmando que o fim da pena é apenas o de evitar que o criminoso cause novos males e que os demais cidadãos o imitem, sendo tirânica toda punição que não se funde na absoluta necessidade. Defendia a conveniência de leis claras e precisas, não permitindo sequer ao juiz o poder de interpretá-las, opondo-se, dessa forma, ao arbítrio que prevalecia na justiça penal. Combateu a pena de morte, a tortura, o processo inquisitório, defendendo a aplicação de penas certas, moderadas e proporcionais ao dano causado à sociedade. Opunhase, assim, Beccaria, à justiça medieval que ainda vigorava em seu tempo, bem como ao direito comum, romano-canônico da época que aqui se 43 encerra. Ademais, como apontado acima, Beccaria defende um função utilitarista de prevenção das penas, onde “o fim da pena, pois, é apenas o de impedir que o réu cause novos danos aos seus concidadãos e demover os outros de agir desse modo”.44 E, assim sendo, afirma categoricamente que “deve haver, pois, proporção entre os delitos e as penas”.45 De fato, neste contexto, com as revoluções liberais do século XVIII e a crescente influência dos pensadores liberais nas ciências jurídico-políticas, os recém criados estados modernos rejeitaram as práticas jurídico-penais típicas do antigo regime. Estes estados passaram a adotar modelos diferenciados de Direito Penal, com especial relevância para as garantias individuais do cidadão oponíveis frente ao poder estatal. 42 BECCARIA, Cesare Bonesana, Marques de. Dos Delitos e Das Penas. Trad. José Cretella Jr., Agnies Cretella. 2. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 28. 43 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. 16. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 48-49. 44 BECCARIA, Cesare Bonesana, Marques de. Dos Delitos e Das Penas. Trad. José Cretella Jr., Agnies Cretella. 2. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 52. 45 BECCARIA, Cesare Bonesana, Marques de. Dos Delitos e Das Penas. Trad. José Cretella Jr., Agnies Cretella. 2. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 37. 25 É aí que surge o Direito Penal como conjunto de garantias e princípios voltados a limitar o poder punitivo sancionador do estado, concepção de Direito Penal esta que será adotada neste trabalho. Para esta concepção, o Direito Penal surge com o objetivo de reconhecer e tutelar os direitos que não foram renunciados pelos indivíduos quando da celebração do contrato social, adotando-se aqui uma vertente contratualista liberal nos moldes propostos por John Locke. Isso se dá a fim de determinar-se de forma restritiva quais direitos dos indivíduos não pode, em situação alguma, o Estado suprimir, bem como em nome de quais outros direitos pode ele intervir na esfera jurídica de cada um, levando em conta quais os direitos individuais e coletivos em favor de cuja garantia os indivíduos renunciaram parcela de seus direitos. Em suma, o direito torna-se instrumento de tutela de liberdades e de garantia contra medidas arbitrárias e desnecessárias do estado. 2.2 PRINCÍPIOS PENAIS Nos termos do que foi acima exposto, o Direito Penal Clássico se caracteriza por um conjunto de garantias e princípios cujo objetivo primordial é a limitação do poder punitivo estatal. Estas garantias e princípios são decorrentes de dois grandes pilares que se encontram na base de todo o direito moderno, quais sejam a secularização do direito e a teoria do contrato social. Neste sentido, nas palavras de Claus Roxin, “ao direito penal (...) competiria a função liberalgarantística de assegurar (...) a liberdade individual em face da voracidade do Estado “Leviatã””.46 No mesmo sentido, Winfried Hassemer afirma que “o Direito Penal é na verdade um meio violento, mas é ao mesmo tempo um instrumento da liberdade civil”.47 46 ROXIN, Claus. Política Criminal e Sistema Jurídico Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 3. HASSEMER, Winfried. Características e Crises do Moderno Direito Penal. Revista de Estudos Criminais. n. 8. Porto Alegre: PUC-RS, 2003. p. 56. 47 26 De fato, Zaffaroni bem aponta as características deste Direito Penal Clássico, na verdade referindo-se ao que chama de “‘direito penal liberal’ em sentido técnico”.48 Explica ele que este Direito Penal tem entre suas principais características o respeito à autonomia ética, a delimitação bastante precisa do poder público, a seleção racional dos bens jurídicos penalmente tuteláveis, a previsibilidade das soluções, a 49 racionalidade, humanidade, legalidade das penas etc. Desta forma, se mostra indispensável a análise, ainda que breve, daqueles que seriam os mais relevantes princípios penais clássicos para que se possa, posteriormente, adentrar ao estudo do princípio da intervenção mínima do Direito Penal, que, adianta-se, é um destes princípios. Adiante realizar-se-á a análise dos princípios da legalidade e da exclusiva proteção de bens jurídicos, este também referido como princípio da lesividade. Salienta-se que esta opção é meramente acadêmica, e não significa a negação à existência de outros diversos princípios penais, cuja existência se reconhece e louva, dentre os quais se podem citar, a título exemplificativo, os princípios da culpabilidade e da humanidade. 2.2.1 Princípio da Legalidade O princípio da legalidade é, sem dúvidas, o princípio penal limitador do poder punitivo que recebeu maior atenção dos doutrinadores durante toda a história. De fato, isso se dá pois, para muitos, é possível identificar seu embrião em período muito anterior àquele em que se desenvolveram os demais princípios penais. A doutrina, em grande parte, afirma que o princípio da legalidade possui raiz na Magna Charta Libertatum inglesa de João sem Terra, em seu artigo 39, datada de 1215.50 No entanto, não são poucas as referências a outros 48 ZAFFARONI, Eugenio Raúl, PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 5. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 316. 49 ZAFFARONI, Eugenio Raúl, PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 5. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 316. 50 Neste sentido, BOSCHI, José Antônio Paganella. Das Penas e seus Critérios de Aplicação. 3. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 57, e TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. Ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 21, dentre tantos outros. 27 documentos que já previam instituto semelhante em períodos anteriores, como nas instituições do Direito Ibérico das Cortes de Leão de 118851, ou mesmo no direito romano.52 Nilo Batista, no entanto, aponta que todas as referências anteriores ao Iluminismo devem ser descartadas, uma vez que não possuem o mesmo sentido que o princípio passou a receber após o movimento de ilustração. Para o autor, o primeiro documento a que se pode fazer referência como carregador do princípio da legalidade como hoje o conhecemos é a Declaração de Direitos da Virgínia, de 1776.53 Não obstante, referência a este postulado já se fez presente com Beccaria, que em 1764 já postulou que “só as leis podem determinar as penas fixadas para os crimes, e esta autoridade somente pode residir no legislador”.54 Fato certo é, também, que já se encontrava presente em Montesquieu, ainda antes desta data, quando este postulou pela necessidade da divisão dos poderes. Heleno Fragoso bem aponta que surge o princípio no direito moderno como fruto do direito natural e da filosofia política à época do Iluminismo, orientada no sentido de proscrever a insegurança do direito, o arbítrio e a prepotência dos julgadores da administração da justiça criminal. Montesquieu, com a teoria da separação dos poderes, afirma que o juiz não pode, sem usurpação dos poderes que competem ao legislativo, estabelecer crimes e sanções. (...) As grandes linhas do direito natural, que remontavam ao século anterior, já haviam firmado as bases políticas do princípio, ao estabelecer as relações entre a liberdade e o vínculo de dever imposto ao cidadão pela sociedade civil: deram os cidadãos ao Estado o direito de fixar os seus deveres através da 55 lei. Enquanto a lei não é editada subsiste a liberdade natural. Foi, porém, com Feuerbach, já nos primeiros anos do século XIX, que o princípio da legalidade atingiu grau de concretude significativo, através da enunciação da expressão nullum crimem nulla poena sine lege.56 De fato, se a pena 51 JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis. Tratado de Derecho Penal. V. 2. Buenos Aires: Losada, 1976. p. 385386. 52 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. 16. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 107. 53 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10 Ed. Rio de Janeiro: Revam, 2005. p. 66. 54 BECCARIA, Cesare Bonesana, Marques de. Dos Delitos e Das Penas. Trad. José Cretella Jr., Agnies Cretella. 2. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 30. 55 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. 16. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 108. 56 BOSCHI, José Antônio Paganella. Das Penas e seus Critérios de Aplicação. 3. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 57. No mesmo sentido TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios 28 tem função de coação psicológica, como o tinha na concepção de tal autor, a lógica de sua aplicação pressupõe a existência de uma lei anterior à prática da conduta tida como criminosa. Nilo Batista, ao reconhecer a grande contribuição de Feuerbach, ressalta, porém que ao contrário do que se difunde freqüentemente, das obras de Feuerbach não consta a fórmula ampla “nullum crimem nulla poena sine lege”; nelas se encontram, sim, uma articulação das fórmulas “nulla poena sine lege”, 57 “nullum crimen sine poena legali” e “nulla poena (legalis) sine criminem”. Razão assiste a Nilo Batista. Efetivamente, Feuerbach não chega a enunciar o brocardo nullum crimem nulla poena sine lege, mas tão somente aqueles três apontados por Nilo Batista. Para Feuerbach, três são os mandamentos de legalidade: toda imposição de pena pressupõe uma lei penal (nulla poena sine lege), a imposição de uma pena está condicionada à ocorrência da ação criminosa (nulla poena sine crimine), e o fato típico está condicionado pela pena legal (nullum crimen sine poena legali).58 Estas três fórmulas representam a lógica apresentada por Feuerbach para justificar a legalidade e sua teoria da coação psicológica, que é assim apresentada por Heleno Fragoso: a fórmula latina, no entanto, resultou dos princípios assentados por Feuerbach, como conseqüência de sua teoria da coação psicológica. Toda inflição de pena pressupõe uma lei penal (nulla poena sine lege). Somente a ameaça de um mal através da lei fundamenta a noção e a possibilidade jurídica da pena. A inflição de pena está condicionada à existência da ação ameaçada (nulla poena sine crimine). Através da lei a pena ameaçada se liga ao fato como o pressuposto jurídico necessário. O fato legalmente ameaçado (o pressuposto legal) é condicionado através da pena legal (nullum crimem sine poena legali). Através da lei o mal liga-se a determinada violação do direito como necessária conseqüência jurídica. Formulava, assim, Feuerbach, os princípios básicos do Direito Penal, que em caso algum admitiam exceção. Em nenhum caso pode haver crime ou 59 pena sem prévia ameaça. Básicos de Direito Penal. 5. Ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 21, e PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. V.1. 6. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 130. 57 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10 Ed. Rio de Janeiro: Revam, 2005. p. 66. 58 FEUERBACH, Paul Johann Anselm Ritter von. Tratado de Derecho Penal. 14. ed. Trad. Eugenio Raúl Zaffaroni, Irma Hagemeier. Buenos Aires: Hammurabi, 2007. p. 55. 59 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. 16. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 112. 29 Este princípio corresponde à limitação do poder punitivo que implica que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Garante, ele, que o individuo apenas está sujeito à punição por parte do estado que estiver previamente determinada. Só é crime aquilo que a lei diz previamente que é, e só são aplicáveis as penas anteriormente cominadas para cada crime. De fato, o princípio da legalidade é “por um lado resposta aos abusos do absolutismo e, por outro, afirmação da nova ordem”, ou seja, é “a um só tempo garantia do indivíduo perante o poder estatal e demarcava este mesmo poder como espaço exclusivo da coerção penal”.60 Heleno Fragoso, adotando posição semelhante ensina que não se apresenta mais em nossos dias o direito de punir como poder absoluto do Estado sobre a pessoa do cidadão. O direito de punir constitui limitação jurídica ao poder punitivo do Estado, pois no Estado moderno o exercício da soberania está subordinado ao direito. Assim, o poder político penal de punir, originariamente absoluto e ilimitado, sendo juridicamente disciplinado e limitado, converte-se em poder jurídico, ou seja, em faculdade ou possibilidade jurídica de punir conforme ao direito. Não se admite, em conseqüência, num sistema de direito, que o Estado imponha 61 pena à ação que não tenha sido previamente incriminada. Neste sentido, este princípio consiste em verdadeira garantia de segurança jurídica e de garantia individual, limitação das fontes formais do Direito Penal e garantia da liberdade pessoal do cidadão.62 Ou seja, o princípio da legalidade garante que somente é considerado crime aquilo que estiver anteriormente previsto em lei, bem como que a punição por estes crimes somente se dará pelo estado e na forma da lei. A doutrina aponta que do princípio da legalidade derivam quatro corolários, ou seja, sub-princípios que exalam as funções hoje assumidas pela legalidade. Estes quatro princípios são a proibição da retroatividade da lei penal, a proibição de incriminação pelos costumes, a proibição da analogia incriminadora, e a proibição de incriminações incertas. 60 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10 Ed. Rio de Janeiro: Revam, 2005. p. 65. 61 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. 16. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 112. 62 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. V.1. 6. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 131. 30 Estas quatro funções podem ser representadas pelas expressões latinas nullum crimem nulla poena sine lege praevia, nullum crimem nulla poena sine lege scripta, nullum crimem nulla poena sine lege stricta, e nullum crimem nulla poena sine lege certa.63 2.2.1.1 Proibição da Retroatividade da Lei Penal A proibição da retroatividade da lei penal, que pode ser veiculada pela expressão latina nullum crimem nulla poena sine lege praevia, é a primeira e provavelmente a mais importante função do princípio da legalidade, sendo a função “histórica”64 de tal princípio, como aponta Nilo Batista. Esta função galgou importância histórica de relevância tamanha, que passou a ser considerada, por alguns, como princípio autônomo, como é o caso de Cezar Roberto Bittencourt.65 Tratar-se-ia, para os adeptos desta posição, do princípio da irretroatividade. Independentemente de sua autonomia ou não, determina a proibição de retroatividade que a lei penal, seja aquela que crie crime ou aquela que crie pena, só atingirá fatos posteriores à sua instituição. Em outras palavras, “a lei que institui o crime e a pena deve ser anterior ao fato que se quer punir”.66 Neste sentido, Cezar Roberto Bittencourt bem aponta que “desde que uma lei entra em vigor até que cesse a sua vigência rege todos os atos abrangidos pela sua destinação. “Entre estes dois limites (...) não retroage nem tem ultraatividade. É o princípio do tempus regit actum””.67 63 Parcela importante da doutrina, representada por autores como Luiz Luisi, Francesco Palazzo e Paganella Boschi, adotam posição distinta, onde afirmam pela existência de três corolários do princípio da legalidade: irretroatividade, reserva legal e taxatividade-determinação. O conteúdo destes três corolários corresponde precisamente ao conteúdo das quatro funções da legalidade acima expostas. 64 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10 Ed. Rio de Janeiro: Revam, 2005. p. 68. 65 BITTENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal. V.1. 7. Ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 16. 66 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. Ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 23. 67 BITTENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal. V.1. 7. Ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 16. 31 Esta irretroatividade da lei penal possui extensão ampla. De fato, é vedada a retroatividade da lei penal que crie crime ou pena, bem como que aumente a abrangência de crime pré-existente, que institua qualificadora ou majorante, bem como que exaspere pena já cominada. Neste sentido, ensina Heleno Fragoso que a proibição de retroatividade, de que aqui se cogita, refere-se a todas as características do fato, no conjunto de todas as normas jurídicas que o qualificam e estabelecem conseqüência para o mesmo. Assim sendo, uma alteração pejorativa de dispositivos da Parte Geral do Código Penal não pode dar lugar à aplicação com efeito retroativo. É bem de ver, no entanto, que a proibição da retroatividade somente se refere à lei e não às 68 alterações da jurisprudência dos tribunais. Adotando linha semelhante, Nilo Batista afirma, ainda, que “tudo que se refira ao crime (...) e tudo que se refira à pena (...) não pode retroagir em detrimento do acusado”, concluindo, assim, que “a irretroatividade deva aplicar-se também às medidas de segurança”.69 No entanto, bem aponta a doutrina de forma unânime que este proibição de retroatividade não é absoluta. Uma vez que se trata de instituto inerente a um modelo de Direito Penal liberal, a lei penal mais benéfica tem o condão de retroagir para beneficiar o réu, melhorando sua condição. De fato, “o princípio, todavia, não é absoluto, porque a vedação não se estende às leis penais mais benignas, que podem retroagir mesmo no período de vacatio legis, para desconstituir, até mesmo, a sentença condenatória objeto de execução”.70 À regra da retroatividade faz-se exceção quanto às leis temporárias e excepcionais, em razão de sua natureza circunstancial. 2.2.1.2 Proibição de Incriminação Pelos Costumes A segunda função do princípio da legalidade é a proibição de incriminação pelos costumes, que se traduz na expressão nullum crimem nulla 68 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. 16. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 114. 69 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10 Ed. Rio de Janeiro: Revam, 2005. p. 69. 70 BOSCHI, José Antônio Paganella. Das Penas e seus Critérios de Aplicação. 3. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 59. 32 poena sine lege scripta. Esta função determina que os crimes e as penas só podem ser criados por meio de lei escrita regularmente promulgada, ou seja “promulgada de acordo com as previsões constitucionais”.71 Deste sub-princípio da legalidade, verdadeiramente, decorrem dois corolários: o de que é vedada a incriminação pelos costumes e o de que apenas a lei em sentido estrito, ou seja, a lei regularmente criada, pode instituir crimes e penas. Sobre a vedação da incriminação pelos costumes, Assis Toledo ensina que da afirmação de que só a lei pode criar crimes e penas resulta como corolário, a proibição da invocação do direito consuetudinário para a fundamentação ou a agravação da pena, como ocorreu no direito romano e medieval. Não se deve, entretanto, cometer o equívoco de supor que o direito costumeiro esteja totalmente abolido do âmbito penal. Tem ele grande importância para elucidação do conteúdo dos tipos. Além disso, quando opera como causa de exclusão da ilicitude (causa supralegal), de atenuação da pena ou da culpa, constitui verdadeira fonte do direito penal. Nessas hipóteses, como é óbvio, não se fere o princípio da legalidade por 72 não se estar piorando, antes melhorando, a situação do agente do fato. De fato, como aponta Nilo Batista, os costumes “desempenham uma função integrativa”, que “se apresenta na elucidação de elementos de alguns tipos penais”.73 Ademais, completa o autor afirmando que possuem atribuição relevante na definição do dever de cuidado nos crimes culposos e na definição e nos limites de causas justificantes. Neste sentido, conclui pela proibição de incriminação pelos costumes, mas não pela vedação do uso dos costumes em matéria de Direito Penal. Desta forma, conclui que “o princípio da legalidade proíbe a intervenção dos costumes apenas no que concerne à criação (definição ou agravamento) de crimes e penas”.74 Posição esta compartilhada por Assis Toledo, ao afirmar que “reconhece-se, em 71 BATISTA, 2005. p. 70. 72 TOLEDO, 2002. p. 25. 73 BATISTA, 2005. p. 70. 74 BATISTA, 2005. p. 71. Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10 Ed. Rio de Janeiro: Revam, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. Ed. São Paulo: Saraiva, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10 Ed. Rio de Janeiro: Revam, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10 Ed. Rio de Janeiro: Revam, 33 doutrina, que o costume, sempre que beneficie o cidadão, é fonte do Direito Penal”.75 Quanto à exigência de lei constitucionalmente editada e promulgada, trata-se de exigência diretamente derivada da concepção de estado decorrente da adoção de um modelo contratualista, onde somente o próprio povo pode prever limitações ao seu direito de liberdade. Neste sentido, Nilo Batista76 ensina que a concepção de “reserva absoluta” postula que a lei penal resulte sempre do debate democrático parlamentar, cujos procedimentos legislativos, e só eles, teriam idoneidade para ponderar e garantir os interesses da liberdade individual e da segurança pública, cumprindo à lei proceder a uma “integral formulação do tipo”; dessa forma, só a lei em sentido formal poderia criar crimes e cominar penas, com “a obrigação de disciplinar de modo direto a 77 matéria reservada. Neste contexto encontram-se as discussões acerca da reserva relativa de lei e da admissibilidade ou não das normas penais em branco. 2.2.1.3 Proibição da Analogia Incriminadora A terceira função exercida pelo princípio da legalidade é a de proibir a incriminação por meio do uso de analogias, que pode ser expressa pelo brocardo latino nullum crimem nulla poena sine lege stricta. Determina que quando a lei define crimes e estabelece suas sanções o faz especificamente para aquela situação, não se podendo, com o uso da analogia, ampliar suas abrangências para outras situações semelhantes. Nilo Batista conceitua analogia como “o procedimento lógico pelo qual o espírito passa de uma enunciação singular a outra enunciação singular, inferindo a segunda em virtude da primeira”.78 Em outras palavras, analogia é a aplicação de 75 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. Ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 26. 76 Nilo Batista ao tratar do tema acerca da reserva absoluta e reserva relativa de lei não se adota expressamente uma ou outra concepção, tampouco demonstra preferir uma à outra. Utiliza-se aqui passagem sua em virtude do elevado nível de sua exposição. 77 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10 Ed. Rio de Janeiro: Revam, 2005. p. 73. 78 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10 Ed. Rio de Janeiro: Revam, 2005. p. 74. 34 um preceito que se refere a uma situação a outra situação semelhante, porém distinta. “É uma conclusão que se extrai do particular para o particular”, complementa Assis Toledo.79 De fato, o princípio da legalidade impede o uso da analogia como forma de se expandir o alcance de normas incriminadoras ou instituidoras de penas, exigindo que tais normas sejam aplicadas de forma restritiva. Heleno Fragoso, no mesmo sentido, aponta que proíbe ainda o princípio da legalidade o emprego da analogia em relação às normas incriminadoras. Exclui-se assim a possibilidade de aplicação analógica das normas que definem crimes e estabelecem sanções, para 80 abranger casos por elas não expressamente contemplados. Não obstante, assim como o já mencionado quanto aos costumes, admite-se o uso da analogia em sua função integrativa no Direito Penal nãoincriminador, ou seja, nas normas que não criem crimes nem penas. Assim, abre-se espaço para sua aplicação em tudo aquilo que venha ao interesse do acusado. Neste contexto, Nilo Batista bem aponta para a dualidade das normas penais, que ou definem crimes e cominam ou agravam penas ou, de variadas formas, excluem e reduzem a punibilidade do acusado. Desta forma, sendo vedado o uso da analogia no primeiro caso, é possível de se concluir que é admita no segundo grupo de normas. Completa o autor que “é possível formular um critério prático e constatável para essa analogia admitida: é aquela que favorece o acusado, é a analogia in bonam partem”.81 2.2.1.4 Proibição de Incriminações Incertas A quarta função do princípio da legalidade, manifesta pela expressão nullum crimem nulla poena sine lege certa, é a de exigir que a descrição típica seja 79 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. Ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 26 80 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. 16. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 114. 81 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10 Ed. Rio de Janeiro: Revam, 2005. p. 76-77. 35 feita de forma certa e clara, proibindo a criação de tipos por meio de incriminações vagas, incertas e obscuras. Através da função, o princípio da legalidade exige que não restem dúvidas quanto ao comportamento proibido e ao alcance da norma incriminadora. De fato, como aponta Nilo Batista, a função de garantia individual exercida pelo princípio da legalidade estaria seriamente comprometida se as normas que definem os crimes não dispusessem de clareza denotativa na significação de seus elementos, inteligível por todos os cidadãos. Formular tipos penais “genéricos ou vazios”, valendo-se de “cláusulas gerais” ou “conceitos indeterminados” ou 82 “ambíguos”, equivale teoricamente a nada formular... A utilização dessas modalidades de estruturas típicas borra a necessária limitação certa e precisa entre lícito e ilícito, criando verdadeiras áreas cinzentas e indo contra os ideais liberais garantistas que fundamentam o Direito Penal Clássico, “comprometendo”, nas palavras de Heleno Fragoso, “a segurança jurídica do cidadão”.83 De fato, se tomada em conta a função de coação psicológica da pena, base de toda a teoria por trás do princípio da legalidade formulada por Feuerbach, carece de qualquer lógica a imposição da sanção penal a uma conduta cuja ilicitude não se pode de imediato conhecer. Assis Toledo, neste sentido, afirma que “para que a lei penal possa desempenhar função pedagógica e motivar o comportamento humano, necessita ser facilmente acessível a todos, não só aos juristas”.84 Ademais, a utilização desses métodos apresenta-se como verdadeira delegação dos poderes de definir as condutas típicas do legislativo para o judiciário, ‘”pois entrega, em última análise, a identificação do fato punível ao arbítrio do julgador”85, contrariando todos os ideais iluministas de separação dos poderes e redução dos arbítrios judiciais. 82 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10 Ed. Rio de Janeiro: Revam, 2005. p. 78. 83 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. 16. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 114. 84 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. Ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 29. 85 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. 16. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 115. 36 2.2.2 LESIVIDADE Este princípio, em suma, “transporta para o terreno penal a questão da exterioridade e alteralidade (ou bilateralidade) do direito: ao contrário da moral (...), o direito ‘coloca face-a-face, pelo menos, dois sujeitos’”.86 Em assim sendo, não pode o Direito Penal debruçar-se sobre condutas ou situações que não relevem estes atributos de exterioridade e alteralidade, sob pena de, em o fazendo, atentar contra os ideários liberais que o fundamental. No mesmo sentido, a presença de um bem jurídico alheio afetado permite reconhecer o conflito jurídico, pelo extravasamento do âmbito pessoal da liberdade moral e pela introdução de um outro – o que implica na consideração da alteridade 87 como pressuposto geral da intervenção penal. De fato, como aponta Nilo Batista, “à conduta puramente interna, ou puramente individual – seja pecaminosa, imoral, escandalosa ou diferente – falta a lesividade que pode legitimar a intervenção penal”.88 Ora, se o estado moderno funda-se nos ideais derivados do secularismo e do contratualismo, inegável que o poder penal por ele exercido deve atender a estes ideais, os tendo como fundamentos e limites. Em respeito ao secularismo, deve abster-se de criminalizar quaisquer práticas religiosas ou morais, já que tem o débito de servir justamente como garantidor da liberdade moral, religiosa, política e ideológica dos seus cidadãos. Por outro lado, em respeito ao contratualismo, deve agir no estrito limite de garantir a convivência social, não lhe sendo legítimo interferir na autonomia ética daqueles para quem existe. Assim, conforme Eugenio Raúl Zaffaroni, pretender aplicar penas quando não existe um direito ferido não só afeta o direito do apenado como também o dos demais cidadãos, aos transformar o modelo de estado: uma lei ou uma sentença que pretenda impor normas morais, cominando ou aplicando pena por um fato que não lesione ou 86 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10 Ed. Rio de Janeiro: Revam, 2005. p. 91. 87 ZAFFARONI, Eugenio Raúl, et al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 228 88 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10 Ed. Rio de Janeiro: Revam, 2005. p. 91. 37 exponha a perigo o direito alheio, é ilícita e sua ilicitude atinge a todos que se beneficiam ou podem beneficiar-se do respeito ao âmbito da autonomia 89 moral. Neste sentido, o autor aponta que o princípio da lesividade tem três conseqüências: “a) o estado não pode estabelecer uma moral; b) em lugar disso, deve garantir um âmbito de liberdade moral; c) as penas não podem recair sobre ações que exprimam o exercício dessa liberdade”.90 Estas constatações decorrem, justamente, do caráter liberal do estado, que deve funcionar, de acordo com a equação liberal, para o cidadão, e não ao contrário. Assim, tendo em vista que o sujeito não renunciou, na celebração do contrato social, aos seus direitos à liberdade religiosa e ideológica, e ainda que o estado secular não deve ingerir-se na órbita moral individual, estes três mandamentos se impõem. Sobre tais conseqüências, explica Eugenio Raúl Zaffaroni: a) O estado que pretende impor uma moral é imoral, porque o mérito moral é fruto de uma escolha livre diante da possibilidade de optar por outra coisa: carece de mérito aquele que não pôde fazer alguma coisa diferente. Por essa razão, o estado paternalista é imoral. b) Em lugar de pretender impor uma moral, o estado ético deve reconhecer o âmbito de liberdade moral, possibilitando o mérito de seus cidadãos, que surge quando eles têm disponibilidade da alternativa imoral: tal paradoxo leva à certeira afirmação de que o direito é moral precisamente porque ele é a possibilidade da imoralidade, intimamente vinculada à diferença entre consciência jurídica e consciência moral. (...) c) Como conseqüência do anterior, as penas não podem recair sobre condutas que são justamente o exercício da autonomia ética que o estado deve garantir, mas sim sobre condutas que a afetem. De acordo com essa opção pelo estado moral (e consequentemente rechaço do estado paternalista imoral), não pode haver delito que não reconheça, como suporte fático, um conflito que afete bens jurídicos alheios, entendidos como elementos de que outrem necessite para a respectiva auto-realização (ser aquilo que escolheu ser, de acordo 91 com sua consciência). Para além destas três conseqüências derivadas do princípio da lesividade, Nilo Batista ensina que tal princípio exerce quatro funções principais, quais sejam a de proibir a incriminação de uma atitude interna, a de proibir a incriminação de uma conduta que não exceda o âmbito do próprio autor, a de proibir 89 ZAFFARONI, Eugenio Raúl, et al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 226. 90 ZAFFARONI, Eugenio Raúl, et al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 225. 91 ZAFFARONI, Eugenio Raúl, et al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 225-226 38 a incriminação de simples estados ou condições existenciais, e a de proibir a incriminação de condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico, as quais serão sucintamente explanadas a seguir: 2.2.2.1 Proibir a Incriminação de uma Atitude Interna A primeira função exercida pelo princípio da lesividade, no entendimento de Nilo Batista, seria a de proibir a incriminação de atitudes internas ao agente, ou seja, a de vedar que seja objeto de criminalização condutas internas do sujeito. Neste sentido, “as idéias e convicções, os desejos, aspirações e sentimentos dos homens não podem constituir o fundamento de um tipo penal, nem mesmo quando se orientem para a prática de um crime”.92 Esta função, ainda conforme o autor, implica assim que a cogitação da prática de um crime não pode ser objeto de criminalização, posto que se trata de uma mera atitude interna, implicação esta que pode ser externada pelo brocardo cogitationis poenam nemo patitur.93 2.2.2.2 Proibir a Incriminação de uma Conduta que Não Exceda o Âmbito do Próprio Autor A segunda função exercida pelo princípio da lesividade é a de proibir a incriminação de uma conduta que não exceda o âmbito do próprio autor, e que, portanto, não ofende bem jurídico alheio. Nilo Batista ensina que os atos preparatórios para o cometimento de um crime cuja execução, entretanto, não é iniciada não são punidos. Da mesma forma, o simples 92 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10 Ed. Rio de Janeiro: Revam, 2005. p. 92. 93 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10 Ed. Rio de Janeiro: Revam, 2005. p. 92. 39 conluio entre duas ou mais pessoas para a prática de um crime não será 94 punido, se sua execução não for iniciada. Esta mesma função implica ainda na impossibilidade de punição dos crimes impossíveis, bem como das condutas de autolesão, como o suicídio, a automutilação e o uso de drogas, onde, nessas últimas, o agente pratica uma “conduta externa que, embora vulnerando formalmente um bem jurídico, não ultrapassa o âmbito do próprio autor”.95 2.2.2.3 Proibir a Incriminação de Simples Estados ou Condições Existenciais A terceira função exercida pelo princípio da lesividade é a de proibir a incriminação de simples estados ou condições existenciais. Em suma, em nome da proteção da autonomia ética individual, esta função veda ao Direito Penal comportarse seguindo modelos de Direito Penal de autor, impondo que se manifeste como Direito Penal de fato. Nestes termos, segundo Cunha Luna, “o homem responde pelo que fez e não pelo que é”.96 Neste sentido, “o direito penal só pode ser um direito penal da ação, e não um direito penal do autor como eventualmente se pretendeu”.97 Sobre o Direito Penal de autor, Luiz Flávio Gomes ensina que o chamado Direito penal de autor constitui a antítese do Direito penal do fato. Trata-se de Direito penal “autoritário” ou “totalitário”, que foi defendido, por exemplo, pela doutrina alemã do regime nazista (Escola de Kiel), que sustentou a idéia de que o homem deve ser julgado não pelo que “faz” senão pelo que “é”. Para o Direito penal de autor, portanto, não interessa tanto se o agente faz ou omite (ou seja: o fato do agente) senão quem – personalidade, notas e características do autor – faz ou omite (importa a pessoa do autor, isto é, o agente. Para um dos teóricos do Direito penal de “autor”, DAHM, não tem sentido falar de furto, de assassinato, de usura (ou seja: em fatos), senão de ladrão, assassino, agiota (tipos de autor): o decisivo, para efeitos penais – 94 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10 Ed. Rio de Janeiro: Revam, 2005. p. 92. 95 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10 Ed. Rio de Janeiro: Revam, 2005. p. 92. 96 LUNA, apud BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10 Ed. Rio de Janeiro: Revam, 2005. p. 93. 97 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10 Ed. Rio de Janeiro: Revam, 2005. p. 93. 40 dizia -, não é a realização de um fato, senão a manifestação de uma determinada personalidade. Esse Direito penal de autor, entretanto, é incompatível com as exigências de segurança e certeza que reclama o Estado de Direito. A tentativa de tipificar personalidades desvinculadas de fatos não é viável nem seria desejável. Este modelo, ademais, como a experiência tem demonstrado, 98 presta-se a toda sorte de abusos políticos. Assim, mostra-se ilegítima qualquer tentativa de incriminação de meros estados ou condições existenciais, ou seja, de incriminação do sujeito enquanto pessoa, apenas sendo aceitável a incriminação de condutas. 2.2.2.4 Proibir a Incriminação de Condutas Desviadas que não Afetem Qualquer Bem Jurídico A quarta e última função exercida pelo princípio da lesividade, segundo a lição de Nilo Batista, é a de proibir a incriminação de condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico, e implica na vedação de se criminalizar condutas que, embora consideradas pela maioria como desviadas, ou seja, desaprovadas, não possuem qualquer ofensividade. Ora, “estamos aqui falando do ‘direito à diferença’, de práticas e hábitos de grupos minoritários que não podem ser criminalizados”.99 Neste sentido, como diz Zaffaroni, ‘não se pode castigar ninguém porque use barba ou deixe de usá-la, porque corte ou não o cabelo, pois com isso não se ofende qualquer bem jurídico, e o direito não pode pretender legitimamente formar cidadãos com ou sem barba, cabeludos ou tonsurados, mais ou menos 100 vestidos, mas tão-só cidadãos que não ofendam bens jurídicos alheios’. Desta forma, estas condutas, bem como outras como práticas sexuais consentidas entre adultos, não podem ser objeto da ingerência estatal penal. 98 GOMES, Luiz Flávio, et al. Direito Penal: introdução e princípios fundamentais. V. 1. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 304. 99 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10 Ed. Rio de Janeiro: Revam, 2005. p. 94. 100 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10 Ed. Rio de Janeiro: Revam, 2005. p. 94. 41 2.3 O PRINCÍPIO PENAL DA INTERVENÇÃO MÍNIMA 2.3.1 Conceito Como já afirmado anteriormente, para que um sistema penal seja respeitador das ideologias que fundaram o modelo de estado moderno, é preciso que este sistema conheça e imponha limites ao poder estatal, garantindo os direitos dos indivíduos cidadãos. É preciso que o estado conheça e imponha limitações à sua própria atuação, limites estes de ordem formal ou material. O princípio da legalidade é, sem dúvidas, um desses limites, mas, conforme ensina Luiz Flávio Gomes, “o Estado de Direito exige que o Direito Penal tenha como fonte a lei, mas nada diz sobre o conteúdo dessa lei”.101 De fato, devido ao fato de o princípio da legalidade mostrar-se tão somente como limite formal ao poder punitivo do estado, é necessário o reconhecimento de que não se trata de princípio isolado dentro de um modelo clássico de Direito Penal. Neste sentido, ao seu lado coexistem sistematicamente outros princípios limitadores do ius puniendi estatal, estes de ordem material, tal como o princípio da lesividade. No entanto, novamente é preciso reconhecer que legalidade e lesividade por si sós não garantem a vigência de um Direito Penal Clássico, razão pela qual é preciso buscar novos princípios limitadores do Direito Penal, decorrentes de um modelo de estado contratualista e secular. A insuficiência da lesividade como princípio material limitador do direito de punir estatal reside, sobretudo, na substituição de seu caráter material por um caráter meramente formal, podendo-se inclusive dizer, por que não, por um caráter meramente simbólico, legitimador de um poder penal expansivo e descontrolado. De fato, a exigência de que o tipo penal se correlacione a um bem jurídico dotado de alteridade mostra-se mitigada pelo crescente recurso do legislador a embasar novas criminalizações primárias em supostas lesões ou ameaças a bens jurídicos etéreos, incorpóreos, espirituais, institucionais. 101 GOMES, Luiz Flávio, et al. Direito Penal: introdução e princípios fundamentais. V. 1. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 297. 42 Assim, condutas que não poderiam ser legitimamente criminalizadas, por sua criminalização não atender, essencialmente, ao requisito da ofensividade enquanto limite material, passam a ter sua tipificação legitimada pelo recurso a tais pretensos bens jurídicos, fazendo com que a lesividade deixe de ser, como dito, um limite material e se torne um limite meramente formal. Apenas como exemplo, se a criminalização de determinada prática sexual entre adultos e consentida não se legitima num estado liberal, por não atender ao requisito da ofensividade, tal obstáculo poderia ser em tese superado pela invocação da tutela de um bem jurídico etéreo como a moralidade sexual, situação esta que não pode ser admitida num estado liberal secular e contratualista. Ademais, é preciso que se faça uma leitura correta do objetivo do princípio da lesividade, qual seja o de servir como limite ao poder punitivo estatal, sob pena de, em se realizando uma sua leitura sem se tomar como base seus objetivos e fundamentos, desaguar-se em interpretações equivocadas. Neste sentido, “o princípio de que todo delito pressupõe lesão ou perigo de um bem jurídico deságua no princípio de que todo bem jurídico demanda uma tutela, o que instiga à criminalização sem lacunas”102 Neste sentido, para além de reconhecer que o Direito Penal apenas pode se debruçar sobre condutas que causem lesão ou perigo de lesão a bens jurídico-penais, é preciso que se realize uma eleição consciente daqueles que poderão ser considerados bens jurídico-penais. Desta forma, como aponta Alice Bianchini, há consenso no sentido de que o bem jurídico representa o conteúdo material de valor do ilícito penal. No entanto, tal concepção (...) permanece vã de significado material, pois não informa os elementos a serem considerados, a fim de que se possa selecionar os bens jurídicos dignos de 103 proteção por via penal. Neste contexto, nas palavras de André Callegari, “parte-se da idéia de que a intervenção penal supõe uma intromissão do Estado na esfera de liberdade do 102 ZAFFARONI, Eugenio Raúl, et al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 227. 103 BIANCHINI, Alice. Pressupostos Materiais Mínimos da Tutela Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 42. 43 cidadão, que somente resulta tolerável quando é estritamente necessária – inevitável – para a proteção desse mesmo cidadão”.104 Este entendimento parte da compreensão de que o Direito Penal é apenas um dos diversos ramos do Direito, sendo, ainda, nas palavras de Roxin, a forma de “intervenção mais radical na liberdade do indivíduo que o ordenamento permite ao estado”.105 Em assim sendo, em respeito aos direitos do cidadão, o uso do Direito Penal por parte do estado apenas se legitima quando estritamente necessário. Nas palavras de André Callegari, “a intervenção penal somente se justifica quando é absolutamente necessária para a proteção dos cidadãos”.106 Neste sentido, Muñoz Conde afirma que o “direito penal só deve intervir nos casos de ataques muito graves aos bens jurídicos mais importantes, e as perturbações mais leves da ordem jurídica são objeto de outros ramos do direito”.107 No mesmo sentido, ensina Luiz Flávio Gomes que como se vê, o Direito tem condições de oferecer aos bens jurídicos uma proteção diferenciada, que pode ser civil, administrativa, penal, etc. A tutela penal deve ser reservada para aquilo que efetivamente perturba o convívio 108 social. Em outras palavras, ao estritamente merecedor de tutela. Neste mesmo sentido, o direito penal deixa de ser o pronto remédio contra a generalidade dos males sociais, na medida em que existem meios outros, do Estado ou do sistema social, mais eficazes a esse fim. Ao direito criminal ficaria reservada a proteção dos bens vitais para a sociedade, desde que outra forma não se mostrasse mais eficaz e que o meio punitivo fosse o mais adequado. Assim, a função e justificação do direito penal do Estado advêm ‘da necessidade da pena para garantir a manutenção da ordem jurídica e, 109 consequentemente, para a segurança da sociedade’. 104 CALLEGARI, André Luís. O Princípio da Intervenção Mínima no Direito Penal. in Revista dos Tribunais. N. 767. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 456. 105 ROXIN, apud BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10 Ed. Rio de Janeiro: Revam, 2005. p. 84. 106 CALLEGARI, André Luís. O Princípio da Intervenção Mínima no Direito Penal. in Revista dos Tribunais. N. 767. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 457. 107 MUÑOZ CONDE, apud BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10 Ed. Rio de Janeiro: Revam, 2005. p. 85. 108 GOMES, Luiz Flávio, et al. Direito Penal: introdução e princípios fundamentais. V. 1. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 285. 109 GUIMARÃES, Isaac Sabbá. Intervenção Mínima para um Direito Penal Eficaz. in Revista dos Tribunais. N. 800. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 484. 44 Esta idéia de que o Direito Penal apenas pode atuar quando mostrarse verdadeiramente necessário já se fez presente na obra de Beccaria, quando este afirmou que toda pena que não derive da absoluta necessidade de sua cominação e aplicação trata-se de um ato de tirania. Esta passagem de Beccaria bem demonstra o fundamento do princípio da intervenção mínima, podendo inclusive ser considerada como o embrião deste princípio. Esta percepção refuta qualquer tentativa de desvincular a origem do princípio da intervenção mínima do nascimento do estado moderno fundado na secularização e no contrato social. De fato, a idéia, ainda que embrionária, do princípio da intervenção mínima se encontrava presente não apenas na obra de Beccaria, mas expressamente adotada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que, em seu artigo 8º, previu que “a lei não deve estabelecer senão penas estritamente necessárias”. Assim, com este princípio identificam-se duas características fundamentais do Direito Penal em sua acepção de Direito Penal Clássico, que correspondem àqueles que seriam os elementos estruturante do princípio da intervenção mínima do Direito Penal, quais sejam: a fragmentariedade e a subsidiariedade do Direito Penal. Enquanto a primeira retrata a idéia de que o Direito Penal apenas se voltará à tutela daqueles bens jurídicos mais importantes para o indivíduo no convívio social, a segunda determina que somente serão objeto de tutela penal aqueles bens jurídicos para os quais os demais ramos do direito não oferecem meios de salvaguarda suficientemente eficazes, ou seja, que não podem eficazmente ser tutelados por outros ramos do direito, senão o Direito Penal. Assim, nas palavras de José Antonio Paganella Boschi, conforme propõe o princípio da intervenção mínima, o direito penal só deveria interferir em ultima ratio e na defesa de bens jurídicos relevantes, e não de qualquer bem jurídico suscetível, mas só depois que as políticas 110 administrativas, sociais, etc. falhassem. De fato, tais elementos, fragmentariedade e subsidiariedade, são apresentados como sendo os elementos da intervenção mínima por grande parte da doutrina, sem que, no entanto, haja unanimidade sobre tal entendimento. Em 110 BOSCHI, José Antônio Paganella. Das Penas e seus Critérios de Aplicação. 3. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 63. 45 posição não menos respeitável, parte da doutrina, sobretudo a doutrina portuguesa e a doutrina brasileira que nela se apóia, aponta como elementos da intervenção mínima a dignidade penal e a carência de tutela, que em boa medida correspondem, respectivamente, à fragmentariedade e à subsidiariedade. De forma distinta, Alice Bianchini, subdivide o princípio da intervenção mínima em três elementos, quais sejam o merecimento de tutela penal, a necessidade de tutela penal, e a adequação e eficácia da tutela penal. Para a autora, o merecimento de tutela penal compreenderia a dignidade penal, e portanto a fragmentariedade, e a ofensividade da conduta, enquanto a necessidade de tutela penal se referiria à subsidiariedade. A adequação e eficácia da tutela penal, por sua vez, em que pese tratada de forma autônoma pela autora, parece tratar-se de questão inerente à própria subsidiariedade ou carência de tutela. Em assim sendo, cumpre uma análise mais detalhada de tais elementos, a fim de que se possa melhor compreender o princípio da intervenção mínima do direito penal. 2.3.2 Elementos 2.3.2.1 Fragmentariedade, Dignidade Penal ou Merecimento de Tutela Penal Conforme apontam, dentre outros, Nilo Batista, Luiz Flávio Gomes e Maura Roberti, a questão que envolve a fragmentariedade do Direito Penal foi primeiramente levantada por Binding, sendo que o fez, no entanto, de forma peculiar e distinta daquela com que hoje o caráter fragmentário do Direito Penal é tratado. Para Binding, ao contrário do que hoje se aceita, a fragmentariedade do Direito Penal, ou seja, sua incompletude ou lacunosidade, não seria uma característica virtuosa deste ramo do direito, mas verdadeiramente um seu defeito, cuja correção se mostrava imperiosa. Nas palavras de Luiz Flávio Gomes, Binding, com efeito, como põe em destaque Paliero, não considerou a fragmentariedade como um valor que deve ser observado de lege ferenda ou mesmo como um limite crítico do sistema, ao contrário, de acordo com 46 sua opinião, ela constitui um ‘vicio de origem’ que necessita de correção (...) seja pela interpretação extensiva, seja inclusive pela analogia. Binding, como se vê, não enaltecia, ao contrário, criticava duramente a 111 fragmentariedade do Direito penal. No entanto, essa visão, de que o caráter fragmentário do Direito Penal seria um vício de tal ramo do direito, não é mais aceita, em virtude da já referida constatação de que o Direito Penal apenas deve atuar quando houver necessidade. Neste sentido, aponta Nilo Batista que “enquanto Binding se preocupava com a superação do caráter fragmentário das leis penais, das lacunas daí decorrentes e seus efeitos na proteção dos bens jurídicos (...), modernamente se reconhecem as virtudes políticas da fragmentariedade”.112 Luiz Flávio Gomes ensina que foi com Hellmuth Mayer que o caráter fragmentário do Direito Penal assumiu a natureza de “necessidade coexistencial”113, sendo que, de fato, “na atualidade se aceita em geral o caráter fragmentário do Direito penal, porém, não como um defeito, senão como um postulado positivo de ius puniendi”.114 Assim, nos termos em que é hoje aceita, “como ensina Bricola, a fragmentariedade se opõe a ‘uma visão onicompreensiva da tutela penal, e impõe uma seleção seja dos bens jurídicos ofendidos a proteger-se, seja das formas de ofensa’”.115 Este caráter fragmentário do Direito Penal determina que este ramo do direito só deve atuar na tutela dos bens jurídicos mais caros ao indivíduo, ou seja, aqueles “essenciais à existência do indivíduo em sociedade”.116 No mesmo sentido, “apenas as ações ou omissões mais graves endereçadas contra bens valiosos podem ser objeto de criminalização”.117 Neste mesmo sentido, a lição de Fábio Freitas Dias, que ensina que 111 GOMES, Luiz Flávio, et al. Direito Penal: introdução e princípios fundamentais. V. 1. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 292. 112 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10 Ed. Rio de Janeiro: Revam, 2005. p. 86. 113 GOMES, Luiz Flávio, et al. Direito Penal: introdução e princípios fundamentais. V. 1. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 293. 114 GOMES, Luiz Flávio, et al. Direito Penal: introdução e princípios fundamentais. V. 1. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 293. 115 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10 Ed. Rio de Janeiro: Revam, 2005. p. 86. 116 BIANCHINI, Alice. Pressupostos Materiais Mínimos da Tutela Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 41. 117 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. V.1. 6. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 139. 47 por sua extrema severidade, os recursos punitivos não estão disponíveis para o controle de qualquer conduta ou para a solução de qualquer conflito social, nem tampouco para a repressão de simples bagatelas, como já tínhamos afirmado. Pelo contrário, esses recursos devem ser limitados a: 1.º) bens jurídicos fundamentais imprescindíveis para o desenvolvimento individual ou coletivo no contexto social, por isso dignos de proteção por meio da pena; e 2.º) condutas que se configuram em ataques graves e 118 intoleráveis no meio comunitário. E continua ao afirmar que baseado à luz desse entendimento, pode-se afirmar o caráter fragmentário do direito penal, o que significa dizer que este não deve sancionar todas as condutas lesivas dos bens jurídicos, mas tão-somente aquelas condutas mais graves e mais perigosas praticadas contra os bens mais relevantes, ou, como afirma Figueiredo Dias, contra ‘as condições fundamentais da mais livre realização possível da personalidade de cada homem da 119 comunidade’. Veja-se que a noção do caráter fragmentário do Direito Penal pode se dar com dois graus de abrangência. De um lado, pode ser compreendido como o limite material ao poder punitivo estatal que implica, tão somente, que o Direito Penal só deve cuidar daqueles bens jurídicos mais valiosos à existência do indivíduo em sociedade. De outro, pode ser compreendido de forma mais abrangente, como determinante de que o Direito Penal só pode se debruçar sobre tais bens jurídicos, bem como apenas sobre condutas que se afigurem como ataques graves e intoleráveis àqueles. A doutrina, que como já mencionado é divergente quanto à nomenclatura dos elementos ou corolários do princípio da intervenção mínima do Direito Penal, novamente diverge quanto a esta abrangência da fragmentariedade do Direito Penal. De fato, tal questão passa à margem das análises e discussões trazidas pela doutrina, sendo que, inclusive, há autores que ora deixam a entender por uma e ora por outra. Apenas exemplificativamente, Luiz Luisi parece ser um dos autores que adotam a primeira concepção, da menor abrangência do conteúdo do corolário 118 DIAS, Fábio Freitas. Direito Penal de Intervenção Mínima e a Noção de Bem Jurídico Aplicada às Infrações Tributárias. In D’AVILA, Fábio Roberto, SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de (Coord.). Direito Penal Secundário. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 129. 119 DIAS, Fábio Freitas. Direito Penal de Intervenção Mínima e a Noção de Bem Jurídico Aplicada às Infrações Tributárias. In D’AVILA, Fábio Roberto, SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de (Coord.). Direito Penal Secundário. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 129. 48 da fragmentariedade, ao afirmar que “a restrição ou privação desses direitos invioláveis somente se legitima se estritamente necessária a sanção penal para a tutela de bens fundamentais do homem”.120 De fato, a segunda concepção parece ser a que predomina, bem como a mais acertada. Neste sentido, a fragmentariedade, conforme apontado por Eduardo Sanz de Oliveira e Silva, possuiria dois momentos: dentro do caráter de fragmentariedade (momento axiológico), em um primeiro momento, o legislador identifica quais são os bens jurídicos que a Constituição e sua ideologia qualificam e induzem a uma tutela legal por parte do Estado. Ou seja, buscam-se (...) quais bens jurídicos terão uma reduzida margem de tolerabilidade social a sua lesão, buscando-se sua proteção por meio de sistema legal. Em um segundo momento, deverão ser observadas quais condutas objetivamente lesam intoleravelmente estes bens jurídicos. Ainda, selecionadas as condutas, há observar quais, dentre elas, possuem um caráter ético-social negativa e real lesividade ao bem 121 jurídico. Posicionando-se de acordo com esta segunda concepção, Manuel da Costa Andrade ensina que “no plano axiológico-teleólogico, o juízo de dignidade penal privilegia dois referentes materiais: a dignidade de tutela do bem jurídico e a potencial e gravosa danosidade social da conduta, enquanto lesão ou perigo para os bens jurídicos”.122 É adotando esta concepção, salienta-se, que autores como Fábio Freitas Dias 123 e Eduardo Sanz de Oliveira e Silva124 afirmam pela correspondência de conceitos entre fragmentariedade e dignidade penal. Alice Bianchini, por sua vez, e conforme já foi noticiado anteriormente, traz entendimento diverso, afirmando que o princípio da intervenção mínima possui três perspectivas ou categorias. O primeiro, que corresponde ao que acima foi tratado como fragmentariedade ou dignidade penal, é, por tal autora, denominado de 120 LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. 2. Ed. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 2003. p. 40. 121 SILVA, Eduardo Sanz de Oliveira e. O Princípio da Subsidiariedade e a Expansão do Direito Penal Econômico. In D’AVILA, Fábio Roberto, SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de (Coord.). Direito Penal Secundário. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 205. 122 ANDRADE, Manuel da Costa. A “Dignidade Penal” e a “Carência de Tutela Penal” como Referências de uma Doutrina Teleológico-Racional do Crime. In Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Ano 2. Fasc. 2. Lisboa: Aequitas e Editorial Notícias, 1992. p. 184. 123 DIAS, Fábio Freitas. Direito Penal de Intervenção Mínima e a Noção de Bem Jurídico Aplicada às Infrações Tributárias. In D’AVILA, Fábio Roberto, SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de (Coord.). Direito Penal Secundário. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 132. 124 SILVA, Eduardo Sanz de Oliveira e. O Princípio da Subsidiariedade e a Expansão do Direito Penal Econômico. In D’AVILA, Fábio Roberto, SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de (Coord.). Direito Penal Secundário. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 204. 49 merecimento de tutela penal, sendo este subdividido em dois elementos: a dignidade penal do bem jurídico e a ofensividade da conduta. No entanto, a diversidade do entendimento trazido pela autora encontra-se restrita tão somente a uma questão de nomenclaturas, já que aquilo que afirma ser a dignidade penal do bem jurídico corresponde ao primeiro momento da fragmentariedade, ou seja, a identificação dos bens jurídicos mais relevantes e importantes ao indivíduo em sociedade e que serão erigidos à categoria de bens jurídico-penais, enquanto o que afirma ser a ofensividade da conduta corresponde ao segundo momento da fragmentariedade, ou seja, a seleção das condutas que se mostrem como ataques graves e intoleráveis ao bem jurídico-penal. Assim, enquanto a concepção de dignidade penal do bem jurídico adotada pela autora se amoldaria à concepção menos abrangente de fragmentariedade a que se referiu anteriormente, a sua noção de merecimento de tutela penal se amolda à concepção mais abrangente. Desta forma, nas palavras de Luiz Flávio Gomes, “o núcleo substancial do princípio da fragmentariedade, destarte, está constituído: (a) pela essencialidade do bem jurídico e (b) pela intolerabilidade da ofensa”.125 2.3.2.2 Subsidiariedade, Carência de Tutela Penal e Necessidade de Tutela Penal Conforme já anteriormente exposto, o princípio da intervenção mínima do Direito Penal se caracteriza por ser um princípio instituidor de limites materiais ao poder punitivo do estado, princípio este que institui limites para além dos estabelecidos pelos princípios da legalidade e da lesividade. Tal princípio possui, segundo a classificação adotada majoritariamente pela doutrina brasileira, dois elementos ou corolários, quais sejam a fragmentariedade, já acima tratada, e a subsidiariedade, que será tratada neste tópico. De fato, a análise da subsidiariedade do Direito Penal pressupõe a análise da sua fragmentariedade, enquanto limites ao ius puniendi estatal. Desta 125 GOMES, Luiz Flávio, et al. Direito Penal: introdução e princípios fundamentais. V. 1. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 293. 50 forma, a subsidiariedade deste ramo do direito apenas será utilizada como parâmetro para a análise da legitimidade da criminalização de dada conduta caso esta se mostra legítima frente aos critérios da fragmentariedade, bem como frente aos critérios da legalidade e da lesividade, cujas análises devem anteceder a análise referente ao princípio da intervenção mínima. O caráter subsidiário da intervenção penal, também referido como carência de tutela penal ou necessidade de tutela penal, determina que, em sendo o Direito Penal o instrumento mais drástico de que dispõe o estado, bem como não sendo único meio de proteção de que dispõe, a ele só se pode recorrer quando todos os outros instrumentos de que detém o estado se mostrem ineficazes ou insuficientes para a tutela de determinado bem jurídico. Neste sentido, Nilo Batista ensina que a subsidiariedade do direito penal, que pressupõe sua fragmentariedade, deriva de sua consideração como ‘remédio sancionador extremo’, que deve, portanto ser ministrado apenas quando qualquer outro se revele ineficiente; sua intervenção se dá ‘unicamente quando fracassam as demais barreiras protetoras do bem jurídico predispostas por outros ramos 126 do direito’. Da mesma forma, Eduardo Sanz de Oliveira e Silva afirma que eleito o bem jurídico que se quer tutelar, elevado à dignidade do bem jurídico no contexto da ordem axiológica constitucional, esta ainda um terceiro momento dogmático funcional para que o bem seja elevado à categoria de proteção penal. Esta categoria é justamente a subsidiariedade (carência de tutela penal). Neste momento, o que se deve fazer é observar se para a tutela do bem jurídico não há uma outra medida legal menos gravosa ou mais eficiente que o direito penal. Isto porque o que se busca é solucionar o conflito protegendo o bem jurídico da forma mais eficaz e que 127 cause menos danos aos direitos fundamentais. No mesmo sentido, Luiz Luisi ensina que “o direito penal deve ser a ratio extrema, um remédio último, cuja presença só se legitima quando os demais ramos do direito se revelam incapazes de dar a devida tutela a bens de relevância 126 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10 Ed. Rio de Janeiro: Revam, 2005. p. 86-87. 127 SILVA, Eduardo Sanz de Oliveira e. O Princípio da Subsidiariedade e a Expansão do Direito Penal Econômico. In D’AVILA, Fábio Roberto, SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de (Coord.). Direito Penal Secundário. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 207. 51 para a própria existência do homem e da sociedade”.128 Por sua vez, Fábio Freitas Dias afirma que “somente quando o aparato político e jurídico do Estado se revelarem insuficientes e ineficazes naquela proteção – ‘meios menos gravosos para a liberdade’ – o direito penal se legitimará materialmente”.129 Neste sentido, sobre a subsidiariedade do Direito Penal, Fábio Freitas Dias ensina que o direito penal também tem caráter subsidiário. Em sentido amplo, um fenômeno é subsidiário de outro quando opera depois deste e precisamente para suprir suas falhas ou fracassos: se não opera o principal com efetividade, que opere então o subsidiário ou acessório. É dizer de forma veemente, o direito penal é um mecanismo subsidiário em relação aos meios e instrumentos políticos e jurídicos de controle social. Quando as políticas sociais e econômicas e os demais ramos do ordenamento jurídico se revelarem ineficazes, ao fim e ao cabo, na tarefa de proteger bens com relevância ético-social, o direito penal, que permanecia em estado latente e disponível em um segundo plano, deve atuar 130 contundentemente para realizar aquela tarefa. A subsidiariedade do Direito Penal tem como fundamento o caráter liberal do estado, de forma que, ao optar, o estado, pela tutela de dado bem jurídico, o deve fazer da forma menos gravosa aos direitos dos indivíduos que o compõem, em observância ao “princípio da máxima utilidade possível com o mínimo sofrimento necessário”131 . Neste sentido, ensina André Luís Callegari que a razão por que se estima que só se deve recorrer ao Direito Penal quando, frente à conduta danosa de que se trate, fracassou o emprego de outros instrumentos sociopolíticos, radica em que o castigo penal põe em perigo a existência social do afetado, colocando-o à margem da sociedade e, com isso, se produz também um dano social. Por tudo isso, deve-se preferir às penas todas aquelas medidas que possam evitam uma alteração da vida em comum e que tenham para o afetado conseqüências menos 132 negativas. 128 LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. 2. Ed. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 2003. p. 40. 129 DIAS, Fábio Freitas. Direito Penal de Intervenção Mínima e a Noção de Bem Jurídico Aplicada às Infrações Tributárias. In D’AVILA, Fábio Roberto, SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de (Coord.). Direito Penal Secundário. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 131. 130 DIAS, Fábio Freitas. Direito Penal de Intervenção Mínima e a Noção de Bem Jurídico Aplicada às Infrações Tributárias. In D’AVILA, Fábio Roberto, SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de (Coord.). Direito Penal Secundário. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 130. 131 BIANCHINI, Alice. Pressupostos Materiais Mínimos da Tutela Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 100. 132 CALLEGARI, André Luís. O Princípio da Intervenção Mínima no Direito Penal. in Revista dos Tribunais. N. 767. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 460. 52 No mesmo sentido, bem explica Nilo Batista, utilizando-se da lição de Maurach, que “não se justifica ‘aplicar um recurso mais grave quando se obtém o mesmo resultado através de um mais suave’”.133 Desta forma, fica clara a noção de que, se por um lado a afirmação da inexistência de dignidade penal a dado bem jurídico implica a impossibilidade de sua tutela por meio do Direito Penal, por outro, a afirmação desta dignidade não implica uma sua automática tutela penal. De fato, nas palavras de Luiz Flávio Gomes, nem todos os bens de elevada dignidade (merecimento) necessitam de tutela penal. A decisão de eleger o meio mais contundente (direito penal) pressupõe, assim, um exame razoável de todas as perspectivas, para se constatar que nada melhor que ele existe. A preferência tem que recair, em 134 princípio, nos meios menos drásticos, isentos de violência. De fato, Jorge de Figueiredo Dias ensina que “mesmo quando uma conduta viole um bem jurídico, ainda os instrumentos jurídico-penais devem ficar fora de questão sempre que a violação possa ser suficientemente controlada ou contrariada por meios não criminais de política social”.135 No mesmo sentido, Alice Biachini afirma que o merecimento de tutela penal seria condição necessária, mas não suficiente, para legitimar a intervenção criminalizadora. Constatado o merecimento, parte-se para a verificação da necessidade da intervenção penal, a qual certificará a existência, ou não, de outra forma de proteção 136 menos aflitiva. No mesmo sentido, Paulo César Busato e Karin Kässmayer ensinam que “mesmo sendo o ataque ao bem jurídico qualificado como de especial gravidade e este bem jurídico seja considerado essencial, a intervenção penal só se justifica quando o interesse a ser protegido não recebe melhor resposta a partir de outro ramo do direito”.137 133 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 10 Ed. Rio de Janeiro: Revam, 2005. p. 87. 134 GOMES, Luiz Flávio, et al. Direito Penal: introdução e princípios fundamentais. V. 1. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 296. 135 DIAS, Jorge Figueiredo, apud BIANCHINI, Alice. Pressupostos Materiais Mínimos da Tutela Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 76. 136 BIANCHINI, Alice. Pressupostos Materiais Mínimos da Tutela Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 88. 137 BUSATO, Paulo César, KÄSSMAYER, Karin. Intervenção Mínima x Precaução: conflito entre princípios no direito penal ambiental. In Direito e Risco: o direito do ambiente na sociedade de risco. Curitiba: UNIFAE, 2008. p. 130. 53 Ademais, Luiz Flávio Gomes afirma que o caráter subsidiário da intervenção penal vai ainda mais longe. Para tal autor, “mesmo que não se disponha de outras possibilidades mais suaves, deve-se renunciar à pena, por falta de idoneidade, quando seja político-criminalmente inoperante ou inclusive nociva”.138 No mesmo sentido, Manuel da Costa Andrade ensina que o reconhecimento da carência de tutela penal compreende a exigência de que a intervenção penal, no caso concreto, não desencadeie “efeitos secundários, desproporcionadamente lesivos”.139 Refere-se o autor às situações em que, por razões que fogem ao objeto deste estudo, a intervenção penal consistente na criminalização de certas condutas se mostra causadora de mais resultados nocivos do que de resultados benéficos. Nesses, casos, e uma vez que, segundo ele, “a intervenção penal (...) não pode produzir efeitos mais lesivos do que benéficos”140, não seria legitima o recurso ao Direito Penal. De fato, esta última constatação trazida por Luiz Flávio Gomes é justamente o que Alice Bianchini denomina de adequação e eficácia da tutela penal, sendo esta justamente a terceira perspectiva ou categoria do princípio da intervenção mínima. Nas palavras da autora, deve-se observar que existem bens jurídicos, os quais, apesar de serem merecedores de tutela penal e de não poderem ser protegidos por outros meios de controle social, portanto não dispensarem a utilização da via repressiva, também nela não encontram possibilidade de proteção – inexistindo eficácia – ou, então, demandam custos mais elevados do que 141 os benefícios por ela trazidos – não se fazendo adequada. A partir desta concepção, a adequação e eficácia da tutela penal, como elemento autônomo do princípio da intervenção mínima, deve ser objeto de análise em momento posterior à análise da necessidade da tutela penal. Em vista do que foi trabalhado neste capítulo, verifica-se que o princípio da intervenção mínima trata-se de um princípio limitador do poder punitivo 138 GOMES, Luiz Flávio, et al. Direito Penal: introdução e princípios fundamentais. V. 1. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 297. 139 ANDRADE, Manuel da Costa. A “Dignidade Penal” e a “Carência de Tutela Penal” como Referências de uma Doutrina Teleológico-Racional do Crime. In Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Ano 2. Fasc. 2. Lisboa: Aequitas e Editorial Notícias, 1992. p, 186. 140 GOMES, Luiz Flávio, et al. Direito Penal: introdução e princípios fundamentais. V. 1. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 297. 141 BIANCHINI, Alice. Pressupostos Materiais Mínimos da Tutela Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 110 54 estatal, que emerge no bojo do ideário liberal iluminista dos séculos XVII e XVIII como engrenagem de um Direito Penal de garantias que visa se contrapor ao modelo penal do antigo regime. No entanto, uma nova realidade vem surgindo nas últimas décadas, colocando em crise boa parte dos institutos e instrumentos deste modelo clássico de Direito Penal. Esta nova realidade trata-se da sociedade de riscos. 55 3 SOCIEDADE DE RISCOS Os princípios penais acima tratados, como visto, têm sua origem em um específico contexto social, qual seja, o do início daquele período a que se convencionou chamar de modernidade. Tal período se caracteriza como aquele no qual os ideais iluministas fundados no antropocentrismo galgam a superação do modelo absolutista monárquico teocêntrico, provocando profunda alteração nos mais amplos aspectos da vida do homem, sobretudo nas ciências, tanto físicas e biológicas, como sociais. Este modelo de modernidade, no entanto, sofreu, desde o seu surgimento no século XVIII até os dias de hoje, sérias modificações e transformações. Ao longo destes mais de duzentos anos, migrou-se drasticamente de uma sociedade industrial clássica para aquilo que hoje se pode denominar de sociedade mundial de riscos, ou simplesmente sociedade de riscos, sendo esta, justamente, a nova configuração social. Tais modificações foram descritas por uma série de sociólogos, com especial relevância a Ulrich Beck. Este autor buscou sintetizar este processo de transformações que operaram uma fratura na modernidade, separando-a em duas distintas modernidades, as quais denomina de primeira e segunda modernidade. 3.1 A PASSAGEM DE UMA SOCIEDADE INDUSTRIAL PARA UMA SOCIEDADE DE RISCOS A fim de melhor compreender a estrutura da sociedade mundial de riscos, atual modelo de configuração social, é preciso que tome nota do processo de transformações que levou a tal transição. Para isto, é preciso que se diferenciem as duas distintas modernidades trazidas por Beck: a primeira modernidade, característica do início da modernidade, do modelo de sociedade industrial clássica e do período industrial, e a segunda modernidade, que faz surgir a sociedade de 56 riscos e se caracteriza pelas conseqüências das vitórias obtidas na primeira modernidade.142 3.1.1 Primeira Modernidade A primeira modernidade corresponde ao período histórico que se inicia após o final da Idade Média, e que pode ser delimitado em seu início pelas revoluções liberais iluministas do século XVIII. Nas palavras de Giddens, “refere-se ao estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII”.143 A primeira modernidade corresponde justamente ao período em que o antropocentrismo fundado na premissa cartesiana de que o homem é o sujeito central do universo, e que por meio de sua razão poderia capturar a natureza a seu proveito, atinge seu auge. Funda-se uma mentalidade de que um maior conhecimento e controle pelo homem do mundo natural possibilitariam maiores chances de sua utilização em prol dos seus interesses.144 Neste sentido, Descartes argumentara que conhecendo a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam, tão distintamente quanto conhecemos os diversos ofícios de nossos artesãos, poderíamos empregála do mesmo modo em todos os usos que se aplicam tais ofícios, e assim nos tornarmos como que mestres e possuidores da natureza. O que é desejável não apenas para a invenção de uma infinidade de artifícios, que nos fariam usufruir sem nenhuma dificuldade os frutos da terra e todas as comodidades que nela se encontram, mas principalmente também para a conservação da saúde, a qual é certamente o primeiro bem e o fundamento 145 de todos os outros bens desta vida. 142 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 29. 143 GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Trad. Raul Filker. São Paulo: UNESP, 1991. p. 11. 144 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 20. 145 DESCARTES, René. Discurso do Método. Trad. Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2008. p. 102. 57 De fato, “o desenvolvimento do saber técnico-científico permitiu que o homem controlasse e se protegesse dos fenômenos da natureza que antes se mostravam perigosos para a sua existência”.146 Nesta primeira modernidade, com um modelo de industrialização que perdura até o século XX, observa-se uma sociedade estritamente ligada ao conceito de estado-nação, onde as redes sociais se formam em um sentido ainda essencialmente territorial, a sociedade se caracteriza por elementos como pautas coletivas de vida, progresso, controlabilidade, pleno emprego e exploração da natureza pelo homem.147 Neste contexto, há um forte e contínuo avanço da industrialização, com a permanente conquista de novas inovações tecnológicas, as quais se dão em uma fascinante velocidade, em atendimento aos interesses econômicos que existiam por detrás da necessidade de descoberta de cada vez mais novas tecnologias aptas a potencializar os processos de criação de bens e riquezas. De fato, tal modelo de sociedade fundava-se fortemente nos ideais liberais burgueses tão em voga no final do século XVIII. Giddens, em sua obra As Conseqüências da Modernidade, busca desvendar aquilo que seria o nexo institucional da modernidade, ou seja, qual seria a premissa sobre a qual se fundou a modernidade em sua evolução. Neste sentido, promove a separação de duas relevantes correntes sociológicas acerca da modernidade e de seu elemento motriz. Para a primeira corrente apresentada por Giddens, influenciada diretamente pela obra de Marx, “a força transformadora principal que modela o mundo moderno é o capitalismo”.148 De acordo com essa corrente, a partir do declínio do modelo de produção feudal, o sistema de produção agrário típico do feudalismo é substituído por um sistema de produção voltado a mercados abrangentes, nos quais há a mercantilização não apenas de tudo aquilo que pode ser produzido, mas também da própria mão de obra. Neste sentido, 146 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 20-21. 147 BECK, Ulrich. La Sociedade del Riesgo Global. Trad. Jesús Alborés Rey. Madrid: Siglo Veintiuno de España Editores, 2002. p. 2. 148 GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Trad. Raul Filker. São Paulo: UNESP, 1991. p. 20. 58 a ordem social emergente da modernidade é capitalista tanto em seu sistema econômico como em suas outras instituições. O caráter móvel, inquieto da modernidade é explicado como um resultado do ciclo investimento-lucro-investimento que, combinado com a tendência geral da taxa de lucro a declinar, ocasiona uma disposição constante para o sistema 149 se expandir. Em posição oposta a esta, surge outra corrente cuja explicação da modernidade se assenta sobre bases distintas. Esta segunda corrente, encabeçada por Durkheim, buscou lastrear a natureza da modernidade no industrialismo, colocando o capitalismo e outros elementos da doutrina marxista em segundo plano.150 Para os adeptos desta corrente, a modernidade, em sua complexidade, deriva “do impulso energizante de uma complexa divisão de trabalho, aproveitando a produção para as necessidades humanas através da exploração industrial da natureza”.151 A modernidade, assim, teria como traço marcante o industrialismo, e não o capitalismo. Giddens, no entanto, afirma que nenhuma de tais correntes é capaz de capturar e compreender a complexidade da força dominante que modela a modernidade. Neste sentido, nas palavras do autor: vivemos numa ordem capitalista? É o industrialismo a força dominante que modela as instituições da modernidade? Deveríamos ao invés olhar para o controle racionalizado da informação como a principal característica subjacente? Devo argumentar que estas questões não podem ser respondidas desta forma – quer dizer, não devemos encarar estas caracterizações como mutuamente exclusivas. A modernidade, sugiro, é multidimensional no âmbito das instituições, e cada um dos elementos 152 especificados por estas várias tradições representam algum papel. Giddens propõe, assim, sejam o capitalismo e o industrialismo vistos como dimensões distintas de um mesmo cenário, às quais devem ainda ser 149 GIDDENS, 1991. p. 20. 150 GIDDENS, 1991. p. 20. 151 GIDDENS, 1991. p. 20. 152 GIDDENS, 1991. p. 21. Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Trad. Raul Filker. São Paulo: UNESP, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Trad. Raul Filker. São Paulo: UNESP, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Trad. Raul Filker. São Paulo: UNESP, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Trad. Raul Filker. São Paulo: UNESP, 59 somadas a estrutura de vigilância do estado-nação e o monopólio estatal dos meios de violência.153 Especial relevância, no entanto, deve ser dada ao industrialismo: o industrialismo se torna o eixo principal da interação dos seres humanos com a natureza em condições de modernidade. Na maior parte das culturas pré-modernas, mesmo nas grandes civilizações, os seres humanos se viam em continuidade com a natureza – a disponibilidade das fontes naturais de sustento, a prosperidade das plantações e dos animais de pasto, e o impacto dos desastres naturais. A indústria moderna, modelada pela aliança da ciência com a tecnologia, transforma o mundo da natureza de maneiras inimagináveis às gerações anteriores. Nos setores industrializados do globo – e, crescentemente, por toda parte – os seres humanos vivem num ambiente criado, um ambiente de ação que, é claro, é 154 físico, mas não mais apenas natural. De fato, um dos traços mais essenciais da modernidade é justamente a crescente evolução da ciência direcionada à melhoria da qualidade de vida do homem, através de processos industriais os quais objetivavam a satisfação das necessidades humanas. Neste sentido, para os pensadores do Iluminismo – e muitos dos seus sucessores -, pareceu que a crescente informação sobre os mundos social e natural traria um controle cada vez maior sobre eles. Para muitos, esse controle era a chave para a felicidade humana; quanto mais estivermos – como humanidade coletiva – em uma posição ativa para fazer história, mais 155 podemos orientar a história rumo aos nossos ideais. Segundo o mesmo autor, estes pensadores acreditavam, com bastante propriedade, que quanto mais viéssemos a conhecer sobre o mundo, enquanto coletividade humana, mais poderíamos controlá-lo e direcioná-lo para os nossos propósitos. Aumentar o conhecimento produzido com respeito aos mundos social e natural conduziria a uma maior certeza sobre as condições sob as quais conduzimos nossas vidas; e, assim, sujeitaria à dominação humana o 156 que outrora fora o domínio de outras influências. 153 GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Trad. Raul Filker. São Paulo: UNESP, 1991. pp. 61-64. 154 GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Trad. Raul Filker. São Paulo: UNESP, 1991. p. 66. 155 GIDDENS, Anthony. A Vida em Uma Sociedade Pós-Tradicional. In BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony, LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1997. p. 75. 156 GIDDENS, Anthony. Risco, Confiança e Reflexividade. In BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony, LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1997. p. 219. 60 Contraposta a esta primeira modernidade se encontra a segunda modernidade. Estas duas modernidades são ligadas pelos já referidos processos de transformações que alteraram a estrutura social mundial. A este processo de transformações dá-se o nome de modernização reflexiva. 3.1.2 Modernização Reflexiva e Segunda Modernidade Estes processos de transformações que transformaram a primeira modernidade em segunda modernidade, ou seja, a sociedade industrial em sociedade de riscos, recebe o nome de modernização reflexiva. Tais processos são peculiares uma vez que não se deram da mesma forma como se deu a transição entre o pré-moderno e o moderno, ou seja, pela negação das premissas e paradigmas do modelo anteriormente vigente. Ao contrário disto, “o processo de modernização reflexiva não ocorre mediante o distanciamento do modelo ao qual se contrapõe”157. Trata-se, na verdade, de um processo de superdesenvolvimento da primeira modernidade, que elevou exponencialmente suas premissas ao extremo, de forma que a sua própria estrutura se abala. Neste sentido, Beck afirma que a modernização reflexiva “implica a radicalização da modernidade, que vai invadir as premissas e os contornos da sociedade industrial e abrir caminhos para outra modernidade”.158 Esta modernidade reflexiva traz em si as conseqüências imprevistas das vitórias da modernidade, ou seja, a globalização, a individualização, a revolução dos gêneros, o subemprego, e, acima de tudo, o surgimento dos riscos globais.159 Estas conseqüências, que se produziram de forma imprevisível e involuntária, atingiram um nível tal que provocaram grande abalo na própria estrutura da primeira modernidade. Neste sentido, nas palavras de Beck, 157 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 19. 158 BECK, Ulrich. A Reinvenção da Política. In BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony, LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1997. p. 13. 159 BECK, Ulrich. La Sociedade del Riesgo Global. Trad. Jesús Alborés Rey. Madrid: Siglo Veintiuno de España Editores, 2002. p. 2. 61 ‘modernização reflexiva’ significa a possibilidade de uma (auto)destruição criativa para toda uma era: aquela da sociedade industrial. O ‘sujeito” dessa destruição criativa não é a revolução, não é a crise, mas a vitória da 160 modernização ocidental. Complementando, Beck sintetiza que “não é a crise, mas, repito, as vitórias do capitalismo que produzem a nova forma social”.161 De fato, as vitórias obtidas durante o processo de modernização, do capitalismo e sobretudo do industrialismo, é o que, efetivamente, vai servir de força motriz para a transformação de uma primeira modernidade em uma segunda modernidade, ou seja, de uma sociedade industrial para uma sociedade de riscos. Assim, os avanços tecnológicos e científicos de que tanto se orgulhava a primeira modernidade, e que permitiram ao homem controlar e se proteger dos fenômenos da natureza, acabaram se voltando contra seus criadores, criando um novo tipo de ameaça: os riscos tecnológicos.162 Neste sentido, pela modernidade reflexiva cria-se um cenário de riscos que é justamente o superdesenvolvimento daquilo que se foi proposto com a primeira modernidade, que acabou sendo surpreendida pela modernização de suas próprias premissas.163 Este processo, importante se perceba, não significou uma opção, não foi buscada e conquistada pelo desejo de superação de paradigma, sendo uma mera conseqüência involuntária, uma continuidade do processo autônomo de modernização. Neste sentido, ensina Beck que qualquer um que conceba a modernização como um processo de inovação autônoma deve contar até mesmo com a obsolescência da sociedade industrial. O outro lado dessa obsolescência é a emergência da sociedade de risco. Este conceito designa uma fase no desenvolvimento da sociedade moderna, em que os riscos sociais, políticos, econômicos e individuais tendem cada vez mais a escapar das instituições para o controle e a 164 proteção da sociedade industrial. 160 BECK, Ulrich. A Reinvenção da Política. In BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony, LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1997. p. 12. 161 BECK, Ulrich. A Reinvenção da Política. In BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony, LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1997. p. 13 162 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. pp. 20-21.. 163 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 21. 164 BECK, Ulrich. A Reinvenção da Política. In BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony, LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1997. p. 13. 62 Chega-se ao estágio em que as formas contínuas de progresso transformam-se em verdadeiros instrumentos autodestrutivos, ocasionando a destruição do modelo de primeira modernidade. Trata-se justamente do nascedouro da segunda modernidade. Ademais, é preciso que se perceba que tal processo de modernização reflexiva se deu em duas distintas etapas ou estágios. Segundo Beck: Duas fases podem ser aqui distinguidas: primeiro, um estágio em que os efeitos e as auto-ameaças são sistematicamente produzidos (...). Segundo, uma situação completamente diferente surge quando os perigos da sociedade industrial começam a dominar os debates e conflitos públicos, 165 tanto políticos como privados. Tais duas etapas foram batizadas de reflexividade e reflexão. 3.1.2.1 Reflexividade A primeira etapa, da reflexividade, é justamente a do processo de transição de uma sociedade industrial clássica para uma sociedade de riscos, onde os efeitos e as auto-ameaças são sistematicamente produzidos pela sociedade moderna de forma despercebida e indesejada no manejo dos novos avanços técnico-científicos. Seu principal aspecto é justamente essa irreflexão. Sobre o tema, Paulo Silva Fernandes ensina que o extraordinário desenvolvimento da técnica ao longo dos anos da chamada era industrial, não obstante ter sido responsável por um incremento inegável das condições de vida e pela satisfação de inúmeras necessidades da sociedade em que assentou (...) foi ainda responsável, 166 qual reverso da medalha, pela gênese e multiplicação de novos riscos. E continua, afirmando pela reflexividade involuntárias destes novos riscos: 165 BECK, Ulrich. A Reinvenção da Política. In BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony, LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1997. p. 15. 166 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “Sociedade de Risco” e o Futuro do Direito Penal: Panorâmica de Alguns Problemas Comuns. Coimbra: Almedina, 2001. pp. 31-32. 63 mais: ‘a sociedade industrial é uma sociedade de produção industrial que, na sua evolução, dá lugar a uma sociedade de seqüelas industriais reflexo dela mesma, que a excede nas dimensões (...)’. Acrescentamos nós: uma parte considerável dessas seqüelas são os riscos inerentes (e resultantes) 167 à opção pelo caminho trilhado. De fato, de tais passagens pode-se perceber que os riscos resultantes dos avanços tecnológicos surgem como seqüelas indesejadas derivadas de um processo evolutivo irrefletido quanto a suas conseqüências. Neste primeira fase, a sociedade moderna avança no processo de modernização a passos largos, ignorando os efeitos colaterais desse progresso, que é justamente a criação de riscos globais. Neste sentido, “a reflexividade refere-se à transição autônoma, indesejada e despercebida do modelo da sociedade industrial para o da sociedade de risco”.168 Esta transição tem como seu principal aspecto justamente sua irreflexão e sua não-intencionalidade. Nas palavras de Beck: a transição do período industrial para o período de risco da modernidade ocorre de forma indesejada, despercebida e compulsiva no despertar do dinamismo autônomo da modernização, seguindo o padrão dos efeitos 169 colaterais. A produção de tais riscos, importante perceber, se dá de forma absolutamente despercebida e oculta dentro da sociedade industrial. Estes riscos surgem “na continuidade dos processos de modernização autônoma, que são cegos e surdos a seus próprios efeitos e ameaças”.170 Sobre o tema, Marta Rodriguez de Assis Machado bem coloca que nessa perspectiva, o cenário de riscos e incertezas que ora intranqüiliza o mundo não está, propriamente, em contradição com a modernidade, mas é expressão de seu desenvolvimento coerente para além do projeto da sociedade industrial. O que ocorreu é que, a certa altura, o processo de modernização nos moldes do planejado na sociedade industrial acabou 171 sendo surpreendido pela modernização das suas próprias premissas. 167 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “Sociedade de Risco” e o Futuro do Direito Penal: Panorâmica de Alguns Problemas Comuns. Coimbra: Almedina, 2001. p. 33. 168 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 31. 169 BECK, Ulrich. A Reinvenção da Política. In BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony, LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1997. p. 16. 170 BECK, Ulrich. A Reinvenção da Política. In BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony, LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1997. p. 16. 171 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 21. 64 Giddens bem aponta que estas novas ameaças surgiram “por causa – e não apesar – do conhecimento que acumulamos sobre nós mesmos e sobre o ambiente material”172, e complementa, afirmando peremptoriamente que “quanto mais tentamos colonizar o futuro, maior a probabilidade de ele nos causar surpresas”.173 A afirmação de Giddens de que os novos riscos surgem por causa e não apesar do conhecimento humano bem demonstra a noção de que os novos riscos e o processo de modernização ligam-se através de um nexo de causa e efeito, onde este é a causa maior daqueles. No entanto, complementarmente a tal idéia, Beck vai afirmar que não é apenas o conhecimento que impulsiona os riscos tecnológicos, mas, em igual medida, o não conhecimento. Neste sentido: qual é o meio da modernização reflexiva? A resposta parece óbvia: o conhecimento em suas várias formas – conhecimento científico, conhecimento especializado, conhecimento do dia-a-dia. Entretanto, na verdade, o oposto absoluto se afirma: o não-conhecimento, o dinamismo 174 inerente, o não-visto e o não-desejado. Tal afirmação parte da constatação de que hoje vivemos “na era dos efeitos colaterais”, e que, por tal razão, o não-conhecimento possui papel tão relevante quanto o conhecimento na estrutura da modernidade reflexiva. Sobre o surgimento desses novos riscos, Blanca Mendoza Buergo afirma que se tratam das implicações negativas do desenvolvimento tecnológico e do sistema de produção e consumo, que adquirem vida própria e passam a produzir riscos que ameaçam de forma massiva a sociedade. Para a autora, a aparição destes novos riscos é que determina a transformação do modelo de sociedade industrial para um modelo de sociedade de risco.175 172 GIDDENS, Anthony. A Vida em Uma Sociedade Pós-Tradicional. In BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony, LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1997. p. 75. 173 GIDDENS, Anthony. A Vida em Uma Sociedade Pós-Tradicional. In BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony, LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1997. p. 76. 174 BECK, Ulrich. Autodissolução e Auto-Risco da Sociedade Industrial: o que isso significa? In BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony, LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1997. p. 208. 175 MENDOZA BUERGO, Blanca. El Derecho Penal en la Sociedad Del Riesgo. Madrid: Civitas, 2001. p. 25. 65 3.1.2.2 Reflexão A segunda etapa da modernidade reflexiva, a etapa da reflexão, se dá a partir do momento em que a sociedade toma consciência desta constelação de fatores, trazendo estas questões ao debate público, colocando-se em questionamento as instituições modernas e seus fundamentos176, já que aquilo que parecia funcional passa a aparecer como uma ameaça em potencial. Neste sentido, “a teoria da sociedade mundial do risco parece nascer com a percepção social dos riscos tecnológicos globais e de seu processo de surgimento até então despercebido”177, ou seja, “é uma teoria política sobre as mudanças estruturais da sociedade industrial e, ao mesmo tempo, sobre o conhecimento da modernidade, que faz com que a sociedade se torne crítica de seu próprio desenvolvimento”.178 Para Beck, a sociedade de risco como novo e distinto modelo social “surge quando os perigos da sociedade industrial começam a dominar os debates e conflitos, tanto políticos como privados”.179 Assim, a partir dessa etapa de reflexão, a modernização reflexa passa a significar a “autoconfrontação com os efeitos da sociedade de risco que não podem ser tratados e assimilados no sistema da sociedade industrial”.180 Em outras palavras, “o conceito de sociedade de risco designa um estágio da modernidade em que começam a tomar corpo as ameaças produzidas até então no caminho da sociedade industrial”.181 Este desvelamento dos riscos silenciosamente produzidos pelos processos de modernização vem implicar, inclusive num desencantamento com a 176 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 31. 177 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 31. 178 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 31. 179 BECK, Ulrich. A Reinvenção da Política. In BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony, LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1997. p. 16. 180 BECK, Ulrich. A Reinvenção da Política. In BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony, LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1997. p. 16. 181 BECK, Ulrich. A Reinvenção da Política. In BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony, LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1997. p. 17. 66 ciência e com a técnica, cuja promessa de bem estar revelou-se falha182, e que, em última análise, apenas legitimaram e compactuaram com a produção de tais riscos tecnológicos.183 De fato, nas palavras de Paulo Silva Fernandes, “a tecno-ciência, que tudo nos deu, pode ser o mais temível dos inimigos”.184 Segundo Marta Rodriguez de Assis Machado, em síntese, (...) podemos identificar duas ordens de conseqüências do processo de modernização: (i) a liberação dos riscos da produção industrial, que emergiram como efeitos colaterais indesejados e que assumiram dimensão global; e (ii) o reconhecimento social desses riscos, que passam a ser culturalmente percebidos, construídos, midiatizados e 185 transportados à agenda político-ambiental global. De fato, estas duas etapas podem ser resumidas nos seguintes termos: primeiramente tem-se a criação de riscos globais como conseqüências indesejadas da modernização, seguida do reconhecimento público destes riscos. É justamente a partir do momento em que as ameaças silenciosamente produzidas pela primeira modernidade passam a tomar corpo que se passa a falar em uma sociedade de riscos. Neste sentido, “a diferença entre a sociedade industrial e a sociedade do risco é, também, uma diferença de conhecimento, isto é, de autoreflexão sobre os riscos da sociedade industrial desenvolvida”.186 A partir da etapa da reflexão, a sociedade moderna abandona uma visão acrítica dos processos de modernização, revendo seus conceitos e fundamentos, e passando a contestar sobretudo a confiabilidade de instituições como a ciência e a tecnocracia como definidores dos patamares de risco. A partir de tal momento, “a antes semi-deusa ciência absoluta, rainha dos milagres, mostrou-se, afinal, imperfeita”.187 182 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São IBCCRIM, 2005. p. 20. 183 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São IBCCRIM, 2005. p. 22. 184 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “Sociedade de Risco” e o Futuro do Direito Panorâmica de Alguns Problemas Comuns. Coimbra: Almedina, 2001. p. 43. 185 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São IBCCRIM, 2005. p. 32. 186 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São IBCCRIM, 2005. p. 30. 187 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “Sociedade de Risco” e o Futuro do Direito panorâmica de alguns problemas comuns. Coimbra: Almedina, 2001. p. 43. Paulo: Paulo: Penal: Paulo: Paulo: Penal: 67 Importante perceber que os riscos que na segunda modernidade tanto assustam a sociedade foram por ela criados dentro da normalidade dos processos tecnológicos, ou seja, de acordo com aquilo que era prescrito pelos experts como seguro. Sobre esta percepção, ensina Marta Rodriguez de Assis Machado o que diante disso, paira a questão de como se deu o aparecimento desses riscos, em uma sociedade que se gabava, justamente, de ter proporcionado um incremento no sistema de cálculo e prevenção de perigos e de ter construído um sistema de regras para lidar com riscos e 188 inseguranças. E continua a autora, afirmando que diante dessa questão é que passase a supor que a origem destes riscos possa ter ocorrido por uma falha das instituições e sistemas então responsáveis por garantir a normalidade, a regularidade e a segurança dos processos de modernização, dentre os quais a ciência e o direito.189 A racionalidade instrumental, que ocupava o centro do discurso moderno desde o século XVIII, perde, a partir da sociedade de riscos, este seu lugar central para os problemas que envolvem os riscos como efeitos colaterais. Da mesma forma, opera-se uma substituição naquilo que pode ser identificado como o motor da história social, com a racionalidade técnico-instrumental perdendo seu lugar central para a categoria dos efeitos colaterais.190 3.2 OS NOVOS RISCOS Os novos riscos surgidos como efeitos colaterais indesejados do processo de modernização, como visto, para além de meros problemas ambientais, significam uma crise na própria estrutura da sociedade moderna. Estes novos riscos 188 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 52. 189 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 52. 190 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 34. 68 que hoje se apresentam como ameaça à sociedade são peculiares porque foram produzidos pela própria sociedade industrial moderna em seu caminhar de industrialização e novas descobertas no âmbito técnico-científico. De fato, o desenvolvimento industrial da primeira modernidade e a busca pela produção cada vez maior de riquezas fez-se acompanhar pela produção, oculta e sistemática, destes novos riscos, o que vem a implicar uma substituição, na segunda modernidade, da problemática da distribuição de riquezas pela de distribuição dos riscos.191 A parir do advento da sociedade de risco a questão a ser resolvida passa a ser, nas palavras de Beck, a de responder-se a seguinte indagação: como se podem evitar, minimizar, dramatizar e canalizar os riscos e perigos que foram produzidos sistematicamente durante o processo avançado de modernização, e limitá-los e reparti-los ali onde hajam visto a luz do mundo na figura de ‘efeitos secundários latentes’ de tal modo que não obstaculizem o processo de modernização nem ultrapassem os limites 192 do ‘suportável’? [tradução livre] Assim, o processo de modernização se torna reflexivo em relação a si mesmo, uma vez que passa a contestar suas próprias premissas e fundamentos. De fato a promessa de que a razão técnico-científica seria capaz de resolver os problemas da distribuição de riquezas não apenas não se mostrou verdadeiro, como fez surgir toda uma gama de novos problemas. Ademais, mesmo nos países onde a primeira modernidade foi capaz de resolver os problemas de carência material, emerge o sentimento de que as fontes modernas de riqueza estão contaminadas pelas crescentes ameaças dos efeitos secundários do processo de modernização.193 Pode-se assim afirmar que “a própria modernização trouxe conseqüências que estão hoje arriscando as condições básicas de vida alcançadas 191 BECK, Ulrich. La Sociedad del Riesgo: hacia una nueva modernidad. Trad. Jorge Navarro, et al. Barcelona: Paidós, 1998. p. 25. 192 “¿Cómo se pueden evitar, minimizar, dramatizar, canalizar los riesgos y peligros que se han producido sistemáticamente en el proceso avanzado de modernización y limitarlos y repartilos allí donde hayan visto la luz del mundo en la figura de ‘efectos secundarios latentes’ de tal modo que ni obstaculicen el proceso de modernización ni sobrepasen los limites de lo ‘soportable’?” BECK, Ulrich. La Sociedad del Riesgo: hacia una nueva modernidad. Trad. Jorge Navarro, et al. Barcelona: Paidós, 1998. p. 26. 193 BECK, Ulrich. La Sociedad del Riesgo: hacia una nueva modernidad. Trad. Jorge Navarro, et al. Barcelona: Paidós, 1998. p. 26. 69 por via desse mesmo processo”194. Em outras palavras, todas as conquistas e melhorias de vida obtidas na primeira modernidade pelo emprego das tecnologias colocam-se hoje em xeque pelo surgimento dos novos mega-riscos globais. Neste sentido, se durante a primeira modernidade a produção destes riscos se deu sob um consenso acerca da utilização da razão técnico-instrumental científica para a busca do progresso, na segunda modernidade a percepção destes riscos assume o cerne da problemática mundial, ao ponto que as promessas da modernidade passam a ser objeto de suspeitas. Entra em discussão não só a produção de novos riscos, mas também o modo como a sociedade deve lidar com estas incertezas fabricadas. 3.2.1 Riscos e Perigos Importante neste momento estabelecer uma diferença conceitual entre riscos e perigos, visto tratarem-se de coisas distintas. De fato, a distinção entre tais institutos não é ontológica, ou seja, não radica na sua estrutura de ser. Na verdade, a diferença existente entre riscos e perigos, e que os torna coisas diversas, está em sua origem, senão veja-se: Fala-se em riscos quando tal ameaça de dano seja resultante da tomada racional de uma decisão, independente de se o risco surja como resultado objetivado, necessário, eventual ou mesmo desconhecido. O risco, nestes termos, vincula-se, como conseqüência, a uma decisão humana racionalmente tomada no manejo das tecnologias, decisão esta que se direciona a uma vantagem ou oportunidade técnico-econômica.195 Neste sentido, “só se fala de riscos quando se se atribuem conseqüências às decisões”.196 194 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 36. 195 BECK, Ulrich. La Sociedade del Riesgo Global. Trad. Jesús Alborés Rey. Madrid: Siglo Veintiuno de España Editores, 2002. p. 78. 196 LUHMANN, Nicklas, apud FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “Sociedade de Risco” e o Futuro do Direito Penal: panorâmica de alguns problemas comuns. Coimbra: Almedina, 2001. p. 58. 70 Por sua vez, falar-se-á em perigos quando o dano em potencial se vincular não a uma decisão humana, mas a uma causa exterior, natural, sobre a qual o homem não possua controle quanto à sua evitabilidade. Neste sentido, Marta Rodriguez de Assis Machado, fazendo referência à Luhmann, afirma que o termos ‘risco’ vincula-se sempre a uma decisão racional, mesmo que na maior parte das vezes se desconheça as conseqüências que dela possa advir; ao passo que se fala em perigo quando o dano hipotético é acarretado por uma causa exterior, sobre a qual não se tenha controle, 197 sequer para evitá-lo. Na mesma linha, Blanca Mendoza Buergo afirma que os riscos, diferentemente dos perigos, “são artificiais, no sentido de que são produzidos pela atividade do homem e vinculados a uma decisão deste [tradução livre]”.198 Pautando-se nesta distinção entre riscos e perigos, Giddens argumenta: um cético poderia perguntar: não há nada novo aqui? A vida humana não foi sempre marcada pela contingência? O futuro não foi sempre incerto e problemático? A resposta para cada uma dessas perguntas é ‘sim’. Não é que atualmente nossas circunstâncias de vida tenham se tornado menos previsíveis do que costumavam ser; o que mudou foram as origens da imprevisibilidade. Muitas incertezas com que nos defrontamos hoje foram 199 criadas pelo próprio desenvolvimento do conhecimento humano. Neste sentido, Paulo Silva Fernandes aponta que os tradicionais dramas humanos como a fome, as epidemias, os desastres naturais, bem como os eventos anteriormente vistos como atos divinos, não podem ser enquadrados no conceito de riscos, visto que não derivam de decisões humanas. Para o autor, apenas podem ser considerados riscos aquelas contingências que decorrem de uma decisão humana, mais especificamente quando tomadas na busca por vantagens ou oportunidades tecno-econômicas.200 197 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 37. 198 “son ‘artificiales’, en el sentido de que son producidos por la actividad del hombre y vinculados a una decisión de éste” MENDOZA BUERGO, Blanca. El Derecho Penal en la Sociedad Del Riesgo. Madrid: Civitas, 2001. p. 26. 199 GIDDENS, Anthony. Risco, Confiança e Reflexividade. In BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony, LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1997. p. 220. 200 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “Sociedade de Risco” e o Futuro do Direito Penal: panorâmica de alguns problemas comuns. Coimbra: Almedina, 2001. p. 49. 71 No mesmo sentido, Blanca Mendoza Buergo, fazendo referência à Beck, ensina que a respeito disto, destaca Beck como diferença essencial entre estes novos riscos e as catástrofes e perigos anteriores à industrialização, o fato de que estes últimos se concebiam como algo que somente podia ser imputado ao 201 destino, à natureza ou aos deuses [tradução livre]. Marta Rodriguez de Assis Machado, na mesma linha, afirma que “a característica definidora dos novos riscos – e o que os diferencia dos perigos desde os medievais até os da primeira modernidade – é a idéia de que esses riscos necessariamente derivam de decisões humanas”.202 E continua a autora ao afirmar que estes “novos riscos presumem decisões industriais, especificamente, decisões que têm seu foco em vantagens e oportunidades econômicas”.203 De fato, se por um lado os avanços tecnológicos da primeira modernidade trouxeram ao homem segurança e controlabilidade em relação aos perigos a que se encontrava exposto, criando-lhe um ambiente mais seguro e menos hostil para desenvolver sua vida de um modo mais pleno, trouxe como conseqüência a criação de novos riscos globais que hoje se relevam como potencialmente devastadores. Não há dúvidas, assim, que em um momento pré-industrial o homem se encontrava consideravelmente mais exposto aos perigos que rondavam sua existência, como desastres naturais, variações climáticas, doenças e epidemias, etc. No entanto, estes eventos hipotéticos apenas se materializavam ocasionalmente, e, quando o faziam, eram imputados a fatores etéreos como o destino. Ademais, tais eventos possuíam uma incidência muito determinada, atingindo uma ou algumas pessoas, e prolongando-se por um curto período de tempo, de forma que nunca chegaram a assumir posições centrais nas preocupações da sociedade. Com o advento da primeira modernidade, e consequentemente de uma série de novas tecnologias desenvolvidas pelo homem pelo utilizar de sua razão, se 201 “A este respecto destaca Beck como diferencia esencial entre estos nuevos riesgos y las catástrofes y peligros anteriores a la industrialización, el hecho de que estos últimos se concebían como algo que sólo podía ser imputado al destino, a la naturaza o a los dioses”. MENDOZA BUERGO, Blanca. El Derecho Penal en la Sociedad Del Riesgo. Madrid: Civitas, 2001. p. 27. 202 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 52. 203 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 52. 72 por um lado efetivamente se obtiveram melhorias no âmbito de prevenção e controle de tais perigos, este progresso tecnológico trouxe consigo uma série de conseqüências nefastas que derivaram de sua utilização. Assim, em substituição àqueles perigos surgiram os novos riscos, que decorrem exclusivamente dos processos de tomada de decisão por outros homens quando do manejo ostensivo das modernas tecnologias.204 Assim, “se a modernidade criou mecanismos para dominar a natureza e controlar perigos e riscos, acabou dando causa ao surgimento de outros riscos, que escapam do controle de suas instituições”.205 Neste sentido, possível afirmar-se que os riscos de procedência humana apresentam-se hoje como “fenômeno social estrutural” 206 da sociedade contemporânea, já que não se vislumbra uma sociedade que possa renunciar à tomada de decisões, bem como decisões imunes de riscos. Neste sentido, explica Paulo Silva Fernandes que a tornar o panorama ainda mais preocupante, deve ter-se em conta que, quando a ocasionação de riscos é atribuída a decisões tomadas, estas, por vezes, levam ao tomar de novas decisões, as quais, por seu turno envolvem ainda a tomada de outras, como que a fazer lembrar uma ramificação ou bifurcação de decisões que, de per si, podem, também elas, 207 comportar riscos. De fato, o atual contexto societário é o de uma sociedade na qual a tomada de decisões é cada vez mais presente, e na qual o futuro está sujeito aos riscos causados pelas decisões tomadas hoje. Esta constatação, no seio da sociedade, aponta para a defectibilidade dos mecanismos modernos de controle e gerenciamento de riscos, bem como das instituições desenvolvidas e comprometidas a tais fins, as quais prometeram segurança e hoje se mostraram incapazes de propiciá-la. 204 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 29. 205 GIDDENS, Anthony apud MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 37. 206 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 29. 207 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “Sociedade de Risco” e o Futuro do Direito Penal: panorâmica de alguns problemas comuns. Coimbra: Almedina, 2001. p. 50. 73 Este desencantamento pela sociedade se dá em relação a todas estas instituições que falharam em seu compromisso pela segurança, ou seja, se dá em relação à ciência em si e a toda a burocracia racional que apenas legitimou a produção destes novos riscos, como os órgãos estatais e o direito.208 Importante perceber que não só os perigos, mas também os riscos sempre estiveram presentes na vida do homem, esteja este vivendo em sociedade ou em um suposto estado de natureza. Neste sentido, Beck formula uma série de questionamentos acerca desta questão, dentre os quais pode-se destacar o de se a criação de riscos não é algo inerente a atuação histórica do homem em sua evolução.209 De fato, Beck demonstra que os riscos sempre estiveram presentes ao lado do homem, no entanto, tais riscos não podem ser comparados com os riscos de hoje. Neste sentido: sem dúvida, os riscos não são uma invenção da Idade Moderna. Quem, como Colombo, partiu para descobrir novos países e continentes aceitou ‘riscos’. Mas se tratavam de riscos pessoais, e não das situações globais de ameaça que surgem para toda a humanidade com a fissão nuclear ou o armazenamento de lixo atômico. A palavra ‘risco’ tinha no contexto daquela época a conotação de coragem e aventura, não a da possível 210 autodestruição da vida na Terra [tradução livre]. Ademais, Beck afirma que outra diferença essencial entre os riscos de hoje e os riscos pretéritos reside no fato de que os novos riscos são dotados de uma característica de invisibilidade, posto que muitas vezes residem no âmbito de fórmulas químicas e micro-partículas, bem como pela sua globalidade, ou seja, o fato de não estarem necessariamente ligados ao lugar de seu surgimento, senão a todo o planeta.211 208 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 37. 209 BECK, Ulrich. La Sociedad del Riesgo: hacia una nueva modernidad. Trad. Jorge Navarro, et al. Barcelona: Paidós, 1998. p. 27. 210 “Sin duda, los riesgos no son um invento de la Edad Moderna. Quien, como Colón, partió para descubrir nuevos países y continentes acepto ‘riesgos’. Pero se trataba de riesgos personales, no de las situaciónes globales de amenaza que surgen para toda la humanidad com la fisión nuclear o el almacenamiento de basura atômica. La palavra ‘riesgo’ tenía en el contexo de esa época la connotación de coraje y aventura, no la de la posible autodestrucción de la vida en la Tierra”. BECK, Ulrich. La Sociedad del Riesgo: hacia una nueva modernidad. Trad. Jorge Navarro, et al. Barcelona: Paidós, 1998. p. 27. 211 BECK, Ulrich. La Sociedad del Riesgo: hacia una nueva modernidad. Trad. Jorge Navarro, et al. Barcelona: Paidós, 1998. p. 28. 74 Neste sentido, não se pode negar que a descoberta e manejo do fogo pelo homem, ou mesmo a construção das primeiras precárias embarcações, expuseram o homem a uma série de riscos. No entanto, os novos riscos derivados do progresso tecnológico industrial possuem algumas características que os diferem destes “velhos” riscos, bem como dos perigos. De fato, é justamente a existência destas peculiares características dos novos riscos que explica o porquê de somente agora terem os riscos se transformado em questão central, em que pese sempre ter existido na história social.212 Dentre os autores que buscaram analisar estas características, especial relevância deve ser dada a Marta Rodriguez de Assis Machado213, cujos apontamentos serão tratados a seguir. 3.2.2 Características dos Novos Riscos A primeira característica que diferencia os novos riscos e os torna peculiar é o fato de que estes novos riscos derivam necessariamente de decisões tomadas por pessoas ou organizações no âmbito industrial ou técnico-econômico. Estes riscos, como afirmado anteriormente, têm sua causa e origem em decisões humanas tomadas durante o manejo dos avanços tecnológicos, razão pela qual podem ser tachados como riscos artificiais, tecnológicos, ou fabricados.214 Ao contrário dos perigos, imputáveis a causas não-humanas, estes riscos necessariamente colocam em evidência o caráter auto-destrutivo e reflexivo dos processos de modernização. Sua segunda característica encontra-se no fato de que tais novos riscos surgem como efeitos colaterais indesejados do manejo de tais avanços tecnológicos surgidos no processo de modernização. Neste sentido, por consistirem em conseqüências secundárias do progresso técnico-científico, tratam-se de 212 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 38. 213 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. pp. 38-51. 214 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 39. 75 fenômenos indesejados, imprevisíveis ou, ao menos, imprevistos, e que, portanto, não foram objeto de valoração no momento da tomada da decisão.215 Neste sentido, “são conseqüências secundárias (...) do progresso tecnológico, constituem sempre efeitos indesejados, ao menos não previstos e as vezes imprevisíveis de um atuar humano [tradução livre]”.216 Esta característica de acessoriedade dos novos riscos revela a falibilidade da razão técnico-científica, uma vez que os riscos tratam-se, sempre, de efeitos colaterais de decisões humanas inicialmente voltadas a fins positivamente valorados. Como terceira característica destes novos riscos está o fato de que frequentemente estes são gerados no manejo de avanços tecnológicos mais complexos e mais desenvolvidos, como no manejo de energia nuclear ou química ou de substâncias tóxicas ou radioativas, causando seus danos desde logo e de forma sistemática, mas, concomitantemente, permanecendo invisíveis por longos períodos de tempo. De fato, na maior parte dos casos, os novos riscos à saúde e à natureza subtraemse por completo da percepção e do conhecimento comum. São eventos que, para se tornarem visíveis e serem interpretados como riscos, demandam a constatação objetiva dos experts e de suas teorias, 217 experimentos, instrumentos de medição etc. Nestes casos, estes riscos e suas danosas conseqüências permanecem imperceptíveis ao conhecimento humano por longo período de tempo, apenas sendo constatados em momento consideravelmente posterior ao seu início, quando adentram a esfera de conhecimento, primeiramente, dos experts da área, para só em um terceiro momento chegarem ao conhecimento geral. Ademais, relativamente a esta característica dos novos riscos, importante perceber que os mesmo apenas poderão ser conhecidos e percebidos 215 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 39. 216 “son consecuencias secundarias (…) del progreso tecnológico, constituyen siempre efectos indeseados, a menudo no previstos y a veces imprevisibles de un actuar humano”. MENDOZA BUERGO, Blanca. El Derecho Penal en la Sociedad Del Riesgo. Madrid: Civitas, 2001. p. 27. 217 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 39. 76 como tal após o término de seu período de latência, ou seja, após a efetiva materialização de seus danos. Neste sentido, Beck ensina que muitos dos novos riscos (...) subtraem-se por completo da percepção humana imediata. Ao centro passam cada vez mais os perigos que, ao menos para os afetados, não são visíveis nem perceptíveis, perigos que em certos casos não se ativam durante a vida dos afetados, mas na de seus descendentes; trata-se em todo o caso de perigos que precisam dos ‘órgãos perceptivos’ da ciência (...) para fazerem-se ‘visíveis’, 218 interpretáveis, como perigos [tradução livre]. Relevante ainda é o fato de que parcela significativa dos novos riscos produz-se através da prática reiterada de condutas que, individualmente, mostramse inofensivas e que, muitas vezes, encontram-se adequadas a padrões técnicos de admissibilidade e regularidade, o que torna a produção dos riscos invisível e incontrolada.219 Não menos importante é o fato de que, estando o conhecimento público destes riscos condicionados, num primeiro momento, à percepção destes riscos pelos experts e, num segundo momento, à sua revelação pública pelos detentores do conhecimento técnico, é sempre presente a possibilidade de que entre estes dois momentos operem-se forças políticas e sociais que venham a, de qualquer forma, transformar, ampliar, reduzir, dramatizar ou minimizar a importância e a real magnitude dos mesmos, em atendimento a interesses diversos.220 A quarta característica destes novos riscos radica na sua freqüente indeterminação espacial e temporal, bem como em possuírem um potencial destrutivo altamente superior aos dos velhos riscos e perigos.221 De fato, tal característica potencializa-se cada vez mais em virtude dos grandes avanços em 218 “Muchos de los nuevos riesgos (...) se sustraen por completo a la percepción humana inmediata. Al centro pasan cada vez más los peligros que a menudo para los afectados no son visibles ni perceptibles, peligros que en ciertos casos no se activan durante la vida de los afectados, sino em la de sus descendietes; se trata en todo caso de peligros que precisam de los ‘órganos perceptivos’ de la ciencia (...) para hacerse ‘visibles’, interpretables, como peligros”. BECK, Ulrich. La Sociedad del Riesgo: hacia una nueva modernidad. Trad. Jorge Navarro, et al. Barcelona: Paidós, 1998. p. 33. 219 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “Sociedade de Risco” e o Futuro do Direito Penal: panorâmica de alguns problemas comuns. Coimbra: Almedina, 2001. p. 66. 220 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 40. 221 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 40. 77 direção a um mercado internacional sem fronteiras, onde a circulação de pessoas e produtos ocorre em proporções nunca antes vistas. Neste contexto, os novos riscos possuem como potenciais alvos de suas ameaças um número indeterminado e enorme de pessoas, já que os novos avanços tecnológicos rapidamente se espalham por todo o globo, de forma que têm a capacidade de produzir conseqüências danosas que não terão sua experimentação vinculada ao local e tempo de seu surgimento. Neste sentido, “daqui para frente, nada que venha a acontecer em nosso planeta será um fenômeno espacialmente delimitado, mas o inverso: que todas as descobertas, triunfos e catástrofes afetam a todo o planeta”.222 Como exemplo desta desvinculação dos riscos ao fator tempo/espaço, cita-se o caso da Encefalopatia Espongiforme Bovina, que atingiu inicialmente o Reino Unido, mas produziu efeitos em todo o mercado mundial de carne, sendo impossível delimitar-se, ao certo, quantos países foram e ainda serão afetados, bem como quais serão suas conseqüências a médio e longo prazo, seja em eventual mutação da moléstia, seja em pessoas que tenham ou venham a eventualmente ingerir carne contaminada.223 Da mesma forma, consistindo, os novos riscos, em verdadeiros efeitos colaterais, suas manifestações concretas não se ligam às suas causas através de uma relação de imediatidade, podendo estes novos riscos permanecer adormecidos por grandes períodos de tempo. De fato, é possível e inclusive provável que boa parte dos riscos derivados do processo de modernização que tomou corpo nos últimos séculos estejam ainda em fase de encubação, para virem a efetivamente manifestar-se apenas no futuro. Neste sentido, Paulo Silva Fernandes aponta que “os efeitos destes riscos arrastam-se por períodos de tempo por vezes muito longos, chegando mesmo a repercutir-se transgeracionalmente”.224 A quinta característica de tais riscos é a sua insegurabilidade por meio dos tradicionais mecanismos e regras securitárias, estatísticas e monetárias. 222 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 40. 223 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 41. 224 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “Sociedade de Risco” e o Futuro do Direito Penal: panorâmica de alguns problemas comuns. Coimbra: Almedina, 2001. p. 60. 78 Sobre esta característica, Marta Rodriguez de Assis Machado ensina que em contraste com os riscos conhecidos da era industrial, os novos riscos não são delimitáveis nem no tempo nem no espaço, não podem ser tratados segundo as regras estabelecidas da causalidade e da culpa e, além disso, dificilmente podem ser compensados ou indenizados, quer porque suas conseqüências não podem ser delimitadas, quer porque o desastre atinge dimensões tão grandes que nenhuma companhia de 225 seguros seria capaz de arcar com o custo indenizatório. Tal insegurabilidade destes novos riscos decorre justamente de sua indeterminabilidade nos aspectos temporais e espaciais. De fato, considerando-se que os danos advindos dos novos riscos não se limitam territorialmente, seus efeitos podem ser sentidos em todo o globo e por toda a humanidade, de forma que qualquer pretensão de identificar todas as vítimas ou mesmo de quantificar monetariamente o tamanho do dano resta prejudicada. De fato, estes riscos possuem “dimensões globais, cujos efeitos destrutivos, se concretizados, não poderão ser limitados e, na maior parte dos casos, ocasionarão danos irreparáveis. Em virtude disso, o conceito da compensação monetária torna-se inadequado”.226 Da mesma forma, em virtude das características especiais destes novos riscos, dentre os quais sua desvinculação temporal, os efeitos destes riscos não podem ter suas causas identificadas através de regras rígidas de causalidade, e, consequentemente, a eles não podem ser aplicadas os tradicionais mecanismos de imputação de culpa e responsabilidade. Neste sentido: durante a vigência da sociedade industrial, era possível estabelecer um padrão de regularidade e normalidade, o que permitia construir conexões entre os acontecimentos, imputar causalidades e elaborar descrições que tornam manifesta a cadeia de conexões entre os acontecimentos. Entretanto, na época da sociedade do risco, esses padrões de normalidade são fragmentados: não são mais confiáveis como vetores de previsibilidade e calculabilidade, pois se reconhece a existência de contingências e 227 indeterminações, não mais possíveis de serem controladas. 225 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 41. 226 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 58. 227 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 41. 79 Sua sexta característica relaciona-se com a já referida possibilidade de tais novos riscos resultarem em uma destruição coletiva da sociedade. De fato, ao falar-se de uma potencial destruição coletiva, a lógica seria pensar-se que estes efeitos colaterais hipoteticamente atingiriam a sociedade de forma igualitária. Em que pese esta lógica esteja correta, esta afetação igualitária da sociedade apenas se produziria como uma tendência de longo prazo. Neste sentido, Marta Rodriquez de Assis Machado afirma que se é verdade que as conseqüências dos riscos não poderiam ser limitadas a uma classe ou grupo social e que, em última instância, não há como evitar que os riscos venham a atingir também aqueles que os produzem e se beneficiam deles – fenômeno denominado por Beck de ‘efeito bumerangue’ -, também é certo que, na sociedade mundial do risco, existe uma classe proletariada que, invariavelmente, sofre com mais força os 228 efeitos perversos do desenvolvimento industrial. Sobre o efeito bumerangue, Beck explica que certamente, em algumas dimensões estas [as situações sociais de risco] seguem a desigualdade das situações de classes e camadas, mas fazem valer uma lógica de divisão essencialmente diferente: os riscos da modernização afetam mais cedo ou mais tarde também quem os produzem ou se beneficiam deles. Contém um efeito bumerangue que faz cair por 229 terra o esquema de classes [tradução livre]. De fato, em que pese os efeitos danosos decorrentes dos novos riscos não se limitem a potencialmente ameaçar determinada classe social ou determinado país ou região, é certo também que as camadas sociais mais baixas e as regiões menos desenvolvidas estão mais expostas a sofrerem com estes novos riscos e seus efeitos. Neste sentido, “há uma associação sistemática entre as situações de pobreza e as de risco extremo, que pode ser corroborada pela ocorrência de acidentes de grandes proporções em países de Terceiro Mundo”.230 228 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 42. 229 “Ciertamente, en algunas dimensiones éstas siguen a la desigualdad de las situaciones de clases y de capas, pero hacen valer una lógica de reparto esencialmente diferente: los riesgos de la modernización afectan más tarde o más temprano también a quienes los producen o se benefician de ellos. Contienen un efecto bumerang que hace saltar por los aires el esquema de clases”. BECK, Ulrich. La Sociedad del Riesgo: hacia una nueva modernidad. Trad. Jorge Navarro, et al. Barcelona: Paidós, 1998. p. 29. 230 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 42. 80 Na mesma linha, Beck ensina que “a história da divisão dos riscos mostra que estes seguem, assim com as riquezas, o esquema de classes, mas ao contrário: as riquezas se acumulam em cima, os riscos em baixo [tradução livre]”. 231 Esta desigualdade se dá em decorrência de que as atividades industriais com maiores riscos, propositadamente ou por questões de contingência, progressivamente migraram e migram para as regiões mais pobres do globo, expondo tais regiões aos riscos mais imediatos de suas atividades, como os riscos decorrentes da emissão de gases poluentes e resíduos tóxicos. Ademais, em virtude de uma globalização voraz e excludente, tais regiões enfrentam ainda o problema de não possuírem acesso às mais avançadas tecnologias, de forma que sua tardia industrialização se dá através da implantação conjunta de atividades industriais altamente arriscadas e de tecnologias ultrapassadas e com altos índices de riscos, tudo isso somado a um sistema técnico-burocrático de segurança e controle altamente ineficiente.232 Neste sentido, Beck coloca que o proletariado da sociedade mundial de risco vive sob as chaminés, junto das refinarias e fábricas químicas nos centros industriais do Terceiro Mundo. (...) As indústrias com risco foram transferidas aos países de baixa renda. Isto não é uma causalidade. Existe uma “força de atração” sistemática entre a pobreza extrema e os riscos extremos [tradução 233 livre]. De fato, fica evidente que os efeitos mais imediatos dos novos riscos globais tendem a concentrar-se na periferia global, de forma que apenas a longo prazo passam a afetar as classes privilegiadas e os países centrais. A sétima característica destes novos riscos está no seu conteúdo político explosivo. A partir do momento em que a modernidade reflexiva atinge sua etapa de reflexão e a questão dos riscos galga espaço no cenário público de discussões, o planejamento estratégico industrial, antes limitado exclusivamente ao 231 “la historia del reparto de los riesgos muestra que éstos siguen, al igual que las riquezas, el esquema de clases, pero al revés: las riquezas se acumulan arriba, los riesgos abajo”. BECK, Ulrich. La Sociedad del Riesgo: hacia una nueva modernidad. Trad. Jorge Navarro, et al. Barcelona: Paidós, 1998. p. 41. 232 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 43. 233 “El proletariado de la sociedad mundial de riesgo vive bajo las chimeneas, junto a las refinerías y las fábricas químicas en los centros industriales del Tercer Mundo. (…) Las industrias con riesgo se han trasladado a los países de sueldo bajos. Esto no es causalidad. Hay una ‘fuerza de atracción’ sistemática entre la pobreza extrema y los riesgos extremos”. BECK, Ulrich. La Sociedad del Riesgo: hacia una nueva modernidad. Trad. Jorge Navarro, et al. Barcelona: Paidós, 1998. p. 47. 81 âmbito privado das corporações, passa a sofrer cada vez maiores interferências externas da opinião pública. A eminência dos novos riscos provoca uma disputa pública na questão das definições dos riscos e de mecanismos de controle e prevenção, resultando, em boa parte, em uma reorganização do poder.234 A oitava e última característica destes novos riscos apontada por Marta Rodriguez de Assis Machado é de os mesmos poderem ser classificados em três espécies, segundo classificação proposta por Beck. Tal autor propõe que os novos riscos podem ser de três distintas espécies: riscos de perigos globais, riscos que resultam da pobreza, e riscos de armas de alto poder destrutivo. Por riscos de perigos globais entendem-se aqueles riscos que surgem como conseqüências indesejadas condicionadas ao desenvolvimento técnicoindustrial mais avançado, sobretudo como efeitos colaterais potencialmente lesivos ao meio-ambiente. Dentre esta espécie de riscos, pode-se citar a destruição da camada de ozônio, o efeito estufa, os riscos decorrentes da manipulação de energia nuclear e indústrias químicas.235 Estes riscos possuem como causa o manejo das tecnologias de ponta, ou seja, dos avanços científicos mais modernos, e, por tal razão, se relacionam de forma mais direta com as sociedades altamente industrializadas, como os países de primeiro mundo. São, nas palavras de Beck, os riscos de “destruição ecológica e perigos tecnológico-industriais motivados pela riqueza [tradução livre]”.236 Estes riscos se identificam, sobretudo, pela impossibilidade de sua imediata percepção pela sociedade, já que apenas podem vir a ser constatados por meio de pesquisas científicas também tecnicamente avançadas.237 Os riscos que resultam da pobreza, por sua vez, consistem em uma classe de riscos de destruição ecológica que resultam não do manejo de técnicas industriais avançadas, mas, ao contrário, do manejo de tecnologias pertencentes a um processo inconcluso de industrialização. Tratam-se de tecnologias ultrapassadas 234 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 44. 235 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 45. 236 “desctrucción ecológica y peligros tecnológico-industriales motivados por la riqueza”. BECK, Ulrich. La Sociedade del Riesgo Global. Trad. Jesús Alborés Rey. Madrid: Siglo Veintiuno de España Editores, 2002. p. 54. 237 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 45. 82 ou de tamanha potencial danosidade que foram abandonadas pelos países centrais e exportadas aos países periféricos de industrialização tardia e incompleta. São justamente os riscos oriundos de elevados índices de emissão de gases poluentes e resíduos tóxicos, de acidentes em usinas químicas e nucleares, derramamentos de óleo ou substâncias afins, ou qualquer outro acidente relacionado a produtos perigosos: inflamáveis, tóxicos, radioativos, etc. De fato, explica Marta Rodriguez de Assis Machado que enquanto as destruições ambientais condicionadas pela riqueza distribuem-se, desde logo, de maneira equânime pelo globo, as destruições ambientais condicionadas pela pobreza incidem inicialmente sobre uma mesma e única região e se internacionalizam a médio prazo sob a forma de efeitos 238 secundários. Este grupo de riscos que resultam da pobreza demonstram bem a idéia de que em que pese a sociedade de risco superar o modelo industrial de sociedade de classes, ante a globalização de seus efeitos nocivos a médio e longo prazo, a curto prazo as regiões mais pobres do globo estão mais sujeitas aos efeitos imediatos dos riscos derivados de processos técnico-industriais obsoletos e ultrapassados, bem como de atividades altamente lesivas e que não são mais bemvindas nos países centrais. Por fim, na classificação proposta por Beck, aparecem os riscos derivados da utilização de armas de alto poder destrutivo, tais como armas químicas, biológicas e nucleares, que escaparam as esferas de controle de seus construtores, as antigas superpotências bélicas, tornando-se uma ameaça destrutiva difundida nas mãos de um sem número de entidades públicas e privadas. Neste sentido, juntamente à ameaça de conflito militar ente estados, agora também paira a ameaça do fundamentalismo ou do terrorismo privado. Cada vez é mais provável que a posse privada de armas de destruição em massa e o potencial que proporcionam para o terror político se convertam em uma 239 nova fonte de perigos na sociedade de risco global [tradução livre]. 238 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 45. 239 “Junto a la amenaza de conflicto militar entre estados, ahora también se cierne la amenaza del fundamentalismo o el terrorismo privado. Cada vez es más probable que la posesión privada de armas de destrucción masiva y el potencial que proporcionan para el terror político se convierta en una nueva fuente de peligros en la sociedad del riesgo global”. BECK, Ulrich. La Sociedade del Riesgo Global. Trad. Jesús Alborés Rey. Madrid: Siglo Veintiuno de España Editores, 2002. p. 56. 83 Assim, sua utilização torna-se iminente não apenas em conflitos militares entre Estados, mas também em operações terroristas e paramilitares de ordem tanto públicas quanto privadas.240 Não obstante tal classificação, Marta Rodriguez de Assis Machado propõe uma distinta classificação dos novos riscos, mais “ligada ao entendimento da dinâmica de seu aparecimento e (...) que se reporta ao funcionamento de um dos mecanismos utilizados para a prevenção e controle dos riscos tecnológicos”.241 Propõe a autora sejam os novos riscos classificados em riscos ecológicos cumulativos, riscos decorrentes de acidentes em sistemas e atividades que envolvem tecnologias de alto risco e que têm um alto potencial destrutivo, e riscos de acidentes em sistemas complexos. O primeiro grupo, dos riscos ecológicos cumulativos, englobaria tanto as espécies dos riscos de perigos globais (decorrentes da riqueza) quanto os riscos que resultam da pobreza propostos por Beck. Tratam-se dos riscos que correspondem ao “conjunto de fenômenos que surgem como conseqüências negativas da realização de processos repetitivos ao longo do período de desenvolvimento industrial”.242 Em outras palavras, tratam-se dos efeitos colaterais derivados da utilização massiva, repetitiva e prolongada de processos e tecnologias industriais, cuja produção não se liga a um ou outro evento individualmente determinado, mas à acumulação desses processos ao longo do tempo. Neste sentido, a característica básica desses riscos é a de que o efeito de cada processo avaliado individualmente não apresenta relevância, mas a acumulação dessas liberações ao longo dos anos acabou gerando graves 243 conseqüências que, quando percebidas, alarmaram a opinião pública. Exemplos destes riscos são a destruição da camada de ozônio, o efeito estufa, a poluição do ar, a contaminação das águas, a acumulação de lixo tóxico, o desmatamento, etc. 240 MACHADO, Marta Rodriguez IBCCRIM, 2005. pp. 46-47. 241 MACHADO, Marta Rodriguez IBCCRIM, 2005. p. 47. 242 MACHADO, Marta Rodriguez IBCCRIM, 2005. p. 47. 243 MACHADO, Marta Rodriguez IBCCRIM, 2005. pp. 47-48. de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: 84 O segundo grupo dos novos riscos é o de riscos decorrentes de acidentes em sistemas e atividades que envolvem tecnologias de alto risco e que têm um alto potencial destrutivo, como, por exemplo, sistemas de usinas nucleares, indústrias químicas e petroquímicas, fabricação de armamento químico, nuclear e biológico, controle de tráfego aéreo, missões espaciais, engenharia genética, etc. Tais atividades, em virtude de sua própria natureza, estão sujeitas à ocorrência de acidentes de largas proporções, acidentes estes cujas causas imputam-se à inobservância de regras técnicas de cuidado e vigilância, à utilização de tecnologias ou equipamentos ultrapassados, ou à falta de desenvolvimento de procedimentos ou sistemas de segurança adequados. A principal característica destes acidentes está na inexistência de maiores dificuldades para a determinação, em cada caso concreto, das suas causas, e, muitas vezes, inclusive, do responsável ou responsáveis por tais acidentes.244 O terceiro grupo de riscos é aquele de riscos de acidentes em sistemas complexos. O que torna estes riscos peculiares é o fato de que tais acidentes não podem ter suas causas facilmente determinadas como o podem os riscos do grupo anterior. Estes acidentes ocorrem em uma freqüência drasticamente menor, mas possuem um elevado potencial catastrófico. Estes riscos, nas palavras de Marta Rodriguez de Assis Machado, ocorrem em sistemas complexos, que lidam com tecnologias arriscadas e suas origens estão quase sempre ligadas a articulações ímpares de causas e eventos, imputáveis à própria complexidade interativa e associativa 245 desses sistemas. De fato, estes riscos decorrem de acidentes em sistemas tecnológicos complexos derivados de articulações excepcionais de cadeias causais, imputáveis exclusivamente à própria complexidade interna inerente a esses sistemas. Tal sucessão trágica de eventos “não pode ser imputada a uma determinada atitude dolosa, a uma decisão específica de um funcionário ou de um diretor ou mesmo a uma violação a normas de cuidado e vigilância”.246 244 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 48. 245 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 48. 246 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 50. 85 Assim, estes acidentes são frutos da conexão de uma série de eventos absolutamente inesperada e imprevisível, a qual não se poderia prevenir ou evitar. Efetivamente, em que pese seja possível, por vezes, identificar-se a existência de falhas humanas em suas cadeias causais, estes acidentes apenas ocorrem em virtude da combinação dessas eventuais falhas com a ocorrência de outras situações, como a inoperância de mecanismos de segurança.247 O risco de tais acidentes, verdadeiramente, é algo que jamais pode ser suprimido da própria natureza de tais sistemas. Neste sentido, por estarem intrinsecamente ligados à própria natureza do funcionamento destes sistemas complexos, tais riscos podem receber a denominação de riscos normais, não pela freqüência com que ocorrem, posto que esta é extremamente baixa, mas por serem uma característica inerente do sistema em sua complexidade. De fato, em que pese tais sistemas complexos tenham sido criados e organizados por meio de uma decisão humana voluntária, a ocorrência fática destes acidentes é algo que apenas pode-se imputar ao destino ou ao acaso, visto que pressupõe, via de regra, a concatenação de uma série de fatores improváveis e isolados entre si.248 Explicados os três grupos em que podem ser classificados os riscos, Marta Rodriguez de Assim Machado retira algumas conclusões: Quanto às origens dos novos riscos, enquanto os riscos decorrentes de acidentes em sistemas e atividades que envolvem tecnologias de alto risco e que têm um alto potencial destrutivo e os riscos de acidentes em sistemas complexos emergem de situações excepcionais, seja pela utilização de tecnologias ultrapassadas ou pela inobservância de regras técnicas, seja por falhas operacionais imprevisíveis e inevitáveis em sistemas complexos, os riscos ecológicos cumulativos, de outro lado, surgem em um contexto de pleno e normal funcionamento das estruturas tecnicamente avançadas. De fato, no caso deste específico grupo, “é comum, inclusive, que as condutas avaliadas individualmente sejam lícitas e livres de danosidade”.249 247 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. pp. 48-49. 248 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 50. 249 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 50. 86 Por outro lado, no que toca à verificação da relação de causalidade de tais riscos, enquanto nos riscos decorrentes de acidentes em sistemas e atividades que envolvem tecnologias de alto risco e que têm um alto potencial destrutivo a causalidade se apresenta passível de ser determinada, inclusive podendo-se muitas vezes individualizar os seus responsáveis, nos riscos ecológicos cumulativos e nos riscos de acidentes em sistemas complexos, em virtude de suas peculiares estruturas, não se é possível proceder à determinação da causalidade. Neste sentido, nos riscos ecológicos cumulativos, como estes decorrem da prática massificada e reiterada de comportamentos, e ainda como o resultado danoso apenas pode ser constatado muito tempo depois de tais práticas, torna-se impossível e irrealizável qualquer pretensão de se identificar todas as condutas que deram causa ao resultado ou, da mesma forma, todos os indivíduos que concorreram em sua produção. De fato, sobre estes riscos, como aparecem após muito tempo da prática iterativa e massificada de determinadas condutas, é difícil que se saiba ao certo o conjunto de condutas que contribuiu para o surgimento do resultado e muito menos 250 provável a identificação de todos os seus causadores. Da mesma forma, nos riscos de acidentes em sistemas complexos, embora se possa visualizar claramente o resultado e os eventos que lhe deram causa, a regra é que não se vislumbre a ocorrência de falha ou negligência humana de pessoa certa, de forma que a responsabilidade por sua ocorrência resta imputada apenas à própria complexidade da estrutura organizacional do sistema. Estas características identificadas por Marta Rodriguez de Assis Machado bem demonstram a complexidade destes novos riscos surgidos como efeitos colaterais do caminhar da modernidade em sua evolução pautada pela fé nas premissas da razão tecno-científica. De fato, o surgimento destes novos riscos, de forma silenciosa em um primeiro momento, e, em um segundo momento, emergindo à percepção social, revela a imperfeição e a falibilidade de todo um conjunto de instituições modernas as quais se orgulhavam justamente de terem propiciado ao homem melhores condições de vida e maior controlabilidade da natureza. 250 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 50. 87 A percepção destes novos riscos, assim, faz surgir um novo modelo social, onde a modernidade deixa de ser vista de forma acrítica através de uma fé cega em suas afirmações, e onde a sociedade passa a contestar boa parte aquilo que antes tinha como verdade absoluta. 3.3 DAS CRISES DA SOCIEDADE DE RISCO E DA CONFIGURAÇÃO DA SOCIEDADE DA INSEGURANÇA SENTIDA A aparição dos novos riscos como conseqüências indesejadas e nãoperseguidas do processo de modernização traz uma série de crises para a sociedade moderna. São justamente estas crises que vão significar a extinção da sociedade industrial e sua transformação em uma sociedade de risco. A sociedade de risco, assim, não tem sua característica essencial no surgimento dos novos riscos globais, mas nas conseqüências que este surgimento provoca na sociedade humana. Neste sentido, quer parecer que o fator determinante para o surgimento da sociedade de risco está mais na reflexão do que na reflexividade. De fato, uma das principais crises da sociedade de risco é a perda pela ciência de sua credibilidade e status de fonte principal de repostas e soluções. 3.3.1 A Perda de Credibilidade pela Ciência Giddens, em sua obra As Conseqüências da Modernidade, faz referência a “mecanismos de desencaixe” como fatores essenciais ao desenvolvimento da modernidade, e, da mesma forma, como essenciais aos problemas relativos à sociedade de risco. Desta forma, importante é analisar-se o que ensina este autor. Para Giddens, um dos traços mais marcantes da modernidade, senão o mais marcante, é a transformação da relação existente entre tempo e espaço. 88 Segundo o autor, nos tempos pré-modernos, tempo e espaço sempre estiveram intimamente ligados. De fato, a própria medição do tempo nas épocas prémodernas era extremamente variável entre os vários grupos humanos, de forma que a própria medição do tempo apenas existia se referenciada a marcadores sócioespaciais.251 É apenas com a modernidade, e com a criação e difusão do relógio mecânico no final do século XVIII, que passa a existir uma medição padrão do tempo e uma separação do tempo de fatores espaciais. A difusão do relógio mecânico permitiu uma padronização da medição do tempo e, consequentemente, uma padronização dos calendários, permitindo assim uma desvinculação do tempo de fatores espaciais locais.252 Segundo Giddens, nas sociedades pré-modernas, espaço e tempo coincidem amplamente, na medida em que as dimensões espaciais da vida social são, para a maioria da população, e para quase todos os efeitos, dominadas pela ‘presença’ – por atividades localizadas. O advento da modernidade arranca crescentemente o espaço do tempo fomentando relações ente outros 253 ‘ausentes’. Ademais, a desvinculação entre tempo e espaço fornece bases confiáveis para a sua recombinação e possibilita toda uma gama de atividades sociais. Neste sentido, Giddens utiliza-se do exemplo das tabelas de horários de trens, exemplo que poderia facilmente ser adaptado a outros meios de transporte. Segundo o autor, as tabelas de horários de trens não se tratam simplesmente de um mapa temporal, mas sim de um dispositivo de ordenação do tempo e do espaço, indicando quando cada trem está em determinado lugar e onde cada trem está em determinado momento, permitindo uma complexa coordenação social na utilização destes.254 251 GIDDENS, 1991. p. 25. 252 GIDDENS, 1991. p. 25. 253 GIDDENS, 1991. p. 27. 254 GIDDENS, 1991. p. 28. Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Trad. Raul Filker. São Paulo: UNESP, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Trad. Raul Filker. São Paulo: UNESP, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Trad. Raul Filker. São Paulo: UNESP, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Trad. Raul Filker. São Paulo: UNESP, 89 Assim, Giddens trabalha a separação entre tempo e espaço como fator crucial para o dinamismo da modernidade, sobretudo como condição essencial aos mecanismos de desencaixe. Neste sentido, a separação entre tempo e espaço e sua formação em dimensões padronizadas, ‘vazias’, penetram as conexões entre a atividade social e seus ‘encaixes’ nas particularidades dos contextos de presença. As instituições desencaixadas dilatam amplamente o escopo do distanciamento tempo-espaço e, para ter este efeito, dependem da 255 coordenação através do tempo e do espaço. O distanciamento tempo-espaço, assim, funciona como base para o surgimento de mecanismos de desencaixe, essenciais ao processo de modernização da sociedade. Giddens conceitua desencaixe como o “‘deslocamento’ das relações sociais dos contextos locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço”.256 Segundo o autor, dois mecanismos de desencaixe foram essenciais ao desenvolvimento das instituições modernas: as fichas simbólicas e os sistemas peritos.257 O primeiro desses mecanismos de desencaixe, as fichas simbólicas, referem-se a “meios de intercâmbio que podem ser ‘circulados’ sem ter em vista as características específicas dos indivíduos ou grupos que lidam com eles em qualquer conjuntura particular”.258 Como exemplo de ficha simbólica pode-se citar o dinheiro. De fato, sem adentrar em qualquer discussão mais profunda acerca da natureza do dinheiro, este se trata de um instrumento que visa possibilitar a realização de transações comerciais quando o escambo, ou seja, a troca imediata e presencial de produtos não é possível. Neste sentido, “o dinheiro é um meio de distanciamento tempo-espaço. O dinheiro possibilita a realização de transações entre agentes amplamente separados no tempo e no espaço”.259 255 GIDDENS, 1991. p. 28. 256 GIDDENS, 1991. p. 29. 257 GIDDENS, 1991. p. 30. 258 GIDDENS, 1991. p. 30. 259 GIDDENS, 1991. p. 32. Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Trad. Raul Filker. São Paulo: UNESP, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Trad. Raul Filker. São Paulo: UNESP, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Trad. Raul Filker. São Paulo: UNESP, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Trad. Raul Filker. São Paulo: UNESP, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Trad. Raul Filker. São Paulo: UNESP, 90 O segundo grupo de mecanismos de desencaixe é aquele que Giddens denomina de sistemas peritos. Nas palavras do autor, “por sistemas peritos quero me referir a sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje”.260 De fato, durante a modernidade, o homem esteve e está em permanente contato com sistemas nos quais estão integrados uma série de conhecimentos técnicos especializados, sistemas estes sobre os quais o cidadão não possui nenhum conhecimento perito, e em cujo funcionamento deposita sua confiança. Neste sentido, ao estar simplesmente em casa, estou envolvido num sistema perito, ou numa série de tais sistemas nos quais deposito minha confiança. Não tenho nenhum medo específico de subir as escadas da moradia, mesmo considerando que sei que em princípio a estrutura pode desabar. Conheço muito pouco os códigos de conhecimento usados pelo arquiteto e pelo construtor no projeto de construção da casa, mas não obstante tenho ‘fé’ no que eles fizeram. Minha ‘fé’ não é tanto neles, embora eu tenha que confiar em sua competência, como na autenticidade do conhecimento 261 perito que eles aplicam. De fato, vivendo em modernidade, o homem está cercado por uma série de instrumentos e situações das quais possui pouco ou nenhum conhecimento técnico. No entanto, valendo-se de regras de experiência, confia na autenticidade e fidedignidade dos conhecimentos aplicados pelos peritos que criaram tais instrumentos e situações. Neste sentido, importante perceber que a confiança é depositada de forma principal não no perito, no especialista, mas sim no próprio sistema perito. Desta forma, os sistemas peritos atuam como verdadeiro mecanismo de desencaixe, pois, assim, como as fichas simbólicas, possibilitam a existência de relações sociais entre sujeitos ausentes e distanciados. De fato, “um sistema perito desencaixa da mesma forma que uma ficha simbólica, fornecendo ‘garantias’ de expectativas através de tempo-espaço distanciados”.262 260 GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Trad. Raul Filker. São Paulo: UNESP, 1991. p. 35. 261 GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Trad. Raul Filker. São Paulo: UNESP, 1991. p. 35. 262 GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Trad. Raul Filker. São Paulo: UNESP, 1991. p. 36. 91 Neste sentido, os mecanismos de desencaixe, sejam as fichas simbólicas ou os sistemas peritos, essenciais à modernidade, dependem fundamentalmente da confiança depositada pela sociedade em si. Esta confiança, ademais, é, em parte, um artigo de fé, que se baseia em regras de experiência que afirmam que tais sistemas normalmente funcionam como se espera que funcionem.263 De fato, quando, em uma relação comercial, alguém aceita como pagamento determinada quantia de dinheiro, sua confiança está depositada não na pessoa do pagador, mas sim no dinheiro enquanto ficha simbólica de um crédito corresponde a seu valor nominal que será amplamente aceito por outras pessoas. Sobre a noção de confiança, Giddens, afastando-se expressamente da concepção de Luhmann, argumenta que esta se relaciona sempre a um fator de ausência do outro no tempo e no espaço. Neste sentido, afirma que não haveria necessidade de se confiar em alguém cujas atividades fossem continuamente visíveis e cujos procedimentos de pensamento fossem transparentes, ou de se confiar em algum sistema cujos processos de 264 pensamento fossem inteiramente conhecidos e compreendidos. De fato, apenas há falar-se em confiança quando se está diante de uma relação marcada pela falta de conhecimento pleno, ou, em outras palavras, por uma relação marcada pela fé na credibilidade de algo. Neste sentido, importante verificar que, como aponta Giddens, “toda confiança é num certo sentido confiança cega”265, uma vez que significa a fé em algo sobre o qual não se tem nem conhecimento e, muito menos, domínio. Estes mecanismos de desencaixe, e a confiança que conquistaram, foram essenciais para o desenvolvimento da modernidade, sobretudo ante a crescente especialização do conhecimento científico no mundo moderno, de forma que “a natureza das instituições modernas está profundamente ligada aos 263 GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Trad. Raul Filker. São Paulo: UNESP, 1991. p. 36. 264 GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Trad. Raul Filker. São Paulo: UNESP, 1991. p. 40. 265 GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Trad. Raul Filker. São Paulo: UNESP, 1991. p. 41. 92 mecanismos da confiança em sistemas abstratos, especialmente confiança em sistemas peritos”.266 Importante verificar que a confiança nestes sistemas peritos, via de regra, não representa uma escolha voluntária do indivíduo. Afinal, por que confiarse-ia em um conjunto de prescrições sobre as quais não se tem nenhum conhecimento? Em resposta a esta questão, Giddens dá especial destaque à formação educacional do cidadão. Neste sentido, “o que é transmitido à criança no ensino da ciência não é apenas o conteúdo das descobertas técnicas mas, mais importante para as atitudes sociais gerais, uma aura de respeito pelo conhecimento técnico de todos os tipos”.267 Assim, desde cedo o cidadão é levado a criar uma relação de confiança nos sistemas peritos, através de sua iniciação aos princípios mais básico da ciência, onde se lhe demonstra a credibilidade não só de tais informações, mas do que está por de trás dela, ou seja, da ciência como sistema perito. Com isso, a ciência como sistema perito tem mantido uma imagem de credibilidade e de fidedignidade de suas premissas e conhecimentos, o que desencadeia uma atitude de respeito e, principalmente, de confiança para com a maioria das formas de conhecimentos peritos.268 Ademais, a confiança depositada nos mecanismos de desencaixe, e, aqui de forma mais relevante, nos sistemas peritos, acaba sendo incorporada ao diaa-dia da sociedade, e, de forma progressiva se renova e reforça conforme os contatos com os sistemas peritos se tornam cada vez mais freqüentes. Desta forma, Giddens afirma que “a confiança, assim, é muito menos um ‘salto para o compromisso’ do que uma aceitação tácita de circunstâncias nas quais outras alternativas estão amplamente descartadas”.269 De fato, o depósito de confiança efetuado sobre a ciência como sistema perito não revela uma opção por um modo de vida, senão uma contingência da vida moderna. 266 GIDDENS, 1991. p. 87. 267 GIDDENS, 1991. p. 92. 268 GIDDENS, 1991. p. 92. 269 GIDDENS, 1991. p. 93. Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Trad. Raul Filker. São Paulo: UNESP, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Trad. Raul Filker. São Paulo: UNESP, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Trad. Raul Filker. São Paulo: UNESP, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Trad. Raul Filker. São Paulo: UNESP, 93 Esta confiança na ciência como sistema perito foi sem dúvida uma das principais características da primeira modernidade. Em verdade, deriva diretamente das premissas racionalistas iluministas que fundaram a modernidade em contraposto ao período medieval. A ciência, assim, durante toda a primeira modernidade esteve investida de uma autoridade suprema, em um contexto onde se supunha que quanto maior fosse o conhecimento especializado, maior seria também a segurança da humanidade, ante uma maior controlabilidade e previsibilidade dos acontecimentos do mundo. Neste sentido, supõe-se que o conhecimento especializado e o acúmulo geral de especializações proporcionam uma certeza crescente em relação a como o mundo é, mas a verdadeira condição dessa certeza – sem querer ser muito exato – é duvidosa. Durante muito tempo, as tensões inerentes a essa situação foram mascaradas pelo status de distinção que a ciência, compreendida de uma maneira muito específica, desfrutou nas sociedades 270 modernas. O depósito praticamente cego de confiança na ciência como autoridade suprema ignorava características essenciais do próprio conhecimento científico, como sua incompletude e sua provisoriedade. Estas características do conhecimento científico, embora plenamente conhecidas pelos peritos especialistas de cada área, e por eles reconhecidas como essenciais ao desenvolvimento da ciência271, passaram em boa parte despercebidas pela sociedade. Desta forma, nas palavras de Marta Rodriguez de Assis Machado, a sociedade passou a confiar demais no funcionamento das tecnologias e a desenvolver suas estruturas cada vez mais sobre essa premissa. Com isso, a confiança no aparato de segurança criou uma espécie de afrouxamento das atenções e das precauções, em detrimento da própria 272 segurança. Neste contexto, a ciência desenvolveu-se, a tecnologia avançou, e, se por um lado trouxe incontáveis benefícios para a humanidade em termos de 270 GIDDENS, Anthony. A Vida em Uma Sociedade Pós-Tradicional. In BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony, LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1997. p. 108. 271 GIDDENS, Anthony. A Vida em Uma Sociedade Pós-Tradicional. In BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony, LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1997. p. 107. 272 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 55. 94 controlabilidade e minimização de certos riscos e perigos, por outro trouxe toda uma gama de novos fatores de incerteza, através da criação dos novos riscos, os quais escapam de suas próprias instâncias de controle.273 A ciência, antes vista como a solução para todos os problemas, revelou-se falha. Neste sentido, Paulo Silva Fernandes coloca que o homem acreditou e foi traído. Mas acreditou em quê? E foi traído por quem ou pelo quê? Pensamos que pela crença, nele induzida, na infalibilidade dessa mesmo tecno-ciência, em que tanto confiou e que tem falhado, se não nos seus objectivos imediato, pelo menos nas conseqüências dos mesmos e no cálculo demasiadamente optimista dos riscos a que estava sujeita e que vieram a transformar-se de maneira arrasadora em verdadeiras conseqüências, pelo menos em algumas situações. E porventura traído por 274 si mesmo, pela cega confiança que devotou a certo modus vivendi (...). De fato, a humanidade confiou cegamente nas promessas de segurança e controlabilidade da ciência moderna as quais não foram cumpridas, e hoje tem de arcar com as conseqüências dessa confiança. A partir deste novo cenário, a relação existente entre sociedade leiga e ciência sofre profundas alterações. Trata-se da modernidade reflexiva em sua fase de reflexão, na qual a sociedade abandona uma atitude acrítica em relação aos processos de modernização, e passa a confrontar as bases e fundamentos das instituições modernas, dentre as quais a ciência. Neste contexto, nas palavras de Giddens, a ciência perdeu boa parte da aura de autoridade que um dia possuiu. De certa forma, isso provavelmente é resultado da desilusão com os benefícios que, associados à tecnologia, ela alega ter trazido para a humanidade. Duas guerras mundiais, a invenção de armas de guerra terrivelmente destrutivas, a crise ecológica global e outros desenvolvimentos do presente século poderiam esfriar o ardor até dos mais otimistas defensores do progresso por meio da investigação científica 275 desenfreada. 273 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 54. 274 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “Sociedade de Risco” e o Futuro do Direito Penal: Panorâmica de Alguns Problemas Comuns. Coimbra: Almedina, 2001. p. 44. 275 GIDDENS, Anthony. A Vida em Uma Sociedade Pós-Tradicional. In BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony, LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1997. p. 108. 95 Com isso, “a reivindicação de legitimidade universal da ciência torna-se muito mais discutida do que antes”.276 Ao mesmo tempo, a perda da autoridade suprema pela ciência combina-se com uma crescente proliferação de um cada vez maior número de especialistas, que, de forma freqüente, fornecem informações descasadas e, até mesmo, contraditórias às informações fornecidas por outros especialistas. Chega-se a um ponto em que “o fato de os especialistas muitas vezes discordarem entre si tornou-se lugar-comum para quase todo mundo”.277 Este cenário traz conseqüências perturbadoras para o indivíduo leigo, afinal, pela primeira vez em séculos vê-se sem um ponto de referência confiável. De fato, vê-se agora o homem cercado de informações contrárias por todos os lados, recaindo, sobre si, a missão de escolher em qual acreditar, de forma que ao risco inerente a cada opção soma-se o risco oriundo da decisão de em qual especialista confiar.278 Neste sentido, como um leigo pode se manter atualizado – ou se reconciliar – com as diversas teorias sobre, por exemplo, a influência da dieta sobre a saúde a longo prazo? Algumas descobertas são, em determinadas épocas, muito bem estabelecidas e é sensato segui-las; por exemplo, deixar de fumar quase certamente reduz a chance de se contrair uma série específica de enfermidades sérias. Mas, apenas quarenta anos atrás, muitos médicos recomendavam o fumo como um meio de aumentar o relaxamento mental 279 e corporal. Este conflito entre especialistas naturalmente provoca uma crise de confiança no conhecimento perito de todas as naturezas que, sem dúvida, empurra a sociedade para um universo de incertezas e inseguranças. Afinal, para além da dúvida acerca de se se deve confiar no conhecimento perito, surge também a dúvida de em qual dos conhecimentos peritos dentre os vários expostos se deve confiar. 276 GIDDENS, Anthony. Risco, Confiança e Reflexividade. In BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony, LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1997. p. 221. 277 GIDDENS, Anthony. Risco, Confiança e Reflexividade. In BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony, LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1997. p. 221. 278 GIDDENS, Anthony. A Vida em Uma Sociedade Pós-Tradicional. In BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony, LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1997. p. 109. 279 GIDDENS, Anthony. A Vida em Uma Sociedade Pós-Tradicional. In BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony, LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1997. p. 109. 96 Neste sentido, Paulo Silva Fernandes afirma que o que caracteriza o ser dos nossos tempos é justamente o fato de que o advento da sociedade de risco aos poucos vai assumindo os contornos de uma sociedade da insegurança.280 De fato, dois outros fatores inerentes à sociedade de risco contribuem para este caminhar rumo a uma sociedade da insegurança: a falência dos sistemas de cálculo de risco e das regras de seguro e a configuração de um cenário de irresponsabilidade organizada. 3.3.2 A Falência dos Sistemas de Cálculo de Risco e das Regras de Seguro Quanto à falência dos sistemas de cálculo de risco e das regras de seguro, cumpre observar, conforme Marta Rodriguez de Assis Machado, que os avanços tecnológicos obtidos durante o caminhar da primeira modernidade, se, por um lado, buscava desenvolver mecanismos de controle das relações causais em diversas áreas da vida social, por outro lado significou um progressivo crescimento da complexidade destes mesmos mecanismos, cada vez mais sujeitos a, eles próprios, escaparem do controle humano.281 Desta forma, “se, por um lado, a tecnologia foi capaz de controlar certos eventos e de minimizar certos tipos de perigos e riscos, por outro trouxe novos fatores de incerteza e acabou criando outra ordem de riscos, sobre os quais passou a não exercer controle”.282 Este ciclo vicioso em matéria de controle e descontrole deu origem ao desenvolvimento de tecnologias cuja finalidade é exatamente a de fornecer controlabilidade sobre outras tecnologias, o que, em último grau, apenas contribui para uma ainda maior complexidade dos mecanismos e sistemas tecnológicos, sem, 280 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “Sociedade de Risco” e o Futuro do Direito Penal: Panorâmica de Alguns Problemas Comuns. Coimbra: Almedina, 2001. p. 45. 281 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 54. 282 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 54. 97 no entanto, jamais alcançar seu objetivo de reduzir a zero o risco de situações inesperadas.283 Esta permanente situação de incontrolabilidade plena, durante a primeira modernidade, no entanto, é absorvida pelas instituições modernas através da figura dos riscos calculáveis, ou seja, transformam-se as contingências incontroláveis dos processos tecnológicos em situações mais ou menos previsíveis em sua ocorrência, submetendo-as a regras gerais de reconhecimento, prevenção e, especialmente, de compensação.284 Segundo Beck, “na primeira etapa da modernidade (...), risco significa essencialmente uma forma de calcular conseqüências imprevisíveis (...), o cálculo do risco desenvolve formas e métodos para tornar previsível o imprevisível [tradução livre”.285 Estes mecanismos de compensação pelo advento de um resultado danoso, ou seja, estes mecanismos de seguro, foi decisivo para permitir que o modelo industrial convivesse com a imprevisibilidade do futuro. Ademais, permitiu a realização de uma documentação estatística dos riscos e seus resultados, bem como permitiu uma forma de fomento à prevenção de resultados danosos, através de uma série de instrumentos negociais como descontos progressivos para aqueles sujeitos ou atividades que não ocasionassem danos. Sobre estes mecanismos, Marta Rodriguez de Assis Machado ensina que a grande promessa do cálculo de riscos e das regras do seguro é a de que os eventos que ainda não ocorreram poderiam perfeitamente ser objeto de ação no presente, garantindo-se, com isso, a segurança do presente ante um futuro incerto. Assim, o binômio do risco e do cálculo do seguro foi responsável pelo surgimento de um aparato cognitivo institucional muito 286 particular, que proporcionou tranqüilidade para a sociedade moderna. Estas regras de cálculo de risco e seguro fundam-se no reconhecimento de que todo dano pode ser indenizado através da adoção de 283 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 54. 284 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 55. 285 “En la primera etapa de la modernidad (…), riesgo significa esencialmente una forma de calcular consecuencias impredecibles (…), el cálculo del riesgo desarrolla formas y métodos para hacer predecible lo impredecible”. BECK, Ulrich. La Sociedade del Riesgo Global. Trad. Jesús Alborés Rey. Madrid: Siglo Veintiuno de España Editores, 2002. p. 221. 286 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 57. 98 princípios gerais de monetarização de todos os aspectos da vida social, legitimando, assim, o desenvolvimento técnico-econômico.287 Este sistema de cálculo de riscos e regras securitárias, que bem respondia às necessidades sociais da primeira modernidade, com o advento da sociedade de risco perde sua capacidade de controlar no presente a incontrolabilidade do futuro. Isto se dá uma vez que os novos riscos que emergem publicamente na segunda modernidade não podem ser capturados pelas regras de cálculo de riscos, bem como não podem ser segurados, ante a impossibilidade de sua compensação monetária. De fato, “esses riscos são, per natura, inseguráveis”.288 A incalculabilidade destes riscos deriva do fato de que, por sua natureza, as suas conseqüências não podem ser previstas e medidas, bem como de que não se pode, antecipadamente, estabelecer estatisticamente quais as probabilidades de que determinado risco venha a se concretizar. De outro vértice, estes riscos desafiam as regras de seguro uma vez que se tratam de riscos cujo alcance não se limita no tempo e no espaço, o que significa que suas conseqüência são potencialmente irreparáveis. Neste sentido, são riscos (...) de dimensões globais, cujos efeitos destrutivos, se concretizados, não poderão ser limitados e, na maior parte dos casos, ocasionarão danos irreparáveis. Em vista disso, o conceito de 289 compensação monetária torna-se inadequado para esses problemas. Estas questões tornam-se particularmente claras, se, na esteira de autores como Paulo Silva Fernandes e Ulrich Beck, tomarmos em conta que “ainda sequer nasceram todos os seres humanos afectados por Chernobyl”.290 Com isso, estes sistemas de cálculo de riscos e regras de seguro, tão importantes para o sentimento de segurança da modernidade, com a transformação da sociedade industrial em uma sociedade de riscos, passam a ser confrontados pelos novos riscos tecnológicos, que revelam a incapacidade daqueles sistemas 287 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São IBCCRIM, 2005. pp. 57-58. 288 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “Sociedade de Risco” e o Futuro do Direito Panorâmica de Alguns Problemas Comuns. Coimbra: Almedina, 2001. p. 57. 289 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São IBCCRIM, 2005. p. 58. 290 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “Sociedade de Risco” e o Futuro do Direito Panorâmica de Alguns Problemas Comuns. Coimbra: Almedina, 2001. p. 58. Paulo: Penal: Paulo: Penal: 99 para dar conta deste novo contexto. Com isso, nos palavras de Marta Rodriguez de Assis Machado, os megariscos nucleares, químicos, genéticos e ecológicos aboliram os pilares do cálculo do risco: primeiro, ficou comprometido o conceito de compensação monetária, uma vez que se passou a tratar de danos globais, irreparáveis, que não podem ser facilmente quantificados; depois, observou-se que, diante desses riscos, os conceitos de prevenção, previsão e monitoramento antecipado também falham; além disso, com a perda dos limites espaciais, temporais e sensoriais, perdem sentido os padrões de normalidade, os procedimentos de medição de riscos e, 291 portanto, a base para o cálculo dos danos. Este cenário revela uma crise institucional nestes sistemas, até então tidos como infalíveis a aptos a remover as incertezas, incontrolabilidades e inseguranças inerentes ao processo de modernização, o que vem a multiplicar os sentimentos sociais de insegurança.292 Estas questões envolvendo a crise das regras securitárias na sociedade de risco, ademais, realçam com especial relevância o problema já apontado da crise de confiabilidade nos sistemas peritos, sobretudo ante a crescente multiplicação das autoridades científicas. Neste sentido, importante compreender que o sistema de cálculo de risco e seguros é, em si mesmo, um sistema perito. De fato, conforme o que já foi abordado anteriormente, o advento da sociedade de risco resulta em uma progressiva crise de confiança nos sistemas peritos, sobretudo em decorrência do número cada vez maior de conhecimentos especializados contraditórios entre si. Esta crise atinge com especial importância a relação entre a tecnocracia do risco e o sistema de seguros. Esta crise, identificada por Beck, parte da percepção de que diferentes agências e atores – por exemplo, os gestores das indústrias químicas e os experts sobre seguros – se contradizem mutuamente. Os técnicos sustentam que ‘não há risco’ enquanto as seguradoras se negam a estender um seguro porque os riscos são demasiadamente elevados. No âmbito dos alimentos geneticamente modificados se desenvolve um debate 293 similar [tradução livre]. 291 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 60. 292 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “Sociedade de Risco” e o Futuro do Direito Penal: Panorâmica de Alguns Problemas Comuns. Coimbra: Almedina, 2001. p. 59. 293 “Diferentes agencias y actores – por ejemplo, los gestores de las industrias químicas y los expertos sobre seguros – se contradicen mutualmente. Los técnicos sostienen que ‘no hay riesgo’ 100 Tal divergência entre o conhecimento produzido por dois sistemas peritos diferentes demonstra a real situação de incerteza que paira sobre os novos riscos tecnológicos, uma vez que, face ao mesmo evento, os especialistas se contradizem, de forma que enquanto os engenheiros de segurança diagnosticam risco zero, os especialistas em seguros diagnosticam risco tendente ao infinito, ou seja, impossível de ser segurado.294 Esta dupla crise, a falência dos sistemas de cálculo de risco e regras de seguro e a crise de confiança nos sistemas peritos, encaminha ainda mais a configuração social no sentido de se caracterizar como uma sociedade da insegurança. De fato, nas palavras de Paulo Silva Fernandes, o reconhecimento dos novos riscos e das crises da modernidade “faz-nos sentir o vazio da impotência para os travar e controlar, originando sentimentos de insegurança e medo”.295 Somado à crise nos sistemas de cálculo de riscos e regras de seguro, outro fator é responsável por contribuir para a configuração da sociedade atual como uma sociedade da insegurança. Trata-se da questão relativa à irresponsabilidade organizada. 3.3.3 A Irresponsabilidade Organizada Por irresponsabilidade organizada pode se entender o cenário atual onde em que pese a percepção dos novos riscos esteja cada vez mais em evidência, as instituições modernas de imputação de responsabilidade pelos resultados se tornam cada vez mais amarradas e impossibilitadas de efetuar tais responsabilizações, em um paradoxo sem tamanho.296 mientras que los aseguradores se niegan a extender un seguro porque los riesgos son demasiado elevados. En el ámbito de los alimentos modificados genéticamente se desarrolla ahora un debate similar”. BECK, Ulrich. La Sociedade del Riesgo Global. Trad. Jesús Alborés Rey. Madrid: Siglo Veintiuno de España Editores, 2002. p. 226. 294 BECK, Ulrich. A Reinvenção da Política. In BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony, LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1997. p. 22. 295 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “Sociedade de Risco” e o Futuro do Direito Penal: Panorâmica de Alguns Problemas Comuns. Coimbra: Almedina, 2001. p. 60. 296 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 61. 101 Este contexto de irresponsabilidade organizada decorre em boa parte da crescente complexidade organizativa das relações sociais, onde o modelo de ações individuais é substituído por um modelo de ações coletivas, tendo como conseqüência a ramificação e a diluição das responsabilidades pelos resultados derivados destas ações.297 Esta situação se faz presente em dois grupos de casos: o dos riscos derivados da acumulação dos efeitos sinérgicos de ações individuais massificadas, e o dos riscos decorrentes de sistemas e tecnologias altamente complexas e com tarefas compartimentadas. Em ambos estes grupos de casos, torna-se inviável a atribuição de responsabilidades individualizadas por eventual concretização de um risco.298 O primeiro destes grupos de casos, se refere àqueles riscos que tem como causa não uma atividade ou um processo individualizado, mas, pelo contrário, deriva da prática reiterada e massificada de uma conduta que, em que pese individualmente tenha uma potencialidade lesiva virtualmente nula, quando praticada de forma cumulativa atinge proporções potencialmente catastróficas. Neste sentido, “é fácil perceber que as alterações prejudiciais ao equilíbrio ecológico, na maior parte dos casos, são resultados não de um único fato, mas da acumulação de efeitos de diversos e repetitivos acontecimentos”.299 Nestes casos, entram em xeque todas as regras de imputação de responsabilidade, uma vez que não é possível identificar-se nem quantos e nem quais são os responsáveis por determinado acontecimento. Ademais, esbarra-se no problema de que, se não é a conduta de cada um, mas a de todos cumulativamente que deu causa ao resultado, e se não se pode imputar a um a responsabilidade pela conduta dos outros, em que pese de um lado todos serem responsáveis, de outro ninguém o é. Assim, vive-se o paradoxo de que quanto maior a poluição e o número de poluidores, menor é a responsabilidade individual de cada um.300 297 MACHADO, Marta Rodriguez IBCCRIM, 2005. pp. 61-62. 298 MACHADO, Marta Rodriguez IBCCRIM, 2005. p. 62. 299 MACHADO, Marta Rodriguez IBCCRIM, 2005. p. 62. 300 MACHADO, Marta Rodriguez IBCCRIM, 2005. p. 64. de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: 102 Ademais, esta situação se agrava diante do fato de que jamais será possível identificar e conhecer o conjunto completo dos causadores do resultado. Isto se dá, conforme explica Marta Rodriguez de Assis Machado, primeiro, porque certas atividades que se revelaram nocivas, dada a sua massificação, possivelmente vêm sendo praticadas por mais de um século. Segundo, porque um número significante de riscos induzidos por novas tecnologias – como aqueles associados à poluição química, radiação atômica, organismos geneticamente modificados etc. – é caracterizado por sua inacessibilidade à percepção humana. Terceiro, porque a maior parte 301 das possíveis ameaças não é conhecida integralmente pela ciência. De fato, relativamente a este grupo de riscos, resta completamente inviabilizada qualquer possibilidade de se responsabilizar os responsáveis pelo resultado, uma vez que tanto a autoria quando a causalidade mostram-se diluídas no tempo e no espaço, de forma que resta prejudicada qualquer tentativa de aplicação de regras de responsabilização fundadas nos mecanismos tradicionais de imputação, como a do princípio do poluidor-pagador.302 O segundo grupo de casos é aquele dos riscos decorrentes de sistemas e tecnologias altamente complexas e com tarefas compartimentadas. Este grupo de riscos é decorrente da elevada complexidade organizativa que os processos tecnológicos adquiriram durante o evoluir da modernidade. Nestes casos, os riscos não tratam de efeitos colaterais os quais se produzem de forma lenta e silenciosa, imperceptível aos sentidos humanos. Ao contrário, tratam-se dos riscos envolvendo falhas operacionais e acidentes de proporções potencialmente catastróficas.303 Nestes casos, assim como nos casos dos riscos derivados de ações repetitivas reiteradas, a alocação de responsabilidade torna-se, da mesma forma, um problema. 301 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 64. 302 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 62. 303 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. pp. 65-66. 103 Neste sentido, explica Marta Rodriguez de Assis Machado que “o funcionamento dessas organizações e sua complexidade institucional dificultam a constatação de uma ação específica causadora do evento desastroso”.304 De fato, inegável é que todo sistema tecnológico sempre está sujeito a falhas, as quais, uma vez presentes, implicam na concretização de um acidente, seja ele de maior ou menor escala. Estas falhas, no entanto, são em grande parte dos casos controladas através de mecanismos de segurança implantados nos próprios sistemas tecnológicos, mecanismos estes que têm a função de, em eventual funcionamento irregular do sistema, interromper o seu funcionamento, a fim de evitar que tal falha implique em um resultado gravoso, ou de, no mínimo, reduzilo em sua gravidade. No entanto, em que pese a existência desses mecanismos de segurança, é sempre presente o risco de que interações inesperadas entre os diversos mecanismos que compõem o sistema impliquem em falhas que não podem ser controladas. De fato, em decorrência da alta complexidade e interatividade desses sistemas, eventual falha em determinado mecanismo pode vir a se alastrar pelo sistema, implicando em progressivas outras falhas que, em seu conjunto, escapam a qualquer controlabilidade. Da mesma forma, esta incontrolabilidade pode decorrer da interação e conjugação de múltiplas e pequenas falhas independentes entre si.305 Neste sentido, em se tratando de acidentes em sistemas altamente complexos, a causa dos acidentes são encontradas na própria complexidade do sistema. Cada uma das falhas que, em conjunto, produzem acidentes, quando consideradas isoladamente, são insignificantes, previsíveis, possuem um sistema específico de suporte e segurança e acarretariam conseqüências de pequenas proporções. Não obstante tornam-se sérias quando se conectam. É, portanto, a interação de diversas dessas falhas 306 que explicam os acidentes. Nestes casos, torna-se extremamente difícil a identificação de todos os fatores que contribuíram para o evento, bem como a real relevância de cada um 304 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 66. 305 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. pp. 66-67. 306 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 69. 104 deles para o evento final. Neste sentido, “o simples fato de se denominarem ‘acidentes’ as falhas de operação desses sistemas denota que existe uma certa dificuldade de se imputar responsabilidade por tais acontecimentos”.307 Da mesma forma, se em parcela significativa inexiste contribuição humana para tais eventos, na parcela de casos onde há esta contribuição, é extremamente improvável que se possa identificar a pessoa responsável pela falha. Neste sentido, Marta Rodriguez de Assis Machado afirma que, “no bojo de uma organização dita complexa e altamente diferenciada, é extremamente difícil localizar um único responsável por cada ação”.308 E continua, afirmando que “as ações e decisões emanadas pelas organizações são, em realidade, produto de inumeráveis procedimentos e decisões internas, que contaram com a participação de um sem-número de indivíduos”.309 De fato, a elevada complexidade dos processos tecnológicos, nas palavras de Blanca Mendoza Buergo, resulta “no sentido de que quanto mais complexa e aperfeiçoada é uma organização, mas substituível se torna o indivíduo e menor sua sensação de responsabilidade, ao considerar este que sua contribuição pessoal é sumamente reduzida [tradução livre]”.310 De fato, esta redução da responsabilidade ante a fungibilidade do indivíduo perpassa a sensação subjetiva de responsabilidade e atinge também os aspectos objetivos de responsabilização pelo feito, uma vez que não se pode estabelecer, em padrões objetivos, qual a contribuição de cada fator para o resultado final, ou seja, não se pode determinar a importância da conduta ativa ou omissiva de cada indivíduo na formação do evento danoso, até porque, neste contexto, “a contribuição pessoal de cada um resta muito reduzida no conjunto”.311 Da mesma forma, em se tratando de riscos produzidos por decisões tomadas no âmbito de estruturas complexamente organizadas, uma vez que os 307 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 66. 308 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 69. 309 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 69. 310 “En el sentido de que cuanto más compleja y perfeccionada es una organización, más intercambiable resulta el individuo y menor su sensación de responsabilidad, al considerar éste que su personal contribución es sumamente reducida”. MENDOZA BUERGO, Blanca. El Derecho Penal en la Sociedad Del Riesgo. Madrid: Civitas, 2001. p. 29. 311 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 67. 105 processos decisórios, da mesma forma que os processos produtivos, tornam-se cada vez mais complexos e dependentes da participação de várias pessoas, tornase extremamente difícil a atribuição de responsabilidades. Este cenário de irresponsabilidade organizada, ademais, deve ser entendido como uma das crises surgidas com a sociedade de risco, uma vez que são as próprias instituições modernas que, em seu funcionamento, de um lado permitem a produção desses riscos e, de outro, constroem um sistema que garante que ninguém seja responsabilizado pela produção dos mesmos.312 Neste sentido, as instituições envolvidas no controle dos riscos e danos dispõem de instrumentos e estratégias eficazes para a sua normalização, permitindo que estes sejam produzidos sem maiores problemas. (...) Assim, surge como questão a legitimidade de um sistema legal que regula vigorosamente os riscos pequenos e manejáveis, mas acaba legalizando 313 os riscos de grandes proporções. Este cenário revela, assim, o grande paradoxo que envolve as instâncias de segurança na sociedade de risco. De fato, as crises que envolvem a credibilidade da ciência, os sistemas de cálculo de risco e regras de seguro e os mecanismos de responsabilização apontam para uma crise geral nos sistemas de controle e segurança da modernidade. Durante a modernidade, a sociedade viveu sob o paradigma da busca da segurança através do conhecimento, conhecimento este que, acumulando-se, permitiria à sociedade uma vida mais segura e menos exposta aos perigos do acaso. No entanto, foi este mesmo acúmulo de conhecimento que liberou as forças criadoras dos novos riscos, que hoje abandonam seu estado de latência e passam a produzir seus efeitos. Nas palavras de Beck, “a expansão e a intensificação da intenção do controle terminaram produzindo o oposto”.314 A questão crucial que com isto surge é a de que, então, todos estes riscos produziram-se sob um o manto da normalidade, da regularidade das atividades tecnológicas. Neste sentido, pode-se afirmar que “não é a desobediência 312 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 72. 313 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. pp. 72-73. 314 BECK, Ulrich. A Reinvenção da Política. In BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony, LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1997. p. 21. 106 às regras, mas as próprias regras normalizadoras que aceleram a produção de riscos e danos à natureza”.315 Esperava-se, segundo a racionalidade moderna, que existisse uma perfeita separação de um lado, de condutas perigosas e, portanto, proibidas, e, de outro, de condutas livres de risco, e, por isso, normativamente aceitas. Esta lógica, no entanto, mostrou-se falha a partir da percepção dos riscos tecnológicos que foram produzidos como conseqüências da prática de condutas absolutamente lícitas.316 Surge com isso a percepção da falibilidade não só da ciência, mas de todo o sistema moderno de controle e regulação. Neste sentido, a legitimidade dos mecanismos racionais de controle forjados na era industrial vem sendo freqüentemente posta em causa. Afinal, detectou-se que, na sociedade mundial de risco, todas as instituições e regulações podem funcionar perfeitamente, todas as normas podem ser observadas e os acordos validamente cumpridos, sem que com isso garanta qualquer 317 segurança em face dos riscos. Esta crise, que se relaciona em boa parte com a crise verificada no campo da ciência, ultrapassa o campo tecnológico e passa a afetar o conjunto das instituições modernas que prometeram segurança pelo conhecimento, e que falharam no cumprimento dessa promessa. Dentre estas instituições de segurança encontra-se o direito, que exerceu verdadeiro papel de normalização da produção dos riscos. Neste sentido, se durante a primeira modernidade a ciência e o direito foram alçados à estatura de instituições hegemônicas – a ciência como instância moral suprema e o direito como guardião da gestão científica da sociedade contra eventuais oposições – (...), hoje essas instituições experimentam um grave 318 momento de crise. 315 MACHADO, Marta Rodriguez IBCCRIM, 2005. p. 76. 316 MACHADO, Marta Rodriguez IBCCRIM, 2005. pp. 76-77. 317 MACHADO, Marta Rodriguez IBCCRIM, 2005. p. 77. 318 MACHADO, Marta Rodriguez IBCCRIM, 2005. p. 79. de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: 107 Esta crise, ademais, provoca um vazio na sociedade, retirando-lhe as bases sobre as quais se sustentavam suas certezas e sua segurança, provocando, assim, um retorno da incerteza e uma sensação geral de insegurança. 3.3.4 A Sociedade da Insegurança Sentida Ante todas estas crises expostas com o advento da sociedade de risco, que levariam a pensar que o processo de desenvolvimento tecnológico moderno iria frear-se, e ante também a constatação de que esta frenagem não ocorreu, introduzse na sociedade um significativo sentimento de insegurança. Neste sentido, a sociedade pós-industrial é, além da ‘sociedade de risco, tecnológico, uma sociedade com outras características individualizadoras que contribuem à sua caracterização como uma sociedade de ‘objetiva’ insegurança. Desde logo, deve ficar claro que o emprego de meios técnicos, a comercialização de produtos ou a utilização de substâncias cujos possíveis efeitos nocivos são ainda desconhecidos e, última análise, manifestar-se depois da realização da conduta, introduzem um importante fator de incerteza na vida social. O cidadão anônimo diz: ‘estão nos ‘matando’, mas não conseguimos 319 saber com certeza nem quem, nem como, nem a que ritmo’. Ademais, complementa Jesús-María Silva Sánchez no sentido de que o traço essencial de nossa sociedade não está na existência objetiva de riscos, que certamente existem, mas sim no aspecto subjetivo desta existência, ou seja, a sensação geral de insegurança. Neste sentido, afirma que mais importante do que tais aspectos objetivos é seguramente a dimensão subjetiva de tal modelo de configuração social. Desde essa última perspectiva, nossa sociedade pode ser melhor definida como a sociedade da ‘insegurança sentida’ (ou como a sociedade do medo). Com efeito, um dos traços mais significativos das sociedades da era pós-industrial é a 320 sensação geral de insegurança. 319 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 30. 320 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. pp. 32-33. 108 Segundo o autor, uma série de fatores da nova configuração social, como, por exemplo, a ausência de referências, provocada em boa parte pela crise de confiança na ciência, deixam evidente que a medida da insegurança sentida pela sociedade não corresponde ao nível da existência objetiva dos novos riscos. De fato, pode-se afirmar que “a vivência subjetiva dos riscos é claramente superior a própria existência objetiva dos mesmos”.321 Assim, conforme Blanca Mendoza Buergo, um dos “traços definidores da sociedade de risco (...) [é] uma sensação de insegurança subjetiva que, como destacado, pode inclusive existir independentemente da presença de perigos reais [tradução livre]”.322 Neste sentido, Paulo Silva Fernandes bem ilustra esta sensação de insegurança, quando descreve o seguinte cenário: Vejamos: o amanhecer médio de um qualquer cidadão avisado e suficientemente preocupado com a sua saúde e a do planeta, é qualquer coisa como um misto de cuidados múltiplos consubstanciados em questões como se poderá, com segurança, beber a água que corre pelas suas torneiras, comer a carne, o peixe, as manteigas, o pão, respirar o ar, olhar o Sol, sair à noite, viajar ou confiar nos seus políticos, na sua televisão ou mesmo no vizinho do lado, ou, se pelo contrário, deverá evitar essa miríade de possíveis e multifacetadas contaminações, fugindo para um qualquer paraíso, que contudo já não existe, visto que a poluição, as radiações e a televisão – para nos ficarmos por aqui – não respeitam quaisquer fronteiras 323 ou culturas, credos ou convicções políticas. De fato, como bem apontado dentre outros por Blanca Mendoza Buergo, vive-se hoje em uma sociedade mais segura do que nunca, mas, paradoxalmente, vive-se com uma sensação subjetiva de insegurança sem igual, a qual se transforma numa crescente demanda de segurança.324 Importante perceber que esta sensação social de insegurança se deve em boa parte à atuação dos meios de comunicação no tratamento que dispensam a estas questões envolvendo os novos riscos. Neste contexto, sem qualquer 321 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 37. 322 “Rasgos definitorios de la sociedad del riesgo (...) una sensación de inseguridad subjetiva que, como se ha destacado, incluso puede existir independientemente de la presencia de peligros reales”. MENDOZA BUERGO, Blanca. El Derecho Penal en la Sociedad Del Riesgo. Madrid: Civitas, 2001. p. 30. 323 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “Sociedade de Risco” e o Futuro do Direito Penal: Panorâmica de Alguns Problemas Comuns. Coimbra: Almedina, 2001. p. 44. 324 MENDOZA BUERGO, Blanca. El Derecho Penal en la Sociedad Del Riesgo. Madrid: Civitas, 2001. p. 30. 109 pretensão de adentrar de forma mais profunda no tema, os meios de comunicação exercem hoje papel fundamental na vida do cidadão, de forma que é possível inclusive falar-se em uma verdadeira sociedade da informação.325 Sem embargo, o tratamento dispensado pelos meios de comunicação aos problemas globais, não só acerca dos novos riscos, mas acerca deles também, retira a informação de seu contexto, isolando-a de aspectos temporais e espaciais e transformando um evento local e contextualizado em um fato global aparentemente aleatório, ou seja, que poderia ter ocorrido ou se repetir em qualquer lugar e em qualquer momento.326 Ademais, as formas de transmissão das notícias e a repetitividade com que a mesma se transmite atuam como um fator multiplicador de suas reais proporções e relevância.327 Neste sentido, ensina Paulo Silva Fernandes que é óbvio que um tal estado de coisas – v.g. com os noticiários a abrirem constantemente recheados de notícias relacionadas com crimes e tragédias de vária ordem, prolongadas e repetidas até a exaustão e que, entrando não raro pela casa das pessoas adentro, explorando os seus maiores sofrimentos e sentimentos mais íntimos, expondo-os crua e muitas vezes exagerada e (como se não bastasse...) repetidamente, para dar a sensação de total proximidade entre telespectador e vítima, em vez de informar, muitas vezes causam desinformação – provoca uma sensação de insegurança e amedrontamento geral, ao passo de as pessoas, 328 legitimamente, se interrogarem: nada mais há senão crime e destruição? De fato, a avalanche de informações, muitas vezes contraditória, a que é exposto o cidadão, resulta não em um melhor conhecimento do mundo, mas na impossibilidade de sua integração e compreensão, uma vez que não está o indivíduo preparado para identificar a informação autêntica e fidedigna daquela sensacionalista e, muitas vezes, falsa, o que apenas gera sentimentos de incerteza, 325 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. pp. 37-38. 326 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “Sociedade de Risco” e o Futuro do Direito Penal: Panorâmica de Alguns Problemas Comuns. Coimbra: Almedina, 2001. p. 40. 327 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 38. 328 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “Sociedade de Risco” e o Futuro do Direito Penal: Panorâmica de Alguns Problemas Comuns. Coimbra: Almedina, 2001. pp. 40-41. 110 obscuridade e confusão. Ao fim, produz-se um crescente sentimento de desorientação pessoal e insegurança.329 Nas palavras de Paulo Silva Fernandes, neste contexto, “a sensação que se cria, não raro, no espectador médio, é a de que, sem explicações adicionais, vivemos num mundo onde o terror reina”.330 Diante de tal cenário, o cidadão vê-se confrontado pela sua impotência em reagir contra estas novas ameaças, e o sentimento individual de insegurança acaba transformando-se em uma pretensão social à segurança, segurança esta que se busca no Estado. Sobre esta busca de segurança do Estado, afirma Jésus-María Silva Sánchez que a solução para a insegurança, ademais, não se busca em seu, digamos, ‘lugar natural’ clássico – o direito de polícia -, senão no Direito Penal. Assim, pode-se afirmar que, ante os movimentos sociais clássicos de restrição do Direito Penal, aparecem cada vez com maior claridade demandas a uma ampliação da proteção penal que ponha fim, ao menos 331 nominalmente, a angústia derivada da insegurança. Este chamado pelo Direito Penal se dá, em boa medida, em virtude do descrédito que aparentemente paira sobre outras instâncias de proteção, como o Direito Civil e o Direito Administrativo.332 O Direito Penal, assim, passa a ser visto como o único instrumento eficaz para o controle dos novos riscos, sendo chamado a atuar sobre novas áreas, o que vem a implicar uma série de problemas e conflitos entre a dogmática penal clássica e as necessidades decorrentes desta nova missão do Direito Penal. 329 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. pp. 34-35. 330 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “Sociedade de Risco” e o Futuro do Direito Penal: Panorâmica de Alguns Problemas Comuns. Coimbra: Almedina, 2001. p. 40. 331 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 41. 332 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 58. 111 4 DIREITO PENAL DO RISCO E INTERVENÇÃO MÍNIMA Conforme o que foi abordado no capítulo anterior, as vitórias sistematicamente obtidas durante o desenvolvimento da sociedade industrial, pautado pela premissa moderna de que o maior conhecimento da natureza pelo homem resultaria em uma conseqüente maior controlabilidade humana dos fenômenos naturais, em que pese tenham efetivamente produzido uma grande melhoria das condições de vida do homem, de forma oculta e silenciosa produziram juntamente a todos aqueles ganhos uma série de conseqüências, verdadeiros efeitos colaterais do processo de modernização social, quais sejam os novos riscos tecnológicos. Estes riscos que, num primeiro momento foram sistematicamente produzidos pela sociedade industrial, hoje emergem de seu estado de latência para revelarem sua existência ao mundo. Beck denomina este processo de modernização reflexa, o qual, em seu estágio mais avançado, faz surgir um novo modelo de configuração social: a sociedade de risco. Neste novo modelo de configuração social, a sociedade toma conhecimento de que a modernidade não cumpriu suas promessas, ao passo que, em seu regular funcionamento, não só não possibilitou a plena controlabilidade da natureza pelo homem, como ela própria foi responsável pela criação de toda uma nova gama de riscos incontroláveis e potencialmente catastróficos. A modernidade entra em uma crise na qual suas instituições passam a ser repensadas e desacreditadas. Esta crise da modernidade abala seus próprios pilares de sustentação, fazendo com que a sociedade se veja em uma situação de abandono e insegurança. Esta insegurança surgida na sociedade de risco vem significar uma cada vez maior pretensão social de incremento de segurança frente aos novos riscos. Esta busca por segurança dirige-se a várias instituições e instrumentos, dentre os quais ao Direito, e, dentro dele, de forma considerável ao Direito Penal. Dentro deste contexto, surge um novo paradigma dentro do Direito, um paradigma que preza não mais pela reparação do dano, ou seja, pela atuação do Direito depois de configurado o dano, mas sim pela prevenção do dano, ou seja, uma atuação preventiva do Direito. 112 Neste contexto, especial relevância deve ser dada ao Princípio da Precaução. 4.1 O PRINCÍPIO DA PREUCAÇÃO O Princípio da Precaução, cuja origem é identificada no Direito Alemão da década de 1970, reflete a idéia de que é preciso preocupar-se de forma antecipada com as possíveis conseqüências que os diferentes projetos e empreendimentos poderão ter, e não apenas após estas conseqüências se manifestarem.333 O surgimento do Princípio da Precaução se relaciona fortemente com o advento da sociedade de risco, sobretudo a partir de sua etapa da reflexão, onde os riscos produzidos pela sociedade durante séculos, e que ficaram ocultos durante sua produção, passam a se manifestar e a revelar seu potencial danoso. Neste sentido, Paulo César Busato e Karin Kässmayer ensinam que partindo-se de uma análise da sociedade de risco, compreende-se a questão ambiental como uma constante ameaça ao bem-estar coletivo, devido à deteriorização das condições essenciais a uma sadia qualidade 334 de vida, e aos prognósticos mais catastróficos do que otimistas. De fato, a sociedade depara-se hoje com o despertar dos efeitos colaterais dos avanços tecnológicos da modernidade, que nada mais são do que um prelúdio daquilo que pode estar por vir. A sociedade enfrenta hoje as conseqüências de toda uma era de decisões e avanços irrefletidos, tomados sem nenhuma cautela para com seus possíveis efeitos futuros. Vivia-se sob o paradigma de que eventuais danos poderiam ser reparados. No entanto, o advento dos riscos tecnológicos demonstrou justamente o contrário, ou seja, que nem todos os danos podem ser reparados, de forma que tal paradigma vem a ser substituído por outro, qual seja o paradigma da proteção antecipada contra eventuais danos futuros. 333 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 11. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008. p. 28. BUSATO, Paulo César, KÄSSMAYER, Karin. Intervenção Mínima x Precaução: conflito entre princípios no direito penal ambiental. In Direito e Risco: o direito do ambiente na sociedade de risco. Curitiba: UNIFAE, 2008. p. 138. 334 113 A esta irreparabilidade dos danos, soma-se como fator essencial para a formação de um novo paradigma a percepção da falibilidade da ciência, ou seja, de que o desenvolvimento científico e industrial vem acompanhado da possibilidade de resultados desconhecidos e imprevisíveis no momento de sua produção.335 Neste sentido, importante a percepção de que grande parte dos riscos que hoje ameaçam a humanidade foi produzida através de processos tecnológicos tidos como inofensivos pela tecnocracia de sua época. De fato, “aquilo que hoje é visto como inócuo amanhã poderá ser considerado extremamente perigoso”.336 Estes dois fatores, a provável irreparabilidade dos danos derivados dos novos riscos e a regularidade dos seus processos de produção, demonstram a necessidade da formulação de um novo paradigma que atenda aos anseios de segurança presentes na sociedade de risco. De fato, se durante muito tempo eventuais medidas apenas eram tomadas após a concretização de um dano, a partir da década de oitenta esta atitude passa a ser substituída por outra mais cautelosa, que leva em conta as incertezas que envolvem as premissas científicas e os potenciais danos, muitas vezes irreparáveis, que podem resultar da atuação negligente e imprudente frente aos avanços tecnológicos.337 Neste sentido, “o princípio da precaução, portanto, advém do progresso tecnológico e das incertezas científicas quanto aos riscos e danos dele advindos, sendo ‘fruto da urgência e da prudência”.338 Surge assim, inicialmente no Direito Ambiental, o Princípio da Precaução, que vem a ser enunciado no princípio 15 da Declaração do Rio de Janeiro de 1992 da seguinte forma: de modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza não deve ser utilizada como razão para postergar 335 MOTA, Maurício. Princípio da Precaução: uma construção a partir da razoabilidade e da proporcionalidade. In MOTA, Maurício (Coord.). Fundamentos Teóricos do Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 29. 336 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 11. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008. p. 28. 337 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. pp. 74-75. 338 BUSATO, Paulo César, KÄSSMAYER, Karin. Intervenção Mínima x Precaução: conflito entre princípios no direito penal ambiental. In Direito e Risco: o direito do ambiente na sociedade de risco. Curitiba: UNIFAE, 2008. p. 142. 114 medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação 339 ambiental. Segundo Pierpaolo Cruz Bottini, o princípio da precaução pode ser conceituado “como a diretriz para a adoção de medidas de regulamentação de atividades, em casos de ausência de dados ou informações sobre o potencial danoso de sua implementação”.340 De forma mais completa, Marcelo Abelha Rodrigues explica o Princípio da Precaução nos seguintes termos: tem se utilizado o postulado da precaução quando pretende-se evitar o risco (...) ao meio ambiente, nos casos de incerteza científica acerca de sua degradação. Assim, quando houver dúvida científica da potencialidade do dano ao meio ambiente acerca de qualquer conduta que pretenda ser tomada (...), incide o princípio da precaução para prevenir o meio ambiente 341 de um risco futuro. De fato, o Princípio da Precaução veicula o mandamento de que, em situações de incertezas científicas acerca das reais conseqüências de determinada atividade, em nome de se evitar a produção oculta de novos riscos que apenas materializar-se-ão no futuro, tal atividade não deve ser realizada, ficando suspensa até que a ciência possa oferecer, com um grau de certeza aceitável, um atestado da inocuidade de tal atividade. Assim, trata-se do “princípio que lida com situações onde a ciência não pode providenciar uma ampla análise das conseqüências, deixando um grau de incerteza no que se refere aos efeitos de determinadas atividades”.342 Importante verificar a diferença apontada pela doutrina entre os princípios da Precaução e da Prevenção. Tal distinção se assenta na questão acerca do conhecimento ou não do real potencial lesivo da atividade. Neste sentido, o Princípio da Prevenção se dirige às atividades cuja periculosidade pode ser evidenciada por constatações científicas ou estatísticas, ou seja, nas quais existe certeza científica de seu potencial lesivo.343 339 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 66. 340 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 53. 341 RODRIGUES, Marcelo Abelha apud ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 11. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008. p. 29. 342 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 53. 115 De fato, este Princípio da Prevenção “aplica-se a impactos ambientais já conhecidos e dos quais se possa, com segurança, estabelecer um conjunto de nexos de causalidade que seja suficiente para a identificação dos impactos futuros mais prováveis”.344 Assim, o Princípio da Prevenção aplica-se diante daquelas atividades cujas conseqüências lesivas já foram diagnosticadas pela ciência. O Princípio da Precaução, por sua vez, aplica-se aos casos onde inexiste certeza científica acerca da potencialidade lesiva ou da inocuidade da atividade, de forma que não se pode cientificamente afirmar sobre a possíveis conseqüências de tal atividade. Neste sentido, “o princípio da precaução tem seu âmbito de aplicação no conjunto de técnicas ou produtos em relação aos quais não existe certeza científica ou constatação estatística sobre seus efeitos potenciais”.345 Desta forma, nas palavras de Pierpaolo Cruz Bottini, este princípio “surge na seara do cientificamente desconhecido”.346 A adoção do Princípio da Precaução, assim, significa uma mudança de atitude frente aos avanços tecnológicos. Se em uma perspectiva anterior, presumiase a inocuidade de toda e qualquer atividade não comprovadamente produtora de riscos e danos, a partir da consagração do Princípio da Precaução esta presunção deixa de existir. De fato, pode-se afirmar com Paulo César Busato e Karin Kässmayer que “visualiza-se uma substancial mudança, pois através da precaução antevêem-se os atos – evitando-os – em virtude tão somente da ação ou atividade considerar-se de risco”.347 Sobre o tema, Pierpaolo Cruz Bottini afirma que os sistemas de gestão de risco se tornaram obsoletos porque partiam patamar do risco conhecido que, aos poucos, vai cedendo diante incapacidade científica de desvendar a periculosidade inerente atividades humanas. Este fenômeno leva à necessidade de substituição 343 do da às do BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 54. 344 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 11. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008. p. 45. 345 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 54. 346 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 54. 347 BUSATO, Paulo César, KÄSSMAYER, Karin. Intervenção Mínima x Precaução: conflito entre princípios no direito penal ambiental. In Direito e Risco: o direito do ambiente na sociedade de risco. Curitiba: UNIFAE, 2008. p. 140. 116 saber nomológico por outras bases, que orientem a atuação do gestor do risco. O princípio da precaução surge, então, como alternativa capaz de pautar a administração dos riscos e ocupar os espaços de regulamentação 348 institucional de atividades. Nasce, com isso, um novo paradigma, que centra-se na importância de diagnosticar-se previamente os possíveis riscos atrelados às diversas atividades humanas, a fim de evitá-los, em nome da proteção do meio-ambiente e de tudo aquilo que depende dele, como a saúde humana.349 Importante perceber que este princípio paradigmático, que inicialmente surge no Direito Ambiental, sendo aplicável somente aos potenciais riscos ao meio ambiente, hoje alarga seu campo de aplicação para outras áreas como a saúde pública e as relações de consumo, ou seja, potencialmente a todas as áreas nas quais a sociedade encontra-se sujeita a riscos tecnológicos.350 A questão chave acerca do Princípio da Precaução, assim, é a de que, conforme a redação do princípio 15 da Declaração do Rio, a ausência de absoluta certeza científica acerca da periculosidade de determinada atividade não será utilizada como fundamento para impedir a tomada de medidas concretas para evitar eventuais danos decorrentes de tal atividade. Com isso, tem-se que a falta de certeza científica acerca da nocividade de determinado produto ou atividade não mais será interpretada como uma presunção de inocuidade do mesmo, mas, pelo contrário, como um alerta de que tal atividade é potencialmente danosa. Neste sentido, Paulo de Bessa Antunes argumenta que “a dúvida sobre a natureza nociva de uma substância não deve ser interpretada como se não houvesse risco”.351 No entanto, acrescenta que a dúvida, entretanto, não se confunde com a mera opinião de leigos ou ‘impressionistas’. A dúvida, para fins de que se impeça uma determinada ação, é fundada em análises técnicas e científicas, realizadas com base 352 em protocolos aceitos pela comunidade internacional. 348 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 55. 349 BUSATO, Paulo César, KÄSSMAYER, Karin. Intervenção Mínima x Precaução: conflito entre princípios no direito penal ambiental. In Direito e Risco: o direito do ambiente na sociedade de risco. Curitiba: UNIFAE, 2008. p. 142. 350 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 56. 351 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 11. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008. p. 35. 352 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 11. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008. p. 35. 117 No mesmo sentido, Maurício Mota afirma que pela incidência do Princípio da Precaução, medidas de prevenção podem e devem ser tomadas antes que se tenha certeza científica sobre a lesividade de determinada situação, bastando que haja uma plausibilidade de tal lesividade, fundada nos conhecimentos científicos disponíveis à época.353 De fato, a aplicabilidade do Princípio da Precaução deve estar adstrita a existência de avaliações e conhecimentos preliminares que apontem para a incerta, porém possível, presença de risco. Neste sentido, determinou o Conselho Europeu de Nice que vale recorrer ao princípio da precaução, logo que a possibilidade de efeitos nocivos para a saúde ou o meio-ambiente estiver identificada e que uma avaliação científica preliminar, embasada em dados disponíveis, não 354 permita concluir com total certeza o nível de risco. Assim, tem-se que o Princípio da Precaução aplica-se para todos aqueles casos onde inexiste certeza científica sobre os potenciais efeitos danosos da utilização de determinado produto ou atividade, mas apenas quando existirem elementos científicos mínimos que demonstrem a plausibilidade destes efeitos. Para a aplicação do Princípio da Precaução, fundamental é a noção de certeza científica, a qual, se presente, afasta a incidência do princípio. Sobre este tema, Pierpaolo Cruz Bottini afirma que estará caracterizada a incerteza científica pelo não reconhecimento da validade de uma tese pela comunidade científica, seja por qual motivo for. Complementa, o autor, afirmando, no entanto, que em nenhum campo da ciência pode-se mais falar na existência de certezas absolutas, posto que todo conhecimento humano está sujeito a ser falho.355 Segundo o autor, “isto significa que, à primeira vista, a adoção de medidas de precaução é possível em relação à qualquer atividade humana, porque 353 MOTA, Maurício. Princípio da Precaução: uma construção a partir da razoabilidade e da proporcionalidade. In MOTA, Maurício (Coord.). Fundamentos Teóricos do Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 31. 354 MOTA, Maurício. Princípio da Precaução: uma construção a partir da razoabilidade e da proporcionalidade. In MOTA, Maurício (Coord.). Fundamentos Teóricos do Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 32. 355 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 57. 118 nunca a ciência será capaz de afirmar, com segurança, quais os efeitos possíveis dela decorrentes”.356 Tal conclusão, no entanto, não pode ser aceita. Maurício Mota, fazendo referência a Thomas Kuhn, explica que dentro da ciência não mais se aceita a noção de conhecimentos certos eternos, mas sim de conhecimentos paradigmáticos, que são aceitos pela comunidade científica como corretos e que servem de fundamento para novas pesquisas. De fato, “para ser aceita como paradigma, uma teoria deve parecer melhor que as suas competidoras, mas não precisa (e de fato isso nunca acontece) explicar todos os fatos com os quais possa ser confrontada”.357 Assim, segundo o mesmo autor, não se pode falar em certezas científicas absolutas, mas apenas em conhecimentos que são aceitos como paradigmas, como respostas provisórias aceitas em determinada época. Neste sentido, há muito a filosofia da ciência abandonou o pressuposto de que, para teorias científicas que cumpram suas funções explicativa e preditiva, é preciso exigir uma ‘certeza absoluta’. Em ciência não há fundamentos últimos ou teorias não-falseáveis: o conhecimento científico é, em conseqüência, dinâmico. Podemos concluir que a ‘certeza’ enquanto propriedade de uma observação, de uma lei, de uma teoria ou de uma previsão nunca é ‘absoluta’, mas sempre relativa a um conhecimento de fundo, aceito em 358 caráter provisório e submetido constantemente à crítica. Diante deste quadro, a noção de certeza científica, a qual afastaria no caso concreto a aplicação do Princípio da Precaução, deve ser vista com base nesta relatividade de todo conhecimento científico. Não se exige, assim, a comprovação perene e irrefutável da periculosidade – ou inocuidade – de determinado produto ou atividade, mas tão somente a existência de postulados científicos estáveis e válidos, 356 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. pp. 57-58. 357 MOTA, Maurício. Princípio da Precaução: uma construção a partir da razoabilidade e da proporcionalidade. In MOTA, Maurício (Coord.). Fundamentos Teóricos do Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 45. 358 MOTA, Maurício. Princípio da Precaução: uma construção a partir da razoabilidade e da proporcionalidade. In MOTA, Maurício (Coord.). Fundamentos Teóricos do Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 46. 119 de acordo com os parâmetros estabelecidos pelo conhecimento científico vigente à época, que evidenciem a presença ou ausência de tal lesividade.359 Assim, nas palavras de Pierpaolo Cruz Bottini, “a certeza científica que afasta a incidência da precaução, portanto, não é absoluta, mas depende de um consenso intersubjetivo de uma corporação científica”.360 Desta forma, complementa, o autor, no sentido de que o Princípio da Precaução “incidirá apenas sobre atividades cuja inocuidade ou periculosidade não seja evidenciada por experiências aceitas pela comunidade científica, dentro das regras admitidas e construídas por esta mesma comunidade para validar seu discurso”.361 A incidência do Princípio da Precaução resta afastada, ademais, nos casos onde, em que pese inexistir a constatação da periculosidade de uma substância por meio do conhecimento científico, esta periculosidade pode ser demonstrada por meio de análises estatísticas. Neste sentido, a análise estatística permite a constatação da regularidade com que determinado efeito ocorre quando relacionado a dado evento, de forma a permitir a afirmação da periculosidade com nível de certeza científica. De fato, “são hipóteses em que a ausência de identificação científica da correlação causal é suprida por uma idéia normativa de causalidade fundamentada em dados estatísticos”.362 Esta verificação estatística da lesividade de determinado produto ou atividade, por equivaler à certeza científica de sua periculosidade, afasta a aplicação do Princípio da Precaução, o qual incide apenas nos casos onde inexista certeza científica. Neste sentido, Pierpaolo Cruz Bottini ensina que a evidência estatística se aproxima da certeza científica que, quando presentes, revelam a periculosidade de um comportamento ou de uma atividade. Tanto em um caso, quanto no outro, as medidas de restrição aplicáveis são atos de prevenção e não de precaução, pois a fundamentação da decisão do gestor de riscos não é uma suspeita ou 363 indício, mas um risco constatado. 359 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 58. 360 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 58. 361 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 58. 362 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 59. 363 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 61. In In In In In 120 De fato, a constatação da real periculosidade de determinada conduta, seja por demonstração científica ou estatística, afasta-se das situações que demandam a aplicação do Princípio da Precaução, pois, naqueles casos, a certeza acerca da periculosidade por si só demonstra a necessidade de que sejam tomadas medidas para evitar a produção dos resultados danosos derivados de tal conduta. Como já exposto anteriormente, o Princípio da Precaução tem como âmbito de incidência as situações onde inexiste certeza acerca dos potenciais riscos que podem advir da prática em questão. No entanto, conforme o já abordado, para a imposição de medidas de precaução, não basta a inexistência de certeza científica acerca da inocuidade de dada atividade ou produto. É essencial que haja a constatação de indícios mínimos de risco. Neste sentido, para que se possa aventar a aplicação do Princípio da Precaução, é necessário que a suspeita acerca da periculosidade vá além de um mero “palpite”, ou seja, que tenha base científica.364 Exige-se, assim, que esta suspeita esteja embasada na real constatação preliminar de indícios de que a atividade ou produto possam significar um risco, o que justificaria a imposição de medidas de precaução.365 De fato, esta exigência de um patamar mínimo de elementos preliminares acerca da periculosidade da conduta vem atender à necessidade de que o Princípio da Precaução seja aplicado com cautela, sobretudo por tratar-se de princípio a ser aplicado no caso de existência de dúvidas acerca de processos tecnológicos que tem como uma de suas principais características justamente essa sua aura de incertezas. Assim, se por um lado este princípio visa prevenir a produção de riscos por meio da aplicação de tecnologias sobre cujas inocuidades não se tem certeza, por outro não pode atuar como um obstáculo intransponível à evolução das tecnologias, sobretudo em áreas como a da medicina e da bio-química. 364 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 11. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008. p. 35. BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 61. 365 121 4.2 O DIREITO PENAL DO RISCO Conforme o que foi abordado até o presente momento, o advento da sociedade de risco revela uma série de problemas inerentes à modernidade, aos quais a sociedade responde sobretudo através de um crescente sentimento de insegurança. Esta insegurança, que recai sobre tudo aquilo que cerca a sociedade, implica no surgimento de uma cada vez maior demanda social por segurança frente aos potenciais riscos associados ao contínuo desenvolvimento dos processos tecnológicos. Estes riscos, por suas características, não mais são vistos como possíveis de serem reparados, de forma que se opera uma mudança na atitude que se deseja seja tomada em relação aos mesmos. A partir do advento da sociedade de riscos, a demanda por prevenção e precaução substitui a demanda por reparação. No Direito Ambiental, surge o Princípio da Precaução, que inaugura um novo paradigma de evitação dos riscos. Este novo discurso, não obstante, em determinado momento rompe as barreiras do Direito Ambiental e do Direito Administrativo, e ingressa do discurso penal, dando origem àquilo que pode ser conhecido por Direito Penal do Risco. Sobre este ingresso do discurso de prevenção e precaução no sistema penal, Marta Rodriguez de Assis Machado afirma que no marco da sociedade mundial do risco, o surgimento de novas situações arriscadas, as incertezas e inseguranças criadas pelos riscos tecnológicos determinam uma crescente demanda social por segurança, que se revela 366 normativa e substancialmente direcionada ao sistema penal. De fato, confrontada pela potencial gravidade e incomensuráveis dimensões dos novos riscos, a sociedade imediatamente busca socorro ao mais grave instrumento de tutela de que dispõe o Estado: o Direito Penal.367 Neste sentido, Blanca Mendoza Buergo ensina que 366 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 93. 367 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 93. 122 ante a gravidade com a que se percebem pela opinião pública e pelo Estado os novos riscos e as situações que estes provocam, que geram, por sua vez, uma considerável sensação de insegurança entre os cidadãos, a reação claramente constatável é a de acudir à resposta penal como forma de controle que se considera a adequada por sua máxima severidade (...). Neste sentido, quanto mais grave for o dano temido, mais justificável se considera acudir ao Direito penal em sua qualidade de resposta mais dura 368 do controle social [tradução livre]. Esta fuga ao Direito Penal implica em uma notável ampliação de seu campo de atuação, bem como em uma relevante modificação de sua função esperada. Frente a esta seara de novos riscos tecnológicos, não mais se exige e espera do Direito Penal uma função de tutela subsidiária de bens jurídicos, mas uma função promocional de valores e regulamentadora de questões envolvendo temas relativos ao meio-ambiente, à saúde-pública, à salubridade de produtos destinados a consumo, dentre outros.369 Estes novos fenômenos da sociedade de risco levantam uma série de problemas no que toca à aptidão de o Direito Penal, em sua vertente clássica, oferecer soluções capazes de responder às demandas de insegurança social típicas do novo modelo de configuração social. Figueiredo Dias, nesta linha, afirma que “diz-se, para tutela destes ‘novos’ ou ‘grandes’ riscos (...) não está o direito penal que cultivamos, de decidida vertente liberal, suficientemente preparado”.370 Neste contexto, verifica-se toda uma gama de incompatibilidades entre as demandas surgidas com a sociedade de risco e a capacidade e modo de atuação dos institutos penais liberais, o que vem a reclamar uma série de adequações e flexibilizações nestes institutos penais.371 De fato, nas palavras de Blanca Mendoza Buergo, 368 “Ante la gravedad con la que se perciben por la opinión pública y por el Estado los nuevos riesgos y las situaciones que éstos provocan, que generan, a su vez, una considerable sensación de inseguridad entre los ciudadanos, la reacción claramente constatable es la de acudir a la respuesta penal como forma de control que se considera la adecuada por su máxima severidad (…). En este sentido, cuanto más grave sea el daño temido, más justificado se considera acudir al Derecho penal en su calidad de respuesta más dura del control social”. MENDOZA BUERGO, Blanca. El Derecho Penal en la Sociedad Del Riesgo. Madrid: Civitas, 2001. p. 36. 369 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 95. 370 DIAS, Jorge de Figueiredo. Temas Básicos da Doutrina Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2001. p. 159. 371 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 97. 123 estas características dos fenômenos a tratar provocam, por sua vez, dificuldades para que as estruturas de imputação e tratamento jurídico das atividades arriscadas possam oferecer uma resposta eficaz sem operar transformações ou proceder a interpretações flexíveis ou adaptadas de 372 modo forçada às novas necessidades [tradução livre]. Complementa, a autora, afirmando no sentido de que os novos setores expostos ao sistema penal trazem consigo também novos e complexos problemas, os quais não podem ser satisfatoriamente resolvidos pelo velho modelo liberal de atuar do Direito Penal.373 Neste sentido, Maria Carmem Alastuey Dobón afirma que, por mais que se pretenda responder as demandas sociais de segurança recorrendo-se ao Direito Penal, este encontrará sérias dificuldade para controlar os novos riscos, a não ser que abdique de suas garantias e princípios tradicionais.374 Estas transformações e flexibilizações que vêm se manifestar no Direito Penal demonstram e atendem a uma tendência de configuração de um Direito Penal preventivo, cuja atuação se dê de forma acentuadamente antecipada.375 Neste sentido, Marta Rodriguez de Assis Machado ensina que tendo em vista que os riscos de que se trata na sociedade contemporânea têm dimensões gigantescas, tendentes à destruição da humanidade, a idéia que permeia os anseios por tutela é a de que a materialização desses fenômenos deve ser evitada e prevenida a qualquer custo. Daí porque se rejeita o modelo de direito penal de resultados, que atua, repressivamente, após a conformação do dano, sendo mais conveniente a antecipação da 376 proteção penal a esferas anteriores ao dano e ao próprio perigo. De fato, a demanda por precaução e prevenção de riscos que possam implicar em danos no futuro não pode ser atendida por um Direito Penal que atue, como sempre atuou, de forma repressiva e somente após a concretização de uma 372 “Estas características de los fenómenos a tratar provocan, a su vez, dificultades para que las estructuras de imputación y tratamiento jurídico de las actividades arriesgadas puedan ofrecer una respuesta eficaz sin operar transformaciones o proceder a interpretaciones flexibles o adaptadas de modo forzado a las nuevas necesidades”. MENDOZA BUERGO, Blanca. El Derecho Penal en la Sociedad Del Riesgo. Madrid: Civitas, 2001. p. 43. 373 MENDOZA BUERGO, Blanca. El Derecho Penal en la Sociedad Del Riesgo. Madrid: Civitas, 2001. p. 49. 374 ALASTUEY DOBÓN, Maria Carmen. Consideraciones Sobre el Objeto de Protección en el Derecho Penal del Medio Ambiente. In. PRADO, Luiz Regis (Coord.). Direito Penal Contemporâneo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 209. 375 MENDOZA BUERGO, Blanca. El Derecho Penal en la Sociedad Del Riesgo. Madrid: Civitas, 2001. p. 44. 376 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 96. 124 lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado. Para atender às novas demandas da sociedade de risco, é preciso que o Direito Penal atue de forma preventiva, voltando-se à prevenção do dano, ou seja, agindo em momento anterior a concretização deste ou mesmo da própria constatação de um perigo. Nas palavras de Jésus-María Silva Sanches, “a combinação da introdução de novos objetos de proteção com antecipação das fronteiras da proteção penal vem propiciando uma transição rápida do modelo ‘direito de lesão a bens individuais’ ao modelo ‘delito de perigo para bens supra individuais’”.377 Sem embargo, o Direito Penal ao ser submetido às demandas típicas de uma sociedade de risco, torna-se um Direito Penal de prevenção – ou de precaução – incorporando o Princípio da Precaução como princípio orientador de sua atuação, a fim de fortalecer todo um sistema de resposta às demandas sociais por maior segurança e controle.378 Estas modificações que sofre o Direito Penal a fim de se adequar como um Direito Penal de prevenção de riscos situam-se de forma mais notável em alguns pontos específicos. Segundo Marta Rodriguez de Assis Machado, essa adequação do Direito Penal à sociedade de risco se dá sobretudo em três frentes: (i) a de ampliar a proteção penal a bens jurídicos supra-individuais; (ii) a de alargar e antecipar a tutela penal, abandonando a lesão ao bem jurídico como centro gravitacional do sistema para criminalizar as inobservâncias aos deveres de conduta e organização, mediante o uso habitual dos tipos de perigo abstrato; e (iii) a de repensar o conceito de culpabilidade para 379 abarcar não só as pessoas físicas, mas também as pessoas jurídicas. De forma semelhante, Hassemer aponta que estas inovações no Direito Penal, que, para o autor, se afasta de um modelo clássico de Direito Penal na direção do que chama de Direito Penal moderno, se dão sobretudo em três aspectos.380 377 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 113. 378 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. pp. 64-65. 379 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 99. 380 HASSEMER, Winfried. Características e Crises do Moderno Direto Penal. in Revista de Estudos Criminais. N. 08. Porto Alegre: PUC-RS, 2003. pp. 60-61 125 Primeiramente, verifica-se uma ampliação da área de atuação do Direito Penal, que se caracteriza pela sua aplicação cada vez mais a novos bens jurídicos como o meio-ambiente. Num segundo aspecto, estas inovações recaem sobre os instrumentos de que dispõe o Direito Penal, a fim de que se tornem mais adequados aos interesses de ampliação da capacidade do Direito Penal. Neste sentido, a função de proteção de bens jurídicos é progressivamente substituída por uma função de proteção das instituições, através da tutela cada vez mais freqüente de supostos bens jurídicos universais, bem como, a fim de facilitar-se a imputação, amplia-se o recurso a tipificação de crimes de perigo abstrato. Por fim, estas inovações revelam uma modificação nas funções do Direito Penal, que cada vez mais passa a ser utilizado como instrumento de defesa da política interna. Sobre isto, Hassemer coloca que “em vez de chegar a uma resposta a um injusto e à compensação por meio da reação justa, [o Direito Penal] leva agora à prevenção dos futuros injustos ou até mesmo ao vencimento de futuras desordens”.381 Ademais, não se pode deixar de considerar como relevantes outras flexibilizações nos institutos jurídicos penais clássicos, como o crescente recurso a normas penais em branco. 4.2.1 A Desmaterialização do Bem Jurídico Dentre as principais flexibilizações que sofre o Direito Penal a fim de adequar-se ao paradigma da sociedade de risco está aquilo que pode ser nominado de processo de desmaterialização dos bens jurídicos. Este processo significa o progressivo afastamento do conceito de bem jurídico-penal daquela sua acepção clássica lastreada na relação entre o bem e o indivíduo. 381 HASSEMER, Winfried. Características e Crises do Moderno Direto Penal. in Revista de Estudos Criminais. N. 08. Porto Alegre: PUC-RS, 2003. p. 61. 126 Conforme a lição de Blanca Mendoza Buergo, dentro do círculo de temas problemáticos que envolvem a evolução do moderno Direito Penal, a questão do bem jurídico é sempre colocada em destaque. Segundo a autora, esta questão consiste basicamente na percepção de que o atual desenvolvimento do Direito Penal, sob influência do contexto dos novos riscos, revela uma tendência de dissolução do conceito de bem jurídico, que gradualmente abandona um modelo de bens jurídicos individuais de contornos claros, para assumir um modelo de bens jurídicos supra-individuais de contornos vagos e imprecisos.382 Neste sentido, o conceito de bem jurídico esteve, historicamente, lastreado na relação da pessoa com o bem. Segundo tal premissa, o objeto da violação reside não no bem em si, mas na sua relação com o sujeito – o que constitui o substrato antropocêntrico da teoria tradicional do bem jurídico, denominada 383 monista pessoal. Guillermo Jorge Yacobucci, procedendo a uma análise do significado histórico do bem jurídico, afirma que “está claro que o centro da noção de bem jurídico se relaciona com a pessoa que vive em sociedade, com seu desenvolvimento dentro desta e seu modo de vincular-se com os terceiros”.384 De fato, na lição de Paulo César Busato e Karin Kässmayer, a idéia de um bem jurídico como objeto de proteção da normal penal foi precedida pela concepção de que o que esta tutelava seriam direitos subjetivos. Nesta concepção, Feuerbach, partindo de um modelo contratualista de Estado, entendia que o delito nada mais era do que a violação de um direito oriundo do contrato social.385 Sustentou Feuerbach que “aquele que lesiona a liberdade garantida pelo contrato social e assegurada mediante leis penais, comete um crime. Portanto 382 MENDOZA BUERGO, Blanca. El Derecho Penal en la Sociedad Del Riesgo. Madrid: Civitas, 2001. p. 68. 383 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 105. 384 YACOBUCCI, Gillermo Jorge. As Grandes Transformações do Direito Penal Tradicional. Trad. Lauren Paoletti Stefanini. In YACOBUCCI, Gillermo Jorge, GOMES, Luiz Flávio. As Grandes Transformações do Direito Penal Tradicional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 79. 385 BUSATO, Paulo César, KÄSSMAYER, Karin. A Legitimidade da Proteção Penal do Bem Jurídico Meio Ambiente. In Direito e Risco: o direito do ambiente na sociedade de risco. Curitiba: UNIFAE, 2008. pp. 13-14. 127 crime é (...) uma ação contrária ao direito do outro, cominada em uma lei penal [tradução livre]”.386 Assim, “Feuerbach sustentou que o Direito Penal protege os ‘direitos subjetivos’ dos particulares e não a necessidade de cumprimento de um dever para com o Estado”.387 Com Birnbaum, no entanto, rechaça-se a tese de que o objeto de tutela do Direito Penal seria um direito individual, substituindo-se esta idéia pela noção de bem jurídico. Para este autor, “se se quer tratar o delito como lesão, o essencial é, e ponho acento nisso, relacionar necessariamente este conceito com a sua natureza; não com um direito, senão com um bem (...) é sempre o bem, não o direito, o que se vê diminuído”.388 Sobre a concepção de Birnbaum, Paulo César Busato e Karin Kässmayer ensinam que a noção do bem jurídico surge da percepção de que o direito subjetivo não pode ser diminuído ou subtraído pelo delito, mas tão somente o objeto sobre o qual recai aquele direito. Com isso, cria-se a noção de que se o delito é uma lesão, esta lesão não se dá no direito subjetivo, mas no bem objeto desse direito, ou seja, no bem jurídico, cuja titularidade recai no cidadão.389 Com Binding e seu positivismo jurídico, o bem jurídico perde sua matriz iluminista de proteção do cidadão, a qual apenas é reintroduzida na dogmática penal pelas teorias sociológicas do bem jurídico.390 Dentre as concepções sociológicas do bem jurídico, destaque deve ser feito à teoria defendida por Hassemer. Para o autor, a partir de uma concepção 386 “El que lesiona la libertad garantizada por el contrato social y asegurada mediante leyes penales, comete un crimen. Por ende, crimen es (…) una acción contraria al derecho del otro, conminada en una ley penal”. FEUERBACH, Paul Johann Anselm Ritter von. Tratado de Derecho Penal. 14. ed. Trad. Eugenio Raúl Zaffaroni, Irma Hagemeier. Buenos Aires: Hammurabi, 2007. p. 55. 387 BUSATO, Paulo César, KÄSSMAYER, Karin. A Legitimidade da Proteção Penal do Bem Jurídico Meio Ambiente. In Direito e Risco: o direito do ambiente na sociedade de risco. Curitiba: UNIFAE, 2008. p. 14. 388 BIRNBAUM apud GOMES, Luiz Flávio, et al. Direito Penal: introdução e princípios fundamentais. V. 1. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 254. 389 BUSATO, Paulo César, KÄSSMAYER, Karin. A Legitimidade da Proteção Penal do Bem Jurídico Meio Ambiente. In Direito e Risco: o direito do ambiente na sociedade de risco. Curitiba: UNIFAE, 2008. p. 14. 390 GOMES, Luiz Flávio, et al. Direito Penal: introdução e princípios fundamentais. V. 1. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. pp. 255-258. 128 monista pessoal do bem jurídico, este pode ser definido como um interesse humano necessitado de proteção penal.391 Para esta concepção monista pessoal, ou personalista, do bem jurídico, os bens jurídicos supra-individuais não seriam tutelados de forma autônoma pelo Direito Penal, mas sua tutela seria um meio de se tutelar, indiretamente, bens jurídicos individuais.392 Paulo César Busato e Karin Kässmayer, posicionado-se pela adoção de uma concepção monista pessoal do bem jurídico, ensinam que a teoria monista personalista identifica o bem jurídico coletivo só na medida em que serve ao desenvolvimento pessoal do indivíduo. Trata-se de uma prevalência do individual sobre o coletivo. Nossa preferência [por esta teoria] provém do fato de que a teoria monista personalista é a que melhor responde aos pressupostos democráticos 393 adequados à proteção do indivíduo. Esta concepção monista do bem jurídico contrapõe-se a uma concepção dualista do bem jurídico, na qual se admite a existência de duas espécies distintas dentro do gênero bem jurídico: os bens jurídicos individuais e os bens jurídicos coletivos, sendo que estes seriam absolutamente independentes de qualquer referencial individual antropocêntrico. Esta concepção monista personalista, ademais, é aquela que melhor corresponde às noções originárias do bem jurídico como objeto de proteção da norma penal fundadas no iluminismo. Sobre a teoria do bem jurídico, Marta Rodriguez de Assis Machado ensina que “a toda norma jurídico-penal subjazem juízos de valor positivo sobre bens vitais imprescindíveis para a satisfação das necessidades humanas, e, portanto, para a convivência humana em sociedade”.394 391 BUSATO, Paulo César, KÄSSMAYER, Karin. A Legitimidade da Proteção Penal do Bem Jurídico Meio Ambiente. In Direito e Risco: o direito do ambiente na sociedade de risco. Curitiba: UNIFAE, 2008. p. 26. 392 ALASTUEY DOBÓN, Maria Carmen. Consideraciones Sobre el Objeto de Protección en el Derecho Penal del Medio Ambiente. In. PRADO, Luiz Regis (Coord.). Direito Penal Contemporâneo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 215. 393 BUSATO, Paulo César, KÄSSMAYER, Karin. A Legitimidade da Proteção Penal do Bem Jurídico Meio Ambiente. In Direito e Risco: o direito do ambiente na sociedade de risco. Curitiba: UNIFAE, 2008. p. 28. 394 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 104. 129 Para a autora, é essa imprescindibilidade destes valores, destes bens, ao ser humano em sociedade que os fazem merecedores de proteção estatal por meio do Direito Penal. Ademais, continua a autora no sentido de que, a fim de afastar o perigo de que a teoria do bem jurídico viesse, como efetivamente veio em determinados momentos, levar a uma tendência de super-criminalização ou de perda do referencial antropocêntrico do Direito Penal, “conferiu-se ao conceito de bem jurídico uma referência central ao indivíduo”.395 Assim, a idéia chave dessa teoria é a de que só ascendem à condição de bens jurídicos [penais] objetos que tenham um conteúdo de valor para o desenvolvimento do homem em sociedade. E, em contrapartida, aquilo que 396 não afeta as possibilidade de realização individual não é punível. No entanto, em virtude das pressões exercidas no Direito Penal pelas demandas sociais de segurança oriundas de uma sociedade de risco, o instituto do bem jurídico vem sofrendo o que se poderia denominar de um processo de desmaterialização, sobretudo em função da incorporação cada vez maior de bens jurídicos supra-individuais dentro do rol de bens jurídicos penalmente tutelados. Neste sentido, Guillermo Jorge Yacobucci afirma que “as dificuldades que atravessa a noção de bem jurídico não parecem ser fruto de uma planejada finalidade antigarantista senão dos novos objetos que exigem proteção penal”.397 E complementa, no sentido de ser possível verificar-se que “não existe a intenção de abandonar o conceito ou mesmo sua função limitativa, porém isso acontece quando se tenta dotá-los de certa aptidão para enfrentar as novas incumbências do direito penal em campos como o econômico, do meio ambiente etc”.398 De fato, a fim de adequar-se às demandas oriundas da sociedade de risco, o Direito Penal passa a direcionar sua atuação a novos bens jurídicos. O foco 395 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 104. 396 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 105. 397 YACOBUCCI, Gillermo Jorge. As Grandes Transformações do Direito Penal Tradicional. Trad. Lauren Paoletti Stefanini. In YACOBUCCI, Gillermo Jorge, GOMES, Luiz Flávio. As Grandes Transformações do Direito Penal Tradicional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 74. 398 YACOBUCCI, Gillermo Jorge. As Grandes Transformações do Direito Penal Tradicional. Trad. Lauren Paoletti Stefanini. In YACOBUCCI, Gillermo Jorge, GOMES, Luiz Flávio. As Grandes Transformações do Direito Penal Tradicional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 74. 130 da atuação penal deixa de ser a retribuição de lesões concretas a bens jurídicos individuais, movendo-se para a tutela preventiva de situações problemáticas envolvendo bens jurídicos supra-individuais de conteúdo amplo e abstrato.399 Neste sentido, Hassemer coloca que no moderno Direito Penal a proteção de bens jurídicos transforma-se na proteção de instituições, de forma que a tutela penal passa a dirigir-se não mais a bens jurídicos individuais, mas a bens jurídicos universais, os quais são formulados de modo extremamente abstrato, vago e trivial.400 Este processo de desmaterialização do bem jurídico, ensina Marta Rodriguez de Assis Machado, tem seus antecedentes vinculados à forma de intervenção estatal típica de Estados dirigistas. Neste sentido, a autora faz remissão à lição de Filippo Sgubbi que, analisando a política criminal dos Estado Social, identificou dois processos de ampliação da proteção penal de bens jurídicos que se alinham à idéia de desmaterialização deste instituto.401 Estes dois processos podem ser referidos como a criação artificial de bens jurídicos e a nacionalização de bens jurídicos. O primeiro destes processos, da criação artificial de bens jurídicos, refere-se à tendência de se proteger por meio do Direito Penal bens jurídicos supraindividuais institucionais, que coincidem verdadeiramente com os fins estatais, sobretudo em matéria de regulação. Tal tendência pode ser verificada através de toda uma série de incriminações nas quais se proíbe a realização de determinada conduta sem autorização prévia da autoridade competente, ou em desacordo com as determinações de ato administrativo ou autoridade administrativa. O segundo processo identificado por Sgubbi, por sua vez, significa a nacionalização do bem jurídico, ou seja, sua expropriação pelo Estado de seus titulares originários a fim de que se o proteja enquanto interesse estatal, e não mais pertencente a cidadão individual ou coletivamente considerados. Estes dois processos se fundam na idéia típica do Estado Social de que uma melhor forma de otimizar o aproveitamento dos bens jurídicos seria obtida 399 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 106. 400 HASSEMER, Winfried. Características e Crises do Moderno Direto Penal. in Revista de Estudos Criminais. N. 08. Porto Alegre: PUC-RS, 2003. p. 60. 401 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 108. 131 pela sua regulamentação pública. Assim, a fim de regular e organizar setores, interesses ou situações relevantes, o Estado Social, por meio da apropriação ou da criação artificial, eleva estes ao patamar de bens jurídicos, fazendo incidir sobre eles normas penais a fim de operacionalizar políticas estatais relativas aos mesmos.402 Neste sentido, Hassemer aponta que o Direito Penal tende muito menos a reação às lesões mais graves ao interesse de liberdade dos cidadãos e tende a se tornar muito mais um instrumento de defesa da política interna. Desse modo, ele desocupa, inclusive, a sua posição no elenco dos âmbitos do Direito e aproxima-se das funções do Direito Civil ou do Direito Administrativo. (...) Em outras palavras, de agora em diante, também no Direito Penal não se trata mais 403 de dar uma resposta apropriada ao passado, mas da domação do futuro. De fato, nas palavras de Marta Rodriguez de Assis Machado, “no lugar da garantia do desenvolvimento natural da livre persecução de fins individuais surge, no Estado de bem-estar social, uma política criminal voltada a colaborar com a organização artificial das finalidades do Estado”.404 No mesmo sentido, Blanca Mendoza Buergo afirma que esta tendência à introdução de bens jurídicos trans-individuais, que teve origem no Estado Social, se acentua particularmente em um Direito Penal próprio da sociedade de risco. Segundo a autora, esta tendência revela a opção por uma substituição do paradigma de um Direito Penal que proíbe lesões a bens jurídicos individuais por um paradigma penal de repressão a inobservância de normas organizativas.405 Nestes casos, fica-se diante de uma situação onde determinada conduta fica sujeita a uma pena criminal sem que, no entanto, se mostre lesiva ou exponha a perigo de lesão um bem jurídico propriamente dito. Estes dois processos podem ser considerados como o embrião do processo de desmaterialização do bem jurídico, que vem a se acentuar de forma exponencial a partir do momento em que as demandas por segurança da sociedade de risco voltam-se ao Direito Penal. Neste contexto, em virtude da iminência dos riscos tecnológicos, o Direito Penal afasta-se de seu objeto de tutela tradicional, os 402 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 109. 403 HASSEMER, Winfried. Características e Crises do Moderno Direto Penal. in Revista de Estudos Criminais. N. 08. Porto Alegre: PUC-RS, 2003. p. 61. 404 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 109. 405 MENDOZA BUERGO, Blanca. El Derecho Penal en la Sociedad Del Riesgo. Madrid: Civitas, 2001. pp. 68-69. 132 bens jurídicos individuais, voltando-se à tutela de novos bens jurídicos supraindividuais, no intuito de proteger instituições e modelos de organização, bem como de fornecer reforço a normas e funções administrativas.406 Neste contexto, Marta Rodriguez de Assis Machado aponta que este fenômeno de afastamento do Direito Penal de sua tradicional forma de atuação frente a lesões a bens jurídicos concretos de matriz claramente antropocêntrica, o qual vem sendo denominado, dentre outros, de desmaterialização, espiritualização ou dinamização do bem jurídico, traz uma série de conseqüências outras para além da teoria do bem jurídico, afetando outros da dogmática penal adjacentes a esta questão, ou seja, impondo um novo modo de atuar ao Direito Penal.407 4.2.2 Os Crimes de Perigo Abstrato A primeira destas conseqüências resultantes deste processo de desmaterialização do bem jurídico é o notável aumento da utilização de incriminações de perigo, sobretudo através de tipificações de perigo abstrato. Segundo a lição de Blanca Mendoza Buergo, torna-se claro que um dos traços que mais claramente caracteriza este Direito penal moderno é a crescente utilização na maioria das reformas penais da técnica dos tipos de perigo abstrato (...) com a finalidade confessa de ampliar a capacidade de resposta e a eficácia no controle de 408 condutas [tradução livre]. Conforme visto, o advento da sociedade de risco em sua etapa da reflexão, na qual a sociedade toma consciência dos riscos derivados do processo de modernização, resulta em um crescente sentimento de insegurança e, consequentemente, no surgimento de uma demanda social por segurança. Esta 406 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. pp. 110-111. 407 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 112. 408 “Resulta manifiesto que uno de los rasgos que más claramente caracteriza este Derecho penal moderno es la creciente utilización en la mayoría de las reformas penales de la técnica de los tipos de peligro abstracto (…) con la finalidad confesada de ampliar la capacidad de respuesta y la eficacia en el control de conductas”. MENDOZA BUERGO, Blanca. El Derecho Penal en la Sociedad Del Riesgo. Madrid: Civitas, 2001. p. 78. 133 demanda por segurança, dentro de um modelo de sociedade de risco, representa uma pretensão de precaução e prevenção de novos riscos. Face a esta demanda por segurança frente aos novos riscos tecnológicos, emerge o paradigma da evitação como contraposto ao paradigma da reparação de danos. Neste contexto, o Princípio da Precaução vem a exercer papel fundamental dentro do direito ambiental, do direito sanitário, do direito das relações de consumo, dentre outros. As regras de precaução, no entanto, demandam a existência de outros instrumentos a fim de obterem efetividade. Estes instrumentos podem funcionar através de medidas de estímulo a suas observâncias, medidas que estabelecem incentivos à adoção de comportamentos de precaução, ou de medidas de inibição de condutas, medidas que impõem conseqüências negativas associadas à tomada de determinada atitude.409 Dentre estas medidas de inibição de condutas vedadas por regras de precaução está o recurso à criminalização destas condutas, ou seja, a “utilização do Direito Penal como mecanismo de reforço e de efetivação das normas de precaução”.410 Assim, a fim de robustecer um sistema de gerenciamento de riscos pautado em regras de precaução, sistema este que visa responder às demandas sociais de maior segurança frente aos riscos tecnológicos, o Direito Penal passa a atuar como mecanismo de reforço destas regras de precaução, buscando, através da ameaça da pena, afastar a realização de condutas contrárias a estas normas. Neste sentido, Paulo Silva Fernandes aponta que esses interesses demandam uma tutela antecipada do bem jurídico, razão pela qual sua proteção é feita sobremaneira através de tipificações de crimes de perigo.411 Na mesma linha, Marta Rodriguez de Assis Machado ensina que é nessa linha de atuação que se insere um tendência de criminalização em âmbito prévio, cujo principal instrumento é o uso crescente das incriminações de perigo e, em maior medida, dos tipos de perigo abstrato, 409 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 64 410 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 64. 411 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “Sociedade de Risco” e o Futuro do Direito Penal: Panorâmica de Alguns Problemas Comuns. Coimbra: Almedina, 2001. p. 89. 134 que são por excelência categorias voltadas à antecipação da intervenção 412 penal estatal. A utilização crescente de crimes de perigo, sobretudo crimes de perigo abstrato, justifica-se pela própria estrutura dogmática desta espécie de delito, a qual possibilita a concretização de pretensões de antecipação da tutela penal. De fato, contrapostos aos crimes de perigo estão os crimes de dano ou de lesão, nos quais, para que se fale na consumação do fato, é necessário que o objeto da ação venha a ser realmente lesado.413 Nestes crimes, tem-se que “a realização do tipo incriminador tem como conseqüência uma lesão efetiva do bem jurídico”.414 Através da utilização destes crimes de dano ou de lesão, o Direito Penal atua de forma marcadamente retributiva após a realização pelo agente de uma conduta danosa ao bem jurídico tutelado. Esta estratégia de criminalização corresponde ao modelo típico de atuação do Direito Penal em sua acepção clássica na tutela de bens jurídicos individuais. Nos crimes de perigo, por sua vez, a realização do tipo não pressupõe a efetiva lesão ao bem jurídico tutelado, mas tão somente sua colocação, em maior ou menor grau, em um estado de perigo. Nestes crimes, dispensa-se a efetiva produção do resultado, antecipando-se a tutela penal a um momento prévio. Estes crimes de perigo podem ser divididos em crimes de perigo concreto e crimes de perigo abstrato. Na lição de Figueiredo Dias, nos crimes de perigo concreto, “o perigo faz parte do tipo, isto é, o tipo só é preenchido quando o bem jurídico tenha efectivamente sido posto em perigo”.415 Segundo Marta Rodriguez de Assis Machado, os tipos de perigo diferem dos de dano pois retratam uma conduta típica que, para se consumar, prescinde da produção do resultado lesivo ao bem jurídico, implicando simplesmente uma possível ameaça de produção de tal efeito. Ocorre, assim, um claro adiantamento da proteção do bem a fases 412 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade IBCCRIM, 2005. p. 129. 413 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General, Tomo Madrid: Civitas, 1997. p. 336. 414 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral. 2007. p. 309. 415 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral. 2007. p. 309. do Risco e Direito Penal. São Paulo: I. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña, et al. Tomo I. São Paulo; Revista dos Tribunais, Tomo I. São Paulo; Revista dos Tribunais, 135 anteriores à efetiva lesão. Dito de outra maneira, se pensarmos o bem jurídico como uma entidade que comporta várias zonas periféricas suscetíveis de proteção, o delito de lesão atingiria o seu núcleo central, enquanto o delito de perigo situar-se-ia em zonas antecipadas de proteção. Em realidade, pode-se dizer que apenas os tipos de perigo concreto chegam a influir nessas esferas de proteção, pois eles exigem um verdadeiro desvalor de resultado, que consiste, precisamente, na concreta colocação em perigo do bem. Melhor dizendo, embora não se solidifiquem em alterações reais, sensíveis ao bem jurídico – uma vez que não acarretam lesão -, devem produzir um tipo de resultado objetivo de pôr-em416 perigo, que é o atingimento de uma dessas esferas de proteção. Assim, tem-se que os crimes de perigo concreto representam um primeiro passo no sentido da antecipação da tutela penal, pois através desta técnica de tipificação, dispensa-se a ocorrência concreta de um dano ao bem jurídico, possibilitando a intervenção penal quando da mera exposição do bem jurídico a um perigo efetivo. Neste sentido, o crime de perigo concreto exige que o bem jurídico venha a entrar efetivamente no raio de ação da conduta perigosa, trazendo a necessidade de um duplo juízo de verificação: “não só um juízo ex ante, mas também um juízo ex post de alta probabilidade de dano ao bem jurídico”.417 De fato, nestes crimes de perigo concreto verifica-se uma dupla verificação do perigo ao bem jurídico. Em um primeiro momento, verifica-se através de um juízo prévio que determinada conduta, se praticada, significaria uma grande probabilidade de lesão a um bem jurídico. Em um segundo momento, após a prática da conduta, verifica-se se a conduta concreta efetivamente gerou uma crise no bem jurídico, ou seja, deu origem a uma situação de concreto perigo ao mesmo. Situação diferente ocorre com os crimes de perigo abstrato. Quanto a estes, ensina Roxin que a periculosidade típica de uma ação é motivo suficiente para a sua criminalização, sem que se exija, para a consumação do ilícito e sua punibilidade, que no caso concreto se verifique a produção real do perigo ao bem jurídico.418 416 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 129. 417 D’AVILA, Fábio Roberto. O Ilícito Penal nos Crimes Ambientais. Algumas reflexões sobre a ofensa a bens jurídicos e os crimes de perigo abstrato no âmbito do direito penal ambiental. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 67. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 36. 418 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General, Tomo I. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña, et al. Madrid: Civitas, 1997. p. 336. 136 Trata-se da “técnica utilizada pelo legislador para atribuir a qualidade de crime a determinadas condutas, independentemente da produção de um resultado externo”.419 Segundo Fábio Roberto D’Avila, o que torna peculiar o crime de perigo abstrato é o fato de que este dispensa o segundo juízo de verificação do perigo, ou seja o juízo ex post, necessário para a configuração do crime de perigo concreto. Assim, inexige-se a existência concreta de um bem jurídico no raio de ação da conduta, de forma que a periculosidade da mesma, ou seja, sua aptidão para colocar em perigo o bem jurídico, verifica-se exclusivamente através de um juízo ex ante.420 Neste sentido, Paulo Silva Fernandes coloca que os crimes de perigo abstrato supõem (...) uma antecipação da tutela a um ponto anterior a lesão, bastando-se com a probabilidade da mesma, (...) na medida em que bastam-se com a mera ação, genericamente perigosa, do agente, adequada a, abstractamente e mercê de um juízo ex ante de periculosidade (ao contrário dos delitos de perigo concreto, baseados em uma racionalidade ex post), provocar uma possível lesão do bem protegido 421 pela norma. No mesmo sentido, Marta Rodriguez de Assis Machado explica que as normas de perigo abstrato proíbem condutas que não se definem por seus resultados, mas pela sua mera realização, imaginada como perigosa, sem a necessidade de que concretamente coloque o bem jurídico em perigo. Afirma, a autoria, que “a periculosidade da conduta típica é determinada ex ante, por meio de uma generalização, de um juízo hipotético do legislador, fundado na idéia de mera probabilidade”.422 Complementa, ainda, apontando que nesta espécie de incriminação, o perigo potencial atua como mero motivo da elaboração da norma proibitiva, não ingressando, no entanto, como elemento do tipo penal.423 419 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 66. 420 D’AVILA, Fábio Roberto. O Ilícito Penal nos Crimes Ambientais. Algumas reflexões sobre a ofensa a bens jurídicos e os crimes de perigo abstrato no âmbito do direito penal ambiental. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 67. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. pp. 37-38. 421 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “Sociedade de Risco” e o Futuro do Direito Penal: Panorâmica de Alguns Problemas Comuns. Coimbra: Almedina, 2001. pp. 93-94. 422 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 130. 423 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 130. 137 Pierpaolo Cruz Bottini ressalta, no entanto, que na ânsia por proteção, a própria estrutura dos crimes de perigo abstrato é flexibilizada, uma vez que as condutas que passam a ser incriminadas muitas vezes sequer apresentam uma periculosidade suficientemente demonstrada através de um juízo de verificação ex ante. Trata-se efetivamente da criação de tipos de perigo pautados pelo Princípio da Precaução, onde as incriminações recaem sobre “condutas cuja periculosidade é meramente indiciária, cujos riscos não são evidentes, apenas suspeitos”.424 Neste sentido, “a tutela [penal] não se antecipa apenas ao resultado lesivo mas, em determinados dispositivos, antecipa-se à própria constatação do risco”.425 De fato, o crescente recurso a tipos de perigo abstrato se fundamenta na já referida tendência a uma antecipação da tutela penal em relação ao momento da produção do resultado lesivo ao bem jurídico. Efetivamente, se esta espécie de crimes podia ser considerado excepcional dentro de um modelo de Direito Penal clássico pautado em regras estritas de lesividade, em um contexto de uma sociedade de risco passa a “integrar o centro da estratégia jurídico-penal voltada à proteção de bens jurídicos de caráter difuso em face dos novos riscos tecnológicos”.426 Sem embargo, a utilização da técnica de incriminação de perigo abstrato vem possibilitar que o Direito Penal possa atuar de forma funcional sobre campos em relação aos quais se mostraria inadequado se mantivesse seu modelo clássico de crimes de dano. Neste contexto, através do recurso aos crimes de perigo abstrato, pode-se superar as dificuldades inerentes ao tratamento jurídico dos novos riscos tecnológicos, uma vez que estes crimes dispensam qualquer prova da efetiva lesão ou mesmo perigo de lesão ao bem jurídico, da relação de causalidade, muitas vezes extremamente difusa, entre a conduta e seu resultado, bem como permitem que o Direito Penal atue de forma eminentemente preventiva, atendendo à demanda social de maximização de proteção e prevenção contra os novos mega-riscos.427 424 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 65. 425 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 65. 426 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 130. 427 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. pp. 132-134. 138 Neste sentido, leciona Pierpaolo Cruz Bottini que “o perigo abstrato representa o sintoma mais nítido da expansão do direito penal, na ânsia por fazer frente aos temores que acompanham o desenvolvimento científico e econômico da atualidade”.428 Desta forma, o recurso às incriminações de perigo abstrato mostra-se cada vez mais presente no moderno Direito Penal. 4.2.3 A Administrativização do Direito Penal Este contexto de crescente orientação do Direito Penal para âmbitos preventivos indica, como bem aponta Jésus-María Silva Sánchez, a sua progressiva conversão em um direito de gestão de riscos, de forma que o Direito Penal torna-se cada vez mais “administrativizado”.429 De fato, verifica-se claramente que o Direito Penal passa por um processo de administrativização, ou seja, aproxima-se cada vez mais, tanto em seus objetivos como em seu modo de atuar, do direito administrativo. Neste sentido, o Direito Penal afasta-se de suas finalidades clássicas de tutela concreta de bens jurídicos mediante critérios de lesividade e aproxima-se de finalidades típicas do direito administrativo, como a ordenação de setores de atividade e de modelos de gestão.430 Neste contexto, tal autor trabalha a constatação de que, a par do crescente do uso de crimes de perigo abstrato, o Direito Penal da sociedade de risco se administrativiza ainda pela recorrente utilização de delitos de acumulação e pela tendência a dispensar proteção penal ao Estado de Prevenção. 428 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 69. 429 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 114. 430 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 116. 139 4.2.3.1 Os Delitos de Acumulação Relativamente aos delitos de acumulação, importante a percepção de que trata-se de técnica legislativa voltada justamente a permitir que a tutela penal antecipe-se à produção do resultado, por meio da criminalização de condutas que, em que pese individualmente não possuam qualquer lesividade ao bem jurídico, se tomadas no contexto de sua repetição massificada, poderiam significar a causação de um resultado lesivo. Neste sentido, Fábio Roberto D’Avila afirma que este grupo de crimes caracteriza-se por tratar de condutas consideradas, individualmente, inofensivas em relação ao bem jurídico tutelado, mas que, quando tomadas a partir de uma hipótese de acumulação, da hipótese da sua prática por um grande número de pessoa, ou ainda, na expressão de Herzog, ‘onde iríamos parar, se todos fizessem 431 o mesmo’, se tornaria extremamente danosas. Esta técnica de tipificação tem como um de seus principais defensores Lothar Kuhlen, através de seus estudos sobre o crime de contaminação de águas do Código Penal Alemão. Em sua análise de tal tipo penal, consignou o autor que devem subsumir-se ao mesmo todos os atos concretos que realizem os elementos do tipo, ainda que contemplados exclusivamente em si mesmos não ponham em perigo sequer abstrato o bem jurídico, se foi possível supor-se que, diante da real ou iminente repetição massificada de condutas semelhantes por outros cidadãos, a acumulação de tais condutas possa vir a produzir conseqüências lesivas ao bem jurídico tutelado.432 Importante verificar que, na concepção de Kuhlen sobre os delitos de acumulação, a repetição da conduta não é algo hipotético, mas um fato que pode ser verificado em sua real ocorrência, ou, no mínimo, cuja iminência de se verificar possa ser constatada. 431 D’AVILA, Fábio Roberto. O Ilícito Penal nos Crimes Ambientais. Algumas reflexões sobre a ofensa a bens jurídicos e os crimes de perigo abstrato no âmbito do direito penal ambiental. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 67. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 45. 432 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. pp. 121-122. 140 De fato, esta-se diante de uma situação onde “cada ação isolada seria insignificante sob o ponto de vista da afetação do bem jurídico e não teria capacidade de lesioná-lo ou coloca-lo em perigo, nem mesmo se pensarmos em termos de perigo abstrato”,433 mas que “no caso da performance generalizada desta conduta, cada ação faria parte de uma cadeia de repetição cujo montante total é que realmente resultaria perigoso para bem jurídico coletivo”.434 Em que pese esta técnica de incriminação ter recebido severas críticas, dentre as quais pode destacar-se aquelas que apontam para violações aos princípios da culpabilidade e da lesividade, Kuhlen manteve sua posição favorável à utilização da mesma, argumentando que os delitos de acumulação tem o papel de “realizar uma contribuição a solução de grandes problemas mediante a proibição, sob ameaça de sanção, de ações que em suma fornecem pequenas contribuições a constituição destes problemas”.435 Sem embargo, não é de estranhar que esta estratégia de tipificação encante o legislador, uma vez que possibilita ao Direito Penal atuar de forma amplamente antecipada, atendendo aos interesses sociais de prevenção. De fato, os delitos de acumulação possibilitam a tutela penal de bens jurídicos supra-individuais de forma muito mais completa do que os tradicionais delitos de lesão, uma vez que enquanto estes apenas fariam incidir a tutela penal sobre condutas de grande repercussão, bastante excepcionais, os delitos e acumulação permitem uma tutela penal sobre condutas menores, insignificantes em si mesmas, mas que acumuladas podem vir a importar em lesão ao bem jurídico. Neste sentido, Marta Rodriguez de Assis Machado coloca que não obstante as controvérsias dogmáticas sobre o assunto, é preciso observar que a lógica dos efeitos cumulativos, de uma forma ou de outro, acaba permeando a política criminal em matéria ambiental. Pode-se imaginar que algumas das incriminações de perigo abstrato, por exemplo, possam ter, em seu substrato, além da hipótese de perigo que poderia decorrer daquela ação individual, um juízo negativo referente à generalização da conduta. De outro lado, é possível presumir que algumas incriminações de mera conduta também sejam influenciadas por essa ratio. É o caso, por exemplo, das emissões de determinada empresa que são inquinadas de ilícitas por 433 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 143. 434 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 143. 435 KUHLEN, Lothar apud SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 123. 141 superarem os níveis de concentração de substâncias tóxicas estabelecidos na norma administrativa vigente e que, se consideradas concretamente, não acarretariam perigo ou dano ao meio ambiente. Dessa forma, o efeito perigoso ou lesivo decorreria da generalização das emissões com graus de toxicidade. Nessas hipóteses, a conclusão sobre a ofensividade e a ilicitude dessa conduta, embora de modo não declarado, parece envolver uma análise global, estranha à racionalidade individualizante do direito penal 436 moderno. De fato, o recurso aos tipos de acumulação em âmbito penal demonstram de forma clara a tendência atual de o Direito Penal aproximar-se do direito administrativo, seja em suas finalidades, seja em seu modo de atuar, tornando-se, efetivamente, cada vez mais administrativizado. 4.2.3.2 A Tutela do Estado de Prevenção Esta administrativização do Direito Penal pode também ser verificada pela crescente inclinação deste ramo do direito à tutela do Estado de Prevenção, ou seja, pela inclusão dentre suas finalidades da “proteção da atividade administrativa em si mesma considerada”.437 Esta característica do moderno Direito Penal deriva da modificação operada no papel exercido pelo estado no contexto de um sistema econômico capitalista globalizado. Neste contexto, o estado abandona boa parte de sua atuação direta na economia, passando a exercer uma função de regulação e fiscalização de atividades consideradas relevantes. O estado abandona sua veste de Estado Intervencionista para assumir uma roupagem de Estado Regulador, verdadeiro estado de policia.438 Neste modelo de estado, determinados setores considerados relevantes passam a ser regulados e fiscalizados pelo aparato administrativo estatal, através de instrumentos preventivos contrafáticos, como a definição de ilícitos 436 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 145. 437 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 125. 438 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 125. 142 administrativos e cominação de suas correspondentes sanções, mas também através de instrumentos que visam um controle mais permanente de atividades consideradas importantes, como o são, por exemplo, as atividades potencialmente causadoras de riscos ao meio ambiente. Segundo Jésus-María Silva Sánchez, “tal reforço cognitivo é constituído pelas diversas vias de controle administrativo preventivo (por exemplo, os procedimentos de autorização ou licença), entre as quais desempenha um papel essencial a atuação (...) de vigilância ou inspeção”.439 Neste modelo de Estado de Prevenção, essas funções de inspeção e vigilância adquirem relevante importância para o regular funcionamento dos setores fiscalizados pelo estado. Em decorrência da importância dada a estes mecanismos, os mesmos passam a ser protegidos de possíveis interferências por meio de outros instrumentos contrafáticos, de forma que condutas atentatórias a procedimentos de vigilância e inspeção, ou ainda a mera atuação sem a necessária autorização ou licença para tal, torna-se por si só uma infração, a qual serão cominadas sanções administrativas e, não raro, sanções penais.440 A tutela penal afasta-se, assim, em larga escala do bem jurídico concretamente protegido, uma vez que o Direito Penal passa a incidir sobre a mera perturbação do regular funcionamento do aparato administrativo de supervisão e vigilância, independentemente de qualquer lesão ou perigo de lesão, ainda que meramente hipotético, a um bem jurídico. Desta forma, identifica-se que a suposta lesividade da conduta direciona-se não a um bem jurídico propriamente dito, mas à própria atividade administrativa estatal.441 De fato, pode-se afirmar, com Guillermo Jorge Yacobucci, que “o desvalor do comportamento passa a depender em maior grau da desobediência a essas normas reguladoras dos bens jurídicos que da real afetação destes”.442 439 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 126. 440 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. pp. 126-127. 441 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 129. 442 YACOBUCCI, Gillermo Jorge. As Grandes Transformações do Direito Penal Tradicional. Trad. Lauren Paoletti Stefanini. In YACOBUCCI, Gillermo Jorge, GOMES, Luiz Flávio. As Grandes Transformações do Direito Penal Tradicional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 81. 143 Em todos estes casos, o que se verifica é que o delito padrão de um Direito Penal do risco não se trata do delito de lesão a um bem jurídico, aproximando-se do conceito de delito de transgressão. De fato, em decorrência das características próprias da sociedade de risco e dos novos riscos tecnológicos, o estado assume cada vez mais tarefas de regulação e direção de comportamentos, com uma crescente utilização do Direito Penal como reforço à efetividade de comandos administrativos. Como conseqüência disto, “os tipos penais passaram a ser construídos não sobre a descrição de um fato bruto, não institucionalizado, mas sobre a violação de regras técnicas e burocráticas de administração”.443 Neste sentido Marta Rodriguez de Assis Machado afirma que estes tipos penais “incorporam comportamentos que se supõem nocivos e desviantes menos pelo impacto que causam no mundo real e mais por significarem uma violação ao padrão de segurança estabelecido”.444 De fato, o ilícito deixa de se relacionar diretamente com um bem material, ou seja, um bem jurídico concreto, passando a se manifestar como uma simples transgressão de um dever. Sobre isto, Guillermo Jorge Yacobucci afirma que retorna-se hoje a posições extremas que afirmam que o substrato substancial do delito encontra-se na desobediência à norma.445 Neste sentido, o Direito Penal passa a atuar no “interesse em obter por meio das leis penais a mera obediência a deveres de ordem administrativa, econômica e financeira que estão muito distantes da configuração de um bem jurídico com conteúdo material determinado”.446 Neste modelo de delito de transgressão, o ilícito penal consiste na infração do dever de observar uma determinada norma, concentrando o injusto muito mais no desvalor da ação que viola o standard de segurança do que no desvalor de resultado – que se faz cada vez mais difícil identificar ou mensurar. Assim, em vez do tradicional 443 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 113. 444 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 113. 445 YACOBUCCI, Gillermo Jorge. As Grandes Transformações do Direito Penal Tradicional. Trad. Lauren Paoletti Stefanini. In YACOBUCCI, Gillermo Jorge, GOMES, Luiz Flávio. As Grandes Transformações do Direito Penal Tradicional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 73. 446 YACOBUCCI, Gillermo Jorge. As Grandes Transformações do Direito Penal Tradicional. Trad. Lauren Paoletti Stefanini. In YACOBUCCI, Gillermo Jorge, GOMES, Luiz Flávio. As Grandes Transformações do Direito Penal Tradicional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. pp. 75-76. 144 elemento de lesão ao bem jurídico, aparece como pressuposto legitimador da imputação a desaprovação do comportamento que vulnera um dever 447 definido na esfera extrapenal. De fato, pelo recurso a esta técnica de incriminação, a tutela penal antecipa-se a eventual lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico, uma vez que a realização do tipo independe de qualquer afetação do mesmo, bastando-se com a inobservância do dever administrativo. Em síntese, estes delitos de transgressão consistem em crimes de mera conduta nos quais a objetividade jurídica não reside da preservação do bem jurídico, mas na manutenção da vigência da norma.448 Diante de todo este contexto, não é de surpreender que autores como Günther Jakobs venham a aproximar-se no entendimento de que não existe nenhum conteúdo genuíno das normas penais, uma vez que seus conteúdos só existem em um contexto de regulação, e, consequentemente, de que o papel exercido pelo Direito Penal dentro de uma sociedade é o de garantia das normas e da expectativa de suas observâncias.449 Neste sentido, Jakobs afirma que “o núcleo de todos os delitos apenas se encontraria no descumprimento de um dever”.450 Segundo o autor, se em determinados casos a norma exige do cidadão um comportamento negativo, o que se dá nos crimes de lesão onde a norma determina um comando de não lesionar, em outros casos a norma demanda a existência de uma relação positiva entre o sujeito e o bem jurídico, que prescreve ao indivíduo um dever de se adaptar a uma instituição em sua completude. Estas instituições são referidas como unidades funcionais, com cujo funcionamento deve o cidadão contribuir, através do cumprimento das funções e deveres a si atribuídos.451 De fato, segundo Jakobs, apenas pode-se falar em uma unidade funcional se a mesma está funcionando de forma regular e intacta, de forma que o 447 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 114. 448 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. pp. 114-115. 449 JAKOBS. Günther. Derecho Penal. Parte General: fundamentos y teoria de la imputación. Trad. Joaquin Cuello Contreras, et al. 2. ed. Madrid: Marcial Pons, 1997. pp. 44-45. 450 “El núcleo de todos los delitos sólo se hallaría en el incumplimiento de un deber”. JAKOBS. Günther. Derecho Penal. Parte General: fundamentos y teoria de la imputación. Trad. Joaquin Cuello Contreras, et al. 2. ed. Madrid: Marcial Pons, 1997. p. 53. 451 JAKOBS. Günther. Derecho Penal. Parte General: fundamentos y teoria de la imputación. Trad. Joaquin Cuello Contreras, et al. 2. ed. Madrid: Marcial Pons, 1997. pp. 52-53 145 não desempenho pelo sujeito de seu papel destrói a própria existência da mesma enquanto bem jurídico.452 Efetivamente, o papel de tutela de unidades funcionais através da tutela penal da obediência a deveres normativos é exatamente o que fundamenta os delitos de transgressão. Esta estratégia é particularmente atraente aos anseios de fornecer-se, por meio do Direito Penal, uma resposta às demandas sociais por segurança frente aos novos riscos tecnológicos, visto que proporciona uma plena antecipação da proteção penal a momentos anteriores à verificação de uma lesão ou mesmo de um perigo de lesão a um bem jurídico. Neste sentido, pode-se afirmar que a partir dessa linha político-criminal de antecipação da intervenção penal, idealizada por muito como o ponto central da estratégia de segurança contra os novos riscos, é possível vislumbrar um forte indício de que o princípio da precaução esteja por trás das formulações do direito penal do 453 risco. De fato, todo este novo modo de pensar do sistema penal deve ser visto como conseqüência do processo de desmaterialização do bem jurídico, e, de forma remota, da tentativa de adequar o Direito Penal à tutela dos novos riscos tecnológicos. 4.3 MANIFESTAÇÕES DOUTRINÁRIAS ACERCA DO DIREITO PENAL DO RISCO Diante deste cenário no qual o Direito Penal modifica seu modo de atuar através da flexibilização de alguns de seus mais relevantes institutos, a doutrina internacional se divide adotando posições das mais diversas possíveis, variando desde um veemente repúdio ao Direito Penal do risco até uma plena adesão a este. Nesta seara, assume posição central a discussão acerca de se o Direito Penal deve ou não debruçar-se sobre a nova problemática dos riscos 452 JAKOBS. Günther. Derecho Penal. Parte General: fundamentos y teoria de la imputación. Trad. Joaquin Cuello Contreras, et al. 2. ed. Madrid: Marcial Pons, 1997. p. 53. 453 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 135. 146 tecnológicos, discussão esta que abrange o tema de se o Direito Penal deve continuar pautando-se por um critério de intervenção mínima fragmentária e subsidiária. Dentre estas manifestações doutrinárias, algumas devem ser analisadas por suas especiais relevâncias. 4.3.1 A Posição de Winfried Hassemer A primeira manifestação doutrinária que deve ser analisada é a do jurista alemão Winfried Hassemer, o qual adota uma posição crítica em relação aos novos rumos que vêm tomando o Direito Penal, sobretudo na área do Direito Penal ambiental. Após identificar que o Direito Penal moderno vem se afastando das premissas iluministas de um Direito Penal clássico fundamentalmente garantista com uma velocidade crescente, Hassemer afirma que este desenvolvimento sucinta uma série de problemas específicos ao Direito Penal.454 Diante de tais problemas, que se tratam justamente do conjunto de flexibilizações que experimenta o Direito Penal a fim de se adequar à tutela dos novos riscos, indaga o autor acerca de “será que precisamos de dotar o direito penal do ambiente já existente de instrumentos mais severos ou será que necessitamos, em vez disso, de algo totalmente novo e diferente do direito penal do ambiente?”455 A este questionamento, posiciona-se no sentido de ser o Direito Penal incapaz de solucionar os modernos problemas da criminalidade na sociedade de risco, razão pela qual seria preciso refletir-se sobre algo, outro ramo do direito, que seja mais apto e mais eficaz na solução dos mesmos.456 De fato, afirma o autor que o Direito Penal pode e deve ser visto inclusive como um obstáculo a uma melhor proteção ambiental, e, de forma 454 HASSEMER, Winfried. Características e Crises do Moderno Direto Penal. in Revista de Estudos Criminais. N. 08. Porto Alegre: PUC-RS, 2003. pp. 55-56. 455 HASSEMER, Winfried. A Preservação do Ambiente Através do Direito Penal. in Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 22. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 28. 456 HASSEMER, Winfried. Perspectivas de uma Moderna Política Criminal. in Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 8. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 41. 147 semelhante, a uma proteção contra os novos riscos tecnológicos. Neste sentido, afirma que quanto mais direito penal do ambiente, menos proteção ambiental; quanto mais ampliarmos e agravarmos o direito penal do ambiente, mais estaremos a dar maus passos, pois que, a persistir nessa senda, só viremos a produzir efeitos contrários aos pretendidos: ou seja, acabaremos contribuindo para 457 uma inexorável diminuição da proteção efetiva do ambiente. Nesta linha, coloca o autor que as reformas realizadas no Direito Penal ambiental alemão na década de oitenta, cujas pretensões galgavam alcançar, para além da unificação de todo o arcabouço jurídico-penal ambiental em um único diploma legal, uma finalidade de pedagogia social, trouxe uma série de conseqüências que não podem ser ignoradas, com especial relevância para um evidente déficit de execução.458 Este déficit de execução do Direito Penal do ambiente a que se refere Hassemer significa que este ramo do direito atua com cifras negras colossais, ou seja, que mais de 95% de todos os fatos considerados criminosos não são sequer percebidos e alcançados pelo sistema penal, bem como que, nos poucos casos onde o Direito Penal ambiental atua, o faz de forma seletiva, ou seja, incidindo sobre os pequenos poluidores e nunca sobre os grandes.459 Com isso, Hassemer posiciona-se no sentido de que o Direito Penal não é o instrumento adequado para lidar com esses problemas que envolvem o direito ambiental e os novos riscos tecnológicos, e que, para que estes recebam um tratamento verdadeiramente eficiente, é preciso que sejam tutelados por um ramo do direito cujos mecanismos sejam dotados de uma forma de intervenção viva e dinâmica, os quais não estão disponíveis dentro do Direito Penal.460 Do Direito Penal, ao contrário, espera-se que mantenha seu perfil clássico garantista, com seus princípios e institutos rígidos e claros. Neste sentido, conclui o autor que “o direito penal não serve para resolver os problemas típicos da 457 HASSEMER, Winfried. A Preservação do Ambiente Através do Direito Penal. Brasileira de Ciências Criminais. N. 22. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 28. 458 HASSEMER, Winfried. A Preservação do Ambiente Através do Direito Penal. Brasileira de Ciências Criminais. N. 22. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 30. 459 HASSEMER, Winfried. A Preservação do Ambiente Através do Direito Penal. Brasileira de Ciências Criminais. N. 22. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 30. 460 HASSEMER, Winfried. A Preservação do Ambiente Através do Direito Penal. Brasileira de Ciências Criminais. N. 22. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. pp. 30-31. in Revista in Revista in Revista in Revista 148 tutela ambiental”.461 E, da mesma, forma, certamente não serve para a tutela preventiva dos mega-riscos globais. A fim de fundamentar esta sua posição, Hassemer elenca quatro razões que o levam a defender essa inaptidão do Direito Penal para a tutela dos riscos tecnológicos.462 Em primeiro lugar, alega que o Direito Penal do risco significa um modelo de Direito Penal absolutamente dependente do direito administrativo, ou seja, um Direito Penal de acessoriedade administrativa extrema. Neste formato, o Direito Penal atua exclusivamente como um instrumento auxiliar do direito administrativo, o que resulta na delegação para a administração pública da determinação do conteúdo do injusto, que passa inclusive a estar sujeito a transformar-se em objeto de negociação entre a administração e o potencial infrator, notadamente nos delitos de transgressão de violação de patamares de segurança fixados por licenças ou autorizações de operação. A segunda razão trazida por Hassemer diz respeito à imputação de responsabilidade criminal. Segundo o autor, por cominar e aplicar penas privativas de liberdade, o Direito Penal deve sempre manter critérios estritos de imputação de responsabilidades individuais, uma vez que não se pode aceitar que tais sanções sejam aplicadas com base em critérios de responsabilidade coletiva. Segundo ele, “de uma vez por todas, deveríamos nos convencer de que a imputação de responsabilidades individuais é imprescindível no direito denal e qualquer concessão a esse respeito é inaceitável”. Neste sentido, considerando que, em decorrência de suas características próprias, é praticamente impossível identificar e determinar responsabilidades individuais nos casos dos novos riscos, qualquer tentativa de tutela dos mesmos por meio do Direito Penal esbarraria ou na impossibilidade de se punir qualquer pessoa ou, em situação ainda mais indesejada, na punição de alguns de forma quase que aleatória. A terceira razão apontada pelo autor para justificar sua posição de que o Direito Penal não se mostra servível para a tutela dos novos riscos é a de que, nesta área, as finalidades da pena não são atingíveis. Neste sentido, afirma que 461 HASSEMER, Winfried. A Preservação do Ambiente Através do Direito Penal. in Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 22. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 31. 462 HASSEMER, Winfried. A Preservação do Ambiente Através do Direito Penal. in Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 22. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. pp. 31-33. 149 enquanto por um lado a ressocialização do agente não é necessária, uma vez que na maioria das vezes tratam-se de gestores empresariais com elevado grau de socialização, por outro a idéia de prevenção geral fica prejudicada pelas elevadas cifras negras que envolvem esta nova criminalidade, as quais deixam evidente à população que o Direito Penal do ambiente, ou o Direito Penal do risco, é totalmente ineficaz. Segundo o autor, esta ineficácia alarmada do Direito Penal do risco vem a demandar um exasperamento de sua severidade, em um verdadeiro círculo vicioso, cujas conseqüências, no entanto, são mais prejudiciais do que benéficas. Neste sentido, de fato, a generalidade dos cidadãos já se apercebeu de que o direito penal do ambiente é totalmente ineficaz. Os jornais fazem eco da descrença geral no direito penal do ambiente, com notícias diárias, nas quais a moral da história é sempre a conclusão de que os verdadeiros poluidores do meio ambiente nunca são castigados. O direito penal reage contra este estado de coisas, tornando-se cada vez mais severo. Sirva de ilustração a última reforma do direito penal, na Alemanha, datada de finais de 1994. Esta reforma agravou o direito penal do ambiente mais uma vez. 463 Mas os problemas também se tornam cada vez mais graves. A quarta e derradeira razão trazida por Hassemer é a de que, na concepção deste autor, o Direito Penal do ambiente e o Direito Penal do risco tratam-se exclusivamente de um Direito Penal simbólico, que se caracteriza por não alcançar uma tutela efetiva dos bens jurídicos supostamente tutelados e que atende a propósitos evidentemente políticos. De fato, o recurso ao Direito Penal como resposta às demandas sociais por segurança frente aos novos riscos tecnológicos globais atua como um instrumento para acalmar a opinião pública e tem como principal vantagem política o fato de ser um remédio extremamente barato. Segundo Hassemer, “com efeito, é assim que a classe política pode proclamar à opinião pública que está atenta aos problemas do mundo moderno e, mais ainda, que até se compromete com a tomada de medidas drásticas para os resolver”.464 463 HASSEMER, Winfried. A Preservação do Ambiente Através do Direito Penal. in Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 22. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 33. 464 HASSEMER, Winfried. A Preservação do Ambiente Através do Direito Penal. in Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 22. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 33. 150 Assim, o Direito Penal torna-se mero instrumento voltado a desobrigar os poderes públicos de tomarem outras medidas verdadeiramente eficazes na tutela ambiental e na prevenção de riscos. Com base nestas razões apontadas, Hassemer posiciona-se no sentido de que o Direito Penal não pode ser tomado como instrumento primário para a tutela dos novos interesses surgidos com a sociedade de risco. Para o autor, duas questões devem ser colocadas como centrais. Primeiramente, defende a posição de “que se retire parcialmente a modernidade do direito penal”.465 Ou seja, que o Direito Penal seja reduzido a um Direito Penal nuclear, o qual ficaria responsável pela tutela dos bens jurídicos individuais frente a condutas que os lesem ou os exponham a perigo concreto, nos moldes em que tradicionalmente este ramo do direito vem operando.466 Ademais, ficaria a cargo do Direito Penal a tutela de bens jurídicos supra-individuais cujos atentados reconduzam e signifiquem também um atentado a bens jurídicos individuais. Neste sentido, afirma que “evidentemente, um Código Penal não pode, principalmente hoje, renunciar aos bens jurídicos universais. Eu, todavia, defendo que é preciso formulá-los do modo mais preciso possível e que é preciso funcionalizá-los pelos bens jurídicos individuais”.467 De fato, coloca que “o direito penal deve continuar a garantir a tutela dos bens jurídicos clássicos, cuja integridade é também alvo de ameaça por força dos atentados contra o meio ambiente”.468 Dentro do Direito Penal, assim, apenas estariam incriminadas aquelas condutas que atentem diretamente contra bens jurídicos individuais, bem como aqueles que, embora diretamente atentem contra bens jurídicos supra-individuais, indiretamente signifiquem uma lesão ou um perigo de lesão a um bem jurídico individual. Através desta construção, Hassemer adota uma teoria monista personalista do bem jurídico penal. Em segundo lugar, defende o autor que a nova problemática que se refere à tutela dos novos bens jurídicos, notadamente no que toca a uma tutela 465 HASSEMER, Winfried. Características e Crises do Moderno Direto Penal. in Revista de Estudos Criminais. N. 08. Porto Alegre: PUC-RS, 2003. p. 65. 466 HASSEMER, Winfried. Características e Crises do Moderno Direto Penal. in Revista de Estudos Criminais. N. 08. Porto Alegre: PUC-RS, 2003. p. 65. 467 HASSEMER, Winfried. Características e Crises do Moderno Direto Penal. in Revista de Estudos Criminais. N. 08. Porto Alegre: PUC-RS, 2003. p. 65. 468 HASSEMER, Winfried. A Preservação do Ambiente Através do Direito Penal. in Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 22. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 33. 151 antecipada contra novos riscos tecnológicos, seja afastada do Direito Penal.469 Neste sentido, os perigos e ameaças que não se dirijam contra bens jurídicos individuais, ou que dirigidos contra bens jurídicos supra-individuais não se reconduzam claramente a bens jurídicos individuais, bem como tudo aquilo cuja ilicitude só possa ser caracterizada através de uma acessoriedade administrativa do Direito Penal, devem ser extirpados do âmbito de proteção penal. Desta forma, todas aquelas infrações cuja ilicitude decorra exclusivamente de uma violação a regras de licenciamento ou autorização prévia, mas que materialmente não causem nenhum impacto ao bem jurídico tutelado, deveriam ser retiradas do âmbito do Direito Penal. Como exemplo disto pode-se fazer referência ao artigo 60 da Lei 9.605/98, que criminaliza a conduta de construir, reformar, ampliar, instalar ou fazer funcionar, em qualquer parte do território nacional, estabelecimentos, obras ou serviços potencialmente poluidores, sem licença ou autorização dos órgãos ambientais competentes, ou contrariando as normas legais e regulamentares pertinentes. Aplicando-se a posição de Hassemer a tal caso, o Direito Penal apenas incidiria sobre condutas que se enquadrassem em tal tipo penal e que representassem uma real lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico tutelado, no caso, o meio ambiente. No entanto, caso determinada conduta de instalação de um estabelecimento potencialmente poluidor, em que pese realizada sem licença prévia, não signifique um concreto dano ao bem jurídico, uma vez que suas atividades são realizadas de forma que a potencialidade poluidora seja absolutamente controlada e afastada, em relação a esta não deveria incidir o Direito Penal, visto que haveria mero ilícito administrativo. Estas questões, afirma o autor, devem ser administradas por mecanismos jurídicos extra-penais. Neste sentido, afirma que “é necessário pensarmos em um novo campo do direito que não aplique as pesadas sanções do Direito Penal, sobretudo as sanções de privação da liberdade e que, ao mesmo tempo possa ter garantias menores”.470 De fato, 469 HASSEMER, Winfried. Características e Crises do Moderno Direto Penal. in Revista de Estudos Criminais. N. 08. Porto Alegre: PUC-RS, 2003. p. 65. 470 HASSEMER, Winfried. Perspectivas de uma Moderna Política Criminal. in Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 8. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 49. 152 recomenda-se regular aqueles problemas das sociedades modernas, que levaram à modernização do Direito Penal, particularmente, por um “Direito de Intervenção”, que esteja localizado entre o Direito Penal e o Direito dos ilícitos administrativos, entre o Direito Civil e o Direito Público, que na verdade disponha de garantias e regulações processuais menos exigentes que o Direito Penal, mas que, para isso, inclusive, seja equipado com 471 sanções menos intensas aos indivíduos. Propõe assim a criação de um novo ramo do direito, o qual denomina de Direito de Intervenção, e que teria como principal característica possuir instrumentos dogmáticos mais flexíveis e menos garantias individuais do que o faz o Direito Penal, ao passo que, como compensação por estas menores garantias, aplicaria sanções menos gravosas que as sanções penais, ou seja, não disporia da aptidão de impor penas privativas de liberdades. Este Direito de Intervenção, com isso, teria algumas características essenciais à sua configuração e à sua melhor efetividade na tutela dos novos riscos. Em primeiro lugar, este novo ramo do direito deve ser pensado como um direito de caráter notadamente preventivo, ou seja, deve atuar de forma prévia e antecipada à consumação de possíveis resultados lesivos, ao contrário do Direito Penal, cuja atuação é essencialmente repressiva.472 Assim, “este campo do Direito tem que ser efetivamente orientado pelo perigo, pela periclitação e não pelo dano [uma vez que] normalmente nem se chega a produzir um dano, ou o dano ocorre quando é tarde demais”.473 Sua segunda característica essencial deve ser a de poder dispensar os mecanismos de imputação individual de responsabilidades típicos do Direito Penal, de forma a vir imputar responsabilidades coletivas. Desta forma, este ramo do direito deve ser dotado de capacidade de imputar responsabilidade não só às pessoas naturais, mas também às pessoas jurídicas.474 A terceira característica apontada por Hassemer como necessária neste novo ramo do direito é a de que este, em que pese não possa aplicar penas privativas de liberdade, tenha a sua disposição uma gama ampla de sanções severas e rigorosas, aptas a uma efetiva proteção antecipada dos bens jurídicos 471 HASSEMER, Winfried. Características e Crises do Moderno Direto Penal. in Revista de Estudos Criminais. N. 08. Porto Alegre: PUC-RS, 2003. pp. 65-66. 472 HASSEMER, Winfried. A Preservação do Ambiente Através do Direito Penal. in Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 22. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 34. 473 HASSEMER, Winfried. Perspectivas de uma Moderna Política Criminal. in Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 8. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 49. 474 HASSEMER, Winfried. A Preservação do Ambiente Através do Direito Penal. in Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 22. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 34. 153 objetos de sua tutela. Neste sentido, afirma que, na medida do que for necessário à prevenção e precaução de resultados potencialmente lesivos, “deverá poder decretar a dissolução de entes coletivos, encerrar as empresas poluidoras, suspender as respectivas atividades ou setores de atividade, entre outras medidas”.475 Como quarta característica deste Direito de Intervenção, deve o mesmo estar preparado para atuar globalmente, e não focando-se apenas em cada caso concreto individualmente. Neste contexto, Hassemer coloca que a questão ambiental, e, de forma geral, a questão que envolve os riscos tecnológicos, possui dimensão mundial, e que, por isso, deve ser enfrentada como um todo, e, inclusive, através de instâncias internacionais.476 A quinta característica apontada pelo autor é no sentido de que este direito, por atuar preventivamente, deve buscar instrumentos que garantam e possibilitem a reparação e a minimização dos danos como obrigação de seus causadores. Como exemplo, cita o autor a possibilidade de que exija “a constituição de fundos de indenização coletivos, por parte de quem lidar com produtos perigosos”.477 E complementa, afirmando que não parece que seja exagerado impor às empresas industriais, em matéria ambiental [e, da mesma forma, em outras áreas que afetem interesses difusos da sociedade, como a saúde pública e as relações massificadas de consumo], que consagrem soluções mutualistas por ramo de indústria, facilitando os capitais necessários à constituição de fundos de indenização coletivos, de molde a ficarem efetivamente precavidas da eventualidade da produção de danos ambientais e a garantirem assim a reparação dos 478 mesmos. Tal medida funciona como um exemplo claro de como o direito, através de esferas extra-penais, pode atuar de forma a criar mecanismos de prevenção e controle de futuros eventuais danos. 475 HASSEMER, Winfried. A Preservação do Ambiente Através do Direito Penal. Brasileira de Ciências Criminais. N. 22. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 34. 476 HASSEMER, Winfried. A Preservação do Ambiente Através do Direito Penal. Brasileira de Ciências Criminais. N. 22. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 34. 477 HASSEMER, Winfried. A Preservação do Ambiente Através do Direito Penal. Brasileira de Ciências Criminais. N. 22. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. pp. 34-35. 478 HASSEMER, Winfried. A Preservação do Ambiente Através do Direito Penal. Brasileira de Ciências Criminais. N. 22. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 35. in Revista in Revista in Revista in Revista 154 Por fim, o autor traz uma sexta e última característica deste novo ramo do direito, a qual impõe que, em que pese este venha a atuar como linha de frente no embate contra os novos riscos tecnológicos, sua atuação não afasta a função de soldado de reserva do Direito Penal. Neste sentido, ao Direito Penal compete um caráter flanqueador, ou seja, de cobertura a determinadas medidas de proteção extra-penal.479 Assim, conclui o autor no sentido de que todos estes novos problemas surgidos com a sociedade de risco estariam mais bem tutelados por esferas de proteção extra-penais, onde mecanismos menos garantistas permitiriam uma atuação mais célere e eficiente em face de ameaças sobre as quais muitas vezes sequer tem-se certeza sobre sua existência. Desta forma, defende que o Direito Penal se paute por critérios rígidos de intervenção mínima, pelos quais as condutas que não se dirijam direta ou indiretamente contra bens jurídicos individuais seriam afastados da tutela penal, por não se adequarem à idéia de fragmentariedade deste ramo do direito. 4.3.2 A Posição de Stratenwerth Contraposta à posição de Hassemer está a posição adotada por Stratenwerth. Stratenwerth, conforme aponta Paulo Silva Fernandes, pronuncia-se de forma contrária e crítica a um modelo de Direito Penal que se limite na tutela dos bens jurídicos individuais clássicos de ordem essencialmente antropocêntrica, defendendo que este ramo do direito deveria caminhar no sentido da proteção das relações ou contextos da vida enquanto tais.480 Posiciona-se no sentido de que é inaceitável que o Direito Penal tutele bens jurídicos individuais em situações cuja gravidade é muito menor do que as ocasionadas pelos novos riscos, e, ao mesmo tempo, mantenha-se inerte e omisso 479 HASSEMER, Winfried. A Preservação do Ambiente Através do Direito Penal. in Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 22. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 34. 480 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “Sociedade de Risco” e o Futuro do Direito Penal: Panorâmica de Alguns Problemas Comuns. Coimbra: Almedina, 2001. p. 81. 155 no que se refere à tutela de bens jurídicos supra-individuais como o meio ambiente.481 Esta tutela das relações ou contextos da vida enquanto tais permitiria a proteção de bens jurídicos supra-individuais independentemente de qualquer recondução de sua tutela à proteção de interesses pessoais dos indivíduos participantes em um determinado contexto.482 De fato, para Stratenwerth o Direito Penal deve assumir definitivamente uma função de tutela das gerações futuras, função esta a qual não pode ser por ele renunciada, uma vez que se trata justamente do instrumento mais contundente de que dispõe o estado.483 No entanto, a fim de que esteja apto a exercer esta função, afirma o autor que o Direito Penal deve renunciar ao seu modo de atuação tradicional. Neste sentido, nas palavras de Jorge de Figueiredo Dias: função relativamente à qual, porém, parece impossível falar-se em tutela de bens jurídico-penais na acepção tradicional e ainda hoje dominante. Ao que acrescerá a circunstância de uma tal tutela das gerações futuras perante riscos globais implicar o afastamento de um direito penal do resultado, para se tornar um direito penal do comportamento, através do 484 qual se penalizem puras relações da vida como tais. Desta forma, o Direito Penal, na tutela dos novos riscos, deveria se afastar de tipificações de lesões a bens jurídicos individuais, aproximando-se de um modelo que prima pela criminalização de meros comportamentos, uma vez que aquele modelo tradicional pautado na lesividade se mostra falho e inapto para lidar com a nova problemática do risco.485 Assim, Stratenwerth complementa que a tutela das gerações futuras deve ser buscada também pelo Direito Penal, e que, neste ramo do direito, “deve sêlo não tanto através da estrutura típica dos crimes de perigo, nomeadamente de 481 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 181. 482 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “Sociedade de Risco” e o Futuro do Direito Penal: Panorâmica de Alguns Problemas Comuns. Coimbra: Almedina, 2001. p. 81. 483 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral. Tomo I. São Paulo; Revista dos Tribunais, 2007. p. 140. 484 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral. Tomo I. São Paulo; Revista dos Tribunais, 2007. p. 140. 485 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral. Tomo I. São Paulo; Revista dos Tribunais, 2007. p. 140. 156 perigo abstrato, referida à proteção de bens jurídicos, mas através de normas que assegurem o controlo do comportamento”.486 Com isso, o que propõe Stratenwerth é que o Direito Penal volte-se à tutela das gerações futuras através da proteção jurídico-penal de normas de condutas sem qualquer referencial a interesses individuais487, com o total abandono, neste campo de atuação, da categoria do bem jurídico, sendo esta substituída pela tutela direta de relações ou contextos da vida enquanto tais.488 Stratenwerth, nesta medida, manifesta-se por um modelo de Direito Penal onde se reconheça a dignidade penal de comportamentos potencialmente lesivos ao meio ambiente e a outros bens jurídicos difusos de interesse não só da coletividade presente, mas também das gerações futuras. Na tutela de tais interesses, no entanto, o Direito Penal abandonaria qualquer concepção material de injusto fundada na lesividade de bens jurídicos, pautando-se pela tipificação de meros comportamentos. Desta forma, não mais se falando em tutela de bens jurídicos, não mais subsistiria o princípio da intervenção mínima do Direito Penal. 4.3.3 A Posição de Bernd Schünemann Ainda contraposta à posição de Hassemer, mas também de forma distinta do que propõe Stratenwerth, Bernd Schünemann adota uma posição intermediária no que se refere ao Direito Penal do risco. Opondo-se expressamente à posição adotada pela chamada Escola de Frankfurt, esta capitaneada por Hassemer, afirma Schünemann que a civilização moderna, no atual estágio de desenvolvimento da sociedade de risco, não pode sobreviver sem um duplo controle do aproveitamento do meio ambiente.489 486 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral. Tomo I. São Paulo; Revista dos Tribunais, 2007. p. 141. 487 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “Sociedade de Risco” e o Futuro do Direito Penal: Panorâmica de Alguns Problemas Comuns. Coimbra: Almedina, 2001. p. 81. 488 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral. Tomo I. São Paulo; Revista dos Tribunais, 2007. p. 141. 489 SCHÜNEMANN, Bernd. Sobre La Dogmática y La Política Criminal Del Derecho Penal Del Medio Ambiente. In Temas Actuales y Permanentes del Derecho Penal Después del Milenio. Madrid: Tecnos, 2002. p. 223. 157 Sobre este duplo controle, afirma que “o primeiro nível de controle estará constituído, desde logo, pela Administração, mas é indispensável que esteja seguido de um nível de controle adicional e eficiente, que somente poderá ser assumido pelo Direito Penal [tradução livre]”.490 Nesta perspectiva, retoricamente indaga, o autor, a seguinte pergunta: onde poderia ser mais necessário o Direito Penal do que na proteção do meioambiente, e, através desta, na proteção das condições para que todos os demais bens jurídicos possam sobreviver e prosperar?491 Afirma, assim, que ante esta situação deveria tornar-se evidente que corresponde à essência do Direito, entendido como a ordem próspera da convivência humana, proteger a conservação das bases de subsistência da humanidade com os meios mais enérgicos que possui, ou seja, os do Direito Penal [tradução 492 livre]. Afirma, no entanto, que, em que pese sem estas bases de subsistência não se possa vislumbrar sequer a própria existência da humanidade, a tendência moderna do Direito Penal é a de outorgar proteção prioritária aos interesses individuais, e não às condições essenciais de sobrevivência da humanidade.493 Assim, posiciona-se Schünemann no sentido de que a missão do Direito Penal no atual contexto social deve ser a de tutelar bens jurídicos que correspondam às condições essenciais à vida do indivíduo e à existência da própria 490 “El primer nivel de controlo estará constituído, desde logo, por la Administración, pero es indispensable que esté seguido de un nivel de control adicional y eficiente, que sólo podrá ser asumido por el Derecho Penal”. SCHÜNEMANN, Bernd. Sobre La Dogmática y La Política Criminal Del Derecho Penal Del Medio Ambiente. In Temas Actuales y Permanentes del Derecho Penal Después del Milenio. Madrid: Tecnos, 2002. p. 223. 491 SCHÜNEMANN, Bernd. Sobre La Dogmática y La Política Criminal Del Derecho Penal Del Medio Ambiente. In Temas Actuales y Permanentes del Derecho Penal Después del Milenio. Madrid: Tecnos, 2002. p. 223. 492 “Ante esta situación debería resultar evidente que corresponde a la esencia del Derecho, entendido como el orden próspero de la convivencia humana, proteger la conservación de las bases de subsistencia de la humanidad con los medios más enérgicos que él posee, es decir, los del Derecho Penal”. SCHÜNEMANN, Bernd. Sobre La Dogmática y La Política Criminal Del Derecho Penal Del Medio Ambiente. In Temas Actuales y Permanentes del Derecho Penal Después del Milenio. Madrid: Tecnos, 2002. p. 203. 493 SCHÜNEMANN, Bernd. Sobre La Dogmática y La Política Criminal Del Derecho Penal Del Medio Ambiente. In Temas Actuales y Permanentes del Derecho Penal Después del Milenio. Madrid: Tecnos, 2002. pp. 203-204. 158 coletividade, onde a proteção do meio-ambiente, e, de forma geral, a proteção em face dos novos riscos, deve ser alçada a uma posição central.494 Segundo o autor, esta função do Direito Penal de desempenhar um papel essencial na proteção do meio-ambiente deve ser vista como uma sua função irrenunciável, e que deve atuar no sentido de garantir que todas as gerações, a presente e as futuras, possam dispor dos mesmos recursos naturais, de forma que toda exploração abusiva e irreversível do meio-ambiente seja considerada como uma violação aos interesses das gerações futuras.495 De fato, criticando as idéias da Escola Frankfurt, Schünemann coloca que é preciso considerar as futuras gerações como parte do contrato social, a fim de que seus interesses venham a ser considerados relevantes e dignos de proteção jurídica.496 Complementa, afirmando que a teoria personalista do bem jurídico, em sua forma radical como a defendem os autores de Frankfurt, considera os interesses egoístas dos indivíduos de hoje como algo mais importante do que as condições de vida das gerações futuras.497 Neste contexto, considera Schünemann que o Direito Penal deve tutelar o meio-ambiente e as questões do risco enquanto bens jurídicos em si mesmos. Ensina que “querer abarcá-los apenas de maneira indireta pela lesão ou colocação em perigo de indivíduos, tal como predomina em muitos ordenamentos jurídicos, é tão equivocado e realmente disfuncional [tradução livre]”.498 Neste sentido, qualificando tais pretensões como retrógradas, afirma que a redução do campo de análise às lesões dos interesses das pessoas vivas e diretamente afetadas demonstra uma profunda má compreensão dos bens jurídicos 494 SCHÜNEMANN, Bernd. Sobre La Dogmática y La Política Criminal Del Derecho Penal Del Medio Ambiente. In Temas Actuales y Permanentes del Derecho Penal Después del Milenio. Madrid: Tecnos, 2002. p. 204. 495 SCHÜNEMANN, Bernd. Sobre La Dogmática y La Política Criminal Del Derecho Penal Del Medio Ambiente. In Temas Actuales y Permanentes del Derecho Penal Después del Milenio. Madrid: Tecnos, 2002. pp. 206-207. 496 SCHÜNEMANN, Bernd. Consideraciones Críticas Sobre la Situación Espiritual de le Ciencia Jurídico-penal Alemana. Trad. Manuel Cancio Meliá. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 1996. p. 20. 497 SCHÜNEMANN, Bernd. Consideraciones Críticas Sobre la Situación Espiritual de le Ciencia Jurídico-penal Alemana. Trad. Manuel Cancio Meliá. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 1996. p. 22. 498 “Querer abarcalos sólo de manera indirecta por la lesión o puesta en peligro de individuos, tal como predomina en muchos ordenamientos jurídicos, es tan equivocado y realmente disfuncional”. SCHÜNEMANN, Bernd. Sobre La Dogmática y La Política Criminal Del Derecho Penal Del Medio Ambiente. In Temas Actuales y Permanentes del Derecho Penal Después del Milenio. Madrid: Tecnos, 2002. p. 219. 159 ambientais, a qual apenas pode oferecer soluções parciais à questão dos irreversíveis riscos tecnológicos.499 Assim, coloca que a tentativa realizada pelos autores de Frankfurt, que consiste em reduzir os bens ambientais protegidos mediante o Direito penal do meio ambiente a bens jurídicos individuais, é tão equivocada como a tentativa oposta de uma redução do interesse de controle da Administração, que acaba em uma confusão de (outro) meio de proteção com o objeto de proteção 500 [tradução livre]. Complementa Schünemann afirmando que, nesta seara, o Direito Penal deve atuar pautado por um princípio de acessoriedade administrativa, ou seja, que o Direito Penal deve atuar apenas sobre aquelas condutas violadoras de normas administrativas que regulam setores relevantes de atividades. Neste sentido, coloca que aquilo que é permitido pelo estado em sede de direito administrativo não pode ser ameaçado de pena no Direito Penal.501 No entanto, segundo o autor, o Direito Penal não pode estar vinculado de forma absoluta ao direito administrativo, uma vez que não pode reconhecer eficácia jurídica a atos administrativos que, de forma ilegítima, concedam verdadeiras autorizações para a contaminação do meio ambiente.502 Ao contrário, deve o Direito Penal estar autorizado a incidir sobre condutas que estejam amparadas por autorizações ou licenças administrativas, nos casos em que estas se mostrem, de qualquer forma, contrárias ao Direito, sob pena 499 SCHÜNEMANN, Bernd. Sobre La Dogmática y La Política Criminal Del Derecho Penal Del Medio Ambiente. In Temas Actuales y Permanentes del Derecho Penal Después del Milenio. Madrid: Tecnos, 2002. p. 219. 500 “El intento realizado por los autores de Francfort, que consiste en reducir los bienes ambientales protegidos mediante el Derecho penal del medio ambiente a bienes jurídicos individuales, es tan equivocado como el intento al revés de una reducción del interés de control de la Administración, que acaba en una confusión de (otro) medio de protección con el objeto de protección”. SCHÜNEMANN, Bernd. Sobre La Dogmática y La Política Criminal Del Derecho Penal Del Medio Ambiente. In Temas Actuales y Permanentes del Derecho Penal Después del Milenio. Madrid: Tecnos, 2002. pp. 219-220. 501 SCHÜNEMANN, Bernd. Sobre La Dogmática y La Política Criminal Del Derecho Penal Del Medio Ambiente. In Temas Actuales y Permanentes del Derecho Penal Después del Milenio. Madrid: Tecnos, 2002. pp. 209-210. 502 SCHÜNEMANN, Bernd. Sobre La Dogmática y La Política Criminal Del Derecho Penal Del Medio Ambiente. In Temas Actuales y Permanentes del Derecho Penal Después del Milenio. Madrid: Tecnos, 2002. p. 210. 160 de se estar delegando ao Poder Executivo a última palavra sobre a conservação das bases de subsistência da sociedade.503 Com isso, Schünemann posiciona-se por uma concepção material do delito ambiental, e não por uma concepção meramente formal do delito. O delito se caracterizaria mais como lesão a um interesse relevante e menos como uma conduta contrária ao Direito, uma vez que a mera autorização administrativa para a prática da conduta não a eximiria de sua ilicitude penal. Assim, pode-se extrair que Schünemann reconhece e defende a legitimidade da atuação penal na tutela daqueles bens jurídicos que representariam as bases de subsistência da humanidade, ou seja, as condições essenciais para a sobrevivência humana. No entanto, não se pode claramente delimitar a posição do autor no que se refere à subsidiariedade ou não do Direito Penal em sua intervenção sobre estas questões dos riscos ambientais e tecnológicos. Esta falta de clareza pode ser identificada pela percepção de que, em que pese o autor se refira expressamente ao papel de segundo nível de controle do Direito Penal, doutrinadores como Blanca Mendonza Buergo acusam Schünemann de não tomar suficientemente em conta a existência de outros ramos do direito e outros meios de controle social que não o Direito Penal capazes de atuar na tutela das condições essenciais à vida humana.504 4.3.4 A Posição de Jésus-María Silva Sánchez Uma quarta posição relevante é a adotada por Jésus-María Silva Sánchez, o qual vem defender uma concepção dualista do Direito Penal. Silva Sánchez, em sua análise da questão do Direito Penal do risco, identifica estarem em voga duas correntes muito fortes que pugnam por uma desinflação penal, notadamente no que toca aos novos campos sobre os quais vêm o Direito Penal se debruçando. 503 SCHÜNEMANN, Bernd. Sobre La Dogmática y La Política Criminal Del Derecho Penal Del Medio Ambiente. In Temas Actuales y Permanentes del Derecho Penal Después del Milenio. Madrid: Tecnos, 2002. pp. 210-211. 504 MENDOZA BUERGO, Blanca. El Derecho Penal en la Sociedad Del Riesgo. Madrid: Civitas, 2001. pp. 150-151. 161 No entanto, manifesta-se criticamente a estas correntes. Afirma, o autor, que as posições pela volta a um Direito Penal liberal centrado exclusivamente na proteção de bens jurídicos individuais personalistas e patrimoniais são absolutamente anacrônicas. Ademais, para o mesmo, tais concepções estão fundadas em uma premissa falsa, uma vez que aquele Direito Penal liberal que se pretende retomar nunca existiu, o que fica evidente pela constatação de que nos estados modernos sempre esteve presente a tutela penal de bens supra-individuais como a proteção do próprio estado, da administração da justiça, e de princípios de organização social.505 Relativamente às posições da Escola de Frankfurt, afirma que a oposição absoluta à modernização do Direito Penal significaria um retorno a um “direito penal de classes”, no qual os delinqüentes convencionais das classes baixas continuaria submetido às pesadas sanções penais, ao passo que o delinqüente econômico, membro das classes dominantes, ficaria imune de tais penas, sujeito a sanções mais leves.506 Quanto a um segundo grupo de teorias, que, segundo o autor, não chegam a propor que o Direito Penal limite-se à tutela exclusiva da vida, integridade física, liberdade e patrimônio, mas que sugerem que a maior parte dos novos campos de atuação penal sejam reconduzidos ao direito administrativo sancionador, afirma que, em que pese tratem-se de posições louváveis sob a perspectiva teórica e acadêmica, ignoram os reais motivos pelo qual as novas demandas por segurança deságuam no Direito Penal.507 Assim, manifesta-se no sentido de que, em busca da maior racionalidade prática possível, uma proposta mais realista seria reconhecer que o Direito Penal deve acolher as demandas sociais de proteção, desde que o faça de uma forma muito específica.508 505 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 136. 506 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 143. 507 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. pp. 136-137 508 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 137. 162 A posição que Silva Sánchez adota, qual seja a de um Direito Penal dualista, funda-se em sua percepção de que existe uma relação direta entre o nível de garantias existentes em um determinado ramo do direito e a gravidade das sanções que este mesmo ramo do direito está legitimado a aplicar. Nesta sentido, afirma que o ponto de partida que adoto é a direta relação existente entre as garantias que incorpora um determinado sistema de imputação e a gravidade das sanções que resultam de sua aplicação. Com efeito, considero possível sustentar a idéia de que a configuração dos diversos sistemas jurídicos de imputação do fato ao sujeito, assim como a das garantias gerais de cada sistema, têm uma clara dependência das suas conseqüências jurídicas, 509 sua configuração e sua teleologia. A fim de sustentar este seu ponto de partida, afirma que o elevado grau de garantias presentes no Direito Penal, demonstrado inclusive pela minuciosidade com que se trabalha a dogmática do delito, se relaciona e se deve ao fato de que este ramo do direito tradicionalmente trabalha com conseqüências jurídicas de elevada gravidade e vinculadas ao ser do agente, como a pena de morte, as penas corporais, e, atualmente, com a pena privativa de liberdade.510 Conclui, com isso, que “o problema não é tanto na expansão do Direito Penal em geral, senão especificamente a expansão do Direito Penal da pena privativa de liberdade. É essa última que deve realmente ser contida”.511 Entende o autor que as flexibilizações dogmáticas que o Direito Penal vem experimentando poderiam ser plenamente aceitas se a elas correspondesse uma proporcional redução da gravidade da sanção imposta, através do incremento na utilização de sanções pecuniárias ou restritivas de direito, ou mesmo de uma substituição de medidas punitivas por medidas de cunho reparatório. Segundo o autor, esta flexibilização da sanção, no verdadeiro sentido de diminuição de sua 509 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 137. 510 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 138. 511 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 139. 163 rigidez, legitimaria eventuais flexibilizações também no campo dogmático penal, como a dispensa de lesividade da conduta criminalizada, por exemplo.512 Afirma, neste sentido, que “um sistema jurídico que prescindisse por completo da sanção – inclusive da pecuniária -, como é o da responsabilidade civil, puramente reparatório, poderia reduzir ao mínimo as exigências de garantia políticojurídicas”.513 Partindo deste ponto, de que a rigidez dogmática de determinado campo jurídico deve ser proporcional à rigidez das sanções que este mesmo campo é capaz de impor, Silva Sánchez manifesta-se no seguinte sentido: o ponto-chave reside, pois, em admitir essa graduação da vigência das regras de imputação e dos princípios de garantia no próprio seio do Direito Penal, em função do concreto modelo sancionatório que este acabe assumindo. Algo que tem muitos pontos de contato com a proposta certamente ainda muito imprecisa efetuado por Hassemer e outros, de constituir um Interventionsrecht (Direito de Intervenção).(...) Na minha opinião, contudo, e aparentemente ao contrário da proposta do ‘Direito de Intervenção’, não haveria nenhuma dificuldade em admitir esse modelo de menor intensidade garantística dentro do Direito Penal, sempre e quando – isso sim – as sanções previstas para os ilícitos correspondentes não 514 fossem de prisão. Manifesta-se, assim, Silva Sánchez por uma configuração dualista do Direito Penal, no qual este ramo do direito seria composto por dois distintos regramentos, onde a rigidez das garantias e das sanções imposta por um seria claramente maior do que a presente no outro. No entanto, fundamental para o autor é que estes dois universos estejam concentrados dentro do Direito Penal, a fim de que se mantenha, neste novo segundo Direito Penal, algumas características importantes deste ramo do direito, como sua dimensão sancionatória e não simplesmente reparatória, sua utilização da força do mecanismo público de persecução das infrações, sua 512 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 139. 513 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 140. 514 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. pp. 140-141. 164 jurisdicionalização, bem como que seja mantida sua dimensão comunicativa ou simbólica.515 Assim, afirma o autor que seria possível conciliar a necessidade de se oferecer uma resposta às demandas sociais por proteção e segurança com a necessidade de se manter critérios dogmáticos rígidos para a aplicação de penas privativas de liberdade através “de uma configuração dualista do sistema do Direito Penal, com regras de imputação e princípios de garantia de dois níveis”.516 Argumenta Silva Sánchez no seguinte sentido: o significado exato de tal proposta pode ser apreendido se leva em conta que os delitos – muito especialmente socioeconômicos – nos quais se manifesta a expansão do Direito Penal continuam sendo delitos sancionados com penas privativas de liberdade, de considerável duração em alguns casos, nos quais, sem embargo, os princípios político-criminais sofrem uma acelerada perda de rigor. Se nos ativermos ao modelo sugerido, somente há duas opções: a primeira, de que tais delitos se integrem no núcleo do Direito Penal, com as máximas garantias e as mais rigorosas regras de imputação; e a segunda, que se mantenha a linha de relativização de princípios de garantia que hoje já acompanha tais delitos, em cujo caso se deveria renunciar a cominação das penas de prisão que 517 agora existem. Com isso, Silva Sánchez acredita ter alcançado uma resposta ao problema da expansão do Direito Penal sobre novas áreas que atenda à realidade social. Em sua proposta, duas seriam as opções para o controle de condutas envolvendo os novos riscos: ou se utiliza o Direito Penal nuclear, com a cominação de penas privativas de liberdade e, consequentemente, com a manutenção de rígidos padrões de garantias materiais e processuais ao acusado, ou se utiliza de um Direito Penal periférico, no qual por um lado se abdica de algumas regras de garantia e, por outro, abdica-se do recurso às penas de prisão. Segundo o próprio autor, esta proposta tem duas conseqüências: por um lado, restam admitidas as penas não privativas de liberdade, enquanto sanção menos gravosa ao cidadão, para infrações nas quais as regras de garantia são 515 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. pp. 141-142. 516 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 142. 517 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 142. 165 flexibilizadas. Por outro lado, e certamente com um caráter mais importante, exige que no Direito Penal nuclear, onde se aplicam penas privativas de liberdade, mantenha-se intacto todo o rigor das garantias penais clássicas.518 Desta forma, conclui que, para a tutela dos novos bens jurídicos supraindividuais em uma sociedade de risco “seria razoável que em um Direito Penal mais distante do núcleo criminal e no qual se impusessem penas mais próximas às sanções administrativas se flexibilizassem os critérios de imputação e garantia político-criminais”.519 A este modelo Silva Sánchez dá o título de Direito Penal de duas velocidades. De fato, na proposta do autor, o núcleo e a periferia do Direito Penal funcionariam em velocidades diferentes, sendo esta certamente maior na periferia, ou seja, naquele espaço onde não se aplicam penas privativas de liberdade e onde as regras de imputação são menos rígidas. Assim, “a função racionalizadora do Estado sobre a demanda social de punição pode dar lugar a um produto que seja, por um lado, funcional e, por outro, suficientemente garantista”.520 Desta forma, através desta concepção dualista de Direito Penal trata-se de salvaguardar o modelo clássico de imputação e de princípios para o núcleo intangível dos delitos, aos quais se assinala uma pena de prisão. Em contrapartida, a propósito do Direito Penal econômico, por exemplo, caberia uma flexibilização controlada das regras de imputação, 521 como também dos princípios político-criminais. Com isso, Silva Sánchez afirma existir um espaço de expansão razoável ao Direito Penal nuclear, sobre condutas que signifiquem uma lesão ou um perigo real de lesão a bens jurídicos individuais ou supra-individuais, sendo que, no entanto, para tais delitos devem ser mantidas todas as regras clássicas de imputação e demais regras penais de garantia. Contrariamente, situações de 518 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 143. 519 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 145. 520 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 145. 521 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. pp. 145-146. 166 lesividade por acumulação, condutas abstratamente perigosas e regras de tutela de mera precaução, por exigirem flexibilizações dogmáticas, apenas poderiam ser trabalhadas na segunda velocidade do Direito Penal, ou seja, no Direito Penal periférico.522 Neste sentido, é possível verificar que na proposta de Silva Sánchez de um Direito Penal de duas velocidades o princípio da intervenção mínima permanece intacto no que toca ao Direito Penal nuclear, que apenas atuará sobre as condutas mais gravosas dirigidas contra os bens jurídicos mais relevantes para o cidadão, mantendo-se também sua subsidiariedade em relação a outros ramos do direito e ao próprio Direito Penal periférico. 4.4 O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA DO DIREITO PENAL E O DIREITO PENAL DO RISCO Diante do quadro de divergência que se configura na doutrina acerca do tema do Direito Penal do risco, especial importância deve ser dada à questão que envolve a subsistência ou não do princípio da intervenção mínima do Direito Penal, com seus elementos de fragmentariedade e subsidiariedade, dentro do contexto do moderno Direito Penal. Esta questão revela uma possível incompatibilidade entre o clássico princípio da intervenção mínima do Direito Penal e modernos princípios que hoje assumem papéis importantes no direito, como os princípios da prevenção e da precaução. Sobre esta aparente incompatibilidade entre estes princípios Paulo César Busato e Karin Kässmayer ensinam que vistos separadamente os princípios, apresenta-se uma contradição fundamental: como é possível obedecer às diretrizes de pensamento de precaução de ocorrência de riscos ambientais, compatível com o compromisso de preservação dos meios de vida das futuras gerações e de um direito penal que cuida de atribuir responsabilidades de modo 522 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 147. 167 absolutamente limitado por força de sua condição de ultima ratio, no âmbito 523 dos mecanismos de controle social do Estado. Segundo os autores, deste aparente conflito entre os princípios da intervenção mínima do Direito Penal de um lado e da precaução do outro derivam uma série de questões acerca da compatibilidade entre os mesmos, bem como, em se afirmando tal compatibilidade, sobre em que etapa da intervenção estatal no controle social dos novos riscos deve atuar o Direito Penal.524 A verificação da compatibilidade entre estes princípios, que pode ser vista, em verdade, como a da compatibilidade entre um modelo clássico de Direito Penal, pautado por critérios de legalidade, lesividade, intervenção mínima e culpabilidade, com um modelo jurídico voltado à precaução dos novos riscos, demanda uma compreensão do direito enquanto sistema, bem como de seus fundamentos. Neste sentido, em que pese abordando especificamente a questão dos crimes de perigo abstrato, mas em lição que facilmente se estende ao objeto ora em questão, Pierpaolo Cruz Bottini afirma que “apenas uma construção sistemática dos institutos possibilitará uma aplicação segura e racional do direito, afastando a arbitrariedade e a improvisação”.525 De fato, é justamente através de uma percepção sistemática que será possível alcançar-se uma resposta adequada à questão que envolve o aparente choque entre o princípio da intervenção mínima do Direito Penal e a demanda por controle e precaução frente aos novos riscos tecnológicos. Com isso, é preciso que se reconheça que o Direito Penal nada mais é do que um dos instrumentos de controle social de que detém o estado, e, assim o sendo, tem o objetivo de preservar o funcionamento do modelo político e social em que é criado. Assim, “a legitimação material das leis decorre de sua necessidade 523 BUSATO, Paulo César, KÄSSMAYER, Karin. Intervenção Mínima x Precaução: conflito entre princípios no direito penal ambiental. In Direito e Risco: o direito do ambiente na sociedade de risco. Curitiba: UNIFAE, 2008. p. 144. 524 BUSATO, Paulo César, KÄSSMAYER, Karin. Intervenção Mínima x Precaução: conflito entre princípios no direito penal ambiental. In Direito e Risco: o direito do ambiente na sociedade de risco. Curitiba: UNIFAE, 2008. p. 144. 525 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 70. 168 para a manutenção de determinada forma de Estado e sociedade, para a estabilidade de um modo de organização política”.526 Desta forma, todas as regras e princípios constantes de um determinado ordenamento jurídico devem estar orientados no sentido de se adequarem aos fundamentos do modelo de organização política e social em que se inserem.527 Nas palavras de Pierpaolo Cruz Bottini, diante destas considerações, fica evidente que todos os institutos penais devem observar, respeitar e trabalhar pela vigência dos preceitos do modelo de Estado em questão, e seu conteúdo material estará voltado para 528 a consolidação dos princípios que o sustentam. O modelo de organização do poder político que hoje vige na grande maioria dos países ocidentais é o do Estado Democrático de Direito, o qual elege como seu valor fundamental a dignidade da pessoa humana.529 Com isso, o Direito Penal, assim como os demais ramos do direito, devem estar pautados e orientados pela dignidade da pessoa humana, tendo esta como seu fundamento e objetivo. 4.4.1 A Dignidade da Pessoa Humana Como Fundamento do Sistema Jurídico A idéia de um valor inerente a toda pessoa humana não é algo novo, podendo ser observada já no pensamento religioso-filosófico fundado no ideário judaico-cristão da antiguidade, onde se reconhecia que o ser humano era dotado de um valor próprio que lhe era intrínseco, razão pela qual não podia ser transformado em mero objeto ou instrumento.530 526 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 70. 527 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. pp. 70-71. 528 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. pp. 71-72. 529 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. pp. 71-72. 530 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 30. 169 Segundo Raul Machado Horta, esta idéia percorreu uma longa trajetória desde a antiguidade até “corporificar-se na brilhante floração de idéias políticas e filosóficas das correntes de pensamento dos séculos XVII e XVIII”.531 Foi justamente com o pensamento iluminista dos séculos XVII e XVIII que a dignidade da pessoa humana passou por um processo de racionalização e secularização, mantendo-se, no entanto, seu conteúdo de igualdade entre todos os homens. Neste momento, passa-se a reconhecer que mesmo o monarca deveria respeitar a dignidade da pessoa humana, considerada esta como a liberdade do ser humano de optar de acordo com 532 sua razão e agir conforme o seu entendimento e sua opção. Não obstante, foi com Kant que o conceito de dignidade da pessoa humana adquiriu maior concretude. Segundo este, para quem a dignidade da pessoa humana deriva da autonomia ética do ser humano, por ser o mesmo dotado deste valor intrínseco, não pode ele ser tratado, nem por si próprio, como objeto, existindo como um fim em si mesmo, e jamais como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade.533 Segundo esta concepção kantiana, a dignidade da pessoa humana pode ser sintetizada em dois comandos: a não coisificação do homem, e sua autodeterminação. Neste contexto, Kant coloca que “a liberdade, na medida em que pode coexistir com a liberdade de todos os outros de acordo com uma lei universal, é o único direito original pertencente a todos os homens em virtude da humanidade destes”.534 Para Kant, desta liberdade inata decorre a regra de que todo homem é dotado de uma independência. Neste sentido, afirma que todo homem é imune “de ser obrigado por outros a mais do que se pode, por sua vez, obrigá-los”.535 Assim, para Kant, o homem deve sempre ser visto como o seu próprio senhor. 531 536 HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 213. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 32. 533 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. pp. 32-33. 534 KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Trad. Edson Bini. Bauru: EDIPRO, 2003. p. 83. 535 KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Trad. Edson Bini. Bauru: EDIPRO, 2003. p. 84. 536 KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Trad. Edson Bini. Bauru: EDIPRO, 2003. p. 84. 532 170 Neste mesmo sentido, Werner Maihofer afirma que a dignidade da pessoa humana reside no reconhecimento de que o homem não está sujeito a ser subjulgado e submetido ao poder e arbítrio de outro.537 Desta qualidade do homem deriva, ademais, a regra kantiana de que “um ser humano nunca pode ser tratado apenas a título de meio para fins alheios ou colocado entre os objetos de direitos a coisas: sua personalidade inata o protege disso”.538 André Ramos Tavarez, em referência à lição de Pérez Luño, afirma que a dignidade humana consiste não apenas na garantia negativa de que a pessoa não será alvo de ofensas ou humilhações, mas também agrega a afirmação positiva do pleno desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo. O pleno desenvolvimento da personalidade pressupõe, por sua vez, de um lado, o reconhecimento da total autodisponibilidade, sem interferências ou impedimentos externos, das possíveis atuações próprias de cada homem; de outro, a autodeterminação que surge da livre projeção histórica da razão humana, antes que de uma predeterminação dada pela 539 natureza. Ingo Wolfgang Sarlet coloca que esta concepção kantiana trata-se ainda hoje daquela que melhor demonstra o conteúdo da dignidade da pessoa humana, da qual decorre que toda pessoa deve ser considerada como um fim em si mesma e jamais como um meio, devendo ser repudiada qualquer coisificação ou instrumentalização do homem.540 Com isso, o reconhecimento da dignidade da pessoa humana vedaria qualquer licitude ou legalidade a condutas ou situações que resultem em estar um homem entregue ao poder e arbítrio de outro, ou seja, que o deixem desamparado frente à prepotência alheia.541 Da mesma forma, o reconhecimento da dignidade da pessoa humana implica no reconhecimento da autodeterminação do homem, ou seja, de que este é 537 MAIHOFER, Werner. Estado de Derecho y Dignidad Humana. Trad. José Luiz Gusmán Dalbora. Montevidéo-Buenos Aires: B de F, 2008. p. 3. 538 KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Trad. Edson Bini. Bauru: EDIPRO, 2003. pp. 174175. 539 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 406. 540 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 35. 541 MAIHOFER, Werner. Estado de Derecho y Dignidad Humana. Trad. José Luiz Gusmán Dalbora. Montevidéo-Buenos Aires: B de F, 2008. p. 8. 171 dotado da faculdade de se desenvolver de forma livre na sociedade, podendo optar pela construção de sua vida da forma que melhor lhe convier.542 A dignidade da pessoa humana, assim, explica Werner Maihofer, corresponde à “certeza de existência que nos serve de sustento e representa, no saber indubitável da fundamental indisponibilidade de nosso eu para os demais, a razão existencial de minha personalidade [tradução livre]”.543 Representa, com isso, a noção de cada homem de que seu eu não pertence a ninguém, senão a si mesmo. Em um Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana assume papel central, podendo inclusive afirmar-se que se trata efetivamente do princípio fundamental sobre o qual se edifica o Estado Democrático de Direito. Neste sentido, Werner Maihofer afirma que “se no antigo sistema autoritário o Estado, com sua dignidade e seu poder, era superior a todo o demais, no novo sistema democrático é o homem, com sua dignidade e seu direito, quem há de estar acima de qualquer outra coisa [tradução livre]”.544 Neste contexto, a dignidade da pessoa humana revela-se como verdadeiro valor-guia de todo o ordenamento jurídico, inclusive do sistema de direitos fundamentais, razão pela qual é, inclusive, justificável afirmar-se que se trata do princípio de maior hierarquia axiológico-valorativa nas ordens constitucionais democráticas.545 De fato, o reconhecimento do status de princípio fundamental à dignidade da pessoa humana “significa não só o reconhecimento do valor do homem em sua dimensão de liberdade, como também de que o próprio Estado se constrói com base nesse princípio”.546 542 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 72. 543 “certidumbre de existencia que nos sirve de sustento y representa, en el saber indudable de la fundamental indisponibilidad de nuestro yo para los demás, la razón existencial de mi personalidad”. MAIHOFER, Werner. Estado de Derecho y Dignidad Humana. Trad. José Luiz Gusmán Dalbora. Montevidéo-Buenos Aires: B de F, 2008. p. 11. 544 “Si en el antiguo sistema autoritario el Estado, con su dignidad y su poder, era superior a todo lo demás, en el nuevo sistema democrático es el hombre, con su dignidad e su Derecho, quien ha de estar por encima de cualquier otra cosa”. MAIHOFER, Werner. Estado de Derecho y Dignidad Humana. Trad. José Luiz Gusmán Dalbora. Montevidéo-Buenos Aires: B de F, 2008. p. 3. 545 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 72. 546 CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional Didático. 5. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1997. p. 187. 172 Neste sentido, a dignidade da pessoa humana pode ser identificada como princípio estruturante do ordenamento jurídico. Estes, conforme a lição de José Joaquim Gomes Canotilho, tratam-se daqueles “constitutivos e indicativos das idéias directivas básicas de toda a ordem constitucional (...) [ou seja, das] travesmestras jurídico-constitucionais do estatuto jurídico do político”.547 Com isso, é preciso reconhecer-se que a dignidade da pessoa possui elevada eficácia e efetividade, irradiando seu conteúdo para dentro de todas as normas, constitucionais ou infraconstitucionais, do ordenamento jurídico.548 Da mesma forma, por assumir essa função central, é justamente a dignidade da pessoa humana o instituto que confere unidade de sentido e legitimidade à ordem jurídica de um Estado Democrático de Direito.549 Sem embargo, conforme ensina Ingo Wolfgang Sarlet, pode-se efetivamente afirmar que a dignidade da pessoa humana possui verdadeira função instrumental integradora e hermenêutica, na medida em que serve de parâmetro para a aplicação, a interpretação e a integração do ordenamento jurídico.550 Na mesma linha, Werner Maihofer afirma que a dignidade da pessoa humana, ocupando a posição de norma fundamental, passa a exercer um posto onde todas as normas jurídicas, em sua promulgação e interpretação, devem harmonizar-se com tal princípio.551 Assim sendo, “o reconhecimento da dignidade como coluna vertebral do sistema de relacionamentos humanos é o substrato material, é o núcleo de identidade normativa do modelo de Estado [Democrático de Direito] ora em discussão”.552 Segundo Pierpaolo Cruz Bottini, a consolidação de uma sociedade verdadeiramente democrática, pautada em ideais de pluralidade e tolerância, exige o reconhecimento da dignidade da pessoa humana como valor supremo, a fim de 547 CANOTILHO. José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 1160. 548 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. pp. 73-74. 549 MORAES. Alexandre de. Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 50. 550 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 83. 551 MAIHOFER, Werner. Estado de Derecho y Dignidad Humana. Trad. José Luiz Gusmán Dalbora. Montevidéo-Buenos Aires: B de F, 2008. p. 3. 552 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 72. 173 garantir e assegurar a todos os cidadãos a possibilidade de se autodeterminarem de forma livre.553 Desta forma, a dignidade da pessoa humana, assumindo esta posição central e fundamental dentro do modelo de Estado Democrático de Direito, irradia seu conteúdo para dentro de todas as normas jurídicas que compõem o ordenamento jurídico de tal estado, de forma que a sua tutela deve ser vista como objetivo central de todo o funcionamento estatal. 4.4.2 A Manutenção do Princípio da Intervenção Mínima do Direito Penal na Sociedade de Risco Considerando-se o relevante papel que assume a dignidade da pessoa humana em um modelo estatal democrático de direito, a resposta à questão sobre a subsistência do princípio da intervenção mínima do Direito Penal dentro do contexto de uma sociedade de risco, questão esta na qual repousa o cerne do presente trabalho, só pode ser alcançada por intermédio daquela. Com base na constatação da relevância da dignidade da pessoa humana dentro de um ordenamento jurídico democrático, Pierpaolo Cruz Bottini afirma que a utilização do direito penal sugere a supressão, ainda que temporária, da dignidade humana, porque afeta a liberdade de vida do indivíduo. Por isso, a reação violenta do Estado, caracterizada pela pena, só pode ser dirigida a atos que ameacem a integridade das estruturas sobre as quais as relações sociais e as relações de produção se sedimentam e, no Estado Democrático de Direito, esta estrutura é a dignidade da pessoa humana, é a liberdade de autodeterminação, que somente pode ser exercida em sua plenitude quando o cidadão tem à sua disposição os bens necessários para o seu desenvolvimento e para sua interação comunicativa com os demais 554 membros da sociedade. Com isso, afirma o autor que, por ser o Direito Penal um ramo do direito que, quando aplicado, importa em uma vulneração da dignidade da pessoa 553 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 72. 554 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 72. 174 humana, tal ramo do direito apenas pode ser chamado a atuar “diante de condutas que atentem contra a dignidade humana ou contra os bens e valores que permitam sua existência material”.555 E conclui no sentido de que a dignidade da pessoa humana deve ser alçada ao patamar de princípio basilar sobre o qual se sustenta o sistema penal, exigindo que a utilização da pena criminal se restrinja a condutas que afetem os bens jurídicos indispensáveis à autodeterminação do indivíduo.556 Neste sentido, Paulo César Busato e Karin Kässmayer ensinam que apenas aquelas bens jurídicos essenciais ao desenvolvimento humano em sociedade é merecedor de proteção.557 Assim, bens jurídicos como a vida, a integridade física e a liberdade são indiscutivelmente merecedores de tutela penal uma vez tratarem-se de entidades sem as quais não se pode vislumbrar a existência da dignidade humana enquanto liberdade de autodeterminação. Esta legitimidade para figurar como objeto de tutela penal fica menos evidente, no entanto, quando se tratam de bens jurídicos supra-individuais. Não obstante, em que pese menos evidente, esta legitimidade pode se fazer presente. Neste sentido, a organização social contemporânea necessita da proteção de bens transindividuais. A própria caracterização do Estado, como instituição voltada para a preservação de condições individuais e coletivas necessárias para a dignidade humana, enseja o amparo de direitos sociais constitucionais. A construção do indivíduo se faz por meio da interação comunicativa com outros, o que exige o compartilhamento de bens entre muitos ou todos os cidadãos. Elementos inerentes ao funcionamento da sociedade não são de titularidade dos indivíduos, mas de toda a coletividade, como o meio ambiente, a saúde pública, a ordem econômica, e sua supressão afetaria sobremodo o desenvolvimento de cada 558 cidadão. 555 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 73. 556 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 73. 557 BUSATO, Paulo César, KÄSSMAYER, Karin. Intervenção Mínima x Precaução: conflito entre princípios no direito penal ambiental. In Direito e Risco: o direito do ambiente na sociedade de risco. Curitiba: UNIFAE, 2008. p. 128. 558 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 74. 175 De fato, a partir de tais afirmações, Pierpaolo Cruz Bottini afirma que “a preservação da dignidade humana exige a tutela de bens coletivos”.559 Neste mesmo sentido, Roland Hefendehl afirma que “a tese de que todos os bens jurídicos coletivos são ilegítimos não precisa de uma análise detida, já que sequer se sustenta coerentemente”.560 No entanto, a questão adquire complexidade a partir do momento em que se pretende definir, dentre todos os imagináveis bens jurídicos supra-individuais, quais deles efetivamente possuem dignidade penal, ou seja, são merecedores de proteção penal. Tal definição apenas pode ser obtida através do estabelecimento de um critério capaz de aferir a real relevância dos bens jurídicos supra-individuais e seu real merecimento de tutela penal. Sem embargo, em um Estado Democrático de Direito, tal critério certamente há de ser o da dignidade da pessoa humana. Neste sentido, Paulo César Busato e Karin Kässmayer colocam que para que um bem jurídico supra-individual possa ser elevado à condição de bem jurídico penal, é preciso que este sirva ao desenvolvimento pessoal do individuo em sociedade.561 Da mesma forma, Pierpaolo Cruz Bottini afirma que, a fim de se evitar uma expansão irracional do Direito Penal, é preciso que a tutela penal apenas se dirija a bens jurídicos supra-individuais quando estes forem “compreendidos como contextos necessários para, ainda que de maneira mediata, garantir a existência de interesses individuais indispensáveis para a materialização da dignidade humana”.562 Ainda, complementa o autor que a questão não se trata de discutir a legitimidade da proteção penal de bens supra-individuais, uma vez que esta é indiscutível, mas sim de determinar-se o substrato material que justifique esta 559 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 74. 560 HEFENDEHL, Ronald. El Bien Jurídico Como Eje Material de la Norma Penal. Trad. María Martín Lorenzo. In HEFENDEHL, Roland (Coord.). La Teoria del Bien Jurídico. Madrid: Marcial Pons, 2007. p. 182. 561 BUSATO, Paulo César, KÄSSMAYER, Karin. Intervenção Mínima x Precaução: conflito entre princípios no direito penal ambiental. In Direito e Risco: o direito do ambiente na sociedade de risco. Curitiba: UNIFAE, 2008. pp. 128-129. 562 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 75. 176 proteção, o qual reside na garantia das condições necessárias para o livre desenvolvimento do indivíduo.563 Em verdade, o que tais autores buscam afirmar é a exigência de que a tutela penal apenas se fará presente em relação a bens jurídicos supra-individuais quando estes representem um substrato real para o livre desenvolvimento do cidadão, ou seja, apenas quando tais bens jurídicos forem dotados de um referente antropocêntrico. Neste sentido, Jorge de Figueiredo Dias é peremptório ao afirmar que “é na preservação da dignidade da pessoa – da pessoa do delinquente e dos outros – ‘que radica o axioma onto-antropológico de todo o discurso jurídico penal’”.564 E continua, afirmando que a tutela penal de bens jurídicos supraindividuais é possível, aceitável e, inclusive, necessária, mas que esta deve se dar pautada pelo e sem prejuízo do axioma onto-antropológico sobre o qual se assenta o Direito Penal.565 De fato, segundo tal autor, o qual expressamente adota uma concepção dualista do bem jurídico, é preciso que fique claro que “não pode negarse a existência de bens jurídicos colectivos dignos e necessitados de tutela penal”.566 Tal existência, no entanto, como expresso, entre tantos, pelo próprio autor, deve estar subordinada à essencialidade de tal bem para o livre desenvolvimento e a plenitude da dignidade da pessoa humana. Desta forma, em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, o aparente conflito existente entre o princípio da intervenção mínima do Direito Penal e as demandas de proteção do homem frente aos novos riscos tecnológicos deve ser resolvido no sentido de manter-se a vigência da fragmentariedade enquanto atributo do Direito Penal, de forma que a máxima tutela da dignidade humana se dê pelo reconhecimento da legitimidade da tutela penal quando se estiver diante de um bem jurídico essencial à livre autodeterminação do cidadão, mas pela negação de tal legitimidade quando tal essencialidade inexistir. 563 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. pp. 76-77. 564 DIAS, Jorge de Figueiredo. Temas Básicos da Doutrina Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2001. p. 168. 565 DIAS, Jorge de Figueiredo. Temas Básicos da Doutrina Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2001. pp. 174-175.. 566 DIAS, Jorge de Figueiredo. Temas Básicos da Doutrina Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2001. p. 181. 177 Relativamente à problemática que envolve os novos riscos tecnológicos e a legitimidade ou não de sua tutela penal, esta deve ser reconduzida à análise da legitimidade da tutela penal dos bens jurídicos envolvidos, notadamente o meio-ambiente e a saúde pública. Neste contexto, quer parecer amplamente majoritário o entendimento de que tais bens jurídicos certamente são dotados de dignidade penal, em virtude de sua essencialidade não apenas à dignidade humana, mas à própria existência da vida humana. Neste sentido, Jesús-María Silva Sánchez ensina que, por sua particular relevância, “poucos negarão que a proteção do meio ambiente deve constituir um dos princípios organizacionais fundamentais de nossa civilização, senão o básico”.567 De forma semelhante, Paulo César Busato e Karin Kässmayer afirmam que “no que tange ao ambiente, é evidente sua posição de relevo e importância a justificar a intervenção penal”.568 E continuam os autores, no sentido de que “hoje em dia é pouco crível que alguém, a sério, possa considerar que o meio ambiente não faz parte do grupo de bens jurídicos essenciais ao desenvolvimento do ser humano em sociedade”.569 A tutela de bens jurídicos como o meio ambiente e a saúde pública possui tamanha relevância que Jorge de Figueiredo Dias chega a afirmar que não valerá a pena, nem sequer será socialmente aceitável, o cultivo de um direito penal que, seja em nome de que princípios for, se desinteresse da sorte das gerações futuras e nada tenha para lhes oferecer perante o risco 570 existencial que sobre elas pesa. No entanto, a fim de que a tutela penal destes bens jurídicos se dê em conformidade com o ideal de consecução do maior nível de dignidade humana possível, fundamental compreender que esta não se dará de forma plena, mas 567 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução: ROCHA, Luiz Otavio de Oliveira. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 113. 568 BUSATO, Paulo César, KÄSSMAYER, Karin. Intervenção Mínima x Precaução: conflito entre princípios no direito penal ambiental. In Direito e Risco: o direito do ambiente na sociedade de risco. Curitiba: UNIFAE, 2008. p. 128. 569 BUSATO, Paulo César, KÄSSMAYER, Karin. Intervenção Mínima x Precaução: conflito entre princípios no direito penal ambiental. In Direito e Risco: o direito do ambiente na sociedade de risco. Curitiba: UNIFAE, 2008. p. 145. 570 DIAS, Jorge de Figueiredo. Temas Básicos da Doutrina Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2001. p. 165. 178 fragmentária. Neste sentido, o Direito Penal apenas atuará sobre estes bens jurídicos quando se produzam lesões ou perigo de lesões intoleráveis contra os mesmos e que reflitam negativamente em suas contribuições para o desenvolvimento do ser humano em sociedade.571 Nas palavras de Paulo César Busato e Karin Kässmayer: cabe observar que esta inserção [do bem jurídico ambiental] no direito penal se dará de forma limitada, portanto condicionada aos princípios constitucionais penais. (...) Claro está que, em sentido penal, o meio ambiente não se protege como um bem jurídico coletivo, distante do ser humano, mas sim como a expressão fundamental de um conjunto de 572 requisitos essenciais à preservação da vida humana na Terra. No mesmo sentido, Pierpaolo Cruz Bottini ensina que estes bens jurídicos apenas serão tutelados penalmente naquilo em que sejam referentes a interesses humanos e que funcionem para assegurar as possibilidades vitais do ser humano.573 De fato, segundo o autor, para a tutela penal dos bens jurídicos supraindividuais, é fundamental que estes possuam um referencial antropocêntrico. Segundo ele, “o direito penal do meio ambiente não existe para proteger elementos ambientais em si, como objetos autônomos e independentes dos interesses humanos, mas como fatores indispensáveis à vida e à saúde do homem”.574 Assim conclui o autor que “a proteção penal de bens jurídicos coletivos é legítima, desde que no bojo de uma política criminal orientada à proteção da liberdade de autodeterminação do ser humano, que só pode ser concebida través do indivíduo e não de instituições”.575 Desta forma, apenas é legítima a intervenção penal na tutela contra novos riscos tecnológicos e dos bens jurídicos supra-individuais que com eles se relacionam quando a conduta que se objetiva criminalizar apresenta, em si mesma, 571 BUSATO, Paulo César, KÄSSMAYER, Karin. Intervenção Mínima x Precaução: conflito entre princípios no direito penal ambiental. In Direito e Risco: o direito do ambiente na sociedade de risco. Curitiba: UNIFAE, 2008. p. 129. 572 BUSATO, Paulo César, KÄSSMAYER, Karin. Intervenção Mínima x Precaução: conflito entre princípios no direito penal ambiental. In Direito e Risco: o direito do ambiente na sociedade de risco. Curitiba: UNIFAE, 2008. pp. 146-147. 573 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 77. 574 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 77. 575 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 78. 179 um conteúdo de lesividade, ou seja, quando esta conduta expõe o bem jurídico a uma lesão ou perigo de lesão e com isso vulnera a capacidade de gozo deste bem jurídico pelo cidadão, afetando assim a sua liberdade de autodeterminação enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana. Neste contexto, não se presta o Direito Penal a tutelar contextos meramente normativos, criminalizando meras transgressões normativas ou ainda condutas cuja lesividade seja exclusivamente suspeita, como o que ocorre no paradigma da precaução.. Sobre isto, Pierpaolo Cruz Bottini afirma que a utilização do instrumento penal para fazer frente à violação das regras de precaução não comporta os padrões mínimos necessários para legitimar a incidência do ius puniendi; logo, não pode ser incorporada ao sistema repressivo sem ferir a coesão obtida pela fundamentação do ato 576 penalmente relevante no risco decorrente da conduta. Na mesma linha, Blanca Mendoza Buergo afirma que, considerando-se que a intervenção penal sempre significa uma limitação na liberdade do cidadão, é imperioso que esta busque mais do que a mera garantia de um complexo normativo, ou seja, que se relacione a uma conduta com um conteúdo real de ofensividade. Por sua vez, Fábio Roberto D’Avila afirma que a intervenção penal sobre atividades de risco apenas pode ser admitida quando a conduta em questão, para além de uma mera desobediência a prescrições administrativas e normativas, mostra-se verdadeiramente ofensiva ao bem jurídico supra-individual que se busca tutelar.577 Isto, ademais, sem ignorar-se a exigência de que tal tutela dê-se voltada à proteção do homem, e não do bem jurídico supra-individual compreendido em si mesmo. Tal exigência de que o Direito Penal, frente às novas demandas da sociedade de risco, continue atuando de forma eminentemente fragmentária relaciona-se diretamente com a percepção de que, frente aos novos riscos, o Direito Penal deve manter sua característica de subsidiariedade. 576 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 61. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 105. 577 D’AVILA, Fábio Roberto. O Ilícito Penal nos Crimes Ambientais. Algumas reflexões sobre a ofensa a bens jurídicos e os crimes de perigo abstrato no âmbito do direito penal ambiental. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 67. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 45. 180 Assim, conforme apontado por Paulo César Busato e Karin Kässmayer, o Direito Penal deve atuar pautado por uma dupla limitação. Primeiramente, deve abdicar qualquer pretensão de atuar de forma não sancionatória, como, por exemplo, atuando na regulamentação ou na gestão dos riscos. Em segundo lugar, mesmo quando atua de forma sancionatória, o deve fazer sempre em sua condição subsidiária.578 Neste sentido, afirmam que a legitimidade da intervenção penal pode ser reconhecida “em sendo a conduta tal que provoque um dano ambiental de graves proporções, a ponto de corresponder a um perigo concreto importante à vida e/ou à saúde humana em geral”579, mas tão somente onde outros ramos do direito como o administrativo e o civil não se mostrem capazes de promover uma resposta proporcional ao nível do perigo criado ao ser humano.580 Com isso, afirmam os autores que apenas é cabível a intervenção penal onde exista um real perigo às bases necessárias para o desenvolvimento pleno do homem, de forma que em todos os demais casos deve ser excluída a atuação penal, por não ser este o instrumento apropriado para lidar com questões de mera gestão.581 Em posição semelhante, Blanca Mendoza Buergo ensina que o aparente conflito entre as garantias penais liberais de um lado e a obtenção de segurança frente aos novos riscos de outro só pode ser solucionada de forma adequada através do reconhecimento e respeito ao caráter subsidiário do Direito Penal.582 De fato, segundo a autora, é fundamental que sejam mantidas as premissas de fragmentariedade e subsidiariedade do Direito Penal, para que este 578 BUSATO, Paulo César, KÄSSMAYER, Karin. Intervenção Mínima x Precaução: conflito entre princípios no direito penal ambiental. In Direito e Risco: o direito do ambiente na sociedade de risco. Curitiba: UNIFAE, 2008. pp. 147-148. 579 BUSATO, Paulo César, KÄSSMAYER, Karin. Intervenção Mínima x Precaução: conflito entre princípios no direito penal ambiental. In Direito e Risco: o direito do ambiente na sociedade de risco. Curitiba: UNIFAE, 2008. p. 148. 580 BUSATO, Paulo César, KÄSSMAYER, Karin. Intervenção Mínima x Precaução: conflito entre princípios no direito penal ambiental. In Direito e Risco: o direito do ambiente na sociedade de risco. Curitiba: UNIFAE, 2008. p. 148. 581 BUSATO, Paulo César, KÄSSMAYER, Karin. Intervenção Mínima x Precaução: conflito entre princípios no direito penal ambiental. In Direito e Risco: o direito do ambiente na sociedade de risco. Curitiba: UNIFAE, 2008. p. 148. 582 MENDOZA BUERGO, Blanca. El Derecho Penal en la Sociedad Del Riesgo. Madrid: Civitas, 2001. p. 182. 181 continue exercendo seu papel de ultima ratio dentre as esferas de controle social, inclusive para que se assegure a seriedade da cominação penal.583 Neste mesmo sentido, Cornelius Prittwitz argumenta que é preciso reconhecer-se que não se pode, com o direito penal, resolver todos os problemas, talvez nem mesmo muitos, talvez apenas alguns problemas específicos, pelo contrário, pode-se até intensificar os problemas que se pretende resolver por meio do direito penal, devido à aplicação muito freqüente, muito rígida ou incorreta 584 do direito penal. Assim, a solução para o aventado conflito pode ser encontrada na aceitação de que o Direito Penal venha a atuar também sobre as questões envolvendo os novos riscos tecnológicos, desde que mantenha, de forma irrenunciável, suas bases garantístas.585 Nas palavras de Blanca Mendoza Buergo: frente a isso entendo que a finalidade de proteger-se frente aos riscos e procurar mais segurança através do Direito penal pode manter-se na medida em que seja compatível com os princípios básicos do Direito penal de um Estado de Direito e com aqueles princípios e categorias dogmáticas que possibilitem e assegurem na maior medida uma atribuição de 586 responsabilidade adequada e coerente com tal modelo [tradução livre]. No mesmo sentido, Paulo César Busato e Karin Kässmayer afirmam que a compatibilidade entre as garantias penais clássicas e a tutela de problemas ambientais pode ser alcançada “pelo recorte oferecido pelo princípio de intervenção mínima”.587 Nas palavras dos autores: 583 MENDOZA BUERGO, Blanca. El Derecho Penal en la Sociedad Del Riesgo. Madrid: Civitas, 2001. pp. 186-188.. 584 PRITTWITZ, Cornelius. O Direito Penal entre Direito Penal do Risco e Direito Penal do Inimigo. In. Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 47. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 33. 585 MENDOZA BUERGO, Blanca. El Derecho Penal en la Sociedad Del Riesgo. Madrid: Civitas, 2001. p. 191. 586 “Frente a ello entiendo que la finalidad de protegerse frente a los riesgos y procurar más seguridad a través del Derecho penal puede mantenerse en la medida en que sea compatible con los principios básicos del Derecho penal de un Estado de Derecho y con aquellos principios y categorías dogmáticas que posibiliten y aseguren en mayor medida una atribución de responsabilidad adecuada y coherente con tal modelo”. MENDOZA BUERGO, Blanca. El Derecho Penal en la Sociedad Del Riesgo. Madrid: Civitas, 2001. p. 192. 587 BUSATO, Paulo César, KÄSSMAYER, Karin. Intervenção Mínima x Precaução: conflito entre princípios no direito penal ambiental. In Direito e Risco: o direito do ambiente na sociedade de risco. Curitiba: UNIFAE, 2008. p. 148. 182 a atividade jurídico-penal só pode estar presente no campo repressivo, ainda assim submetido cabalmente ao princípio de intervenção mínima. Cabe, assim, tão-somente à função administrativa do Estado Gestor a efetividade do princípio basilar do Direito Ambiental: a precaução. Desta forma, diante da questão acerca da subsistência do princípio da intervenção mínima do Direito Penal em face da nova problemática advinda com a sociedade de risco, é preciso que se reconheça que o mesmo pode e deve ser mantido. Com isso, é possível que se reconheça a legitimidade da intervenção penal sobre estas questões, desde que pautada por critérios de fragmentariedade e subsidiariedade, e na busca da consecução do maior nível de dignidade da pessoa humana possível. 183 5 CONCLUSÃO O presente trabalho propôs-se a analisar de que forma o princípio da intervenção mínima do Direito Penal se sustenta frente à nova configuração social de uma sociedade de risco. A fim de atingir tal objetivo, demonstrou-se que o princípio penal da intervenção mínima trata-se de um princípio penal de índole eminentemente liberal, cuja origem remete aos ideais iluministas de estabelecerem-se limites ao poder punitivo estatal, conforme exercido no antigo regime absolutista-monárquico. Tal princípio, assim, surge para atuar ao lado de princípios como a legalidade e a lesividade, a fim de estabelecer garantias individuais oponíveis ao Estado. Este princípio da intervenção mínima do Direito Penal, afirmou-se, representa um mandamento de razoabilidade da intervenção penal, da qual apenas se fará uso quando este for imprescindível. Com isso, a recurso à intervenção penal somente será legítimo quando esta se fizer absolutamente necessária. Em outras palavras, o Direito Penal apenas incidirá sobre as lesões mais graves dirigidas contra os bens jurídicos mais importantes para o indivíduo em sociedade, bem como exclusivamente quando os demais meios jurídicos e extra-jurídicos de proteção destes bens jurídicos mostrarem-se insuficientes e ineficientes para realizar tal tutela. No entanto, passados mais de dois séculos desde a forja deste princípio, a modernidade no qual o mesmo confeccionou-se passou por uma série de transformações, através daquilo que pode ser referido como processo de modernização reflexiva. Com isto refere-se à passagem de um modelo social de primeira modernidade, fundada nas premissas cartesianas de que um maior conhecimento e controle do mundo natural pelo homem gerariam maiores possibilidades da utilização daquele em prol dos interesses desse, para um modelo de segunda modernidade, onde as conseqüências imprevistas e indesejadas da modernidade tomam corpo, através da manifestação dos novos riscos tecnológicos. A percepção social destes riscos pela sociedade inaugura um novo tempo, no qual a modernidade perde seu encanto e entra em crise. O surgimento dos novos riscos revela a falibilidade das certezas científicas, dando origem a 184 sentimentos sociais de insegurança subjetiva e a demandas coletivas por segurança e proteção. Tais demandas por segurança e proteção, argumentou-se, invariavelmente rumam ao Direito Penal, importando em uma tendência de expansão deste ramo do direito sobre novas áreas, para cujas tutelas o mesmo não se mostra adequadamente equipado. Estas demandas sociais de segurança fizeram surgir, ademais, um novo paradigma, o paradigma da precaução, no qual o ideal de reparabilidade dos danos é substituído pelo da evitação destas. Segundo este princípio da precaução, demonstrou-se, devem ser evitadas aquelas atividades e condutas sobre cujas potencialidades lesivas inexista certeza científica, a fim de que a sociedade não seja novamente surpreendida por suas nefastas conseqüências desconhecidas. Não bastante, a percepção social dos novos riscos e a conseqüente demanda social por seu controle através do Direito Penal fazem com que este discurso de precaução ingresse no âmbito do Direito Penal. No entanto, conforme o que foi exposto neste trabalho, esta tentativa de se controlar os novos riscos por meio do Direito Penal exige que se operem significativas mudanças na forma de atuar típica deste ramo do direito. O Direito Penal, com isso, passa a experimentar significativas flexibilizações, como a desmaterialização do bem jurídico, o recurso cada vez mais freqüentes a incriminações de perigo abstrato e incriminações por acumulação, a tutela penal do estado de prevenção, e a configuração do delito como mera transgressão da norma. Em face desta nova configuração de um Direito Penal do Risco, expôsse, diferentes posições doutrinárias surgiram, manifestando-se de forma distintas acerca deste novo Direito Penal. Dentre elas, especial relevância deve ser dada às posições adotadas por Winfried Hassemer, Günther Stratenwerth, Bernd Schünemann, e Jésus-María Silva Sánchez. Diante deste quadro, argumentou-se que eventual incompatibilidade entre o princípio da intervenção mínima do Direito Penal e o princípio da precaução, representantes de dois distintos modelos de Direito Penal, deve ser resolvida com base em uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico. Esta interpretação sistemática, defendeu-se, deve ser feita com base no princípio da dignidade da pessoa humana, princípio fundamental do Estado Democrático de Direito. 185 Acerca de tal princípio, demonstrou-se que o mesmo representa a percepção de que todo homem possui um valor inerente à sua condição humana, o que representa o mandamento de que todo homem é senhor de si mesmo, sendo livre para se desenvolver e se determinar, jamais podendo ser instrumentalizado para os fins alheios. Defendeu-se, por fim, que a dignidade da pessoa humana deve ser o critério último para a verificação da legitimidade de determinada tutela penal. Afirmou-se que, uma vez que toda intervenção penal afeta a dignidade da pessoa humana de um cidadão, esta apenas se mostra legítima quando dirigida contra condutas que, por si só, signifiquem lesões à dignidade humana de outros. Defendeu-se, com isso, que a tutela penal de bens jurídicos supraindividuais é legítima, desde que se tratem de bens jurídicos essenciais à concretização da dignidade da pessoa humana, ou seja, desde que a tutela destes bens jurídicos supra-individuais represente uma tutela indireta dos indivíduos. Tal critério, com isso, significa que os bens jurídicos supra-individuais não podem ser penalmente protegidos como fins em si mesmo, assim como não é dado ao Direito Penal a tutela da atividade administrativa ou de complexos normativos de forma autônoma. Tais bens jurídicos supra-individuais apenas serão dignos de tutela penal quando sua tutela tiver como objetivo final a tutela do indivíduo dotado de dignidade humana. Com base em tal critério, é possível defender a ilegitimidade de determinadas incriminações existentes no Direito Penal brasileiro, bem como a legitimidade de outras tantas. Exemplificativamente, podem-se citar exemplos presentes nas lei 8.137/90, 9.605/98, e 11.105/05. A lei 8.137/90 tipifica, em seu artigo 7º, crimes contra as relações de consumo. Dentre estas incriminações, a prevista no inciso II é exemplo daquelas cuja legitimidade não pode ser reconhecida. Tal tipo penal incrimina a conduta de “vender o expor à venda mercadoria cuja embalagem, tipo, especificação, peso ou composição esteja em desacordo com as prescrições legais, ou que não corresponda à respectiva classificação oficial”. Tal tipo penal, pelo que se percebe, visa exclusivamente garantir a observância de regras administrativas, sem qualquer recondução à tutela de bens jurídicos individuais. Efetivamente, a venda de eventual produto cuja embalagem esteja em desacordo com prescrições legais, porém tal desacordo não traga nenhuma 186 conseqüência negativa para o consumidor, seria, por força de tal dispositivo, considerada criminosa, mesmo sem afetar, sequer minimamente, qualquer bem jurídico da pessoa consumidora, ou seja, sem interferir em sua dignidade. Tal infração, que certamente pode e deve ser sancionada administrativamente, não atende a critérios mínimos de legitimidade penal. Situação diferente é a do o crime previsto no inciso IX de tal dispositivo, que criminaliza a conduta de “vender, ter em depósito para vender ou expor à venda ou, de qualquer forma, entregar matéria-prima ou mercadoria, em condições impróprias ao consumo”. Sobre tal tipo penal, uma questão deve ser posta: Segundo a doutrina e a jurisprudência majoritária, tal tipo trata-se de um crime de perigo abstrato, uma vez que, segundo este entendimento, a verificação de se o produto está em condições impróprias para o consumo deve ser feita de acordo com o artigo 18, §6º do Código de Defesa do Consumidor, para o qual, para ser considerado impróprio ao consumo, bastaria estar o produto com sua data de validade vencida, ou estar o mesmo em desacordo com normas regulamentares de distribuição e apresentação. Tal interpretação deste tipo penal acarretaria, com base no que foi exposto neste trabalho, no reconhecimento da ilegitimidade penal de tal incriminação. No entanto, tal incriminação mostrar-se-ia legítima caso fosse adotado entendimento no sentido de que o tipo apenas restaria configurado se a matériaprima ou mercadoria em questão estivesse concretamente imprópria para consumo, ou seja, efetivamente possuísse algumas lesividade a bem jurídico do consumidor. Esta exigência de uma verificação ex post da periculosidade do produto conferiria legitimidade penal a tal incriminação. Relativamente à lei 9.605/98, lei de crimes ambientais, nesta verifica-se a presença de diversas incriminações que não atendem ao critério proposto neste trabalho para a verificação da legitimidade penal da tutela de bens jurídicos supraindividuais. Exemplo destas incriminações pode ser dado através do crime previsto no artigo 51 de tal diploma legal, que criminaliza a conduta de “comercializar motosserra ou utilizá-la em florestas e nas demais formas de vegetação, sem licença ou registro da autoridade competente”. Tal incriminação, sem dúvida, tutela a mera 187 necessidade de licença ou registro para a prática das condutas descritas no tipo penal de comercializar ou utilizar motosserra, sem tutelar, de qualquer forma, bem jurídico relevante à dignidade da pessoa humana. Tal constatação fica clara ao observar-se que tal dispositivo não criminaliza a venda ou utilização de motosserra, mas tão somente a prática de tais condutas sem licença ou registro. Em outras palavras, não se visa evitar uma lesão ao meio-ambiente, mas tão somente uma lesão a um sistema estatal de licenciamento e registros. Situação distinta é a que ocorre no artigo 41 de tal lei, onde criminalizase a conduta de “provocar incêndio em mata ou floresta”. Tal conduta, sem dúvida, significa um dano ao meio ambiente, bem jurídico supra-individual, que repercute de forma negativa no indivíduo, uma vez que a destruição de matas e florestas por meio de incêndio traz diversas conseqüências que atingem negativamente a qualidade de vida do homem, como a poluição do ar, o efeito-estufa, o aquecimento-global, etc. Por fim, relativamente à lei 11.105/05, lei de biossegurança, todas as incriminações previstas na mesma mostram-se passíveis de críticas. De fato, tal lei é o maior exemplo da influência do princípio da precaução em matéria penal no Brasil, ao tipificar uma série de condutas que se mostram criminosas pelo simples fato de serem realizadas em desacordo com normas administrativas ou sem autorização da autoridade competente. Exemplo disto são os tipos penais presentes nos artigos 27 e 29 de tal lei, que criminalizam as condutas de “liberar ou descartar OGM no meio ambiente, em desacordo com as normas estabelecidas pela CTNBio e pelos órgãos e entidades de registro e fiscalização” e de “produzir, armazenar, transportar, comercializar, importar o exportar OGM e seus derivados, sem autorização ou em desacordo com as normas estabelecidas pela CTNBio e pelos órgãos e entidades de registro e fiscalização”. Tais tipos penais tutelam exclusivamente a atividade administrativa de registro e fiscalização de organismos geneticamente modificados, independentemente de sua real potencialidade lesiva contra o ser humano. Estes tipos penais, assim, fazem incidir o Direito Penal sobre qualquer utilização de organismos geneticamente modificados em desacordo com regras administrativas de registro e autorização, sem a necessidade de que tais organismos geneticamente 188 modificados tenham qualquer potencialidade lesiva em face de algum bem jurídico relevante para a dignidade da pessoa humana. Com isso, pode-se concluir que os problemas identificados neste trabalho, de flexibilizações dos institutos clássicos do Direito Penal, se mostram efetivamente presentes no ordenamento jurídico-penal brasileiro, que vem experimentando todas aquelas flexibilizações abordadas. Assim, conclui-se que a manutenção do princípio da intervenção mínima do Direito Penal é absolutamente necessária, a fim de que a intervenção penal continue se dando pautada por critérios de fragmentariedade e de subsidiariedade, os quais se encontrariam regidos pelo princípio maior da dignidade da pessoa humana, com isso evitando-se uma desmedida expansão do Direito Penal. 189 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALASTUEY DOBÓN, Maria Carmen. Consideraciones Sobre el Objeto de Protección en el Derecho Penal del Medio Ambiente. In. PRADO, Luiz Regis (Coord.). Direito Penal Contemporâneo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. ANDRADE, Manuel da Costa. A “Dignidade Penal” e a “Carência de Tutela Penal” como Referências de uma Doutrina Teleológico-Racional do Crime. In Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Ano 2. Fasc. 2. Lisboa: Aequitas e Editorial Notícias, 1992. ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 11. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008. BATISTA, Nilo. 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