Novembro 2009 Problemas Nacionais Conferências pronunciadas nas reuniões semanais do Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo 656 v. 55 Sumário O Poder Judiciário e as Políticas Públicas.................................................. 3 ArnoldoWald Mauricio de Nassau... Depois de Pernambuco................................................ 7 Vasco Mariz Derivativos no banco dos réus..................................................................... 27 Ari Cordeiro Filho Síntese da Conjuntura Evolução da crise cambial......................................... 69 Ernane Galvêas São de responsabilidade de seus autores os conceitos emitidos nas conferências aqui publicadas. Solicita-se aos assinantes comunicarem qualquer alteração de endereço. As matérias podem ser livremente reproduzidas integral ou parcialmente, desde que citada a fonte. A íntegra das duas últimas edições desta publicação estão disponíveis no endereço www.portaldocomercio.org.br, no link Produtos e Serviços – Publicações – Periódicos. Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo v. 55, n. 656, Novembro 2009 Brasília SBN Quadra 01 Bloco B no 14, 15o ao 18o andar Edifício Confederação Nacional do Comércio CEP 70041-902 PABX (61) 3329-9500 | 3329-9501 E-mail: [email protected] Rio de Janeiro Avenida General Justo, 307 CEP 20021-130 Rio de Janeiro Tels.: (21) 3804-9241 Fax (21) 2544-9279 E-mail: [email protected] Web site: www.portaldocomercio.org.br Publicação Mensal Editor-Responsável: Gilberto Paim Projeto Gráfico: Assessoria de Comunicação/Programação Visual Impressão: Gráfica Ultraset Carta Mensal |Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo – v. 1, n. 1 (1955) – Rio de Janeiro: CNC, 1955 100 p. Mensal ISSN 0101-4315 1. Problemas Brasileiros – Periódicos. I. Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo. Conselho Técnico. O Poder Judiciário e as Políticas Públicas ArnoldoWald Advogado O julgamento da Corte Suprema referente às pesquisas com células-troncos embrionárias, que ensejou votos brilhantes e exaustivos, acompanhados com entusiasmo pela sociedade civil, revelou a necessidade das políticas públicas serem submetidas, o mais rapidamente possível, ao crivo do Supremo Tribunal Federal quanto aos seus aspectos constitucionais. Trata-se de uma medida de caráter prático e lógico. No século XXI, não há como esperar, por muito tempo, em um clima de incerteza, soluções que têm grande repercussão social e econômica para o desenvolvimento do País. Por outro lado, não se pode discutir, em cada comarca, a constitucionalidade de uma política que, sendo nacional, deve atingir todos os interessados. Seria inconcebível imaginar que a Lei da Biossegurança fosse examinada em casos concretos, em centenas de sentenças, com decisões divergentes para cada interessado. Poderíamos ter um verdadeiro Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 3-6, nov. 2009 3 caos jurisprudencial em uma matéria de tamanha importância, com repercussões negativas para o progresso científico, deixando-se de salvar vidas humanas. Em outras matérias, após verdadeiras batalhas judiciárias, que ocorreram, por exemplo, em virtude de algumas privatizações, admitiu-se que todos os processos referentes à exatamente a mesma matéria deveriam ser julgadas por um mesmo e único juiz, sendo, em tese o que apreciou a questão em primeiro lugar. Mas essa solução não é a mais adequada, pois permite que uma política pública nacional seja decidida por um juiz de primeira instância, com jurisdição limitada à sua comarca, produzindo desde logo determinados efeitos para todo o País, embora possa vir a ser posteriormente suspensa ou reformada por tribunal superior. Para evitar divergências das decisões em relação a casos idênticos, as mais recentes leis processuais já admitem que, havendo numerosos recursos, um caso líder seja escolhido pelo Tribunal Superior (STF ou STJ), determinando-se a sustação dos demais processos até o julgamento do primeiro recurso que a Corte vai aplicar. Mas todas essas soluções pressupõem um longo tempo de duração dos litígios até que o processo chegue ao Supremo Tribunal Federal ou Superior Tribunal de Justiça. Em dois casos recentes de Arguição Direta de Inconstitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal decidiu que eram inconstitucionais as leis estaduais em favor dos consumidores, que pretendiam estabelecer, ou até complementar, políticas públicas federais, que não atendiam a peculiaridades locais que as justificassem, e desde que a lei federal fosse constitucional. Ao contrário, se o diploma legal promulgado pela União não atendesse aos princípios constitucionais, a lei estadual poderia prevalecer. Foi o que aconteceu em relação à lei do Estado de São Paulo proibindo 4 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 3-6, nov. 2009 a utilização do amianto. Concluiu o Supremo Tribunal Federal que “quando se trata de matéria que exige normas de caráter geral para todo o País, não pode estar disciplinada por leis locais de maneira diferenciada”, salvo se houver situações peculiares que possam justificar a existência da lei estadual. No passado, tentou-se encontrar uma fórmula de convivência construtiva entre o controle constitucional nos casos concretos, realizado pelo magistrado de primeira instância, sujeito aos recursos cabíveis, e o controle abstrato e geral feito, desde logo, pelo Supremo Tribunal Federal. Essa “coabitação” está, todavia, se tornando cada vez mais difícil e onerosa para o País, em um momento de adoção de novas tecnologias e de regulação mais intensa e detalhada pelas agências, que exigem rapidez e eficiência por parte da administração pública. A sociedade de riscos, na qual vivemos, não pode suportar, por mais tempo, o ônus da incerteza nas grandes questões suscitadas pelas políticas públicas, como as referentes ao PAC, à educação, à saúde, à previdência e ao regime legal da infra-estrutura, e, no passado, aos planos econômicos e ao FGTS, que ensejaram milhares de processo que congestionaram os tribunais por longos anos. Os remédios constitucionais que já existem, a ADIn, a ADC e a ADPF, permitem que a Corte Suprema possa exercer, direta e originariamente, o controle da constitucionalidade das políticas públicas, como o fez no recente caso das células-tronco, assegurando a eficiência do sistema judiciário e a segurança jurídica, que passaram a ser verdadeiros princípios constitucionais. Cabe, assim, reservar à Corte Suprema a apreciação direta de todos os problemas constitucionais referentes às políticas públicas, assegurando a uniformidade das decisões judiciais. Permitir-se-ia, assim, o Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 3-6, nov. 2009 5 descongestionamento dos tribunais, que já está começando a ocorrer em virtude da utilização das súmulas vinculantes e da aplicação do requisito da repercussão geral, para exame dos recursos pelo Supremo Tribunal Federal. Trata-se, agora, de complementar essas inovações construtivas com a garantia da uniformidade das decisões no exame da constitucionalidade das políticas públicas que só o Supremo Tribunal Federal pode apreciar e decidir, para que sejam aplicadas em todos os casos e em todo o território nacional, dar-se-á ao nosso direito a necessária e coerência, assegurando-se a tomada de decisões em tempo razoável pelo Poder Judiciário, como determina a Constituição. 6 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 3-6, nov. 2009 Mauricio de Nassau... Depois de Pernambuco Vasco Mariz Historiador e diplomata aposentado. Ex-Embaixador do Brasil no Equador, Israel, Chipre, Peru e Alemanha. N assau tem sido amplamente estudado no Brasil e, um pouco menos, na Holanda. Ele não é tão conhecido na Europa por seus feitos no Brasil quanto pela sua luta contra o expansionismo de Luís XIV. Sublinho esse aspecto porque as tentativas fracassadas de colonização no Brasil sempre provocaram uma certa alergia tanto nos historiadores dos Países Baixos, quanto nos da França, nos casos da França Antártica e da França Equinocial. Não gostam de estudar e comentar seus fracassos. Em 2004 celebramos o 4º centenário de nascimento do Conde João Mauricio de Nassau – Siegen, efeméride que inspirou bem menos ensaios e estudos do que se esperava e merecia. Pior ainda, por incrível que pareça, houve aqui até protestos contra as comemorações, em nome de uma suposta ameaça à identidade nacional. Felizmente, um grande livro de Evaldo Cabral de Mello apareceu em 2004 pela Cia. das Letras e preencheu todas as lacunas.1 Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 7-26, nov. 2009 7 A interpretação da administração de Nassau no Nordeste brasileiro é um tema delicado e, até certo ponto, controvertido, pois os historiadores que focalizaram o domínio holandês se dividem nitidamente entre os que apontam os defeitos e desmandos dos holandeses e os que buscam ressaltar os aspectos positivos de sua administração e as qualidades pessoais de Nassau. Sua correspondência com a Companhia das Índias Ocidentais e os Estados Gerais mostra concepção colonizadora bem mais ambiciosa do que os simples objetivos de lucro imediato da companhia. No entanto, a teoria da superioridade da colonização holandesa sobre a portuguesa é hipotética. “Os Países Baixos não tinham elementos humanos e financeiros disponíveis para um grande esforço de colonização no Brasil, tanto mais que viviam engajados em contínuas guerras regionais na Europa. Seus princípios chocavam-se com as tradições portuguesas e da população brasileira e as divergências intransponíveis de religião. Os holandeses visavam apenas a apropriação dos recursos naturais do Nordeste brasileiro. Tiveram eles mais sorte na Indonésia, Suriname e África do Sul, onde prevaleceu a habilidade batava de valer-se das diversidades étnicas e religiosas desses países sem unidade política e divididos por dissenções seculares. Nosso País já estava colonizado havia mais de um século por uma nação européia que nos trouxera sua cultura, religião e idioma. Aqui havia sociedades e aglomerações urbanas com gerações de habitantes já nascidos na terra e fiéis à coroa de Portugal.”2 O símbolo que os autores favoráveis à colonização holandesa no Brasil escolheram foi Calabar, como representativo dos brasilianos que acreditavam mais no sistema holandês do que no português, mas isso não é convincente. “Em seu tempo no Brasil não havia pátria, apenas o amor pelo local de nascimento. O sentimento de pátria só nasceu com força no início 8 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 7-26, nov. 2009 do século XIX. Os motivos de sua passagem não foram por acreditar que o Brasil seria melhor governado pelos batavos. As razões foram de ordem pessoal, pois esperava e conseguiu vantagens morais e materiais. Sua idealização como herói pátrio não tem fundamentos reais. Os historiadores entusiastas da colonização holandesa fantasiaram seu papel. O principal motivo de sua passagem fora apenas racial, não só pelas humilhações que havia sofrido como mameluco no Brasil português, mas sobretudo por antever um futuro melhor para ele e sua família no lado holandês.”3 Nassau saiu do Brasil aos 40 anos e portanto viveu muito ainda. Suas atividades posteriores ficaram no ar, ainda por divulgar ao grande público brasileiro. Parece-me útil, portanto, contribuir para fazer conhecer melhor as atividades na maturidade e na velhice do grande administrador, ainda mal conhecidas em nosso País. Saliento que os biógrafos brasileiros foram parcimoniosos em comentar, talvez por falta de conhecimento das intrincadas crises políticas e militares na segunda metade do século XVII na Europa. Nassau não foi somente o administrador, o mecenas das artes que revelou à Europa muitas das riquezas e belezas do Nordeste brasileiro. Falta relatar com pormenores os episódios mais importantes de sua vida posterior ao Brasil. Curiosamente, veremos que suas recordações de Pernambuco persistiram na mente e nos atos do ilustre personagem até quase o dia de sua morte. A enorme e variada bagagem que Nassau levou do Brasil para a Europa era tão rica que lhe permitiu negociar importantes títulos, condecorações, cargos públicos e militares na Prússia, Holanda e Dinamarca pela simples cessão de coleções inteiras de objetos exóticos trazidos de Pernambuco. Os quadros a óleo de Franz Post e de Albert Eckhout, que pintaram paisagens, tipos de indígenas e negros, plantas e frutas do Nordeste brasileiro, encantaram seus amigos e até Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 7-26, nov. 2009 9 monarcas. O espetacular livro sobre o Brasil holandês, organizado e impresso pelo editor e historiador Gaspar Barleus, fez sensação na Europa e os colecionadores exaltavam as ricas cortinas bordadas a ouro e prata, e as camas e cadeiras de precioso marfim e pau-brasil. A residência que Nassau mandara construir em 1632 na Haia, a Mauritshuis, a casa de Mauricio, virou local de peregrinação de artistas e lá se hospedou até um Rei da Inglaterra. O projeto era de Pieter Post e do arquiteto holandês Jacob van Campen, este um seguidor de Palladio. Sua mansão na Haia, que teria custado cerca de meio milhão de florins, é uma das mais belas obras arquitetônicas da capital holandesa até hoje, mas foi ironizada na época como a “mansão do Açúcar”. (Suikerhuis). A luxuosa residência foi inaugurada com grande festa em 1644 e um grupo de indígenas brasileiros tapuias, que Nassau havia levado para a Holanda, fizeram exibições de danças guerreiras com muito agrado dos convidados. As coleções de objetos preciosos que Nassau levou do Brasil foram em parte doadas ou negociadas com o Eleitor de Brandemburgo, seu futuro protetor, e o Rei da Dinamarca, mas boa parte ainda ficou como decoração da Mauritshuis. O Grande Eleitor de Brandemburgo, o Rei da Dinamarca e até mesmo Luís XIV se interessaram vivamente por aqueles souvenirs do Brasil. Mas o Conde, depois Príncipe de Nassau, foi também um personagem de bastante importância na política e nas guerras da Europa de seu tempo, revelando sobretudo a habilidade de um conciliador nato, qualidades que já haviam começado a despontar em sua estada no Brasil. Vou procurar resumir em poucas páginas os 35 anos que Nassau ainda viveu após deixar o Recife. Para melhor entender a vida que Nassau levou na Europa depois que deixou Pernambuco é preciso recuar até a sua mocidade. Filho 10 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 7-26, nov. 2009 primogênito de Margarida von Schleswig-Holstein, Princesa da família real da Dinamarca, Mauricio estudou na Suíça, nas universidades de Basiléia e Genebra. Cedo iniciou uma carreira militar e, em 1625, aos 21 anos apenas, já participava de uma campanha militar em Breda, ao sul da Holanda, sendo promovido a capitão no ano seguinte.. Três anos depois já era tenente-coronel e, em 1630, chegou a coronel com 26 anos de idade apenas. Mesmo descontando o grande prestígio de sua família, parece claro que embora jovem adquiriu real habilidade nas artes da guerra. Nassau participou da campanha militar para tomar a cidade de Maastricht e, em 1632, foi um do oficiais a conquistar a fortaleza de Schenkenhaus, à beira do rio Reno. Nessa altura a Companhia das Índias Ocidentais já estava implantada no Nordeste brasileiro, em parte graças ao valioso auxílio do mameluco brasileiro Domingos Fernandes, dito o Calabar, cuja análise de sua traição viria derramar muita tinta de historiadores nacionais. Em 1636 Nassau conquistou a fortaleza de Schenken no vale do Reno e o jovem Mauricio já se tornava um militar respeitado em seu País. No entanto, ele cedo entrou em dificuldades financeiras, pois vivia acima de suas posses. Aqueles feitos militares e a sua habilidade como administrador levaram a Companhia das Indias Ocidentais a convidálo para o cargo de governador-geral do Brasil holandês, o que afinal se concretizaria a 4 de agosto de 1636. Antes de partir, conseguiu um adiantamento de seu futuro salário para cobrir suas dívidas. Tivera a ousadia de adquirir por alto preço um terreno vizinho ao palácio dos Estados Gerais para lá fazer construir sua residência. O prazo de seu contrato era de cinco anos, mas acabou ficando em Pernambuco mais de sete. Nassau convidou artistas e especialistas de vários setores e sua ilustre comitiva chegou com ele ao Recife a Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 7-26, nov. 2009 11 23 de janeiro de 1637. Suas atividades no País são bem conhecidas e foram escrutinadas e louvadas pelos melhores historiadores nacionais, que, de um modo geral, não pouparam elogios ao jovem e talentoso governador que chegara ao Recife com 32 anos apenas. Rocha Pombo chegou a exagerar suas virtudes, pois ele só completaria 40 anos de idade durante a viagem de regresso definitivo ao seu País. A Companhia holandesa vinha obtendo resultados satisfatórios no Nordeste brasileiro graças aos lucros espetaculares com o comércio do açúcar, produto valiosíssimo na época. No entanto, com o decorrer do tempo as despesas dos holandeses com as campanhas militares começaram a ficar por demais elevadas, inconveniente agravado pelos prejuízos sofridos por guerras regionais na Europa, sobretudo contra a Inglaterra, cujo poderio marítimo havia aumentado muito. Nassau continuava a ser um gastador emérito e várias vezes foi advertido para moderar seus gastos. Em 1642, o secretário particular de Nassau, Johan Cart Tolner, teve de viajar aos Países Baixos para apresentar à Assembléia da Companhia um relatório pormenorizado e justificar as elevadas despesas do governador-geral. Curiosamente, os brasileiros e portugueses senhores de engenhos desejavam a permanência de Nassau com quem se entendiam muito bem e, antes de seu regresso, chegaram até a fazer-lhe uma oferta concreta para que permanecesse no Recife. Mas os preços do açúcar haviam caído substancialmente na Europa e os adversários da administração de Nassau dentro da Companhia conseguiram aprovar a suspensão de seu contrato de governador-geral. Assim, a contragosto, a 4 de maio de 1644, Nassau teve de deixar o Brasil e o fez de maneira triunfal, pois foi vivamente ovacionado em todo o seu percurso de Pernambuco até a Paraiba, de onde partiria do porto de Cabedelo para seu País. Os habitantes da região lhe eram agradecidos pela prosperidade 12 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 7-26, nov. 2009 que a sua administração lhes proporcionara. Partiu de Cabedelo no mesmo navio que o trouxera ao Brasil e não esqueceria mais aquelas belíssimas praias cobertas de centenas de coqueiros. Sua enorme e esplêndida bagagem foi levada por nada menos de 13 navios e são bem conhecidos os objetos que ele levou de nosso País, os quais lhe seriam muito úteis para negociar cargos e benesses, além de divulgar na Europa as belezas e riquezas do Brasil seiscentista. Chegando à Holanda, a 12 de agosto de 1644 Mauricio de Nassau apresentou um relatório pessimista do futuro da colônia e prestou contas à assembléia dos Estados Gerais na Haia. Lá voltaria ainda uma vez para fazer sugestões de moderação na cobrança das dívidas dos senhores de engenhos à Companhia, afim de não levá-los à falência. Sugeriu que a elevada carga fiscal fosse diminuida, no que afinal acabou sendo atendido. Depois de vivos debates, os Estados Gerais aprovaram, de um modo geral, a sua gestão no Brasil, o que calou as intrigas de seus inimigos e invejosos. Mauricio se desligou formalmente da grande empresa e reassumiu seu posto no exército holandês. Não estava feliz por voltar à sua posição ainda relativamente modesta de coronel, após haver sido governador-geral do Nordeste brasileiro, uma espécie de vice-rei. Suas boas relações na política o levaram em breve a ser promovido a tenente-general de cavalaria, na vaga do General Stakenbroek. Tinha somente 40 anos de idade e ainda viveria quase outro tanto. Paralelamente, lembro que, em agosto de 1645, ocorreu a primeira grande vitória dos luso-brasileiros em Pernambuco na batalha do Monte da Tabocas. Não temos evidência de que Mauricio, no exército holandês, seguia de perto os acontecimentos no Brasil, mas é provável que o fizesse através de informações enviadas por amigos brasileiros ou por algum assessor na Haia. Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 7-26, nov. 2009 13 Curiosamente, a Companhia das Indias Ocidentais novamente convidou-o, em 1647, para reassumir o governo do Brasil holandês, mas ele não aceitou. Declinou o convite porque as condições de governabilidade haviam mudado muito. Portugal havia conseguido libertar-se do jugo espanhol, em 1640, e estava decidido a fazer um grande esforço para recuperar as áreas ocupadas pelos batavos. Os luso-brasileiros, por sua parte, se organizaram melhor, receberam auxílio substancial dos portugueses e começavam a recuperar o terreno perdido. O resto nós sabemos e não é o caso de recordar com pormenores aqui, mas Nassau estava bem informado das dificuldades que os batavos teriam para se sustentar no Brasil e, talvez por isso, escusou-se em reassumir. Consta também que ele teria pedido um salário exorbitante, para que não fosse aceito. Depois da paz de Portugal com a Holanda, Nassau chegou a ter contato discreto com o embaixador português Sousa Coutinho. Nassau se correspondeu com o Marquês de Montalvão e considerou até a possibilidade de aceitar um comando no exército português, curiosa ironia, mas que para ele seria talvez mais interessante do que governar o modesto Wesel. Seu biógrafo Evaldo Cabral de Melo nos relata que Coutinho chegou a oferecer-lhe a vultosa quantia de 400.000 florins para ajudar nas negociações dos portugueses com a Companhia, mas não se sabe com certeza se Nassau chegou a interferir, recebeu a propina ou mesmo parte dela. Em abril de 1647 o historiador e editor Barleus fez publicar em Amsterdam, em latim, o belíssimo livro intitulado Rerum per octenium in Brasilia et alibi nuper gestarum sub Praefectura ilustrisimi Comitis Mavriti Nassoviae, ou seja “História dos feitos praticados durante oito anos no Brasil e 14 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 7-26, nov. 2009 outras partes por Mauricio de Nassau.” A obra, considerada o melhor livro publicado sobre o periodo colônial brasileiro em Pernambuco, foi traduzida para o alemão em 1659. Gaspar van Barleus (1584-1648) era calvinista, nascido em Antuerpia e ensinou em Leiden e Amsterdam. Não esteve no Brasil, mas consultou e utilizou o riquíssimo arquivo de João Mauricio para montar o seu belo livro, do qual hoje restam apenas quatro valiosíssimos exemplares. A versão original consta de 55 pranchas e as reproduções dos quadros de Franz Post encantaram a Europa, pois seu gênero de paisagens era inédito. Em novembro de 1647, Mauricio foi designado para servir na Prússia, no exército do Grande Eleitor de Brandemburgo, o potentado da região de Berlim, que, tempos depois, o nomearia Stadhouder de Clève, Mark e Ravensberg, à beira do Reno, importante ducado de considerável influência comercial com os Países Baixos. Afinal ele representava “um penhor de bom entendimento com o poderoso vizinho neerlandês. Clève, como todo o baixo Reno, dependia da navegação fluvial com a Holanda, que lhe servia de entreposto comercial”., comentou Evaldo Cabral de Mello. O casamento de Frederico Guilherme com Luisa Henriqueta, da casa dos Orange, levara Mauricio a mudar-se para a Prússia, onde previa jogadas de grande futuro, que aconteceriam. O Eleitor conhecera Nassau em Clève, onde ele comandava. Besselaar escreveu que “conheceu-o e apreciou-o: ambos eram cultos, amantes da arquitetura. colecionadores de raridades e deveriam ter as mesmas idéias políticas”4 Lá em Clève, Nassau deve ter sabido que os luso-brasileiros obtiveram outro grande sucesso na batalha dos Guararapes, fato que confirmava sua avaliação pessimista para os batavos da conjuntura militar no Brasil. Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 7-26, nov. 2009 15 No ano seguinte, em 1648, aparecia na Europa outra obra importante que divulgaria aspectos de sua administração em Pernambuco: o médico Wilhelm Piso, notável colaborador de Nassau no Brasil, publicava em latim o livro História Naturalis Brasiliae, que teria boa repercussão na Europa inteira. O livro foi traduzido em várias línguas e 200 anos depois ainda era consultado, tanto que dois notáveis cientistas – Alexandre von Humbolt e Saint-Hilaire – utilizaram as observações do Dr. Piso ao viajar para o Brasil.. Para irritação dos desafetos de Nassau com tanto luxo, em 1649 a Mauritshuis estava pronta, devidamente decorada e inaugurada, tanto que, após a execução do Rei Carlos I da Inglaterra, seu filho Carlos II e os Duques de York e Glocester foram hóspedes de Nassau na chamada Casa do Açúcar. Nesse mesmo ano ocorria a segunda batalha dos Guararapes e os holandeses ficaram cercados no Recife. Ainda não era possível expulsá-los, pois os batavos continuavam a ter amplo domínio dos mares do Nordeste. Só cinco anos mais tarde, em 1654, foi possível aos portugueses enviar importante frota a Pernambuco, que afinal libertou o porto do Recife e obteve a rendição das tropas holandesas. Em 1652, aos 48 anos de idade, Mauricio chegou ao pico de sua carreira política, pois foi elevado pelo Imperador Fernando III a príncipe do Sacro Império Romano Germânico com o título de Reichsfuerst. O patrono da homenagem deve ter sido o próprio Grande Eleitor, seu amigo e chefe. Essa honraria atraiu-lhe outras homenagens, já que ele depois foi elevado, em Brandemburgo, a cavaleiro da Ordem de Malta, então chamada de Ordem de São João. “Mestre” dos joanitas, Nassau fez restaurar a igreja e o castelo de Sonnenburg, onde a cerimônia fora realizada. Dois anos depois Mauricio resolveu por sua vez homenagear o País 16 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 7-26, nov. 2009 de sua mãe, Princesa real da Dinamarca, e presenteou o Rei Frederico III desse País vizinho com 26 pinturas a óleo de Albert Eckhout, o exímio pintor que o acompanhou ao Brasil e aqui pintou belos tipos brasileiros de todas as origens e cenas de lutas entre indígenas. O monarca dinamarquês recompensou-o com a cobiçada condecoração da Ordem do Elefante. Tratava-se da magnífica coleção de quadros e outros objetos de arte que o turista moderno ainda hoje pode observar no Museu Nacional de Copenhague. Esses quadros estiveram no Brasil, em 2004, para os festejos do quarto centenário de nascimento de Nassau e foram exibidos com imenso sucesso em diversas cidades brasileiras. Em 1657, já na qualidade de Reichfuerst, Príncipe do Império, Nassau foi encarregado de importantes missões diplomáticas em vários Países da Europa. O novo príncipe representou o Rei Leopoldo da Hungria e da Boêmia e também o arquiduque da Áustria nas importantes negociações para a sucessão do Imperador Fernando III no trono do Sacro Império Romano-Germânico. Essa foi uma notável distinção que demonstrava o prestígio que Nassau havia alcançado na época. Em julho de 1661 recebeu outra significativa missão, desta vez em Londres, representando seu chefe, o Grande Eleitor de Brandemburgo, na negociação e na assinatura de um tratado com o novo Rei da Inglaterra Carlos II, o qual se hospedara na Mauritshuis tempos atrás. Aproveitou a ocasião para efetuar sondagens sobre o possível casamento da Princesa Maria de Orange com o Rei Carlos II, da Inglaterra, mas as negociações não prosperaram. No mês seguinte era assinada na Haia a paz final entre os Países Baixos e Portugal, quando os batavos reconheceram finalmente a soberania portuguesa sobre o Nordeste brasileiro e Angola, na África. Ignora-se se nesse momento Nassau já estava na Haia, de volta de sua missão Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 7-26, nov. 2009 17 na Inglaterra e assistiu à cerimônia da paz. A notícia do tratado da Haia certamente lhe deve ter trazido boas lembranças do Brasil, que ele deixara 17 anos antes. Em 1667, aos 63 anos de idade, Nassau foi promovido a marechal-de-campo dos Países Baixos, distinção máxima a um militar holandês. Em 1672, as Províncias Unidas foram atacadas simultaneamente pelos ingleses e franceses e a situação militar do País ficou periclitante. Os holandeses tiveram de recuar e só foram salvos por inundações artificialmente provocadas. O País ficou reduzido a três Províncias apenas: a Holanda, a Zelândia e a Frísia. Era o declinio definitivo dos Países Baixos como grande potência européia e internacional, destino selado em 1713 pelo tratado de Utrecht. Nassau cumpriu seu dever de militar com muita bravura, apesar de sua idade e teria contribuido para a salvação de Amsterdam. Em agosto de 1674, Mauricio participou da sangrenta batalha de Seneffe, “onde despertou a admiração de todos. Apesar de seus 70 anos, ficou 15 horas montado no seu cavalo, dando provas de grande energia e coragem”.5 A guerra com a França foi o adeus às armas de Nassau como marechal do exército neerlandês. Estava cansado, sofria de pedras nos rins. Pediu licença para regressar à Haia para tratar-se. Pela sua continuada bravura e resistência física nas condições precárias dos campos de batalha, os Orange se apiedaram dele e lhe deram o comando da importante cidade de Utrecht, onde teria funções mais tranquilas. A saúde porém não melhorou muito e só ficou no cargo por dois anos apenas. Regressou à sua belíssima residência da Haia, na qual embelezou os jardins. Em 1676 solicitou baixa do exército holandês, que lhe foi concedida pelo Príncipe de Orange com todas as honras e as vantagens de seu ordenado de militar de alta patente. 18 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 7-26, nov. 2009 Lembro que o ducado de Clève abrangia cidades de bastante importancia na época, como Wesel, Emmerick, Calcar, Duisburgo, Xanten e Rees, além da própria cidade de Clève, que possuía um belo castelo muito antigo, de cuja torre se avistava uma área enorme e representava posição estratégica sob o ponto de vista militar. O ducado era uma zona rica de gado bovino e continha também várias minas importantes de carvão e de ferro. Clève sempre fora uma região cobiçada pelos vizinhos franceses, que chegaram a ocupá-la, fato que foi uma das causas da famosa Guerra dos 30 Anos. Era uma área de forte influência calvinista, o que provocava a ira dos vizinhos católicos franceses e dos espanhóis de Flandres. O Eleitor de Brandemburgo mantinha forte guarnição em Clève, cuja região Nassau conhecia bem desde a sua juventude. Sua designação agradou aos Orange e aos Estados Gerais, pois na verdade ele era o homem para o cargo. Nassau lá atuou com a sua costumeira política de conciliação em que era mestre, procurando atender os interesses de católicos e protestantes, bem como os da nobreza e da burguezia. Em sua administração de Clève, Mauricio de Nassau foi também um urbanista, pois abriu grandes avenidas na cidade e restaurou o castelo. Mantinha uma pequena corte de pintores, gravadores, arquitetos e poetas. Podemos ainda considerar Nassau como um verde, pois ele se vangloriava de haver plantado cerca de 400 mil árvores no Brasil e na Europa. Até hoje, Clève é uma cidade de jardins, todos concebidos por Nassau. Em 1979, a cidade recordou com grande brilho o 3º centenário da morte de Nassau. Os valiosos objetos da coleção brasileira foram incorporados à chamada “Wunderkammer” (Câmara das Maravilhas) de Berlim, constituindo uma ala especial denominada Theatrum rerum naturalis Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 7-26, nov. 2009 19 Brasiliae (Teatro das coisas naturais do Brasil). O Eleitor Frederico Guilherme mandou fazer 10 grandes tapeçarias utilizando quadros de Franz Post pintados em Pernambuco. Mas a situação financeira de Nassau já não era boa nessa altura, pois vivia apenas de seus salários de militar e de Stadhouder. Teve de vender várias joias preciosas ao Grande Eleitor para pagar dívidas, pois a guerra interrompera o recebimento das rendas de diversas propriedades. Pouco antes de morrer, em 1678, Nassau recebeu em Clève os embaixadores franceses que foram à conferência de paz entre a França e os Países Baixos e lhes deu depoimentos de natureza militar. Essa foi a sua última atuação internacional. Sua situação financeira piorava e um ano antes de seu falecimento enviou curiosa carta ao Secretário de Estado do Rei de França, Luis XIV, oferecendo-lhe uma coleção valiosíssima: eram 34 quadros de Franz Post e 8 de Eckhout destinados à fábrica de tapeçarias dos Gobelin, em Paris. Os termos daquela carta são admiraveis, pois ele recordava com infinito carinho as belezas do Brasil pintadas por Franz Post. Reproduzo abaixo trechos de sua expressiva carta para o leitor bem avaliar com que emoção Nassau evocou a imagem já remota do seu Pernambuco, que ainda continuava tão presente nas suas recordações. Nessa carta louva seus objetos brasileiros e afirmou que os quadros de Eckhout e Post se poderiam transformar em belíssimas tapeçarias para mobilar um grande salão ou uma galeria palaciana francesa. Terminou a carta dizendo: “... E se um curioso visse esses tapetes, ele não necessitaria atravessar o oceano para conhecer esse belo País do Brasil, que não tem igual sob o céu”. Em 1679 a sua Brasiliana foi exibida no palácio do Louvre, em Paris com notável sucesso. Nassau chegou a escrever a um amigo em Paris solicitando que Luis 20 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 7-26, nov. 2009 XIV não lhe enviasse joias, condecorações ou novos títulos e sim dinheiro contante, a fim de poder saldar as suas dívidas. Ele sempre vivera acima de suas posses. Entretanto, o Rei de França não chegou a fazer-lhe oferta alguma por essa coleção, pois Nassau faleceu antes. A série de gobelins foi executada 10 anos depois em belíssimas tapeçarias que se celebrizaram como as Anciennes Indes, as Nouvelles Indes e as Petites Indes, estas em tamanho menor. A partir de 1735, elas continuaram a ser fabricadas com o título de Modernes Indes. As tapeçarias foram fabricadas por mais de 120 anos. Seis meses antes de morrer, a 26 de junho de 1679, Nassau escrevera ao embaixador dos Países Baixos na Dinamarca, Jacob le Maire, solicitando mandasse fazer cópias em tamanho menor dos quadros de Eckhout que estavam em Copenhague. No fim de sua vida, ele queria cercar-se de imagens do Brasil... Finalmente, a 20 de dezembro de 1679, aos 75 anos e meio de idade, Johann Moritz von Nassau, nosso João Mauricio de Nassau, veio a falecer em sua agradável, mas modesta propriedade rural vizinha a Clève. Chamava-se Berg en dal (Montanha e vale), que Mauricio chamava de “cabana”. Lá ele utilizava uma rede nordestina de linho bordado. Dizia que o balanço da rede lhe aliviava as dores nos rins e lhe permitia dormir melhor... Seus restos mortais foram levados ao panteon de sua família em Siegen, sua cidade natal, perto da cidade de Colônia. A casa de Haia estava hipotecada por elevada soma e o credor nada recebeu. Depois de sua morte, a Mauritshuis foi arrendada ao governo holandês para hospedagem de convidados ilustres. Em seu testamento feito um ano antes de morrer, Nassau indicou como herdeiro o seu sobrinho e filho adotivo Guilherme Mauricio. Ao Grande Eleitor, Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 7-26, nov. 2009 21 amigo e protetor de tantos anos, deixou o grande diamante imperial a ele empenhado e ainda pequenas quantias para empregados e amigos, sem esquecer também os pobres de Siegen. Nassau tinha muito boas recordações do Brasil e esse sentimento o acompanhou até a morte, aos 75 anos de idade, isto é, 35 anos depois que deixou o Recife. A decoração da Mauritshuis era um verdadeiro museu brasileiro. Essas constantes recordações de Pernambuco parecem confirmar que os sete anos brasileiros podem ser considerados como o ponto mais alto de sua vida. No entanto, Nassau chegaria depois a Príncipe do Sacro Império Romano Germânico, além de marechal do exército holandês e governador do importante ducado de Clève, no oeste da Prússia. Foi também um dos líderes da dinastia dos Orange, que governou os Países Baixos por várias décadas no século XVII. Não teve filhos, mas como escreveu ironicamente o poeta Vondel, “o humanista Nassau não se dobrou ao jugo das mulheres e preferiu guardar uma liberdade de movimento condizente com as exigências profissionais, o que não quer dizer que ele tenha escapado ao jugo de suas amantes” Frei Manuel Calado escreveu que, em Pernambuco, Nassau teve algumas amantes, como a Margarida Soler, filha de um pastor holandês no Recife. Outro amor que ele certamente teve no Brasil foi a famosa Ana Paes e, em Clève, no outono de sua vida, Inês Gertrudes van Bayland foi sua companheira devotada. Seja como for, ele nunca se casou. Aquele mesmo poeta Vongel comentou ainda que “Mauricio conquistou coisa melhor do que cidades e fortalezas: obteve a simpatia de inúmeras pessoas. E quem ganha corações, vence o herói que conquista praças de guerra”. O grande historiador inglês Charles R. Boxer definiu bem sua perso- 22 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 7-26, nov. 2009 nalidade: “Nassau não era apenas um general capaz e um administrador de primeira categoria, mas um governante em muitos aspectos adiante de seu tempo.” Boxer já salientava que, em seu governo no Brasil holandês “havia uma grande liberdade religiosa, maior do que em qualquer outra parte do mundo ocidental”. Ele se interessava pelo meio ambiente, jardins, florestas e adotou no Brasil providências até de preservação da mata atlântica. Sua curiosidade e interesse pelos habitantes de Pernambuco “nada ficou a dever – afirmou Boxer6” às de um antropólogo do século XX”. Sua divisa era: qua patet orbis (até onde vai o mundo), mas como escreveu Besselaar, professor da Universidade de Nijmegen, “esse não era um grito de guerra de quem queria dominar o mundo. Apenas desejava humanizá-lo e embelezá-lo. (...) Ninguém pode servir bem a dois senhores, mas Mauricio de Nassau conseguiu o impossível: serviu durante mais de trinta anos, combinando a função de Stadhouder do Príncipe de Brandemburgo com a de importante comandante militar a serviço das Províncias Unidas. (...) Mauricio sempre defendeu a causa do soberano com sincera convicção, sem perder a simpatia da outra parte. Desempenhou as duas tarefas a contento dos dois senhores e sempre manteve a sua dignidade pessoal. Por isso mesmo ele tem sido louvado por uma geração de historiadores, mas é de se lamentar que os ultranacionalistas luso-brasileiros vêm tentando diminuir a sua glória, chegando até a escolher o enigmático Calabar, como o anti-herói patriota. Ressalta seu melhor biógrafo Evaldo Cabral de Mello que, em 1936, a propósito das comemorações de sua chegada ao Recife, houve viva controvérsia entre os nassovianos e os antinassovianos, que eram pontas de lança das posições dos jesuítas e de historiadores portugueses. Em 2004, por ocasião do seu 4º centenário de nascimento, Nassau foi injustamente Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 7-26, nov. 2009 23 denegrido por alguns escritores. No entanto, o já citado Gerardt Brunn, historiador da Universidade de Siegen, da própria cidade natal de Mauricio, considera Nassau “um personagem menor na grande história do seu século na Europa e que pouco fez de realmente espetacular em sua vida política e militar. Foi um hábil mediador dos interesses comerciais entre a Holanda e o Brandemburgo, homem de personalidade múltipla, muito aberta para sua época (...). Nassau era um internacionalista que tornou possível para alemães, holandeses e brasileiros se referirem igualmente a ele como parte de suas histórias. Por causa disto, mais do que outros, conseguiu ver além de fronteiras e oceanos e construir suas pontes culturais”. Em verdade, Nassau serviu a dois governos, o holandês e o prussiano, influênciando três tratados de cooperação, em 1655, 1666 e 1672, entre os Países Baixos e a Prússia dos Brandemburgo. Com relação à sua cidade natal Siegen, ajudou o protestantismo a continuar a ser a religião dominante da região e, ao mesmo tempo, conseguiu mediar a paz religiosa com os católicos de sua cidade natal. Para nós brasileiros, ele foi sem dúvida a figura máxima do século XVII no Nordeste. Vimos também que o grande administrador seiscentista de Pernambuco foi bem mais do que se comenta habitualmente em nossos compeêndios de historia. Foi personagem de bastante relevo na história de seus dois países e da velha Europa do século XVII. E, até morrer, foi um entusiasta divulgador das coisas do Brasil, que ele nunca esqueceu. Notas 1 MELLO, Evaldo Cabral de – Nassau, o governador do Brasil, Cia. das 24 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 7-26, nov. 2009 Letras, São Paulo, 2004. 2 GRIECO, Francisco de Assis – Guararapes, o despertar da nacionalidade, Revista da Ecola Superior de Guerra, na XIII, nº 37, 1998, Rio de Janeiro, p.21-42. 3 MARIZ, Vasco – Estudos Historicos, Editora Francico Alves, Rio de Janeiro, 2004, página 113. 4 BESSELAAR, José van den – Mauricio de Nassau, esse desconhecido, FAPERJ, Rio de Janeiro, 1982, p.48. 5 BESSELAAR, José van den - Op. cit. p.71. 6 BESSELAAR, José van den – Op. cit. p. 81. 7 BESSELAAR, José van den – Op. cit. p.48. 8 BRUNN, Gerardt – Presença Holandesa no Brasil: memoria e imaginario, Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, 2004, p.340. Bibliografia seleta BARLEUS, Gaspar – História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil, 2ª. edição, Recife, 1980. BESSELAAR, José van den – Mauricio de Nassau, esse deconhecido, FAPERJ, Rio de Janeiro, 1982. Contém excelente avaliação de suas atividades na Europa por um professor da Universidade de Nijmegen. BOXER, Charles R. – Os holandeses no Brasil, Editora Nacional, São Paulo,1961. O depoimento do clássico autor inglês é indispensável. BRUNN, Gerardt - Johann Moritz – vida e legado, capítulo em A presença Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 7-26, nov. 2009 25 holandesa no Brasil: memória e imaginário, Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, 2004. Útil livro de ensaios sobre o 4º centenário de Nassau. GRIECO, Francisco de Assis - Guararapes, o despertar da nacionalidade, Revista da Escola Superior de Guerra, na XIII, nº 37, 1998, Rio de Janeiro, páginas 21-42. MARIZ, Vasco - Calabar, in Estudos Historicos, editora Francisco Alves, Rio de Janeiro, 2004. MELLO, Evaldo Cabral de – Nassau, o governador do Brasil, Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2005. A melhor biografia do personagem. _____________________ - Rubro veio, Editora Topbooks, Rio de Janeiro, 1997. Excelente estudo sobre a presença dos holandeses no Brasil. VARNHAGEN, F.A. de – História das lutas com os holandeses, BIBLIEX, Rio de Janeiro, 2002. Texto clássico, um pouco superado hoje por pesquisas recentes. 26 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 7-26, nov. 2009 Derivativos no banco dos réus Ari Cordeiro Filho Advogado O anátema sobre as nefastas consequências da crise financeira internacional vem associado à ideia de ilícitos cometidos em sua origem. E os derivativos têm sido apontados difusamente como causa ou concausa relevante desta crise, no vórtice de cujas consequências ainda nos encontramos. Desde logo, desvela-se a impropriedade de colocar estes instrumentos financeiros no banco dos réus. Derivativos são entes inanimados, desprovidos de personalidade, portanto sem qualquer possibilidade de figurar legitimamente como titulares no polo ativo de ilícitos ou no polo passivo de acusações. Apesar de óbvio constatá-lo desta forma, há, contudo, subjacente, uma remissão importante a fazer: eles são instrumentos financeiros, papéis físicos, contratos ou me- Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 27 ros registros gráficos, que incorporam direitos gerados e obrigações assumidas por pessoas físicas ou jurídicas. Em relação aos que deles são titulares, aos seus motivos ou motivações para neles entrarem, estes instrumentos financeiros podem ter correspondido, ou não, em face de riscos eventualmente a eles implícitos. A ninguém ocorreria colocar no banco dos réus espadas ou cimitarras, facas ou instrumentos perfurocontundentes, revólveres, venenos, bombas, mas sim as pessoas que os utilizaram como instrumental para o ilícito. Se estiver presente a lógica em apontar a presença de derivativos, no polo causal da decapitação de instituições do mercado, pouco avessas ao risco; na evisceração do sistema financeiro mundial, por más práticas de técnica bancária; no sacrifício de investidores, vítimas inocentes ou por demais ambiciosas de intermediários; no envenenamento da circularização do crédito por engenheiros financeiros; na paralisia global de um sistema razoável de precificação de ativos por instituições “grandes demais para falir”; no extermínio de patrimônios e poupanças financeiras formadas com trabalho duro ao longo dos anos, pelo viés incompetente de políticos ou erro de reguladores, então a lógica institucional de procura de culpados deve dirigir-se às pessoas que agiram culposa ou dolosamente, na geração, circulação e regulação destes instrumentos financeiros. São pessoas que decidem emiti-los. Pessoas é que os fazem circular e os negociam, no seu interesse. São entes dotados de personalidade civil ou jurídica que regulamentam sua emissão, oferta e negociação. A própria semântica situa derivativos como um fenômeno subsidiário. Sem os principais, subjacentes específicos da atual crise, os derivativos não existiriam. Comissivas ou omissivas, decisões de pessoas são que ensejaram seu uso temerário ou imperfeito. Entretanto, outros veículos financeiros simples, não conceituáveis 28 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 como derivativos, instrumentaram danos efetiva e significativamente, em maior escala e em etapa operacional anterior à dos derivativos a eles referenciados. No meu entender, a geração defeituosa e tornada imprudente de tais veículos financeiros antecedentes, não derivativos, deu ensejo ao aparecimento oportunístico de outros instrumentos financeiros, dentre eles cotas de fundos de investimento que os recepcionaram e também derivativos. Os créditos hipotecários, sobretudo, e comerciais – decorrentes de financiamentos mal concedidos – situam-se como os fenômenos financeiros deflagradores, na gênese da desordem financeira. Tais créditos (recebíveis) de má-qualidade (subprime), foram objeto de securitização, e os seus títulos securitizadores não são conceituáveis como derivativos. Os financiamentos subprime situaram-se em franjas do mercado de crédito americano e global. São frações dos créditos hipotecários e comerciais globais, que excederam o usual, em matéria de inadimplência, mas correspondem a valores absolutos significativos, na margem de crescimento. Os excessos, no mercado financeiro, têm o poder de contaminar o tecido geral. Mercados de crédito não exatamente arriscados, mas fronteiriços, foram degradados; mecanismos de mercado de precificação e liquidez para ativos financeiros desapareceram e até ativos consistentes foram afetados pela desvalorização das suas garantias. A falta de confiança generalizada foi paroxística e devastadora. Esgotada a capacidade de expansão desvigiada, o início da constatação numérica dos exageros deflagrou uma conscientização geral não só no mercado financeiro, como também na economia real. Projetos baseados na confiança no futuro foram sobrestados. O lado real do universo econômico começou um processo de ajus- Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 29 tamento seletivo, com a expulsão de suas próprias notórias inconsistências. Basta visitar hoje a Motors Liquidation, parte ruim da General Motors, em regime falimentar, conforme constatou o Wall Street Journal: são 5 mil robôs desativados, 320 km² de correias transportadoras e 5 milhões de m² de espaços indesejados de imóveis, em fábricas e escritórios. A inadimplência corporativa em países do Leste Europeu chegou a 50%! Mais de 20 empresas de grande porte estão em processo de renegociação desconfortável de seus títulos de dívida e de empréstimos. Iniciou-se um processo de desalavancagem, que esteriliza segmentos de crédito progressivamente. Cobranças e pagamentos de dívidas, desfazimento de cadeias de absorção de créditos, por securitização, introduziram um fator divisor da sua disponibilidade. A contração foi e é grande, no crédito. Danos podem ser causados por pessoas, com a utilização de instrumentos singelos ou mais sofisticados. Não se pode atribuir aos derivativos em si o fato de empresas brasileiras terem perdido US$ 25 bilhões com seu uso, inclusive na modalidade exótica, recentemente, de acordo com o Banco Mundial. Pode ser o caso de executivos entrarem em operações especulativas com derivativos, sujeitando as empresas abertas a riscos enormes, desnecessários. Há casos de empresas que têm hedge natural, em suas operações, e que mesmo assim entraram em derivativos por iniciativa especulativa, sofrendo prejuízos de grande monta. Por exemplo, se têm compromissos em dólar e receitas equivalentes, compatíveis em prazos, também em dólares, é desnecessário o uso de derivativos para hedge. Ou então, os derivativos excedem a necessidade de proteção. Ou contêm “gatilhos”(triggers) que acionam riscos maiores, atados a especulação sobre preços ou cotações. Igualmente, se seus ativos são indexados ou têm valor de 30 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 mercado de forma equivalente à indexação ou valor de mercado de seus passivos, não há hedge, mas especulação. Eventualmente, poderiam elas dispor de procedimentos acauteladores mais rigorosos relativamente a riscos bem menores do que aqueles em que entravam. As pessoas de administradores devem agir no melhor interesse das empresas, observar o dever de lealdade. O questionamento nodal é sobre se o entrar em derivativos financeiros especulativos está autorizado no estatuto, se está compatível com os mandamentos da boa gestão e responsabilidade de administradores, previstos na lei. A consequência pode ser levar a empresa a prejuízos, com operações estranhas ao objeto social, a desvantagens em relação à concorrência e, mesmo, à insolvência. Aquilate-se a relevância deste montante pela recordação de que, em crise da década passada, o Brasil, como País, foi objeto de uma espécie de “benevolência”, no mercado financeiro internacional, para um colchão de liquidez de US$ 40 bilhões. É erro simples de direcionamento (uma aberratio ictus) verberar instrumentos financeiros e não pessoas e instituições administradas por pessoas, que os utilizaram ou regularam. Dentro do próprio equívoco (ab absurdo) de confundir personae com res, admitindo que intrumentos inanimados seriam pessoas acusáveis, tratar-se-ia de um erro de individuação (error in personam) centralizar a acusação em derivativos e, não, nos instrumentos principais, que deflagraram a crise – os créditos subprime e seus títulos securitizadores - bem assim ignorar o contexto circunstancial que oportunizou o surgimento das anomalias creditícias, no âmbito das políticas públicas do Legislativo e Executivo americanos, em relação ao mercado de residências, e da política monetária americanas. O resultado, de que depende a existência do ilícito, só é imputável Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 31 a quem lhe deu causa, como o consagra nosso Código Penal. E a causa é a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido (art. 13-Código Penal). Em face do relativo grau de complexidade de alguns derivativos, pode ter ocorrido por parte de investidores, ignorância quanto ao seu modus agendi, mas outras tantas vezes foram riscos assumidos conscientemente com recursos próprios ou, mais seriamente, com recursos de terceiros administrados discricionariamente. Em relação aos intermediários, instituições do mercado, dificilmente se poderia alegar ignorância ou ingenuidade, no trato com estes instrumentos, pela teoria de risco jurídico inerente ao seu papel. Penso ser inaplicável, em relação a eles, no caso do Brasil, instituto como a nossa “descriminante putativa”, do art. 20, § 1º do Código Penal: ou seja, por suporem situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Mesmo que esta suposição de situação de fato fosse culposa – por exemplo, com respaldo na certificação de uma agência de classificação de crédito – o vulto e a massificação das operações combinados com a responsabilidade profissional perante os investidores gera uma inescusável obrigação de diligência extraordinária. É questionável, inclusive, se tais agências de rating têm maior e melhor acesso a informações sobre qualidade do crédito do que os bancos podem ter, se quiserem. Esta terceirização das avaliações, se necessária ou eventualmente aceitável no caso de títulos que aportam ao mercado de capitais, não me parece justificável no nascedouro, no caso de deferimento de crédito que envolve desembolso de principal. Restrições ao uso As pessoas, quando agem, fazem-no por motivações e envolvidas por circunstâncias. A motivação com que agentes vêm ao mercado 32 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 e algumas circunstâncias em que o fazem podem gerar restrições parciais ou integrais à utilização de instrumentos ou ao uso de formas de negociação. É cediça a legitimidade de estabelecer restrição ao uso de certos instrumentos em certas modalidades ou circunstâncias. Há, por exemplo, comparativamente, proibição de armas em aviões, de balas tipo “dum-dum”, de porte de arma sem autorização especial. Em certas circunstâncias, a utilização de modalidades de derivativos pode ser vedada ou sujeita a regras restritivas, dada sua inadequação ao tipo de usuário ou à necessidade de limitar, por assim dizer, seu grau de letalidade, em caso de sinistro. Certamente, há problemas de monta, como a titularidade para estabelecer restrições, a competência técnica para editá-las, a impropriedade de regras e a sua adequada modulação. Os fundos de pensão no Brasil (EFPC – Entidades Fechadas de Previdência Complementar), v.g., podem operar com derivativos, mas não podem fazê-lo na modalidade “descoberta” (art. 53, Resolução 3.792, de 24/9/2009). Assim, podem lançar opções de compra de ações, em que elas garantem a investidores o direito de comprar determinado número de ações a um determinado preço, durante certo período. É exigido, contudo, que tenham em carteira (ou adquiram antecipadamente) as ações que sejam objeto das opções, para atender a futuro eventual exercício da opção de compra pelo investidor que a adquiriu. A regulamentação considera que não devem correr um risco em aberto de terem que comprar as ações no mercado no caso de as opções de compra se tornarem vantajosas para os que as adquiriram das fundações (opções “in the money”). As operações com derivativos devem também ser realizadas tendo como contraparte central garan- Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 33 tidora da operação câmara prestadora de serviços de compensação e liquidação. É o caso de operações na BM&F Bovespa (CBLC) que, para tanto, exige margens líquidas de garantia das partes e procede a “ajustes diários”, ou seja, as perdas (ou ganhos) nos contratos são debitadas (ou creditados) diariamente, não podendo desenvolver-se riscos em aberto, já que ela é que garante a liquidação das operações. Não podem também as EFPCs entrar em derivativos que gerem a possibilidade de perda superior ao valor do patrimônio da carteira. A contrario sensu, perdas podem comprometer até o valor do patrimônio da carteira, o que me parece uma norma muito aberta à letalidade, no estágio atual de cultura dos mercados, tratando-se de uma entidade de previdência. O depósito de margem de garantia das operações deve estar limitado a 15% (15 por cento) dos títulos federais ou de instituição financeira ou de ações mantidas. O que dizer de perdas em aberto, sucessivas, destas margens de 15%? No caso de empresas com valores mobiliários negociados no mercado de capitais, os normativos (CVM) requerem que as companhias abertas ( i.e., com valores mobiliários negociados no mercado de capitais) procedam à transparência, nas demonstrações financeiras, sobre os derivativos utilizados e sobre os riscos incorridos, inclusive em situações tidas como de stress (transparência qualitativa e quantitativa). Tais normas definem o que se entende por derivativos e detalham procedimentos de transparência contábeis para reconhecimento de instrumentos financeiros, de derivativos, de proteção (hedge), sua evidenciação e mensuração. Tais normativos foram editados ao final de 2008, após os eventos negativos da crise, que atingiram companhias abertas. Houve muitas surpresas, no particular, assistindo-se à imolação pública de empresas de porte com histórico administrativo de crescimento 34 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 exemplar. Ocorreram igualmente omissões quanto a derivativos de balcão negociados no exterior. Posteriormente, o Banco Central viria a exigir registro de operações com derivativos vinculados a dívida externa, em sistema de registro e liquidação financeira autorizado pelo BACEN ou CVM. No caso de todas as instituições financeiras brasileiras, as regulamentações do Conselho Monetário Nacional já estabelecem necessidade de modelos de gestão e de adequada ponderação dos riscos de utilização destes instrumentos, nos cálculos de limites operacionais, em face de um patrimônio referencial de cada instituição. Neste caso, não há restrições quanto ao uso de derivativos de balcão, aliás um mercado em que podem ser bastante ativas. Nossos limites operacionais, no caso de instituições financeiras, são até mais estritos do que os de outras jurisdições e os considerados adequados pelo Acordo de Basileia do Banco Mundial (BIS - Bank for International Settlements). Os derivativos, contudo, devem ser ou os padronizados, negociados em Bolsa, ou, no caso de negociação em balcão, registrados em sistema de registro, custódia ou liquidação financeira, autorizado pelo Banco Central ou pela Comissão de Valores Mobiliários ( v.g., Cetip, BM&FBovespa). Derivativos podem ser negociados no balcão e, posteriormente, registrados na BM&FBovespa (ou Cetip), para administração de garantias e liquidação. Há percepção de que é uma tarefa difícil a mensuração correta da exposição a derivativos, cuja liquidação é sempre futura. Há campo para exageros tanto de cautela quanto de imprudência, sendo imperativa a realização de testes periódicos dos modelos de gestão de risco adotados por cada instituição. Na legislação francesa, as entidades públicas só podem usar derivativos (swaps, futuros, p.ex..) na exata dimensão dos ativos ou passivos reais que tenham a proteger (hedge). Ou seja, não podem especular com Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 35 derivativos. Na nossa regulamentação, os Fundos de Investimento em Direitos Creditórios só podem usar derivativos para proteção de posições detidas à vista, limitada ao seu montante. Os Fundos de Investimento Imobiliários só podem usar derivativos para proteção do patrimônio. Entidades associativas, nos Estados Unidos, trabalham em progressiva padronização de swaps de crédito (Credit Default Swap – CDS), de molde a que as operações possam ser realizadas em bolsas ou mercados organizados, com registro ou aporte de margens apropriadas, evitando imprevidências arriscadas, que ameacem todo o mercado. Negociações em ambientes regulados facilitam sistemas de compensação de swaps em instituições que os detêm. A negociação transparente e pública é preferível a que ela se faça de forma oculta ou disfarçada. O registro compulsório das operações de mercado de balcão, em entidades especialmente reguladas pelo Banco Central ou CVM (tipo Cetip), é uma boa orientação, qual seja a da transparência para instituições e empresas que lidam com recursos do público. Os sócios e administradores das empresas que estejam em contraparte a insituições do mercado devem estar bastante atentos quanto à suportabilidade dos riscos em que estejam incorrendo e das delegações em aberto que deem a seus executivos para operar com instrumentos complexos e exóticos. Omissões, neste campo, podem custar caro ou a própria vida da empresa. E as instituições financeiras devem cuidar quanto à adequação dos instrumentos, cuja utilização propõem, quanto à boa-fé subjetiva e objetiva, e ao perfil econômico e de risco do usuário (suitability): o descaso quanto à suitability não parece ser uma boa receita para a saúde do sistema financeiro. Informações incompletas, imperfeitas ou suspeitas de má-fé podem gerar postulações de nulidade ou de reparação de danos, como no caso Procter 36 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 & Gamble versus Bankers Trust Co. e BT Securities Corporation. (v. Monografia apresentada no IBMEC por João Manuel de Lima JR. – Direito 2008-2) . Os derivativos padronizados negociados em Bolsas possuem um sistema de garantias e liquidação bastante sólido. As flutuações nos preços dos contratos são diariamente cobradas dos perdedores e creditadas aos ganhadores. Há limites de variação diários para as flutuações, que se podem alterar, de acordo com as circunstâncias do mercado. Para tanto, as Bolsas exigem garantias (margens), representadas por dinheiro, títulos do Tesouro e outras, de grande liquidez. Os percentuais de margens podem variar, também. Este sistema de negociação traz tranquilidade quanto ao funcionamento do mercado. Não pode haver, contudo, transigência quanto às margens de garantia, como aconteceu com a Bolsa de Futuros de Hong Kong, em 1987. Nem se pense que este sistema seja neutro, em caso de crises sérias ou sistêmicas, que levem à liquidação de garantias no mercado. Tal liquidação, se significativa, pode ser um fator adicionado ao pânico financeiro. Desordens nos mercados de subjacentes, como, por exemplo, no mercado de commodities ou moedas, por vezes são refletidas nos mercados de derivativos, sendo a modulação das margens e dos limites de flutuação diários instrumentos utilizáveis (raramente) para amenizar repercussões reciprocamente exacerbadoras. Limites de posições (compradoras ou vendedoras) mostram-se, hoje, cruciais para evitar formação artificial de preços, via mercado de derivativos. • Securitização e onde se situam os derivativos como instrumental dentro da crise Primeiro, é necessário precisar a abrangência do termo “derivativo”. Trata-se de uma área extraordinariamente aberta a inovações. A Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 37 armadilha de uma definição “continental”, assim, é óbvia. Em uma primeira visão, eles seriam instrumentos financeiros, contratos, títulos ou valores mobiliários, que incorporam direitos/obrigações, cujo valor deriva – daí o seu nome – do valor de bens ou direitos, físicos ou não, bem assim de taxas ou índices, usados como referenciais (subjacentes). A evolução do valor destes subjacentes determina ou influência os valores dos instrumentos financeiros derivativos. Desta forma genérica, a definição traria grande satisfação à dialética, à “l’art de toujours avoir raison”, estratagema de lógica tão bem sintetizado por Arthur Schopenhauer. Isto porque sempre seria possível particularizar para contraditar o que se tivesse pretendido caracterizar no genérico. Assim como o seria generalizar para se opor ao que se tivesse tentado particularizar. Tive oportunidade de mencionar em uma de minhas palestras, neste Conselho (“Ora, swaps são swaps”), o fato de que nossa lei de reforma bancária, a Lei 4.595, de dezembro de 1964, previu em seu texto a competência do Conselho Monetário Nacional para regulamentar os swaps, inserindo este termo anglo-saxão, tout court, no texto legal, sem qualquer interpretação autêntica sobre o que viria a ser este instituto. É melhor observar o que o assentamento de práticas administrativas e operacionais vem consagrando como derivativos financeiros, em suas formulações básicas atuais: futuros, swaps, opções, que tipicamente se liquidam por diferença, ou derivativos embutidos em outros instrumentos. Os subjacentes podem ser mercadorias (preços de commodities), ouro, moedas, taxas de juros, valores mobiliários, índices de Bolsa ou até outros derivativos. Os derivativos que visualizamos, para análise dentro da crise, liquidamse tipicamente por diferença. São Non Deliverable Futures (NDF) a 38 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 despeito de que “L’art d’avoir toujours raison” possa contraditar trazendo à baila aqueles que podem liquidar-se físicamente, por opção, e os contratos a termo, conhecidos como forwards de commodities, de moedas (FRA – Forward Rate Agreement). Uma das características originárias dos derivativos é a de proteger, garantir preços ou cotações, em face de flutuações de mercado, tanto por interesse patrimonial ativo quanto obrigacional passivo. Como podem representar uma vantagem para uma parte, pelo favorecimento representado por seu valor de liquidação por diferença (atual ou previsível), eles têm cotação de mercado, ensejando sua aquisição para propósitos especulativos (valores previsíveis como função dos subjacentes). Alguns, entretanto, são emitidos com propósitos especulativos predominantes, v.g. opções sobre ações. Instrumentos híbridos podem ser arquitetados, como por exemplo, valores mobiliários que contenham opção entre renda fixa periódica e transferência de rendimentos de ações ou de carteira de ações (valorização e dividendos), com pontos máximos de referência para ativar a opção (knock in) ou para desativá-la (knock out). Neste caso, ou há a opção por receber um fluxo integral – de renda fixa ou de renda variável – ou se estabelece um mínimo, com apropriação da diferença positiva de um fluxo, superior a este mínimo, se houver. Os derivativos estiveram presentes em etapas posteriores à securitização, servindo como em trilhos de transporte, janelas de saída ou de exponenciação dos títulos securitizadores. As margens de garantias adjetivadoras de operações com alguns derivativos (v.g. swaps de crédito) desempenharam papel desestabilizador, embora inicialmente com exagero de ponderação. Estas margens de garantia também representaram instabilização nas alavancagens para financiamento de carteiras, que absorveram títulos securitizadores. Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 39 • Área de observação restrita Após esta ligeira digressão, afino a minha visão de derivativos, nesta crise, não considerando nesta categoria os títulos ou valores que representam créditos para pagamentos financeiros de montantes principais e, não, de diferenças. Assim, um título securitizador de um crédito hipotecário não será visto como um derivativo. É incorporação, em um título, de um crédito destinado à liquidação pelo devedor, pelo seu principal, ou por amortizações do principal. Este crédito decorre do desembolso de um principal, em seu nascedouro, pelo qual alguém se torna devedor. No derivativo, não há um desembolso inicial de principal. Pode haver um pagamento de cotação do instrumento financeiro derivativo, influenciada pela constatação ou previsão de diferença entre o valor de uma obrigação assumida e o valor desta obrigação no mercado, ou entre o valor de uma obrigação real ou virtual e o valor de cotação de um bem no mercado. São valores fracionários, vinculados a diferenças e não a principal. No título securitizador, não há um fluxo financeiro paralelo para ser com ele cotejado. Não se altera a obrigação de sua liquidação pelo principal para se tornar liquidação por diferença. Em um swap de garantia de crédito (CDS), há tal cotejamento, variável de acordo com avaliações de risco. Um derivativo pode ser securitizado. Por exemplo, a opção de conversão em ações contida em uma debênture conversível. Esta opção tem uma cotação, que pode influenciar positivamente o próprio valor da debênture. Não são derivativos propriamente ditos os títulos securitizadores de recebíveis imobiliários, de recebíveis bancários e de recebíveis comerciais. Uma conceituação pouco atenta de derivativos as enlaçaria, ou 40 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 seja, o valor do título securitizador varia certamente em função de fatores atados à garantia subjacente, ao seu grau de risco e a taxas de juros. O mesmo ocorreria com um título do Tesouro ou CDBs prefixados, que poderiam variar em função da conceituação de risco do emitente ou de outras taxas de juros, de mercado ou oficiais. A ninguém, contudo, ocorre de classificá-los como derivativos, porque houve um desembolso de principal, para sua aquisição. Uma commodity vai ser paga por um valor que varia, em função do mercado, mas não é ela própria um derivativo. Pode ser um subjacente a um derivativo, um contrato futuro, por exemplo, em que há um fluxo de preços de mercado e um fluxo predeterminado pela parte, ocasionando um cotejo, liquidado por diferença. A conceituação jurídica e regulamentar de derivativos segue um padrão consuetudinário. Tal como acontece em outros contratos (leasing, arrendamento, locação; financiamento bancário, desconto, vendor, v.g.), são pequenas diferenças que singularizam os derivativos em sua configuração jurídica. Os títulos securitizadores seguem velhos e secularmente conhecidos padrões ao serem emitidos, para absorção em fundos ou venda no mercado, ou seja, lastro (garantia) em hipotecas específicas ou em uma carteira hipotecária (como nossas cédulas hipotecárias, letras hipotecárias, letras imobiliárias) ou lastro em recebíveis (cédulas de crédito bancário, certificados de recebíveis imobiliários, debêntures com garantia de recebíveis). Títulos securitizadores, contudo, podem prestar-se à construção de derivativos, ou seja, emissão de outros títulos que os tenham como referenciais. Títulos ou carteiras de títulos securitizadores foram objeto de empacotamento para geração de outros títulos a eles referenciados e colocação no mercado. Carteiras de títulos securiCarta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 41 tizadores serviram de base para geração de swaps de crédito (Credit Default Swaps – CDS), importantes instrumentos, cuja utilização desempenhou papel destacado na crise. Ou seja, um swap com um fluxo real de ingressos de recursos dos que foram financiados e pagam (ou não) as prestações e um fluxo de pagamentos prováveis, previstos antes da emissão do swap. Os dois fluxos se cotejam, resultando uma diferença. Atualmente, desmontam-se, nos Estados Unidos, títulos maiores empacotadores de recebíveis hipotecários residenciais e comerciais, para transformá-los em outros instrumentos com mais chance de comercialização (v.g. incorporando opções entre a renda por eles gerada e a proveniente de ações): trata-se de um derivativo, um instrumento híbrido de renda fixa e variável. Excluídos de minha convenção sobre o que sejam derivativos, é preciso constatar que a gestão feita por pessoas, no processo de securitização, não foi a esperável para evitar que se tornasse a porta de entrada de uma torrente substancial de problemas, em que houve a utilização posterior de derivativos, até para expulsar os riscos respectivos dos balanços das instituições ou para escondê-los. Tal gestão inicial deve ser apontada como causal, dado o grau de culpa com que se houveram alguns administradores na sua produção. Uma âncora conceitual de derivativos é estabelecida pela regulamentação, no art. 2º, parágrafo único da Deliberação CVM nº 550, de 17/10/2008, que, após delinear suas características concomitantes (entre as quais, ausência de desembolso inicial), assim os vê como “instrumentos financeiros derivativos os contratos a termo, swaps, opções, futuros, swaptions, swaps com opção de arrependimento, opções flexíveis, derivativos embutidos em outros produtos, operações estruturadas com derivativos, derivativos exóticos e todas as demais operações com derivativos, independente da forma como sejam contratados”. 42 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 • Os valores fantasiosos de derivativos Antes de mais nada, peço desculpas por certas descrições elementares de derivativos. De forma alguma, desejo ser professoral em relação a colegas que certamente sabem três vezes mais e que, portanto, poderiam exercer seu magistério em relação ao palestrante. Forçado me sinto a detalhar fundamentos perante aqueles que, mestres em outras áreas de atividade, ainda não se iniciaram no assunto de derivativos, e também para enfatizar algumas conclusões. O uso de derivativos teve um crescimento formidável, a partir da última década do século passado. Relembro, também, que não pode ser levado em conta, para discernimento da importância dos derivativos, o exagero de considerar os seus valores nocionais (referenciais) como sendo os valores negociados, os valores de responsabilidades ou de riscos assumidos. Frequentemente, vemos estatísticas de centenas de trilhões de dólares de derivativos negociados. A distorção de interpretação das estatísticas, aí, é que as responsabilidades não são neste montante nocional, e, sim, na diferença entre valores de dois fluxos financeiros referenciados a um valor nocional. Ou então, a responsabilidade (risco) é a diferença de cotação de um determinado contrato, em determinado período, que pode ser diário (ajustes diários). Assim, em um swap de taxas de juros, há uma troca, por exemplo, de um fluxo de taxas de juros fixas (8% a.a., v.g.) por um fluxo de taxas variáveis (correção monetária pela inflação mais 4% a.a., ou taxa dos títulos do Tesouro americano mais 4% a.a., v.g.). Os dois fluxos financeiros de taxas de juros são calculados sobre um valor único, o chamado valor nocional (R$ 1.000.000,00, v.g.). De modo que a responsabilidade não é por R$ 1 milhão, mas pela diferença entre os números resultantes dos cálculos destas duas taxas de juros sobre o valor nocional de R$ 1 milhão. De um lado, um fluxo anual fixo de juros de 8% Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 43 sobre R$ 1 milhão: R$ 80.000,00. De outro lado, um fluxo variável de juros, que pode ser, em um determinado ano, de 9%: 5% (correção) mais 4%, resultando, portanto, em um valor anual, no período, de R$ 90.000,00. A liquidação, por pagamento, naquele período, seria em um valor de R$ 10.000,00 a favor de uma parte (a que apostou nas taxas variáveis). Portanto, a responsabilidade efetiva (risco efetivo) não é pelo valor nocional, de R$ 1.000.000,00, que é meramente referencial. É pela diferença entre os dois fluxos calculados sobre ele (R$ 90.000,00 e R$ 80.000,00), e que, naquele período, foi de R$ 10.000,00, ou 1% sobre o valor nocional. Em um swap de crédito, há uma diferença a acertar entre o fluxo de entradas reais de pagamentos de um empréstimo ou de uma carteira de empréstimos, em um determinado valor (nocional) e um fluxo de entradas previsto abstratamente, como provável, referenciado a este mesmo valor nocional, no contrato de derivativos. Esta diferença é que é o risco assumido por quem tem a obrigação de pagar ao final de um período. Em um contrato futuro de mercadorias, igualmente, há um fluxo previsto ex ante no contrato, durante determinado tempo, e outro fluxo, o fluxo real de preços que vai sendo verificado por suas cotações no mercado. Acerta-se pela diferença, de tempos em tempos, ou ao final de determinado tempo, embora possa haver contratos de liquidação futura com entrega física, chamados de for wards. Se o contrato é padronizado, negociado em Bolsa, ele tem uma cotação dinâmica. Durante a vida do contrato, há o ônus de manter uma garantia de sua liquidação, a chamada margem (de garantia). Esta margem pode dar origem a um outro risco, o de ter que mobilizar recursos para completá-la, caso ele se mostre insuficiente para cobertura do risco, segundo os termos contratuais previstos. No caso de Bolsas, esta margem fixada pode alterar-se em situações de stress de mercado e, diariamente, são acertados pelas partes os ganhos ou 44 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 perdas verificados (diferenças de cotações diárias). De modo que o valor em risco não é do tipo simples, é dinâmico. Em uma opção de compra de ações, fixa-se uma razão de conversão, ou seja, um valor da ação pelo qual o adquirente da opção pode convertê-la em um determinado número de ações, durante certo período. Sendo a opção do tipo coberta, o seu lançador mantém as ações bloqueadas para garantir a liquidação. A ação subjacente, ou seja, aquela em que a opção pode ser exercida, em um determinado intervalo de tempo, tem uma cotação no mercado, que pode tornar vantajosa a conversão. Assim, se a razão de conversão dá direito a converter a opção em ações a um preço de R$ 1,00 por ação e se a ação passa a ser cotada a R$ 1,50, então pode ser vantajoso converter, ou seja, exercer o direito de comprar as ações a R$ 1,00, uma vez que, no mercado, elas passaram a valer R$ 1,50. Normalmente, a conversão ocorre pela liquidação por diferença, ou seja, neste caso, o portador terá direito a receber R$ 0,50 por ação convertida. Quando se adquire uma opção, paga-se um valor (prêmio). Então, o portador da opção deverá levar em conta o valor de prêmio que pagou para verificar sua real vantagem. E o risco (ou ganho) não é o do valor total das ações convertidas ou potencialmente conversíveis, pelas opções, mas a diferença entre o valor da ação fixado na opção, para conversão, e o valor de mercado das ações em que a opção pode se converter (diferença esta de R$ 0,50, no caso citado), menos o valor do prêmio. Paralelamente, estas opções, como são negociadas na Bolsa, podem ter um valor de mercado que não coincida com o valor da vantagem que cada uma dê, pelo exercício da opção. Assim, podem achar os investidores que a opção terá um valor futuro maior, no intervalo de tempo de sua existência, e incorporam ao preço esta expectativa. Estes exemplos servem para ilustrar a afirmativa de que os números Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 45 nocionais não representam os riscos assumidos ou valores de mercado. As centenas de trilhões de dólares que recheiam as estatísticas devem ser devidamente cortadas aos valores de riscos ou de mercado sensatos e efetivos envolvidos. Um exemplo bem recente realça sobremaneira as afirmativas retro, sobre o quanto há de estimativas sobrevalorizadas quanto à exposição a derivativos. No caso da falência do banco de investimento americano Lehman Brothers, o mercado, em pânico, assestava estimativas de US$ 300 a US$ 400 bilhões em operações do banco, aos quais correponderiam contratos de swaps de crédito. Desconhecia-se, na verdade, o grau de exposição efetiva de uma seguradora a tais contratos. Em cima destas estimativas, houve uma paralisia de negócios: o mercado afundaria irremediavelmente, e a avaliação deste tipo de swaps foi seriamente afetada. A realidade era, no entanto, bem diferente. O valor de face dos seguros de crédito para o Lehman Brothers, incorporados a swaps, estava na casa dos US$ 70 bilhões, mas a exposição líquida era de US$ 6 bilhões, computando-se outros contratos que se compensavam. Após esta experiência, os bancos começaram a rotinizar a compensação de contratos, reduzindo-se substancialmente a exposição geral (mais de 50% de redução). Há uma tendência a padronizar o máximo possível estes swaps para negociação e utilizar câmaras de compensação, como a Depositary Trust & Clearing Corporation. Quanto ao mercado de balcão de derivativos (não padronizados), há uma discussão mais ampla, de iniciativa do mercado, sobre registro destes contratos, bem assim sobre registro de outros derivativos negociados privadamente e relacionados a juros, câmbio, commodities e, mesmo, derivativos de renda variável. No Brasil convergiu-se para a necessidade de registro e publicidade de derivativos de balcão praticados por instituições fincanceiras e por companhias abertas. 46 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 • Derivativos e volume físico de subjacentes no mercado Preocupação corrente entre alguns economistas é a de discrepância entre o número de unidades físicas de subjacentes a contratos de derivativos (futuros, opções, swaps) negociados em Bolsas e o volume efetivamente disponível para negociação, no mundo real. Por exemplo, o volume de barris de petróleo, o volume de toneladas de soja ou de dólares, efetivamente existente no mundo real, e disponível para negociação física (physicals), e os mesmos volumes negociados como subjacentes dos contratos de futuros, opções ou swaps negociados em Bolsas ou balcão. Os montantes nocionais de tais contratos ascendem a trilhões e trilhões de dólares. O que é real e o que é meramente referencial para especulação, sem correspondência no mundo real? Têm alguma importância efetiva estes valores nocionais, ou tais preocupações quanto a equivalência do mundo real com o mundo financeiro dos derivativos referenciados? Uma primeira observação é de que, nos derivativos típicos, não ocorre correspondência ou movimentação física (physicals) dos bens de referência, cujos contratos são negociados padronizadamente em Bolsas. Trata-se de contratos de liquidação futura com bens não entregáveis (NDF – Non Deliverable Futures). A liquidação é por diferença, em dinheiro, e não pelo valor nocional, integral ou pela entrega física do subjacente a que se refere o derivativo. Assim, na liquidação de um derivativo (por cotações diárias ou em períodos maiores), não se entrega o volume total (referencial) das commodities cujos preços (de mercado e fixado no contrato futuro) se comparam. A liquidação ocorre por diferença de preços para aquela quantidade de commodities tomada como referencial (nocional). Em um swap de taxas de juros, inexiste a liquidação com entrega do valor do principal a que se referenciam os fluxos de taxas comparados, mas se entrega físicamente, Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 47 em dinheiro, o valor da diferença entre os fluxos representativos, em dinheiro, dos cálculos das taxas de juros observadas e comparadas, no período contratado. Em uma opção de compra de uma commodity, adquirida sem previsão de entrega física, só a diferença de preços é que se entrega, em dinheiro, para liquidação do exercício da opção. Como a opção pode ser negociada no mercado, pode também haver pagamento do preço da opção vendida. Já no caso de contratos que contêm a previsão de entrega física de uma commodity, os chamados contratos forwards, logicamente está envolvido um principal em unidades de mensuração – tantos quilos, tantos barris ou outra medida), cujo valor monetário não foi desembolsado inicialmente, e que deve existir e estar disponível no mundo físico, para entrega. Estes contratos a termo não são normalmente padronizados (embora possam sê-lo), não se negociam em bolsas, mas entre comerciantes, que têm capacidade para entregar ou receber a mercadoria, fato que deve rotineiramente ocorrer, com os riscos respectivos. A entrega física pode ser procrastinada, por conveniência ou necessidade. Estes contratos por vezes podem prever um cancelamento, com pagamento da diferença, sobretudo quando haja incerteza, no momento de sua formação, quanto à necessidade futura de entrega. Tanto no caso de contratos a serem liquidados por diferença, quanto nos contratos por entrega física, as Bolsas, instituições e empresas que os negociam providenciam as adequadas garantias para que os contratos se cumpram em suas modalidades de liquidação. Em se tratando de physicals, portanto, há correspondência no mundo real e a entrega é garantida. No mercado de balcão, as instituições financeiras tomam providências idênticas, em termos de garantias e acautelamentos, embora a transparência ainda deixe a desejar. 48 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 Na história das Bolsas, há exemplos de atuação, em que se evitam tomadas de posições, compradoras ou vendedoras, que não possam ser cumpridas. Igualmente se acautelam situações de fato ou atuações concertadas que ocasionem concentração e domínio de mercado (“corners”, p. ex.) A área não parece ter sido varrida pelo tornado da crise. Inegável que a gestão das pessoas, em Bolsas e em instituições, possa oportunizar artificialismos quanto a quantitativos de principais. As crises recentes não evidenciaram ocorrências, no particular, numa primeira apreciação. Invetigações, contudo, alertaram para a possibilidade de ocorrência de artificialismos, em mercados futuros de “commodities”, como petróleo e metais. Os problemas mais significativos tiveram sede no volume financeiro de contratos securitizadores de créditos, pois parte destes foi deferida artificialmente. Outro problema foi o de aporte adicional oneroso ou liquidação de garantias, tanto em financiamento de carteiras quanto em decorrência de valores de mercado de principal de títulos, em cima dos quais se construíram derivativos. • Comunicação de desordens entre mercados Questão distinta é afirmar-se que os mercados de derivativos influenciam os mercados de subjacentes, ensejando cotações artificiais. Ou qual dos dois é antecedente. Há situações distintas. No caso de política cambial ou de taxas de juros, não é raro vermos autoridades interferindo objetivamente no mercado de derivativos, para tentar acentuar uma linha de tendência desejada. Assim, no mercado de swap cambial, com liquidação em reais. Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 49 Desordens mercadológicas podem ocorrer tanto nos subjacentes quanto nos derivativos a eles referenciados. A especulação pode ser intensa e atingir níveis altos tanto no mercado de subjacentes quanto no de derivativos. Entretanto, ela pode ser facilitada no mercado de derivativos por envolver menor desembolso de recursos. Correspondentemente, este mercado é mais ágil, com decisões rápidas e mais sujeitos a volatilidade em certas ocasiões. Comprar uma opção requer muito menos desembolso do que comprar a ação referenciada e o efeito especulativo é assemelhado, no prazo de validade da opção: descontado o preço da opção (prêmio), ganha-se ou se perde o mesmo valor com a apreciação ou depreciação do valor da ação. A diferença reside em que, após o prazo da opção, quem comprou a ação no mercado à vista, e se deu mal, tem prolongado o prazo de especulação, para o bem ou para o mal. E quem comprou a opção perdeu integralmente o seu investimento, em tal caso. O mesmo se pode dizer do mercado especulativo futuro de uma commodity, descontado o custo das garantias aportadas. Então, o especulador tem mais chance de atuar, com menos recursos, no mercado de derivativos, no qual normalmente não tem desembolso inicial, ou seu desembolso é substancialmente menor do que no mercado físico. Para investidores com maior estofo financeiro, a especulação pode ser feita, nos derivativos, em cima de uma quantidade maior de unidades ou medidas de bens ou índices tomados como subjacentes. Mas os riscos de perdas são integrais. É preciso alertar que um futuro de moeda, por exemplo, em que pode haver flutuações acentuadas de cotações, pode encerrar riscos ponderáveis, apesar de liquidação por diferença. Com uma desvalorização cambial de 20% ou 30%, pode-se ter uma perda em tal montante (diferença), que pode varrer as disponibilidades de uma empresa. 50 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 A tese de que os mercados de derivativos ocasionam maior especulação e refletem suas distorções nos mercados físicos de subjacentes é daquelas que trazem em si indagações estatísticas da maior profundidade, porque lidam com condicionantes, com fatores de influência mercadológica os mais variados, e horizontes temporais de escolha subjetiva. Certo é que tais mercados de derivativos existiriam de qualquer forma, e, sendo bursáteis, ensejam maior transparência na formação de preços. Trazem um dinamismo diferenciado e genericamente virtuoso para os mercados dos subjacentes. E, em um horizonte visual mais amplo, refletem reais tendências de mercado, reais mudanças na oferta e procura, nos estoques disponíveis. Apesar de ataques esporádicos de especuladores poderosos, frequentemente eles acabam por espelhar realidades que lhes trazem prejuízos substanciais. Os mercados possuem igualmente mecanismos de controle para atuações artificiais, como limites diários de flutuação de preços, margens de garantia, limites a posições compradoras ou vendedoras, interferências em casos especiais de tentativa de dominar mercados. • Valores reais a proteger ou meramente referenciais Já se vê que os valores que se prestam à liquidação por diferença podem referir-se a ativos ou passivos reais ou, então, ideais, puramente virtuais. Assim, posso ter uma dívida efetiva, no mundo concreto, em dólares, e desejar proteger-me contra a desvalorização do real (valorização do dólar). Ou compro dólar a futuro ou entro em um swap “dólar x real”, com liquidação em reais. Então, tenho como ativo um direito a compra, para liquidação no futuro, de uma quantidade de dólares igual à minha dívida, a um preço de dólar igual ou próximo daquele pelo qual fiz a dívida, de tal sorte que, se o dólar subir mais, Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 51 terei como “comprar” a moeda ao preço aproximado pelo qual o recebi, podendo, assim, a diferença ser utilizada para cobrir a diferença que perdi na minha dívida efetiva em dólares. Se o dólar baixar, terei um prejuízo no derivativo, que será compensado pelo valor menor do dólar que terei de pagar na minha dívida efetiva (gastarei menos reais para liquidar a dívida efetiva). Este é um caso de assunção de um derivativo com lastro em necessidade real de cobertura de risco para uma dívida em moeda estrangeira. Trava-se o valor em risco. Pode-se fazê-lo, também, para uma trava genérica, sem correspondência a um ativo ou passivo específico, através de derivativos que se referenciem a índices genéricos, como o de inflação, de construção civil, ou de variação cambial, por exemplo, tendo como justificativa para tanto a natureza geral do referenciamento dos ativos ou passivos patrimoniais de uma empresa. Nem sempre, contudo, o derivativo é projeção de um ativo real ou de um passivo, o que ocorre quando ele é utilizado para fins especulativos, ou em excesso às reais necessidades. Por exemplo, empresa tem passivo em dólar de US$ 1.000.000,00 e compra futuros com nocional equivalente a US$ 2.000.000,00. Um risco de fluxo de valores referenciados a US$ 1 milhão está nu. Da mesma forma, pode-se entrar em um derivativo exótico, que encerre riscos maiores do que os necessários para cobertura, ingressando no campo especulativo. Assim, aposta-se em uma determinada direção, com o dólar a um preço determinado, mas se a moeda americana atingir determinado valor (target), a contraparte, um banco por exemplo, ganha a diferença em dobro. Inúmeras combinações podem ser feitas em derivativos exóticos, e eles podem encerrar perigos substanciais.. Riscos podem ter sido assumidos no exterior, sem registro em sistemas brasileiros (BM&F, Cetip) e como não havia norma de transparência completa a respeito, não se sabe se a totalidade deles era especulativa ou se alguns 52 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 destinavam-se a proteção quanto a riscos, na proporção necessária. No tocante a empresas com ações negociadas no mercado de capitais brasileiro, já foi mencionado que a CVM editou a Instrução (nº 475), determinando às empresas abertas, em notas explicativas específicas, transparência não só quantitativa como qualitativa, quanto a derivativos em que a empresa tenha entrado, inclusive com um quadro demonstrativo de análise de sensibilidade quanto aos riscos assumidos em situações normais e em cenários de deterioração de fatores de risco. Estes cenários de deterioração são para variações de 25% ou 50% em fatores determinantes de exposição. Como o presidente e o diretor de relações com investidores terão que assinar as demonstrações financeiras (aí inclusas as de Notas Explicativas), espera-se um maior grau de vinculação de responsabilidade dos administradores quanto à incursão em riscos de derivativos, substituindo a obscuridade que vigorava, oportunizadora assunção de riscos desproporcionais. • Perigos latentes Os derivativos chamados de 3ª geração, os exóticos, os de última geração, destinados, ou não destinados, a proteção (hedge), inadequados em prazo ou em excesso a esta proteção, devem ser objeto de muita cautela e submetidos pelos responsáveis da empresa tomadora a testes de stress, ou seja, a testes sobre hipóteses de não serem favoráveis em volumes relevantes ou insuportáveis pelo grau de risco tolerável na empresa. Não devem ser decididos em caráter de urgência. O exato conhecimento de seus pressupostos deve ser aberto, individualizada sua aplicabilidade para o caso, em vernáculo acessível, por escrito, com vinculação de responsabilidade quanto a declarações sobre matérias de fato e de pessoas, e uma clara análise dos desdobramentos de riscos possíveis atados aos pressupostos e fatores de ponderação. Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 53 Não se pode confiar excessivamente na habilidade de operadores ou administradores. Bancos de grande tradição já quebraram, por isto (Banco Barings, um dos mais tradicionais da Inglaterra) ou tiveram sérios prejuízos (Société Génèrale). Empresas, anteriormente à presente crise, já amargaram enormes prejuízos (MetalGeselscahft, Codelco, no mercado de metais) e até instituições financeiras e entes públicos (London Borough of Hammersmith & Fulham, na Inglaterra). Ocorre-me, agora, lembrar da advertência de um articulista americano (Paul Slovic, The Journal of Finance, 1967), de que “nunca devemos tomar por certa a confiabilidade e a acurácia de pessoa que faz um julgamento qualquer, inobstante sua perícia. Sempre que possível, testes empíricos devem ser realizados para determinar se a performance judicante é satisfatória”. (“We must never take for granted the reliability and accuracy of a judge no matter how expert. Whenever possible empirical studies should be conducted to determine whether judgemental performance is satisfactory”). Em muitas circunstâncias, não se acham os derivativos apropriados à proteção, seja em preço, seja em prazo, seja em tamanho e a compatibilidade (mismatch), encerrando armadilhas sérias. Complexidade A complexidade de alguns derivativos merece abordagem destacada pelo fato de ter a ver com o controle de riscos. Diz respeito ao estoque de conhecimentos de gestores de risco e de reguladores para analisar, com a presteza e antecedência necessárias, as diversas situações em que os sinistros implícitos nas fórmulas adotadas têm probabilidades aumentadas de ocorrência. E na melhor forma de acautelá-los, pela sua natureza, para que não comprometam a saúde das instituições. Há muitas nuances subjetivas de avaliação. Por vezes, o sinistro, representado pela perda substancial de valor ou pela total depreciação, 54 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 depende da intenção de negociar, ou não, um determinado ativo, em um determinado horizonte de tempo. De negociá-los em situação de necessidade, ou de se poder aguardar melhor oportunidade. O risco, por vezes, é uma suposição meramente contábil, de registro por comparação com mercados inexistentes ou tornados imperfeitos. De modo que a avaliação por analistas ou reguladores é também subjetiva. Autoridades supervisoras por vezes veem-se a braços com um dilema de “to do or not to do”, surgido em função de determinações efetivadas ou regras editadas em situações transitórias sufocando instituições ou o mercado como um todo. Os partícipes deste mercado desenvolveram, com o tempo, contratos complexos, com combinações que permitem atender a uma ampla gama de interesses em circunstâncias variadas, não só através dos contratos padronizados negociados em Bolsa mas também com diversos arranjos contratuais, no mercado chamado de balcão. As instituições financeiras, como têm ativos e passivos com variadas referências (títulos do Tesouro, contratos com taxa fixa, contratos com taxa variável, em moedas conversíveis distintas, ações, eventualmente), têm maior flexibilidade e conforto ao contratar derivativos com seus clientes, em posição passiva ou ativa. Elas têm um colchão natural de contragarantias disponível em seus ativos ou passivos, em princípio, em termos de preços e de variações de taxas, índices ou cotações de moedas. Há profissionais muito bem qualificados trabalhando diuturnamente para produzir espécies adaptadas às necessidades ou demandas de clientes (customized derivatives). Ganharam fama e prestígio equipes formadas por instituições financeiras com ex-engenheiros de agência espacial (rocket men), - os roqueteiros - afeitos a cálculos estatísticos e matemáticos, com o objetivo de testar alternativas e seus desdobramentos, na área de derivativos. Já em 1995, tive oportunidade de conhecer a equipe de um banco americano bastante ativo em Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 55 derivativos, na época, o Chase Manhattan (integrado posteriormente ao J. P. Morgan). Por vezes, a linguagem utilizada é muito famíliar aos iniciados nestes contratos mas até impenetráveis, à primeira vista, por não iniciados. Nem sempre os superiores, os pares de diretoria, que repartem responsabilidade, e os próprios reguladores têm aptidão ou disposição para entender os modelos elaborados e, sobretudo, as consequências díspares das variações nos pesos adotados nas fórmulas. Pressupostos de derivativos devem ser conferidos e questionados, sempre, para não se comprarem gatos por lebres. Obs.: Aportei, em 1995, a Chicago, perplexo, para uma visita de estudos à Chicago Mercantile Exchange (CME), à Chicago Board of Trade (CBOT), hoje fundidas, e a dois escritórios de advocacia locais. Devia produzir um relatório e me desafiava a perspectiva de ter que reduzir a termo o quanto observara, um objetivo que se me afigurava por demais ambicioso. Parecia-me um obstáculo intransponível de conhecimentos técnicos, a me aturdir. Tinha apoio de autoridades brasileiras, inclusive no Banco Central, que dava os primeiros passos na regulação de derivativos (então de sua competência), da BM&F, do nosso colega professor Theóphilo de Azeredo, do embaixador brasileiro em Londres, Rubens Barbosa, da Varig e do nosso consulado em Hong Kong, para as entrevistas pertinentes nos Estados Unidos, na Inglaterra e naquele protetorado britânico. Minha frustração era maior porque lecionava Direito Comercial, de forma que considerava moderna, atualizada, e este campo novo de conhecimentos me colocava na posição prática de um calouro de primeira série de faculdade. Os administradores da CME me receberam de forma extremamente cordial e transformaram meu estado de espírito. Levaram-me a tomar como ponto de partida os pressupostos de cada negócio, o que as partes esperavam conseguir com cada um deles, para assumir uma visão crítica das virtudes e riscos peculiares a cada alternativa. Por 56 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 este modo de aproximação de tais instrumentos, todas as variações tornam-se compreensíveis ou decifráveis, apesar de uma nomenclatura aparentemente hermética. Como resultado, produzi um relatório, uma espécie de recipiente, de 600 páginas, onde depositei as informações obtidas. Registrei-o, em 1996, na Biblioteca Nacional, ainda assim sob o título de “Noções Elementares de Derivativos”, tal o receio de que fosse considerado pretensioso em face de um tema tão aberto. Deste relatório, extraí um pequeno livro sobre swaps, publicado pela editora Forense Universitária ( Swaps - Aspectos Jurídicos, Operacionais e Administrativos), em que procurei alocar a fenomenologia financeira deste tipo de derivativo aos institutos do direito positivo, com a linguagem jurídica pertinente, para explicitar, passo a passo, as obrigações assumidas e os direitos gerados. Fiquei muito honrado e surpreso pelo fato de algumas instituições respeitáveis de ensino superior terem referenciado este livro, assim como pelo encorajamento de juízes, desembargadores e advogados a que complementasse a abordagem dos demais derivativos em livro. Fico a me dever esta complementação e a atualização da temática regulamentar dos swaps. Visualizando pressupostos e objetivo de cada tipo de negócio, estabelecendo com clareza as limitações ou falta de limitação de riscos, os derivativos podem ser um auxiliar valioso na administração financeira, em formatos simples ou mesmo mais complexos, negociados no balcão. A postura em relação a tais instrumentos certamente será pouco construtiva e arriscada se for do tipo: “não conheço e não gosto”. Perde-se a oportunidade de usá-los construtivamente para proteção e se corre o risco de delegar seu uso a terceiros, com enormes chances de perdas, no campo especulativo e, mesmo, no campo de proteção (hedge) mal executada. Exercícios de simulação quanto a Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 57 suas consequências financeiras para as partes devem ser conduzidos, para cenários alternativos, para diagnosticar se são compatíveis com a aversão a risco de cada tipo de usuário. É conveniente ter portas de saída, de arrependimento eficaz para eventual propósito de saída, no caso de atuação especulativa. • Transferência de riscos Também em palestras passadas alertei para o engano em que incidiam importantes entusiastas dos derivativos de crer que, através deles, se poderiam transferir riscos indefinida e impunemente do sistema financeiro para os demais atores econômicos. A reverberação e reintrodução do risco no sistema financeiro resultaria como uma conseqüência inevitável da estrutura de geração, armazenamento e comercialização de “produtos” financeiros, adotada em grande escala, como ocorreu. Reitero, aqui, que a transferência de riscos, na presente crise, se operou sobretudo pela securitização de recebíveis, e expulsão do balanço, por colocação no mercado ou em veículos especiais (SIVs), e, não, primordialmente, pela construção de derivativos referenciados, meros acólitos de um fenômeno muito mais amplo de principais. A securitização é um processo necessário, no mercado, para expansão do crédito e sua retomada, a ritmos progressivos, é previsível. Com novas regulamentações, certamente em novos termos de responsabilidade. Não será como dantes. Os derivativos existem, contudo, independentemente de seu mau uso, de se gostar deles, ou não. E continuam a ter número enorme de negociações diárias, em todos os mercados, porque não deixaram de ter sua utilidade ou atratividade. Os objetivos de seus usuários ampliaram-se, podendo prestar-se a limitar riscos, transferir riscos, 58 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 servir a atividades especulativas quanto à evolução do seu preço, assim como a transferir datas de vencimento de obrigações, a fazer arbitragem de preços sem se desfazer de carteira, a mudar de tipo de investimento. A letalidade de seu uso, como o têm demonstrado os recentes episódios, é um fenômeno cultural, que pode ser bastante relativizado com normas de reconhecimento, registro e mensuração, de transparência compulsória, não só pelas companhias abertas como pelas instituições financeiras. No caso destas instituições, sistemas de alarme (early warning indicators) são convenientes, para que riscos insuportáveis sejam detectados e adequadamente tratados. • Formação de bolhas. Sistema financeiro e derivativos Desnecessário aqui repetir o encadeamento de fatos que levou ao extraordinário desenvolvimento do mercado imobiliário americano e em parte da Europa. O preço a ser pago pela prosperidade varia. Em tais épocas de crescimento de preços de ativos (imóveis, ações, commodities), o ambiente pode tornar-se progressivamente pouco receptivo a reflexões sobre limites, de tal sorte que estes se impõem pela força bruta de correções inevitáveis. No “boom”, todos os instrumentos de emissão de sinais acauteladores têm sua sensibilidade afetada. Os pitots se congelam. A contabilidade, dada sua importância, nos dias de hoje, como base tornada “inquestionável” da transparência, engessa os dados do mundo real. Passa a ser sancionadora do otimismo, ou o verdugo instrumentador do pessimismo, inclusive pelas recentes enfatizações messiânicas, no concernente a registro do valor de ativos pela marcação a mercado ou pelo preço justo. Quando os preços dos ativos Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 59 (imóveis, commoditeis, ações) estão em ascensão, para a contabilidade é “justo” que assim se registre este status quo. Não há campo na contabilidade para registrar imaterialidades... Não pode ser diferente, sob pena de subjetivismo... Não há campo para ser previdente... Em posição inversa, o perigo que a crise atual trouxe foi o de a contabilidade sancionar como “verdadeiro” ou justo um valor que leva em conta uma operação forçada, sem referenciais de mercado, ou realizada em condições temporárias de falta de liquidez generalizada ou falta de liquidez para um determinado ativo. De mandar registrar depreciadamente, portanto, mesmo sem liquidez de mercado, por situações excepcionais. A contabilidade vai em suporte cíclico.Ela vai registrar todos os exageros de um período de euforia ou de pânico, que são interpretados como se fossem permanentes, e terá que ser considerada arauto, um mensageiro da verdade dos fatos, reduzidos fenomenologicamente, no espaço e no tempo. Por vezes, a crise se espalha para ativos saudáveis, que passam a ser desvalorizados excessivamente, por efeito-contaminação dos demais. Não se faz qualquer reserva para amenizar exageros. Não se considera a transitoriedade provável da excessiva valorização ou desvalorização de certos ativos. O problema com que se depara o mercado, neste momento, é não outorgar à contabilidade o poder de comandá-lo em um sentido ou noutro de tendência. Normas substantivas fazem-se necessárias, a propósito, relativamente a reservas de contingência, a colchões anticíclicos, para que a contabilidade, também, não se desnature, como rainha-mestra dos acontecimentos, “per omnia saecula saeculorum”. Há que realçar instrumentos que possibilitem comparação, por inserção dos dados atuais com os antecedentes e com os consequentes já materializáveis. Deve-se ter meios de visualizar não apenas o retrato mas o filme, também. 60 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 No que interessa ao nosso tema, no caso de imóveis, quando o ambiente é de uma curva ascendente persistente de preços, o financiamento acaba vindo impregnado da prevalência do valor dos bens (imóveis), dados como sua garantia, com diminuição da importância de indagações básicas quanto a condições objetivas de solvabilidade do tomador, antecedentes de crédito e intenção de pagar (sobretudo a bancos públicos). Ou seja, os agentes do mercado pensam que não é preciso preocupar-se a respeito, pois o preço crescente do imóvel financiado garante uma retomada sem prejuízo ou com lucro. Na realidade, nenhum empréstimo deveria negligenciar o aspecto da solvabilidade ou secundarizá-lo. Este ambiente igualmente facilita fraudes e avaliações errôneas, no nascedouro das operações, como foi objeto de ampla publicidade nos Estados Unidos. Fica criado campo fértil para a ganância por comissões de desenvolvimento de negócios e para bônus de performance imediatistas aos administradores. A repercussão é grande também no trabalho das agências avaliadoras de risco. É problemático lidar com grandes números, nestas circunstâncias, sem se louvar na contabilidade e em analistas de mercado. A simplificação e generalização são inevitáveis. Quanto maior a instituição e maior o volume de riscos a avaliar, mais custosa e menor a capacidade de fazê-lo pelas agências de avaliação de riscos. Após certo porte, a opinião de agências de avaliação de risco acaba por ser irrelevante, sem o suporte de normas que dêem maior acurácia às informações e avaliações internas, até mesmo por comitês com administradores independentes. Com sistemas ineficientes de avaliação de riscos, certamente todo o mercado derivativos passa a operar em patamares perigosos, em que as bruscas adaptações dos preços de referenciais gerarão problemas de Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 61 enormes proporções, pela necessidade de aporte de garantias adicionais de sua liquidação, bem assim pela possibilidade de ter que liquidar tais garantias, no mercado, criando sobre ele uma espada de Dâmocles. Concluo, assim, merecerem apreciação as sugestões de estabelecer normas substantivas que levem todas as instituições a aumentar sua base de capital próprio, e estabelecer reservas de contingências, oriundas de lucros, sempre que estes atingirem determinadas dimensões em relação ao patrimônio líquido ou assumirem forma crescente ou pouco usual no negócio. Especialmente instituições que atinjam determinado porte, suscetível de afetar todo o sistema, em caso de problemas, deveriam ter aumentados seus requisitos de capital próprio (patrimônio de referência). A tal ponto que se tornasse desinteressante uma excessiva concentração de poder no sistema, ou a constituição de tiranossauri reges financeiros. A partir de certa escala de valores, suas operações deveriam ser plenamente garantidas por disponibilidades ou por títulos líquidos do Tesouro. Tornam-se grandes demais para quebrar, e se tornam um risco de Estado, em uma determinada jurisdição, veículos do detestável risco moral (moral hazard). Esta escala de valores parece ser variável, para as economias significativas, e crises bancárias ocorridas em seu ambiente certamente têm efeitos comunicantes nas demais. Criar-se-ia uma barreira natural ao crédito mal deferido e a derivativos mal calculados. Outra sugestão saudável seria estabelecer reservas de segurança em relação a ramos específicos do negócio que experimentassem desenvolvimento acentuado, como negócios com ações e commodities. Cortes progressivos (hair cuts) de valores de certos ativos, para efeito de cálculos de limites de endividamento, quando aumentem a con62 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 centração em relação aos demais tipos de ativos, também mereceriam amadurecimento. Estas diretivas, funcionariam em conjunto com a já mencionada necessidade de colocar um foco mais restritivo no endividamento das instituições que ainda estejam contempladas com lassidão, no particular. O percentual que o financiamento deve representar, em relação ao bem financiado, me parece deva ser o parâmetro fundamental à disposição das autoridades para regular os mercados. •Erros quanto a pressupostos Em observações sobre informação e julgamento humano no mercado de capitais (Carta Mensal CNC nº459-junho 1993), levantei algumas circunstâncias em que ocorrem imperfeições no enfoque pertinente de matérias financeiras, mesmo por especialistas. Os casos de erros quanto a pressupostos, em derivativos, são bastante freqüentes em profissionais qualificados, que lidam com números. Para um razoável contingente de atores econômicos, os derivativos apresentam-se como uma espécie de “caixa preta”: há os que não conhecem seu conteúdo e não gostam, privando-se eventualmente de benefícios possíveis de sua utilização para proteção (hedge), mesmo em modalidades “exóticas” ou de “última geração”. Pode não haver interesse real em conhecer o conteúdo, a não ser em caso de desastre que os atinja! Abre-se espaço para incursão em enormes riscos, mesmo que aparentemente bem assessorados por experts. Estes assessores, por vezes, são diretores de bancos contrapartes! Mesmo no caso de aparente bom assessoramento interno, é preciso atentar para o fato de que o ambiente negocial pode achar-se impregnado da já mencionada unanimidade de análises, sem grande Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 63 atenção a riscos : a contabilidade e os auditores registram valores sempre crescentes ou decrescentes; os analistas trazem gráficos unidirecionais de otimismo ou pessimismo, sem atenção aos fundamentos, especialmente quanto à consistência e constância dos lucros, ou acidentalidade de prejuízos. Ademais, é muito difícil, mesmo para os analistas fundamentalistas, perceber por completo a interação de inúmeras variáveis a ponderar. Ignoram-se alguns dados, só depois revelados. Alguns são processados erroneamente, por exemplo no tocante a decisões políticas. Fenômenos por vezes são analisados sob um prisma de redução fenomenológica, como já afirmado, ou seja, por sua repercussão imediata, desprendidos de um contexto mais geral. Previsões intuitivas se misturam a outras pretensamente científicas. A forma de apresentação dos dados pode ser de molde a esconder realidades subjacentes. É muito comum a presença de contradições lógicas entre o início e o fim de uma longa análise. O peso dado a determinados fatores pode ser demasiado, em um determinado momento, e noutro, não. Correlação pode ser confundida com causalidade. Enfim, além de riscos mensuráveis, pode haver incertezas. Confiar, então, em cenários traçados para assumir riscos especulativos em derivativos, é matéria muito séria. De modo que exercícios de simulação de situações adversas são necessários para se adentrar o movediço ambiente da especulação. Estas simulações devem ser exigidas pelo principais responsáveis, pelos presidentes das organizações sérias. Há imperfeições notórias em certas projeções de lucros. Com base nos lucros registrados na contabilidade (passado), quantificam certos analistas o valor do negócio em si. Analistas ditos grafistas, em oposição aos fundamentalistas, traçam suas figuras, enfeitam-nas com fórmulas de volatilidade inteiramente atadas ao passado e a seus 64 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 fundamentos, projetando, na prática, circunstâncias e comportamentos passados como repetíveis no futuro. Após certo lapso de tempo, freqüentemente fazem por apontar em uma direção, a de subida dos preços. Notícias boas potencializam altas. Notícias ruins não sensibilizam muito. O mesmo ocorreria se o mercado experimentasse uma baixa consistente, por algum tempo: eles também projetariam perdas em níveis sucessivos de resistência. Esta maneira gráfica de registrar fatos econômicos que são de natureza dinâmica e não tão rígida, e a visão grafista, quando negligente de fundamentos, têm muito maior repercussão do que se possa vislumbrar à primeira vista. Lembro-me de que publicações de gráficos em jornais pareciam tão acintosamente parciais tanto no período de alta quanto no de baixa, que se chegou a pensar, em 1971, no Brasil, em proibir a publicação destes gráficos. Tal não foi feito ante a ponderação de que esta proibição iria tão somente valorizar artificialmente os grafistas, gerando um mercado negro de suas construções. Mais positivamente, sugeriu-se apenas aos editores e aos intermediários que patrocinavam estes “estudos” que publicassem, junto com os gráficos, comentários sobre os fundamentos em que se baseavam.. Com o tempo, contraditas e erros se encarregaram de reduzir a importância do episódio. Independente desta falibilidade de análises, por vezes se surpreendem fórmulas de derivativos em que é flagrante a manipulação de pressupostos. A regulamentação do mercado de capitais, em um âmbito mais amplo, tem-se mostrado hostil a projeções de resultados futuros com base em resultados passados. Assim, é expressamente vedado aos fundos de investimento efetivar propaganda prometendo rentabilidade dos fundos com base em performance pretérita, devendo declarar que a passada não é garantia da futura.. Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 65 Por outro lado., a regulamentação aos poucos foi abrindo possibilidade de se realizarem projeções de lucros futuros pelas empresas, quando fazem ofertas de suas ações ao público . Entretanto, partiu-se de uma proibição prática de fazê-lo para uma atitude de o permitir, desde que se assuma claramente responsabilidade pelas informações, declarações e dados significativos que a embasam e qualifiquem as informações. Desaconselhável, no meu entender, trabalhar, em tal caso, com tais projeções, sujeitas a vários tipos de contratempos, como já se mostrou em casos específicos, no mercado. Curiosamente, contudo, para se ver como os derivativos são sujeitos a tergiversações, tem-se considerado como censurável não observar a fórmula Black & Scholes para estabelecer o “preço justo” de opções que são lançadas no mercado. É simples a fórmula, embora por vezes se apresente como uma autêntica sopa de letrinhas (com o tempero de algumas letras gregas). O interessante é que esta fórmula, na realidade, deriva de um pensamento grafista. Em sua essência, o “preço justo” advém de uma expectativa de preço futuro da ação, adjetivado por números que representam a volatilidade pretérita observada na negociação das mesmas ações . Volatilidade mede o grau de variação (para mais, para menos) dos preços observados em negociações de ativos, como as ações, em uma determinada sequência temporal. Ou seja, à moda dos grafistas, ponderam-se dados gráficos de volatilidade passada de preços como reproduzíveis no futuro, sem a adjetivação das circunstâncias que fundamentaram o passado e da probabilidade de se repetirem no futuro, exata ou aproximadamente, sem desvios sensíveis.. Talvez por uma leitura imperfeita dos livros em que se informaram, ainda se cometem outros equívocos, até para os que aceitam orientar-se por gráficos. Assim, nesta fórmula B&S, tomam a volatilidade do preço das ações de um período pequeno que antecede o lançamento das opções (21 dias por exemplo.), e projetam-na no cálculo de “preço justo” de opções que terão prazos bem maiores 66 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 para exercício (2,3,4 meses). Financistas teóricos, como John Hull, são taxativos em dizer que, nesta fórmula B&S, os períodos de volatilidade pretérita pesquisados devem ser compatíveis com os das opções cujo preço “justo” se procuram. Não se levam em conta antecedentes de ocorrência de volatilidades inaproveitáveis, por alterações bruscas de cenário ocasionarem variações “selvagens” de preços, como era comum ocorrer no Brasil (e ocorreu no ano passado). De mais a mais, há um “desejo” de simetria, ou seja, de que os preços das opções comandem os mesmos critérios de vantagens ou desvantagens, no seu lançamento e no seu exercício, quando as circunstâncias serão muito provavelmente bem diferentes. Como característica geral, confunde-se volatilidade passada com tendência futura, desprezando tendências novas que se possam formar com o advento de novas circunstâncias, ou receio fundado de imprevisibiliade. Esta fé nos registros de preços passados para comandar decisões quanto ao futuro pode estar na origem das duas quebras de fundos conduzidos por um dos autores da fórmula B&S (Myron Scholes; o outro é Fischer Black), que foi agraciado com o Prêmio Nobel (veja-se o prestígio dos grafistas) : uma em crise anterior, que mobilizou até o Presidente do FED americano para sua solução, e outra, na crise atual. Um outro exemplo de imperfeição no uso de pressupostos é negligenciar pura e simplesmente fatores que são importantes para determinar o preço de um derivativo ou que influenciam decisivamente na sua avaliação. É o já conhecido caso dos swaps de crédito(credit default swaps- CDS). Transcrevo trecho meu (novembro de 2008) da Carta Mensal nº 646 :”Os CDS são seguros de solvência dos devedores[de contratos de financiamento]. O seu preço de venda provinha de cálculos matemático-estatísticos quanto à probabilidade de não pagamento dos empréstimos subjacentes. Tais cálculos davam conforto às seguradoras quanto aos preços praticados no sentido de eles anularem ou superarem fluxos negativos de pagamentos de sinistros de crédito, Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 67 mantendo assim íntegros ou até mais lucrativos os prêmios recebidos das instituições[preços pagos pelos swaps].Nem sempre, contudo, os gênios da matemática captam por inteiro os fenômenos. Suas fórmulas podem omitir ponderações operacionais importantíssimas. No caso, as seguradoras tinham que aportar garantias (margens) às instituições, para proteger quanto a riscos de oscilações de preços dos papéis securitizadores. Quando os preços dos papéis securitizadores passaram a comandar deságios importantes e até extremados(pela deterioração do valor das hipotecas garantidoras dos empréstimos), o aporte de garantias adicionais passou a ter um custo pesado para as seguradoras. Além do mais, os títulos estavam registrados em seus balanços, onde deviam sofrer a devida marcação a mercado, depreciando considerávelmente seus ativos. Estes fatores de ponderação ignorados – aporte adicional de garantias, contabilização de aumento de exposição –não integraram os modelos matemáticos que serviram de base à precificação dos CDS, e, na realidade, simulações de situações de mercado como as que ocorreram certamente teriam desencorajado as seguradoras a entrar neste tipo de negócios que, afinal, funcionou como um encorajador importante para o sistema como um todo.” . Os preços de lançamentos dos CDS deveriam ter sido maiores. Conclusivamente, os riscos no mundo financeiro estão íntima mas subsidiariamente associados aos riscos em que incorrem pessoas que os admitem ou em que são levadas a incorrer, ao emitirem, fazerem circular ou regular instrumentos financeiros que incorporam principais e derivativos. Palestra proferida em 06 de outubro de 2009. 68 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 27-68, nov. 2009 Síntese da Conjuntura Evolução da crise cambial Ernane Galvêas Ex-Ministro da Fazenda A crise econômica iniciada nos Estados Unidos e estendida praticamente a todos os continentes, atingiu com mais força alguns países, no 4º trimestre de 2008 e 1º trimestre de 2009: Brasil -3,4% e -1,0%, Japão -3,0% e -3,1%, Alemanha -2,4% e -3,5%, Portugal -1,8% e -1,8% e França -1,4% e -1,3%, respectivamente. Entretanto, esses países saíram da crise, no 2º trimestre deste ano: Brasil +1,9%, Japão +0,6%, Alemanha +0,3%, Portugal +0,3% e França +0,3%. O PIB brasileiro, no 1º semestre deste ano, em relação ao mesmo período de 2008, ainda registra queda de -1,5% e a indústria -13,4%. Alguns países ainda não saíram da recessão e continuaram com o PIB negativo no 2º trimestre: México -1,1%, Espanha -1,0%, Reino Unido -0,7%, Itália -0,5% e Estados Unidos -0,3%. Em compensação, há países aos quais a crise não chegou e que no 2º trimestre continuaram em expansão: Índia + 6,7%, Coréia do Sul +2,6%, China +2,0% e Australia +0,6% (em relação ao trimestre anterior). Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 69-80, nov. 2009 69 Em agosto, as vendas no varejo, na China, cresceram +15,4% e a produção industrial +12,3% em relação ao mesmo mês de 2008. Um aspecto a lamentar na atual conjuntura é o recrudescimento da corrida armamentista, liderada pelos Estados Unidos, China, França, Venezuela, grande número de países africanos e, mais recentemente, o Brasil, empenhado na compra de submarinos atômicos e aviões de combate. Lamentável. Segundo Pesquisa Mensal do Emprego, do IBGE, a crise pouco afetou as classes de baixa renda no Brasil e, de acordo com a análise da FGV, enquanto as classes A e B (renda superior a R$ 4,8 mil) tiveram retração de 0,5%, em julho/junho 0,8%, a classe C (entre R$ 1,1 mil e R$ 4,8 mil) teve um crescimento de 2,5%. No mesmo período, a classe D (entre R$ 804 e R$ 1,1 mil) diminuiu 4,1%. Indicadores de produção industrial, vendas no varejo, licenciamento de carros, consumo de energia elétrica e fluxo de veículos nas estradas mostram que o desempenho da economia no terceiro trimestre será melhor do que o de abril a junho deste ano e do que o de igual período de 2008. Estimativas do mercado preveem que, de julho a setembro, o PIB nacional deva subir cerca de 3% ante o trimestre anterior e 0,5% sobre igual período do ano passado. ALERTA FISCAL Visivelmente, a situação fiscal no Brasil não é boa: o Governo, sistematicamente, gasta mais do que arrecada, expande as despesas correntes de custeio em um ritmo muito acima do crescimento do PIB e da inflação, investe muito pouco em projetos de infraestrutura 70 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 69-80, nov. 2009 e não economiza o suficiente para pagar os juros da dívida pública. Neste ano, até agosto, o superávit primário alcançou apenas R$ 43,5 bilhões, e os juros chegaram a R$ 108,3 bilhões, produzindo um déficit nominal de R$ 64,8 bilhões, comparados, respectivamente, com os seguintes resultados no mesmo período de 2008: R$ 102,9 bilhões, R$ 120,5 bilhões e R$ 17,6 bilhões. Em consequência, em relação a 31/12/2008, a dívida bruta do setor público, em oito meses, aumentou R$ 211,0 bilhões, dos quais R$ 136,2 bilhões, foram devidos à dívida mobiliária do Tesouro Nacional. Evidentemente, esse endividamento há de ter um limite, uma vez que não há mais espaço para aumentar a carga tributária, assim como não há disposição do Banco Central em buscar uma redução consistente da taxa de juros básica (SELIC). A falta de recursos fiscais disponíveis poderá dificultar o desenvolvimento da infraestrutura, principalmente de novos projetos de energia elétrica, investimentos no Pré-Sal e nos transportes, comprometendo os objetivos de um crescimento sustentável da economia nacional. A DESVALORIZAÇÃO DO DÓLAR O mundo acadêmico, liderado por Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia, anda excessivamente preocupado com a desvalorização do dólar e, em consequência, alimentando o debate sobre uma possível substituição do dólar americano como moeda de reserva e denominador comum das transações internacionais. Ao que tudo indica, trata-se de uma proposta sem sentido, na conjuntura atual, cuja discussão está gerando mais confusão e incertezas do que esclarecimentos para a concretização das medidas adotadas por diversos países para superar a crise mundial. Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 69-80, nov. 2009 71 Os Estados Unidos enfrentam grandes dificuldades na área econômica, com um déficit fiscal que deverá chegar a US$ 1,5 trilhão no final do ano (US$ 469 bilhões, em 2008) e um déficit no balanço de pagamentos de cerca de US$ 360 bilhões (US$ 200 bilhões com a China), financiados ambos, pelo aumento da dívida pública americana. Esse problema, visto do ângulo brasileiro, parece muito mais grave do que tem sido até aqui, basicamente porque a desvalorização do dólar frente à valorização do real assumiu uma proporção assustadora. No contexto mundial, a desvalorização do dólar está longe de assumir um nível crítico, como se pode ver pelo quadro abaixo, indicativo da paridade do dólar, no ano de 2009, até o mês de setembro: Valorização em 2009 em relação ao dólar, em % Real . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34,43 Dólar australiano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31,93 Rand africano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27,99 Peso chileno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14,27 Libra esterlina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8,81 Euro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5,38 Baht tailandês . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4,39 Peso mexicano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4,36 Franco suíço . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3,67 Yuan chinês . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 0,00 Ouro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15,70 Observa-se que, até setembro, em relação ao euro, a segunda moeda em importância, a desvalorização do dólar em nove meses foi de 72 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 69-80, nov. 2009 apenas 5,38%; em relação ao franco suíço 3,67%. Em relação ao ouro, uma onça-troy valia U$ 858,48, em janeiro/09, e em setembro podia ser comprada a U$ 993,00. Isto significa que o Real está absurdamente valorizado em 49,35% sobre o peso argentino, 35,93% em relação à Rússia, 33,93% ao Japão, 29,10% ao Euro. O mesmo não acontece em relação ao ouro: uma grama valia R$ 58,60, em janeiro/09, e atualmente pode ser comprada a R$ 56,70, uma valorização do real de apenas 3,25%. Pelo visto, é mais preocupante a valorização do real do que a desvalorização do dólar. O Brasil não esta administrando bem o mercado cambial e isso, com o tempo, poderá criar problemas para a economia nacional. O mercado de câmbio, no Brasil, está sendo comandado por uma colossal entrada e saída de capitais estrangeiros, inclusive de curto prazo, de caráter especulativo, atraídos pelo altos rendimentos financeiros, favorecidos não só pela isenção do Imposto de Renda, como pela isenção do IOF sobre os contratos de câmbio. O mínimo que o Governo deveria fazer para frear a escalada de valorização do real seria suspender essas isenções, por prazo indeterminado. Indústria Em agosto, a produção industrial cresceu 1,2%, em relação a julho, o oitavo aumento consecutivo. Entretanto, ante agosto/08 registra-se queda de -7,2% e resultado negativo no ano de -12,1%. Em relação a dezembro/08, a indústria registra uma recuperação de 13,5%. Apesar dessa recuperação parcial, houve recuo da 1,3% das horas trabalhadas, o que explica a queda de 3,3%, no mês, da massa salarial. Para os oito primeiros meses, ante o mesmo período de 2008, a queda é de 2,5%. Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 69-80, nov. 2009 73 A produção de bens de capital, que sinaliza o desempenho dos investimentos, aumentou 0,4%. Houve alta em bens intermediários (0,7%), bens de consumo duráveis (3,1%) e bens de consumo semi e não duráveis (0,6%). Empresas voltadas para o mercado interno produzem no mesmo ritmo de antes da crise e já retomam os investimentos. Segundo a FGV, os fabricantes de material de construção, bens de consumo duráveis e material de transporte estão utilizando quase 90% da capacidade instalada. Os segmentos agraciados com a redução do IPI lideram a retomada do investimento. Segundo a CNI, a utilização da capacidade instalada subiu para 80,1% em agosto, frente a 79,9% em julho e 79,6% em junho. No acumulado de janeiro a agosto, a indústria paulista registra queda de 13,1% na produção, ante igual período do ano passado e, em 12 meses, acumula recuo de 9,2%. A produção industrial aumentou em sete das 14 regiões pesquisadas pelo IBGE em agosto, com destaques para Pernambuco (7,4%), Espírito Santo (6%), Bahia (5,7%), Região Nordeste (3,9%), São Paulo (2,5%) e Rio Grande do Sul (1,9%) e Amazonas (1,2%). A produção teve variação zero em Minas Gerais e no Paraná e queda em Goiás (-6,5%), Pará (-2,8%), Santa Catarina (-1,7%), Ceará (1,1%) e Rio de Janeiro (-0,9). A produção de cimento e papelão ondulado – dois importantes indicadores da atividade econômica – registrou alta em setembro, de 1,9% e 5,05%, respectivamente, em relação a setembro/08. Também o consumo de energia elétrica, puxado pela indústria, subiu 3,8%. 74 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 69-80, nov. 2009 Comércio Em agosto, segundo a Fecomércio-SP, o varejo registrou alta de 3,3% ante o mesmo período de 2008. No acumulado dos oito primeiros meses do ano, a taxa de crescimento do setor foi de 0,7%. No Rio de Janeiro, segundo a Fecomércio-RJ, a alta foi de 1,6%. O Dia da Criança foi até agora a melhor data comemorativa de vendas para o varejo do ano, superando o Dia dos Pais, crescendo 8,2% sobre outubro/08, pelos dados da Serasa. Levantamento da Fecomércio-RJ com a ABIH revela que a ocupação dos hotéis no Rio, em julho, atingiu 70,88%. O turismo de negócios foi o principal responsável pela ocupação dos hotéis do Rio: 37,71%, seguido pelas viagens de passeio (33,08%). O mercado brasileiro de aviação registrou crescimento de 23,93% na movimentação de passageiros em setembro, ante o mesmo mês de 2008, segundo a Anac. A taxa média de ocupação subiu de 61,29% para 63,43%, em relação a setembro/08. Segundo a Equifax, o volume de cheques sem fundos emitidos em setembro registrou queda de 2,13% frente a agosto, a terceira baixa mensal consecutiva no País. Agricultura O IBGE divulgou projeção de colheita de 134,1 milhões de toneladas este ano, volume 8,1% menor do que a safra recorde do ano passado (146 milhões de toneladas). O trigo terá este ano produção 10,8% menor que a de 2008, totalizando menos da metade do consumo interno, que chega a 11 milhões de toneladas a cada ano. Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 69-80, nov. 2009 75 De acordo com a pesquisa, a soja deverá ter queda de 5,1% ante a safra anterior, enquanto no milho o recuo será de 13,4%. Já o arroz elevará a produção em 4,2%. Esses três produtos respondem por 81,3% da área plantada do País. As chuvas de setembro e outubro poderão prejudicar a florada do café, comprometendo a safra do ano que vem. As exportações do agronegócio atingiram US$ 5,75 bilhões em setembro, uma queda de 15,6% em relação a setembro/08. Nos últimos 12 meses, as exportações brasileiras do agronegócio totalizaram US$ 65,8 bilhões, queda de 7,1% em relação ao período de outubro de 2007 a setembro de 2008. Os países da Ásia e do Oriente Médio vêm ocupando posições de destaque no ranking de vendas do agronegócio neste ano, com um crescimento das exportações para essas regiões de 13,4% e 8,9%, respectivamente. O fato recente mais acintoso, na vida rural brasileira, foi a invasão pelo MST da fazenda Cutrale, em Borebi-SP, destruindo sete mil pés de laranja e depredando tratores e equipamentos agrícolas, além de furtos praticados nas casas dos colonos. Uma repetição do que o mesmo MST e a Via Campesina fizeram há algum tempo com as plantações e laboratórios da Aracruz, em Guaíba-RS, incluindo a destruição de computadores que armazenavam valiosas pesquisas agronômicas. O vandalismo contra a Aracruz permanece, até hoje, sem punição, sinalizando uma inaceitável conivência do Governo. O País espera que, desta vez, alguma coisa aconteça, mas a expectativa vai no sentido contrário, ou seja, a aprovação pelo Congresso dos novos índices de produtividade da Terra, negociado entre o Governo e o MST. 76 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 69-80, nov. 2009 Mercado de Trabalho O crescimento do emprego no mercado formal em setembro foi de 0,77%, em decorrência do 1,491 milhão de admissões no mês, enquanto os desligamentos ficaram em 1,238 milhão. Pelo oitavo mês consecutivo de saldo positivo no emprego com carteira assinada, foram geradas 252.617 vagas, de acordo com a Caged. O resultado foi o mais expressivo do ano e o segundo melhor para o período na série histórica, iniciada em 1992. Segundo o IBGE, o emprego na indústria subiu, 0,3% em agosto, em relação a julho, mas a CNI informa que esse aumento foi de 0,7%. Na mesma base de comparação, a folha de pagamento real da indústria caiu 0,4%, mas o número de horas pagas voltou a crescer (0,3%), após ficar estável em julho (0%). Em São Paulo, segundo a Fiesp, no acumulado dos primeiros nove meses, o nível de emprego aponta queda de 1,89%. Setor Financeiro O Governo continua estimulando vigorosamente a expansão do crédito. No início de outubro, o Banco do Brasil captou no exterior mais US$ 1,5 bilhão (O Tesouro tem US$ 230 bilhões de reservas cambiais!?) e a CEF recebeu do Governo mais R$ 6 bilhões, via títulos públicos. De acordo com dados do Banco Central, a caderneta de poupança teve captação líquida de R$ 3,510 bilhões, em setembro. Foi o quinto mês consecutivo que a poupança teve resultado positivo. O resultado reflete depósitos de R$ 84,861 bilhões e retiradas de R$ 81,351 bilhões. No acumulado do ano, a poupança atraiu R$ 15,728 bilhões líquidos. Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 69-80, nov. 2009 77 Os desembolsos do Banco do Brasil no crédito rural, no período julho/setembro, já são superiores em 51% ao mesmo período do ano passado. O BNDES já desembolsou R$ 1,6 bilhão para micro e pequenas empresas, até setembro. Está previsto o desembolso de R$ 1 bilhão para o setor hoteleiro. A CEF ampliará a oferta de empréstimos para R$ 70 bilhões, dos quais R$ 5 bilhões deverão ser aplicados em projetos de mobilidade urbana, com vistas à Copa de 2014, e R$ 20 bilhões para pequenas e médias empresas. Este ano já é o segundo melhor em captações com ações, desde 2004. Até o momento, 13 operações movimentaram R$ 35,9 bilhões. No ano passado inteiro, foram 12 colocações, que giraram R$ 32,2 bilhões. O número de falências decretadas bateu o recorde do ano em setembro, puxado por micro e pequenas empresas, segundo a Serasa. Inflação Os índices de inflação em setembro, mantiveram a tendência de baixa, em relação aos preços no varejo, e uma reversão no sentido de alta, no atacado.. O IPCA/IBGE subiu de 0,15% (agosto) para 0,24%, igual a julho, acumulando em 12 meses 4,34%. O IGP-DI cresceu 0,25%, a maior alta desde outubro de 2008. A taxa de câmbio continuou o curso de valorização iniciado em março, chegou a 5,74% em setembro, acumulando nesses nove meses -23,90%. Segundo a Fecomércio-SP, o valor da cesta básica de setembro subiu 0,23%, contra 0,64% em agosto. No Rio, a cesta básica teve aumento de 2,76% em setembro, mas continua negativa em -8,40% no acumulado do ano. A cesta básica registra queda em, praticamente, todas as capitais do País. 78 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 69-80, nov. 2009 Setor Fiscal A arrecadação federal caiu 10,59% no período janeiro/agosto 2009, basicamente em função da queda das atividades econômicas, inclusive importações, e das desonerações anticíclicas, que chegaram a R$ 17,3 bilhões, até agosto. Sobressai a expansão dos gastos com a contratação de pessoal para os três Poderes. Só este ano, já foram sancionadas 25 leis que aumentam as despesas com a criação de cargos e comissões. Entre 2003 e 2009, foram contratados 57,1 mil servidores. Na área de investimentos do PAC, o balanço realizado até agosto mostra que 50% do Orçamento foram desembolsados, o que significa atraso relevante. Os projetos de habitação e saneamento ganham mais espaço no PAC. Setor Externo A balança comercial brasileira acumula, no ano, até a segunda semana de outubro, um superávit de US$ 22,051 bilhões, 9% superior ao verificado no mesmo período de 2008. No ano, as exportações somam US$ 116,542 bilhões, uma queda de 25%. As importações somam, no ano, US$ 94,491 bilhões, uma queda de 30,2%. No período janeiro/setembro, as exportações de produtos industrializados, em dólares, caíram 31,7%. Do lado das importações, no período, houve queda de 19,8% em bens de capital, 31,7% em matérias primas e intermediários e 51,9% em combustíveis lubrificantes. Carta Mensal • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 69-80, nov. 2009 79 A distribuição das exportações por áreas geográficas mostra que houve queda de 28,8% para a União Européia, de 36,0% para a América Latina e Caribe (-39,3% para a Argentina) e de -46,6% para os Estados Unidos. De outro lado, cresceram 19,5% as exportações para a China. As reservas cambiais atingiram US$ 231,6 bilhões, em 10 de outubro, mas continuam sendo levantados empréstimos no exterior, inclusive pelo Banco do Brasil (US$ 1,5 bilhão). Na área internacional, permanece a situação de crise, especialmente nos Estados Unidos, onde o desemprego continua crescendo (mais 263 mil, em setembro). O PIB na Zona do Euro caiu 0,2% no 2° trimestre, mas as expectativas são positivas para o 3° trimestre. 80 C a r t a M en sa l • Rio de Janeiro, v. 55, n. 656, p. 69-80, nov. 2009