A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO TRATADO DE ROMA DE 1998 FRENTE À PENA DE PRISÃO PERPÉTUA** Bárbara Emanuelle Rocha Guimarães Nogueira* RESUMO: O Tribunal Penal Internacional representa grande avanço na Justiça Internacional. Entretanto, em face da Constituição brasileira, encontra um possível óbice ao seu pleno funcionamento, no que tange à previsão da pena de prisão perpétua no tratado internacional que institui a Corte. Necessário, então, analisar a existência de provável conflito entre as normas internacional e interna, apontado por parte da doutrina como obstáculo à adesão do tratado pelo Brasil, já que o mesmo não admite reservas. Esse caso levanta a polêmica discussão sobre a compatibilidade entre o texto Constitucional e o referido Tratado de Roma de 1998. Palavras-chave: Tribunal Penal Internacional. Estatuto de Roma. Direito Internacional. Direitos Humanos. Constituição Federal. Prisão perpétua. Conflito aparente. RÉSUMÉ: La Cour pénale internationale représente une avancée majeure dans la justice internationale. Toutefois, dans le visage de la Constitution brésilienne, est un obstacle possible à sa pleine exploitation, par rapport à la prédiction d'une condamnation à perpétuité dans un traité international instituant la Cour. Alors nécessaire d'analyser l'existence d'un conflit probable entre les règles nationales et internationales, nommé par la doctrine comme un obstacle au traité d'adhésion pour le Brésil, car il n'accepte pas les réservations. Cette affaire soulève la controverse au sujet de la compatibilité entre la Constitution et le Traité de Rome de 1998. Mots clés: Cour pénale internationale. Statut de Rome. Du droit international. Droits de l'Homme. Constitution fédérale. Emprisonnement à vie. Conflit apparent. *Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva. **Primeira versão deste artigo foi apresentada como Trabalho de Conclusão do Curso de Direito. 1 INTRODUÇÃO Em virtude da ocorrência de atrocidades que afrontam a vida e a dignidade humana, surgiu, em 1998 o Tribunal Penal Internacional - TPI, com sede em Haia, Países Baixos, sendo instituído pelo Estatuto/ Tratado de Roma. Sua criação foi fruto de um antigo anseio internacional e para sua concretização foram necessários intensos estudos e debates. Mas, apesar das dificuldades em função das divergências entre legislações internas de vários países, chegou-se a um consenso e estabeleceu-se a Corte, com crimes e penas de sua competência. O seu estabelecimento foi um marco mundial para os direitos humanos e ocasionou grande mobilização no direito internacional, razão pela qual o Brasil não poderia deixar de participar, passando o Tratado a vigorar em 2002. Além de a Constituição brasileira dar total prioridade aos tratados sobre direitos humanos, conforme art. 4º, a Emenda nº 45/04 veio acrescentar que o Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional ao qual aderir. A partir de então, questionamentos vêm sendo levantados acerca da compatibilidade entre a Constituição brasileira e o texto do Tratado, no que diz respeito à previsão da pena de prisão perpétua neste último. Essa questão não se encontra pacificada na doutrina pátria, fazendo-se necessária uma ponderação entre os diversos entendimentos e uma interpretação mais cautelosa das normas. Para a realização deste trabalho foi realizada pesquisa doutrinária e da legislação pertinente, adotando-se como marco teórico as obras das autoras Flávia Piovesan e Sylvia Steiner, no sentido de que a vedação constitucional da pena de prisão perpétua aplica-se tão somente ao legislador interno, não alcançando, portanto a jurisdição internacional do TPI. Além deste, existem subsídios suficientes para sustentar este posicionamento, como a prevalência dos direitos humanos e princípios correlatos, os quais serão singelamente expostos. 2 BREVE HISTÓRICO DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL O preceito da dignidade humana vem impulsionando a comunidade internacional a mobilizar-se de modo a concretizar a justiça com relação a crimes de repercussão internacional. Tanto que, atualmente, o direito penal internacional possui contornos nunca antes estabelecidos. Certo é que ainda requer desenvolvimento, mas já alcançou o que há muito se esperava: o estabelecimento de um órgão permanente de jurisdição internacional com caráter preventivo e punitivo, o Tribunal Penal Internacional – TPI. Entretanto, a criação deste órgão não foi rápida, nem simples. Episódios de crimes que se traduzem em verdadeiras atrocidades geraram o anseio de se criar um tribunal de julgamento internacional. Certamente este anseio explodiu quando do fim da II Guerra Mundial, quando se buscava uma maneira de responsabilizar criminalmente os indivíduos que praticaram o genocídio nazista na Europa. Para tanto, em 1945 foi criado provisoriamente o Tribunal de Nuremberg, através do Acordo de Londres. A concretização deste tribunal mostrou ser possível o estabelecimento de um órgão internacionalizado, abrindo precedentes para o TPI.1 Em 1946, por sua vez, criou-se o Tribunal de Tóquio, inspirado no Tribunal de Nuremberg, com o intuito de julgar os criminosos de guerra japoneses. Destaca-se o fato de que em ambos os tribunais ad hoc, houve evidente conveniência política, pois os países julgadores foram os vencedores da guerra, e os julgados, os perdedores. 2 Ainda assim, não se pode desprezar o fato de que essas experiências foram fundamentais para a criação do atual TPI, que, acredita-se, tem evoluído no sentido de independência política e democracia, principalmente em razão da possibilidade de julgamento igualitário para indivíduos comuns e oficiais, chefes de estado e demais superiores, que não gozam de imunidades. 1 LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. O Tribunal Penal Internacional: de uma cultura de impunidade para uma cultura de responsabilidade. Scielo. Estud. av., vol.16, n°45, São Paulo, Maio/Agosto 2002, texto digital. 2 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 47. Além destes dois tribunais tidos como precursores, mais recentemente foi criado também o Tribunal Penal para a ex-Iugoslávia, em 1993, com o objetivo de punir as brutalidades cometidas nos conflitos posteriores à Guerra Fria, principalmente a Guerra dos Bálcãs, desde 1991. Mesmo que relativamente tardio, o tribunal não deixou de significar resposta aos criminosos e uma negativa à degradação da vida. Por último, o Tribunal Penal Internacional para a Ruanda foi também criado em caráter de exceção em 1994, com a finalidade de julgar os crimes ocorridos em diversos conflitos sangrentos, em sua maioria, de natureza étnica, oriundos da guerra civil após a colônia africana se tornar independente da Bélgica. Os tribunais citados são exemplos de cortes penais internacionais criadas excepcionalmente após grandes guerras e conflitos, sendo, portanto, provisórios e alvos de críticas por desrespeitarem o princípio da legalidade penal. Entretanto os crimes contra a dignidade humana não cessaram, e, concomitantemente, deu-se o desenvolvimento de um direito humanitário de cunho mais preventivo, culminando na necessidade de se criar de um tribunal permanente, competente para julgar os crimes de proporções grandiosas que ocorressem após sua entrada em vigor, mas que também obedecesse ao devido processo legal. Diante de tal necessidade, realizou-se em 1998 a Conferência de Roma, ocasião em que 162 Estados-Membros das Nações Unidas deliberaram e acabaram por estabelecer o Estatuto de Roma, tratado que institui e regulamenta o Tribunal Penal Internacional, determinando as diretrizes básicas do mesmo. Em todo o seu conteúdo observa-se a intenção dos Estados em alcançar um convívio pacífico e primordialmente a preservação da vida humana. Traduz-se, portanto, numa tentativa de construir um sistema de justiça criminal a partir da junção de diversos países num documento mais ou menos aceitável para cada delegação presente em Roma. É notória ainda a adoção de um princípio norteador entre as relações dos países com o tribunal: o princípio da complementariedade. Tal princípio consiste em a atuação do TPI estar condicionada à inércia dos Estados nacionais, o que significa menor intervenção em jurisdições internas. Esta questão é relevante, uma vez que alguns países como os Estados Unidos não aprovaram o Estatuto, alegando ser este uma violação à sua soberania. Desta forma, “a consagração do princípio da complementariedade busca afastar este entendimento e reforçar a idéia de independência entre os Estados e o TPI”.3 O TPI, que possui sede em Haia – Países Baixos/Holanda e é composto por 18 juízes de nacionalidades distintas, possui competência para julgar crimes internacionais, que são os crimes contra a humanidade, crimes de guerra, genocídio e crime de agressão. As penas previstas no Estatuto são a de prisão por prazo determinado, pena de multa, perda de bens oriundos de crimes e a pena de prisão perpétua. Constata-se, portanto, que após diversas tentativas de se estabelecer uma corte internacional, essa antiga pretensão se concretizou. Apesar de possuir competência para julgar somente crimes cometidos nos territórios daqueles Estados-partes, ou por nacionais dos referidos Estados, o TPI vem efetivamente se firmando como uma significativa cooperação mundial para a manutenção da paz, segurança e bem-estar da humanidade. 3 O ESTATUTO DE ROMA 3.1 Principais Aspectos O Estatuto de Roma ou Tratado de Roma é o documento ou instrumento jurídico através do qual se instituiu o Tribunal Penal Internacional. Em 17 de julho de 1998, na Conferência de Plenipotenciários, em Roma, o Estatuto foi aprovado por 120 votos favoráveis, 07 contrários (China, Estados Unidos, Filipinas, índia, Israel, Sri Lanka e Turquia) e 21 abstenções. Desde 1948, com a adoção da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, era prevista a criação de uma corte penal internacional. Passados 50 anos, em 1998, foi, então, aprovado o Estatuto do TPI.4 O Estatuto foi fruto de constantes estudos por parte da Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas, que, desde 1995 organizou-se em dois comitês 3 REZEK, José Francisco. Direito internacional público. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 149. 4 PIOVESAN, 2007, p. 46. diplomáticos para a elaboração de um projeto, o que foi finalizado em 03 de abril de 1998. Iniciou-se, então, a Conferência Diplomática de Plenipotenciários, da qual participaram representantes de 162 Estados-membros das Nações Unidas, além de representantes de 260 organizações não-governamentais.5 O Estatuto é composto por 128 artigos, divididos em 13 partes: Parte 1: Estabelecimento do Tribunal (arts. 1-4) Parte 2: Jurisdição, admissibilidade e direito aplicável (arts. 5-21) Parte 3: Princípios gerais do direito penal (arts. 22-33) Parte 4: composição e administração do tribunal (arts. 34-52) Parte 5: Investigação e ajuizamento (arts. 53-61) Parte 6: o julgamento (arts. 62-76) Parte 7: Penas (arts. 77-80) Parte 8: Apelação e revisão (arts. 81-85) Parte 9: Cooperação internacional e assistência judicial (arts. 86-102) Parte 10: execução (arts. 103-111) Parte 11: Assembléia dos Estados (arts. 112) Parte 12: Financiamento (arts. 113-118) Parte 13: Cláusulas finais (arts. 119-128) Nos termos do Estatuto, o TPI é composto por 18 juízes de nacionalidades distintas, com notável conhecimento em Direito Penal e em Direito Internacional, eleitos pela Assembléia dos Estados-partes, com mandato único de 09 anos. É composto ainda por uma Presidência (responsável pela administração do tribunal), Câmara de Primeira Instância, Câmara de Apelação ou de Recursos, Câmara de Questões Preliminares, Cartório ou Secretaria (encarregada de aspectos não judiciais da administração do tribunal) e pela Promotoria - Ministério Público Internacional (órgão autônomo do 5 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. A Corte Criminal Internacional: possibilidades de adequação do Estatuto de Roma à ordem constitucional brasileira. Grupo Brasileiro da Associação Internacional de Direito Penal. Artigos. Dezembro, 2001, texto digital. tribunal, competente para receber as denúncias sobre crimes, examiná-las, investigá-las e propor ação penal junto ao tribunal).6 Ponto que possui especial relevância no Estatuto é a definição da jurisdição do TPI. Podem ocorrer dois vínculos jurisdicionais, de forma que o Tribunal terá jurisdição apenas se o Estado territorial ou o Estado do suspeito é signatário, ou se foi aceita sua jurisdição ad hoc. Esta última hipótese é previsão que “consiste em um instrumento de efetiva pressão para que países venham aceitar a jurisdição do TPI em casos de especial gravidade”.7 É importante ressaltar a consagração do princípio da complementariedade, que deverá nortear as relações entre a Corte e os Estados. De acordo com este princípio, trazer um caso ao TPI somente será possível quando tribunais nacionais estiverem pouco dispostos ou impossibilitados a proceder. Como mencionado por Flávia Piovesan, “o Tribunal Internacional surgiu, portanto, como um aparato complementar às cortes nacionais, ficando condicionado ao cumprimento de dois requisitos de admissibilidade, quais sejam: omissão ou incapacidade do sistema judicial interno”.8 Dispõe o Estatuto que o exercício da jurisdição internacional pode ser acionado mediante denúncia de um Estado-parte ou do Conselho de Segurança à Promotoria, ou pode esta agir de ofício, nos termos dos arts. 13 e 15. E, por fim, extrai-se do art. 27 que o Estatuto se aplica a todas as pessoas, sem distinção alguma baseada em cargo oficial. Sendo assim, seja a pessoa Chefe de Estado ou Chefe de Governo, não eximirá de forma nenhum a sua responsabilidade criminal, tampouco importará redução de pena.9 Além destes aspectos mencionados, o Estatuto de Roma dispõe sobre princípios gerais, regras de direito material e processual, define os crimes e penas de sua competência e contém as diretrizes no tocante à administração do TPI. Contudo, desde sua 6 ABREU, Marcelo Luís. Uma análise do Tribunal Penal Internacional e da sua efetividade perante a Constituição Federal Brasileira. Universidade Federal da Bahia – Faculdade de Direito da UFBA, p. 03, 2004, texto digital. 7 AMBOS, Kai; CHOUKR, Fauzi Hassan. Tribunal Penal Internacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p.8. 8 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 226. 9 Ibid., p. 227 implementação no Brasil, tem sido alvo de estudos e críticas10, ante determinados pontos conflitantes, como a extradição, a ausência de coisa julgada e a previsão da pena de prisão perpétua. O objeto do presente trabalho, entretanto, é limitado à análise da previsão da pena de prisão perpétua no Estatuto, tendo em vista sua vedação constitucional no direito interno. 3.2 A Ratificação sem reservas Dispõe o artigo 120 do Estatuto sobre a impossibilidade de reservas em sua ratificação. Conforme a alínea „d‟ do art.1° da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, reserva significa uma declaração unilateral, qualquer que seja a sua redação ou denominação, feita por um Estado ao assinar, ratificar, aceitar ou aprovar um tratado, ou a ele aderir, com o objetivo de excluir ou modificar o efeito jurídico de certas disposições do tratado em sua aplicação a esse Estado. Assim, inevitável a demora de alguns países para a total adesão, a exemplo do Brasil, que, embora tenha assinado o Tratado em fevereiro de 2000, ratificou somente dois anos mais tarde, através do decreto n° 4.388/02. Tal demora se justifica principalmente no estudo sobre a existência de possíveis divergências entre o diploma internacional e o direito interno. A ratificação sem reservas, significando a plena vigência do tratado, mantém o propósito do mesmo e firma o posicionamento do Estado-parte. Nesse raciocínio: O impedimento de uma ratificação com reservas é uma ferramenta eficaz para a perfeita atividade e funcionamento do tribunal. Nesta ótica, especialmente com relação a tratado de direitos humanos, não há dúvidas de que a ausência de reservas contribui para a total inserção do país na sistemática internacional.11 10 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O Tribunal Penal Internacional: integração ao direito brasileiro e sua importância para a justiça penal internacional. Revista de Informação Legislativa, v. 41, n. 164, p. 157-178, out./dez. de 2004, texto digital. 11 FERREIRA, Vanessa de Matos. A origem e evolução da instituição de uma jurisdição penal internacional de caráter permanente – de Nuremberg a Roma. Revista Eletrônica Mensal do Curso de Direito da UNIFACS, Salvador, p. 12, 2007, texto digital. A elaboração do Estatuto foi extremamente debatida. O tratado não foi, portanto, fruto de uma imposição, mas sim de uma negociação prévia, um verdadeiro trabalho diplomático, partindo da integração entre os Estados. É essencial que o direito internacional e o direito interno se integrem eficazmente na proteção dos direitos do homem. Por esta razão, incluiu-se no Estatuto uma série de garantias do devido processo legal, a fim de enquadrá-lo nas novas perspectivas relativas aos direitos humanos, abrangendo, assim, o maior número de países possível, sem a utilização de reservas. Há quem sustente que a vedação à formulação de reservas pode provocar inúmeras conseqüências, ao se impossibilitar a adequação do Estatuto ao ordenamento interno, já que as reservas são o meio convencional de solucionar eventuais conflitos.12 Entretanto, merece atenção o fato de que atualmente, o Brasil está caminhando em sentido oposto, não somente ao eliminar reservas, mas também ao rever determinadas declarações no sentido de restringir o alcance daquelas já previstas em tratados de direitos humanos. É imperioso acreditar que o reconhecimento da jurisdição internacional, bem como do seu monitoramento, sem limitar sua atuação, é parte da integração do país no sistema internacional, facilitando o cumprimento das disposições dos tratados. A própria Declaração de Viena de 1993, em seu §26, encoraja os Estados a evitar, tanto quanto possível, a formulação de reservas aos instrumentos de direitos humanos. O Programa de Ação de Viena, por sua vez, em seu §5°, recomenda aos Estados que considerem a possibilidade de limitar o alcance de quaisquer reservas que porventura tenham adotado em relação aos instrumentos internacionais de direitos humanos, orientando também os Estados a formular tais reservas de forma mais precisa e estrita possível, reconsiderando-as regularmente com vistas a eliminá-las.13 O Brasil vem adotando essa postura, uma vez que não elaborou nenhuma reserva ou declaração restritiva quando da ratificação dos seguintes tratados: Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Convenção Contra a Tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, Pacto Internacional dos Direitos Civis e 12 13 ABREU, 2004, p.10, texto digital. PIOVESAN, 2009, p. 290. Políticos e Convenção sobre os Direitos da Criança. Assim, o reconhecimento sem reservas do Tribunal Penal Internacional veio consolidar a postura renovada do Brasil em relação à jurisdição internacional de proteção aos direitos humanos.14 E nem haveria razões para formular reservas, já que o Estatuto é orientado basicamente pelos mesmos princípios norteadores da Constituição Federal. A nossa Carta Magna traz como fundamento, em seu art. 1º a dignidade da pessoa humana, trazendo, ainda, em seu art. 4º, como princípio regulamentar das relações internacionais, a prevalência dos direitos humanos. Está, portanto, em consonância com o Estatuto, que visa pôr fim à impunidade de autores de crimes que constituem ameaça à humanidade. 4 O ESTATUTO DE ROMA ENQUANTO TRATADO DE DIREITOS HUMANOS Nas últimas décadas houve um expressivo avanço no âmbito dos Direitos Humanos, partindo de uma nova concepção desses direitos. Os direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução15, por isso tem-se uma nova idéia de direitos humanos a cada espaço de tempo. No cenário da segunda guerra, marcado pela descartabilidade da pessoa humana, em que vigia a lógica da destruição, a barbárie do totalitarismo significou a ruptura do paradigma dos direitos humanos. O pós-guerra, então, deveria ser um período de reconstrução desses direitos. Nesse sentido, Flávia Piovesan afirma que: O moderno Direito Internacional dos Direitos Humanos é um fenômeno do pós-guerra. Seu desenvolvimento pode ser atribuído às monstruosas violações de direitos humanos da Era Hitler e á crença de que parte destas violações poderia ser prevenida se um efetivo sistema de proteção internacional de direitos humanos existisse. 16 A chamada concepção contemporânea de direitos humanos foi introduzida pela Declaração Universal de 1948 e reiterada pela Declaração Universal de Direitos Humanos de Viena de 1993. A partir de então, iniciou-se a tentativa de reconstrução dos 14 PIOVESAN, 2009, p. 293 PIOVESAN, 2007, p. 09. 16 Ibid., p. 12. 15 direitos humanos na ordem internacional, vindo a surgir o Direito Internacional dos Direitos Humanos - DIDH. Uma das principais preocupações deste movimento foi converter os direitos humanos em tema de legítimo interesse da comunidade internacional, o que implicou os processos de universalização e internacionalização desses direitos. Estes movimentos levaram à formação de um sistema normativo internacional de proteção de direitos humanos, integrado por tratados internacionais de proteção que refletem, sobretudo, a consciência ética contemporânea compartilhada pelos Estados, sempre adotando o valor da primazia da pessoa humana. Assim, “a sistemática internacional, como garantia adicional de proteção, institui mecanismos de responsabilização e controle internacional acionáveis quando o Estado se mostra falho ou omisso na tarefa de implementar direitos e liberdades fundamentais”.17 Se de um lado emergia um sistema internacional de proteção aos direitos humanos, de outro lado emergia uma nova feição do direito constitucional ocidental, aberto a princípios e valores, com ênfase no valor da dignidade humana. Começa-se a fortalecer a idéia de que a proteção dos direitos humanos não deve reduzir-se ao domínio reservado ao Estado, porque revela tema de legítimo interesse internacional. O que importa duas conseqüências: a revisão da noção tradicional de soberania absoluta do Estado, passando-se a admitir intervenções no plano nacional em prol dos direitos humanos, e também a idéia de que o indivíduo, assim como op Estado, deve ter direitos protegidos na esfera internacional, na condição de sujeito de direitos.18 Atualmente, reforça-se a idéia de que o Direito Internacional dos Direitos Humanos deve ser um paradigma. Para Eduardo Bittar: Ao se adentrar o século XXI, deve-se saber que a vida humana é “sagrada” para o Direito. Em outras palavras, qualquer violação daqueles direitos existentes pelo mero fato de o ser humano nascer com vida, representa um atentado contra o próprio Direito da sociedade universal. Um projeto cosmopolita que se queira legítimo, sustentável e razoável como solução para diversos dos dilemas da vida contemporânea, deve, portanto, passar pela 17 18 PIOVESAN, 2009, páginas 341e 342. Id., 2007, p. 12. discussão e compreensão do que seja o estatuto da pessoa humana a partir do DIDH.19 Neste contexto, vale lembrar que o primeiro tratado internacional de direitos humanos aprovado no âmbito da ONU foi a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, em 1948. Em seu art. 6°, já era prevista a criação de uma Corte internacional para o julgamento do crime de genocídio, desde então considerado crime que afrontava a ordem internacional. Mais tarde, em 1993, o Programa de Ação de Viena, em seu parágrafo 92, ressaltou a importância de um sistema internacional de justiça para o julgamento de graves violações de direitos humanos, dispondo o seguinte: A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos recomenda que a Comissão dos Direitos Humanos examine a possibilidade de melhorar a aplicação dos instrumentos de direitos existentes em níveis internacional e regional e encoraja a Comissão de Direito Internacional a continuar seus trabalhos visando ao estabelecimento de um tribunal penal internacional. Assim, nota-se que já existia um incentivo por parte deste sistema internacional, no sentido de se criar uma Corte Internacional, o que significaria uma grande conquista no Direito Internacional dos Direitos Humanos. Especialmente, porque esta Corte teria o traço diferenciador da garantia destes direitos. Flávia Piovesan ensina que as atividades internacionais na área dos direitos humanos podem ser classificadas em três categorias: promoção, controle e garantia.20 Até a aprovação do Estatuto de Roma o sistema global de proteção só compreendia as atividades de promoção e controle dos direitos humanos, não dispondo de um aparato de garantia desses direitos. O Estatuto, então, ao instituir o Tribunal Penal Internacional, buscou trazer garantias até então inexistentes, equacionando o direito à justiça, o fim da impunidade e a soberania do Estado, à luz dos princípios da complementariedade e da cooperação. As graves violações a direitos humanos perpetrados no âmbito interno de um Estado passaram a 19 BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia do Direito. 5ª Ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 587. 20 PIOVESAN, 2009, p. 224. demandar uma resposta internacional, já que na ordem contemporânea, inadmissível é o silêncio e a indiferença da comunidade internacional em face de tais atrocidades. 21 Neste cenário, o Estatuto de Roma se impõe como um legítimo tratado de direitos humanos, simbolizando um avanço extraordinário, ao celebrar a esperança por justiça e pelo combate à impunidade dos mais graves crimes. Além disso, as disposições do Estatuto demonstram a preocupação da comunidade internacional pelo estabelecimento de um devido processo legal, que possibilitaria a adequada investigação, processamento e condenação dos responsáveis pelos crimes descritos. Um dos mais importantes fatores, que força o reconhecimento do Estatuto como um tratado de direitos humanos, é que os crimes elencados no Estatuto protegem bens jurídicos considerados direitos humanos mencionados em diversos textos internacionais. Assim, o Estatuto de Roma insere-se neste contexto de busca da punição dos responsáveis por violações de direitos humanos, estando em plena sintonia com o Direito Internacional dos Direitos Humanos, devendo ser visto como mais um instrumento jurídico do sistema internacional de proteção. 4.1 Status normativo do Tratado no ordenamento jurídico brasileiro Inicialmente, vale dizer que a Constituição de 1988 - CR/88, como marco jurídico da transição ao regime democrático, alargou significativamente o campo dos direitos e garantias fundamentais, repousando na dignidade da pessoa humana, ou seja, na concepção que faz a pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado.22 Então, todas as questões atinentes à dignidade da pessoa humana passaram a ser tratadas com maior afinco desde então. Conforme já mencionado, a partir do pós-guerra, no âmbito do Direito Constitucional ocidental, foram adotados textos constitucionais abertos a princípios, com destaque para o valor da vida humana. No caso do Brasil, a CR/88 reflete uma mudança 21 22 Ibid., p. 229. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23ª Ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 24. paradigmática, notando-se uma transição de um direito inspirado pela ótica do Estado, para um direito focado nos direitos do cidadão. Nas suas relações internacionais, conforme o art. 4° da CR/88, o Brasil se rege pelos seguintes princípios: - Independência Nacional - Prevalência dos Direitos Humanos - Autodeterminação dos povos - Não-intervenção - Igualdade entre os Estados - Defesa da paz - Solução pacífica dos conflitos - Repúdio ao terrorismo e ao racismo - Cooperação entre os povos para o progresso da humanidade - Concessão de asilo político Trata-se de uma inovação significativa, pois até então, nas constituições anteriores a 1988, ao estabelecer tratamento jurídico às relações internacionais, limitava-se a assegurar os valores da independência e soberania do país, ou se restringiam a proibir a guerra de conquista e a estimular a arbitragem internacional, ou se atinham a prover a possibilidade de aquisição de território, de acordo com o Direito Internacional Publico, ou por fim, reduziam-se a propor a adoção de meios pacíficos para a solução de conflitos. Com relação aos tratados internacionais, a CR/88 trouxe toda uma sistemática, dispondo que os tratados internacionais demandam ato complexo no qual se integram a vontade do Presidente da República, que celebra o tratado, e a do Congresso Nacional, que aprova, mediante decreto legislativo. Não gera efeitos a simples assinatura de um tratado se não for referendado pelo Congresso Nacional, já que o Poder Executivo só pode promover a ratificação depois da aprovação do Congresso Nacional. Por fim, ratificado pelo Presidente da República, passa o tratado a produzir seus efeitos.23 23 PIOVESAN, 2009, páginas 38 e 48 A CR/88, em seu art. 5°, §2°, consagra que os direitos e garantias nela expressos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a Republica Federativa do Brasil seja parte. Desta forma, está a incluir no catálogo de direitos constitucionalmente protegidos, os direitos enunciados nos tratados internacionais em que o Brasil seja parte, o que implica a incorporação pelo texto constitucional de tais direitos. Para Flávia Piovesan “essa conclusão vem de uma interpretação sistemática e teleológica do texto, especialmente em face da força expansiva dos valores da dignidade humana e dos direitos fundamentais, como parâmetros axiológicos a orientar a compreensão do fenômeno constitucional”.24 Atualmente, com a graduação da mentalidade em relação aos direitos humanos, pretende-se dar às normas de direitos humanos provenientes de tratados internacionais, o seu devido valor. O que se observa na maior parte da doutrina é que não mais admitem a equalização dos tratados com a legislação ordinária do país, ao contrário, desejam ver aqueles compromissos internacionais igualados à Constituição do Estado. Assim, a novidade do art. 5° da CR/88 consiste no acréscimo ao elenco dos direitos constitucionalmente consagrados, dos direitos e garantias expressos em tratados internacionais sobre proteção internacional dos direitos humanos em que o país é parte. Como bem menciona Valério Mazzuoli: É alentador que as conquistas do Direito Internacional em favor da proteção do ser humano venham projetar-se no Direito Constitucional, enriquecendo-o e, demonstrando que a busca de proteção cada vez mais eficaz da pessoa humana encontra guarida nas raízes do pensamento tanto internacionalista quanto constitucionalista.25 Em favor da hierarquia constitucional dos tratados de direitos humanos no Brasil, acrescenta-se o argumento da natureza materialmente constitucional dos direitos fundamentais. Neste sentido é o entendimento de Flávia Piovesan26, ao afirmar que ainda que estes direitos não sejam enunciados sob a forma de normas constitucionais, 24 Ibid., p. 52 e 54. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direito Internacional: tratados e Direitos Humanos Fundamentais na Ordem Jurídica Brasileira. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002, p. 09 26 PIOVESAN, 2009, p. 70. 25 mas sob a forma de tratados internacionais, a Carta lhes confere o valor jurídico de norma constitucional, já que preenchem e complementam o catálogo de direitos fundamentais previstos pelo texto constitucional. Desse modo, tem-se que os direitos constantes de um tratado internacional sobre direitos humanos passam a integrar o catálogo de direitos constitucionalmente protegidos. Há que se enfatizar que os demais tratados internacionais de direitos humanos, internalizados sem quorum qualificado têm força hierárquica infraconstitucional, embora supralegal. Esse tratamento diferenciado com relação aos tratados de direitos humanos justifica-se na medida em que estes apresentam caráter especial, distinguindo-os dos comuns. Enquanto estes buscam o equilíbrio entre os Estados-partes, aqueles transcendem os meros compromissos recíprocos entre os Estados pactuantes, objetivando a salvaguarda dos direitos do ser humano, e não das prerrogativas do Estado.27 Com o advento da Emenda n°45/2004, surgiram duas categorias de tratados internacionais para a proteção de direitos humanos: os materialmente constitucionais e os material e formalmente constitucionais. Para que um tratado internacional de direitos humanos seja recepcionado formalmente como norma constitucional, deve obedecer ao iter previsto no novo §3° do artigo 5°. Mas frise-se que todos os tratados internacionais de direitos humanos são materialmente constitucionais, por força do §2° do art. 5°, e poderão acrescer a qualidade de formalmente constitucionais, equiparando-se às emendas à Constituição, no âmbito formal.28 Portanto, para que um tratado tenha status de norma constitucional, não basta que verse sobre direitos humanos, é necessário também que seja aprovado pelas duas casas do Congresso Nacional com quorum de 3/5 dos votos dos respectivos membros do Congresso. Não bastasse esse tratamento extraordinário, tem-se entendido que os tratados internacionais de direitos humanos têm aplicação imediata. A incorporação automática destes tratados traz algumas conseqüências muito importantes: primeiro, permite ao particular a invocação direta dos direitos e liberdades internacionalmente assegurados e, por outro, proíbe condutas violadoras destes direitos. Conseqüentemente, a partir da 27 28 TRAVIESO, Juan Antonio, p. 90. apud PIOVESAN, 2009, p. 65. PIOVESAN, 2009, p. 77. entrada em vigor do tratado, toda norma preexistente que seja com ele incompatível perde automaticamente a vigência. Neste raciocínio, com o ato da ratificação, a regra internacional passa a vigorar de imediato tanto na ordem jurídica internacional como na interna. Essa sistemática reflete a concepção monista, pela qual o Direito Internacional e o direito interno compõem uma mesma unidade.29 Pelo exposto, entende-se que, acompanhando o fenômeno da constitucionalização dos direitos humanos, atualmente no Brasil o status normativo dos tratados internacionais sobre direitos humanos é de norma constitucional, inseridos no rol dos direitos protegidos na Constituição. 5 CRIMES E PENAS DE COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL 5.1 Crimes Por ser uma Corte especial, o TPI julgará somente aqueles crimes mais graves, que representam verdadeiro horror e clamam resposta mais rígida. Definiu-se a competência material do TPI para julgar os crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão. Nos artigos subseqüentes o Estatuto define os três primeiros crimes, indicando as situações que os configuram. Entretanto, o artigo não define o crime de agressão, que, conforme o art. 5°, 2, do Estatuto, poderá ser definido após sete anos em vigor do Estatuto, possibilitando emendas ao Tratado em decorrência de reunião dos Estados partes. Entende-se como crime de genocídio, quando qualquer dos atos enumerados no art. 6° é praticado com a intenção de destruir total ou parcialmente um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Os atos são homicídio de membros do grupo; ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo; ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo; sujeição intencional do grupo a condições de vida pensadas para provocar a sua destruição física, total ou parcial; imposição de medidas 29 Ibid., p. 86. destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo. Já os crimes contra a humanidade se dão quando praticados como parte de um ataque generalizado ou sistemático, contra uma população civil e com conhecimento de tal Ataque, estando os atos que configuram os respectivos crimes enumerados no extenso rol do art.7°, como homicídio, extermínio, escravidão, tortura, qualquer violência no campo sexual, crime de apartheid, dentre outros. Os crimes de guerra são definidos como sendo violações graves das Convenções de Genebra de 1949, com amplo rol de situações de subsunção no art. 8°, como tomada de reféns, atacar ou bombardear, por qualquer meio, aglomerados populacionais, habitações ou edifícios que não estejam defendidos e que não sejam objetivos militares, atos de violência contra a vida e contra a pessoa, em particular o homicídio sob todas as suas formas, as mutilações, os tratamentos cruéis e a tortura, dentre outros. A definição destes crimes não evita, no entanto, a possibilidade de os Estados signatários incluírem outros crimes na competência da Corte por meio de Emenda, conforme disposto no art. 121 do Estatuto.30 Assim, após sete anos os Estados podem deliberar sobre o assunto, pugnando pela inclusão de novos crimes, observada a natureza dos mesmos. 5.2 Penas O Estatuto prevê como regra, a pena máxima de 30 anos, admitindo, excepcionalmente, a prisão perpétua, quando justificada pela extrema gravidade do crime e pelas circunstâncias pessoais do condenado, nos termos do art. 77. O Tribunal também poderá impor sanções de natureza civil, determinando o pagamento de multa, a perda de produtos provenientes de crime, e a reparação às vítimas e aos familiares, conforme o art. 75. 30 AMBOS, Kai; CHOUKR, Fauzi Hassan, 2000, p.195. Quanto à individualização da pena, o Estatuto traz, em seu art. 78, as regras de procedimento, indicando os elementos que devem nortear o juiz naquele momento. Dentre eles, deve o magistrado observar a existência de circunstâncias agravantes e atenuantes, a conduta do condenado após a prática do crime, incluindo seus esforços para compensar as vítimas ou qualquer cooperação com o Tribunal, a extensão dos danos causados, em particular o mal causado às vítimas e seus familiares, a natureza do comportamento e os meios empregados para a execução do crime.31 A execução das penas está devidamente regulada na parte 10 do Estatuto. Dispõe, basicamente, que a sentença de prisão deve ser cumprida no Estado designado pela Corte a partir de uma lista a ela seu interesse em aceitar o condenado e a obrigatoriedade de um tratamento prisional de acordo com os padrões estabelecidos em tratados atinentes à matéria. Alguns Estados expressaram a sua visão no sentido de que, em determinados casos, somente a pena de morte poderia fazer frente à gravidade dos crimes previstos no TPI, sob o argumento de que seria inaceitável que os criminosos tivessem tratamento mais brando da Corte do que teriam na jurisdição nacional. Entretanto, a maioria das delegações se opôs firmemente a este entendimento. Assim, pena de morte não foi adotada pelo TPI, embora o art. 80 deixe bem claro que a aplicação do Estatuto não interferirá na aplicação das penas das legislações internas. Sendo assim, caso um país preveja em seu ordenamento a pena de morte para algum dos crimes abrangidos pela Corte, será aplicado o direito interno, ainda que mais benéfica a legislação do TPI, e tudo isso, considerando os princípios da complementariedade e subsidiariedade. Dentre as penas previstas no Estatuto, a mais gravosa é, sem dúvidas a pena de prisão perpétua. A pena suscitou grandes discussões antes de ser definitivamente inserida, e até hoje continua a ser o ponto mais polêmico do Estatuto, tendo em vista que não é aceita por alguns Estados membros, como o Brasil, cujas penas adotadas em seus ordenamentos internos são mais brandas. 31 OLIVEIRA, Francisco Antônio Alves. A pena de prisão perpétua do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional e a Constituição Brasileira. Brasília: Universidade Católica de Brasília, 2006. Dissertação de Mestrado – Programa de Pós Graduação stictu sensu em Direito Internacional da Universidade Católica de Brasília, Brasília, p. 28, 2006, texto digital. 6 A PENA DE PRISÃO PERPÉTUA COMO POSSÍVEL OBSTÁCULO À CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO TRATADO DE ROMA 6.1 A pena de prisão perpétua: breves considerações A pena de prisão perpétua pode ser compreendida como a privação do direito de liberdade até a morte do condenado. Assim, afasta o indivíduo da sociedade, privando-o não apenas da liberdade, mas de qualquer perspectiva de liberdade. Há que se compreender que cada ordenamento jurídico possui um histórico do Estado, inserindose ali aspectos políticos, culturais e religiosos. Em virtude disso, a tipificação dos crimes é tão variada, de forma que cada sociedade exprime a sua concepção de gravidade, crueldade e justiça. São numerosos os países em que a pena de prisão perpétua é considerada cruel e desprovida de função reeducadora, razão pela qual tem sido proibida por diversos textos constitucionais, como ocorre na Espanha, Costa Rica, México, Venezuela e no Brasil. No entanto, em outros países ocidentais, como Estados Unidos, Canadá, Itália, Suécia e Austrália, a pena é adotada e normalmente aplicada, especialmente com relação a assassinatos e crimes abarcados por circunstâncias agravantes. A pena também é bastante aplicada em substituição à pena de morte, como ocorre no Reino Unido, se uma mulher condenada se encontrar grávida, por exemplo. Na maioria dos casos é possível pleitear a liberdade condicional após determinado tempo de prisão, conforme dispuser a legislação. Nestes países32 prevalece o entendimento de que a prisão perpétua é a única medida eficaz para assegurar que os condenados não voltem a praticar aqueles delitos, sobre os quais deve se impor a pena perpétua em virtude da extrema gravidade e ameaça social. No Oriente, Ásia e África, por sua vez, a pena possui maior aceitação, inclusive, em casos de crimes que não envolvem diretamente a vida, considerando especialmente a 32 MENEZES, Fábio Victor de Aguiar. PETIÇÃO 4.625-1-República do Sudão e a pena de prisão perpétua no Tribunal Penal Internacional: aspectos Constitucionais. Portal Dr. Luiz Flávio Gomes. Artigos Direito Internacional Público e Privado, São Paulo, 2009, texto digital. forte influência da religião e o conservadorismo. Citem-se como exemplos o Taiwan33, onde se aplica a pena perpétua aos condenados por crime de corrupção, o Paquistão34, onde a pena se aplica aos condenados por crime de blasfêmia contra Maomé e diversos países da África35 cujas leis prevêem a pena aos condenados pela prática das condutas tipificadas como adultério e homossexualismo. Atualmente, de forma geral, é crescente o fenômeno da humanização dos direitos36, inclusive o penal, razão pela qual as penas tendem a se tornar menos severas com o passar dos anos, e conseqüentemente, abolidas as penas de morte e perpétua. Este movimento, adotado principalmente por países democráticos, apregoa que a pena perpétua é uma violência e não traz a resposta necessária à criminalidade, incompatível, portanto, com o Estado Democrático de Direito. Não obstante, ainda é forte o número de Estados favoráveis à pena, que por eles é reconhecida como medida para inibir os crimes por considerados hediondos em seus ordenamentos, com a finalidade de manutenção da ordem social e da paz. O presente trabalho não tem a pretensão de realizar um juízo de valor acerca da pena perpétua, ou discutir se é uma pena justa, cruel ou eficaz. Delimitaremos-nos tão somente à análise da possibilidade jurídica da total adoção do Tratado de Roma pelo Brasil, tendo em vista que essa pena é proibida pela Lei Maior do país. 6.2 A pena de prisão perpétua e o Tribunal Penal Internacional Conforme informações disponibilizadas pela Corte37, até outubro de 2010, 114 países figuravam como Estados-partes no Tratado, lembrando que o mesmo inadmite reservas. Assim, todos estes países aceitaram em sua totalidade as suas disposições. Sem dúvidas, a previsão da pena de prisão perpétua, no art. 77, 1.b, do Estatuto é a mais complexa, 33 MARGOLIS, Mac. Corte de Taiwan sentencia ex-presidente à prisão perpétua. Jornal Estadão, São Paulo, 11 de setembro de 2009, texto digital. 34 FELLET, João. Paquistão condena pai e filho à prisão perpétua por desrespeito a Maomé. BBC Brasil, Brasília, 12 de janeiro de 2011, texto digital. 35 DIAS, Felipe. Homossexualismo é crime. O livro de Hélio, São Paulo, 01 de abril de 2011, texto digital. 36 VIEIRA, Fernando Zan. A humanização do Direito Penal. Universidade Estadual de Ponta Grossa, Lumiar: Revista de Ciências Jurídicas, vol. 1, n° 1, 2007, texto digital. 37 INTERNATIONAL CRIMINAL COURT. The States Parties to the Rome Statute. 2010, texto digital. tendo em vista a eventual divergência com as legislações internas. Por este motivo, passou a ser objeto de estudo de vários internacionalistas, constitucionalistas e penalistas. Por ser questão tão sensível, a inclusão da pena no Estatuto foi decidida em meio a intensas discussões quando da Conferência de Roma. Inicialmente, é necessário sempre ter em vista que estamos abordando um tratado de direitos humanos, ou seja, possui este especial relevância dentre os demais. Os crimes nele previstos são aqueles internacionalmente considerados gravosos, muitas vezes pela força de armas, e que em sua natureza apresentam direta ofensa à vida e os direitos fundamentais protegidos pelo direito internacional. Portanto, seu impacto sobre o mundo é peculiar, sendo realmente necessários toda cautela e debate acerca dos crimes e penas por ele abrangidos. Na referida Conferência de plenipotenciários formaram-se basicamente 03 grupos: o primeiro, composto por diversos países e liderado pelo Canadá e Austrália, o segundo, composto pelos membros permanentes do Conselho de Segurança. O terceiro grupo era formado em sua maioria por países da América Latina, posicionando-se fortemente a favor da pena de morte nos crimes de guerra38, não obtendo, porém, êxito. A inexistência da previsão da pena de morte teria levado a Comissão de Direito Internacional da ONU a incluir a pena de prisão perpétua como forma de compensar essa ausência, injustificável para os países assentados no sistema da common law, que defendiam ser a pena capital justa e necessária para dar credibilidade à Corte. Apesar da oposição de uma minoria dos países baseados na civil law, como o Brasil, guiados por outra concepção de pena, prevaleceu a previsão da pena perpétua em lugar da pena de morte.39 Assim, a pena de prisão perpétua foi legitimamente adotada pelo Estatuto, como meio de se evitar a inclusão da pena de morte. Mas somente será aplicada frente à situação excepcional, a ser verificada ante as circunstâncias caracterizadoras do elevado grau de 38 CARVALHO, Luiza Starling; ARAUJO, Priscilla Clementino de. O Tribunal Penal Internacional e o Princípio da Responsabilidade Penal Internacional Individual. Revista Eletrônica de Direito Internacional do Centro de Direito Internacional-CEDIN, Belo Horizonte, v. 5, 2º semestre, 2009, texto digital. 39 ANDRADE, Isabela Piacentini de. O Tribunal Penal Internacional e a Constituição. Escritório on line, Brasília, 20 de outubro de 2000, texto digital. ilicitude do fato e as condições pessoais do condenado. Portanto, ficou restringida a casos de extrema gravidade, e ainda assim, com possibilidade de revisão e redução depois de decorridos 25 anos, nos termos do art. 110. Esta possibilidade de revisão foi crucial para que se chegasse a um consenso. 6.3 A pena de prisão perpétua e a Constituição brasileira A Constituição da República do Brasil dispõe, em seu art. 5º, sobre as denominadas cláusulas pétreas, que tratam das garantias e direitos fundamentais do indivíduo e não podem ser alteradas sequer por emendas, conforme se depreende da leitura do seu art. 60, §4º, IV. O inciso XLVII preceitua a vedação da pena de caráter perpétuo no Brasil, o que dificulta a questão da possibilidade ou não de adoção integral do Tratado de Roma. O ordenamento jurídico brasileiro adota penas relativamente mais brandas, inadmitindo as penas de morte (com exceção do art. 5º, inciso XLVII, alínea a e de prisão perpétua. A humanização do direito penal no Brasil40 certamente teve fundamental importância para que se estabelecesse tal postura na legislação. Na década de 80, antes mesmo da atual Constituição Federal, iniciou-se uma série de inovações relativas às sanções penais, inclusive as chamadas penas restritivas de direitos, exercendo influência sobre o texto constitucional e chamando a sociedade a encarar a criminalidade sob outro prisma, o dos direitos humanos. Essa não é, entretanto, a primeira Constituição a impedir a aplicação da pena de prisão perpétua no país. A Carta Magna de 1934 já vedava a pena em seu art. 113, XXIV. A Constituição de 1937, por sua vez, também ordenava expressamente que não haveria penas perpétuas, no seu art. 122, XIII. A Constituição de 1946, em seu art. 141, repete a Constituição de 1934. O texto da Constituição de 1967, também dispôs no art. 150, §11, que não haveria a pena perpétua. Por fim, o dispositivo presente no art. 153, §11 da Emenda Constitucional de 1969 apresentava a mesma previsão.41 40 BITENCOURT, Cezar Roberto. O Tribunal Penal Internacional: pena de prisão perpétua. Brasília, Revista CEJ, v. 4, n. 11 maio/ ago. 2000, texto digital. 41 MENEZES, Fábio Victor de Aguiar. A pena de prisão perpétua e o Tribunal Penal Internacional: Aspectos constitucionais. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, 68, 01 set. 2009, texto digital. Em verdade, a atual Constituição brasileira veda expressamente as penas de caráter perpétuo em seu art. artigo 5º, XLVIII, b, o que significa dizer que, são permitidas, portanto, somente penas temporárias, para que o condenado possa retornar ao convívio social. Emerge, então, a delicada questão acerca de um eventual conflito de normas entre o texto constitucional e o tratado internacional de Roma, no que tange à previsão da pena de prisão perpétua neste último. É evidente que, apesar da previsão da pena de prisão perpétua no Estatuto, esta foi significativamente abrandada, tendo em vista que, conforme já dito, pode ser revista e reduzida. Ainda assim, parte da doutrina não aceita a total adesão ao Tratado pelo Brasil, defendendo a existência de um conflito de normas. Para melhor compreendermos faz-se necessária uma ponderação dos diversos entendimentos doutrinários nesse sentido, e também uma análise mais apurada a respeito da jurisdição internacional, sempre considerando as peculiaridades do Tratado de Roma. 6.3.1 Visão da doutrina Durante alguns anos a doutrina se dividiu em duas claras correntes, ambas, sempre apresentando fortes argumentos, sendo a primeira pela impossibilidade jurídica da internalização do referido tratado, e a segunda, pela total possibilidade, permanecendo o impasse. Hodiernamente, pode-se verificar que prevalece sensivelmente a corrente favorável à incorporação do tratado, mas ainda não há uma unanimidade. A corrente contrária tem como representante, dentre outros, o ilustre doutrinador Cezar Roberto Bitencourt42. Segundo seu entendimento, a pena de prisão perpétua não poderia ser instituída no Brasil quer através de tratados, quer através de emendas constitucionais, por ser a mesma incompatível com um Estado Democrático de Direito. Defende, ainda, que aceitar sua aplicação caracterizaria um verdadeiro retrocesso e violaria o Princípio da Humanidade. 42 BITENCOURT, 2000, texto digital. Já o Ministro do Superior Tribunal de Justiça Luiz Vicente Cernicchiaro43, além de concordar com Bitencourt, sustenta que a aceitação do Estatuto de Roma pelo Brasil significaria renúncia à sua própria soberania, razão pela qual não devemos nos submeter a essa norma internacional. O professor Carlos Eduardo Adriano Japiassú44, ao reforçar essa corrente, acrescenta o argumento de que, por se tratar de norma menos benéfica, a instituição da pena de prisão perpétua não pode ter validade, uma vez que menos protege os direitos humanos, superando a norma mais protetora. Em sentido contrário, a corrente que defende a possibilidade de constitucionalização do tratado é também representada por diversos doutrinadores e juristas, dentre eles a professora Flávia Piovesan. Sustenta que, por se tratar de um tratado de direitos humanos, foi incorporado ao direito nacional passando a apresentar norma constitucional, e que em nada violaria o texto constitucional. Afirma, ainda, que não há direitos fundamentais absolutos, o que significa dizer que deve prevalecer o direito à justiça e o combate à impunidade, mesmo que para isso seja necessário mitigar outro direito.45 Antônio Paulo Cachapuz de Medeiros, consultor jurídico do Ministério das Relações Exteriores, argumenta que a Constituição já prevê pena mais severa que a perpétua, ou seja, a pena de morte em casos excepcionais. Então, admitir-se-ia a pena perpétua, desde que não seja cumprida em território nacional. E mais, frisa que este tem sido inclusive, entendimento do Supremo Tribunal Federal, que já concedeu a extradição de acusados para Estados em que a pena se aplica, sob o raciocínio de que a proibição constitucional da pena de caráter perpétuo se restringe ao país. Para ele a colisão entre o Estatuto de Roma e a Constituição da República, no que diz respeito à pena de prisão perpétua, é aparente, não só porque aquele visa a reforçar o princípio da dignidade da pessoa humana, mas porque a proibição prescrita pela Lei Maior é dirigida ao Legislador interno para os crimes reprimidos pela ordem jurídica 43 CERNICCHIARO, Luiz Vicente. A criação do Tribunal Penal Internacional. Pena de prisão perpétua. Brasília, Revista CEJ - v. 4 n. 11 maio/ ago. 2000, texto digital. 44 JAPIASSÚ, 2001, texto digital. 45 PIOVESAN, Flávia, 2009, p. 226. pátria, e não aos crimes contra o Direito das Gentes, reprimidos por jurisdição internacional.46 Sylvia Steiner47, brasileira e juíza criminalista do próprio Tribunal Penal Internacional, possuidora de elevado conhecimento em Direito Internacional e Direitos Humanos, também adota tal entendimento. Ela sustenta que, antes de qualquer coisa, deve-se lembrar do caráter complementar da Corte, e o fato de que somente serão submetidos a julgamento os indivíduos que nasceram ou praticaram os crimes nos países que ratificaram o Tratado. Por fim, afirma que o Brasil deve cooperar com o TPI, buscando, para isso, uma nova interpretação das normas internas, em observância aos próprios princípios constitucionais do art. 4º. O Professor Valério Mazuoli, ao comungar desse entendimento, ensina que: Não obstante a vedação das penas de caráter perpétuo ser uma tradição constitucional entre nós, o Estatuto de Roma de forma alguma afronta nossa Constituição (como se poderia pensar numa leitura descompromissada de seu texto), mas ao contrário, contribui para coibir os abusos e as inúmeras violações de direitos que se fazem presentes no planeta, princípio esse que sustenta corretamente a tese de que a dignidade da sociedade internacional não pode ficar à margem do universo das regras jurídicas. 48 Apesar do embate doutrinário, é necessário enfrentar essa questão a fim de esclarecer se a nossa Constituição permite ou impede o cumprimento da obrigação internacional consistente no ato de entrega (surrender) de pessoa à jurisdição da Corte para a aplicação de pena perpétua. 46 MEDEIROS, Antônio Paulo Cachapuz, p. 15. apud BAHIA, Saulo José. O Tribunal Penal Internacional e a Constituição brasileira. Universidade Federal da Bahia. Artigos Jurídicos, 26 mar. 2003, texto digital. 47 STEINER, Sylvia. Tribunal Penal Internacional: tribunal da humanidade. Entrevista concedida a Daniel Roncaglia. Consultor Jurídico, São Paulo, 22 jun. 2008, texto digital. 48. HORTA, Henrique Clauzo. Tribunal Penal Internacional versus direito brasileiro: uma questão de adequação e não usurpação de autoridade. Revista Universitária do Curso de Mestrado em Direito do Centro Universitário Toledo – UNITOLEDO, Araçatuba, v.2, n. 02, nov. 2006, texto digital. 7 POSICIONAMENTO PELA COMPATIBILIDADE ENTRE O ESTATUTO DE ROMA E O TEXTO CONSTITUCIONAL Do exame desse ponto controvertido, apesar dos atraentes argumentos que pugnam pela incompatibilidade entre o texto constitucional e o Tratado de Roma, entende-se que o mencionado conflito é apenas aparente. Após uma interpretação sistemática, e não meramente literal, da própria Constituição e do texto do Tratado, é possível vislumbrar a plena adequação das normas. Alexandre Pasqualini explica que ”qualquer norma singular só se esclarece plenamente na totalidade das normas, dos valores e dos princípios”. 49 A Constituição, quando veda a pena de prisão perpétua, o faz internamente, e somente por aqueles crimes reprimidos pelo ordenamento jurídico pátrio. Isso não impede que a pena seja aplicada a um brasileiro quando se fala de jurisdição internacional, tendo em vista que estará se fazendo proteção aos direitos internacionalmente protegidos. Depreende-se da Constituição que não se faz necessária nenhuma alteração em seus dispositivos a fim de se adequar ao Tratado. Ora, já está nela expressamente disposto que o Brasil é pela prevalência dos direitos humanos e que os tratados que sobre eles versem se incorporarão ao texto constitucional, e ainda, que o Brasil se submeterá ao Tribunal Penal Internacional. O objetivo tanto da Constituição quanto desta norma internacional é o mesmo: a proteção do ser humano. Então, não podemos utilizar o próprio texto constitucional para obstruir o funcionamento do TPI, que foi criado justamente para combater as graves violações de direitos humanos. Nem todos os aspectos devem ser vistos em termos absolutos, pois modernamente, exige-se uma relativização especialmente no que se refere às liberdades, e especialmente porque o Tratado é composto por Estados-partes com leis, costumes e cultura diversos. Se em um país a pena de prisão perpétua é tida como absolutamente normal, em outro, pode ser considerada abominável. E conforme já mencionado, na Conferência de Roma, chegou-se a uma concordância exatamente porque se relativizou a pena, inserindo a possibilidade de revisão e redução da mesma. O Brasil, hoje, por 49 PASQUALINI. Alexandre. Sobre a interpretação sistemática do Direito. Revista do Tribunal Regional Federal 1ª Região, Brasília, v. 7, n. 4, out./dez. 1995, texto digital. estar inserido no sistema internacional de proteção dos direitos humanos, faz parte do compromisso de cooperação entre os povos, tendo-o honrado ao ratificar esse Tratado em todos os seus termos. Concordamos com Flávia Piovesan ao dizer que nós, brasileiros, muitas vezes esquecemos que temos direitos protegidos no âmbito interno, mas também no âmbito internacional.50 Por isso, o Tribunal não seria uma ingerência indevida na soberania nacional, por ser uma Corte autônoma e subsidiária. Mas para que atue de forma eficaz, precisa de colaboração do país. Diversos países que não adotam a pena perpétua se viram no mesmo dilema que o Brasil, especialmente a maioria dos Estados europeus.51 Mas perceberam que a previsão da pena no referido Tratado não o caracteriza como desumano, porque teve o objetivo primordial de se evitar a aplicação da pena de morte. Então, por meio de uma longa ponderação de interesses, concluiu-se que o interesse pela efetivação da justiça internacional deveria se sobrepor. Mais um motivo para entendermos que o TPI tem, sim, uma finalidade defensável, sob a ótica dos direitos humanos, e por esse motivo os Estados-partes devem cooperar para que a Corte possa operar com êxito. Considerando todos os ensinamentos doutrinários trazidos a fim de subsidiar este posicionamento, é fundamental acrescentar um ponto muito importante e muitas vezes ignorado, a questão da extradição e da entrega de brasileiro. A extradição, proibida pela Constituição brasileira com relação a brasileiros natos, é instituto tradicional na cooperação judicial internacional, consistente no ato pelo qual um Estado entrega um indivíduo acusado ou já condenado por um delito à justiça de outro Estado, competente para julgá-lo e puni-lo. Ocorre, portanto, entre Estados. A entrega (ou surreender), por sua vez, é utilizada no caso específico de cumprimento de ordem de organização internacional de proteção dos direitos humanos, como é o caso do TPI.52 50 PIOVESAN, Flávia. Princípio da complementariedade e soberania. Direitos Humanos DHNET, Natal, set. 1999, texto digital. 51 AMBOS, Kai; CHOUKR, Fauzi Hassan, 2000, p.128. 52 AMBOS, Kai; CHOUKR, Fauzi Hassan, p. 268. Logo, não haveria impedimento algum ao cumprimento de ordem de detenção ou entrega de nacional ao Tribunal, já que a Constituição brasileira só proíbe a extradição. Como o brasileiro não estaria sendo remetido a outro Estado, mas sim a uma organização internacional, não haveria óbice quanto à entrega de nacional para a aplicação de pena de prisão perpétua, sob o aspecto da proibição da extradição. Assim, o entendimento que nos parece mais correto é o de que a compatibilidade do Estatuto, enquanto tratado de direitos humanos, com a Constituição é inegável, sendo possível a superação de conflitos aparentes entre tais diplomas. O Estatuto de Roma é uma verdadeira expressão autorizada das visões de um grande número de Estados, em prol de um interesse universal, que é a defesa da vida e o fim da impunidade dos crimes mais chocantes. O Brasil está, portanto, exercendo perfeitamente seu papel constitucional, regendo-se nas relações internacionais seguindo os princípios da prevalência dos direitos humanos e da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. 8 CONCLUSÃO Diante do exposto, é forçoso admitir que o Tribunal Penal Internacional visa proteger a dignidade humana e evitar a impunidade daqueles que praticam crimes internacionalmente reconhecidos como atentatórios à vida e aos direitos fundamentais do ser humano, ou seja, aqueles atos bárbaros que nem sempre são tipificados nas legislações penais internas. Assim, a adesão do Brasil ao tratado que instituiu o TPI representa uma afirmação aos próprios preceitos constitucionais, já que seu texto é cristalino ao dispor que o Brasil prima pela criação de um tribunal de defesa dos direitos humanos. Por esta razão, foi perfeitamente adequada a ratificação do tratado sem reservas pelo Brasil, em que pese apresentasse algumas dificuldades aparentes, especificamente no que tange à previsão da pena de prisão perpétua, sanção expressamente vedada pela Constituição brasileira. Após breve exposição acerca do assunto, conclui-se que o Tratado de Roma é compatível com a Constituição Federal, e que a as dificuldades apontadas por diversos estudiosos, na realidade, podem ser superadas mediante adequação hermenêutica. Assim, a previsão da aplicação da pena de prisão perpétua pela Corte não torna o Tratado inconstitucional, tendo em vista que se trata de uma jurisdição internacional e autônoma. É fundamental lembrar que o TPI atua subsidiariamente, ou seja, somente se o Estado não o fizer. Outro ponto relevante é o fato de que o próprio Supremo Tribunal Federal já demonstrou que a vedação se restringe ao Brasil, através da concessão de extradição de pessoas a fim de se aplicar a pena perpétua no exterior. Por tudo isso, restou evidenciado que o conflito de normas parece intransponível somente à primeira vista. É certo que grande parte da doutrina e da própria sociedade não simpatiza com a pena perpétua, pois o sistema jurídico-penal brasileiro não adota penas tão severas, mas o que se propôs no presente trabalho, não é uma análise sobre a pena em si mesma, mas estritamente sobre a compatibilidade jurídica entre o Tratado e o texto constitucional brasileiro. Assim, tendo o Estatuto de Roma observado os trâmites de incorporação de tratados internacionais, está incorporado ao nosso ordenamento jurídico como norma constitucional. Logo, pode-se afirmar que o Brasil deverá se submeter às normas trazidas pelo Tratado na hipótese de haver julgamento de um nacional responsável por algum dos crimes da competência do TPI, aplicando-se, inclusive, a pena de prisão perpétua, desde que fora do território nacional. REFERÊNCIAS ABREU, Marcelo Luís. Uma análise do Tribunal Penal Internacional e da sua efetividade perante a Constituição Federal Brasileira. Universidade Federal da Bahia – Faculdade de Direito da UFBA, 2004. Disponível em: <www.direitoufba.net/artigos/artigo011.doc>. Acesso: 15/02/2011. AMBOS, Kai; CHOUKR, Fauzi Hassan. Tribunal Penal Internacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. ANDRADE, Isabela Piacentini de. O Tribunal Penal Internacional e a Constituição. Escritório on line, Brasília, 20 de outubro de 2000. Disponível em: <http://www.escritorioonline.com/webnews/noticia.php?id_noticia=112>. Acesso: 24/04/11. BAHIA, Saulo José. O Tribunal Penal Internacional e a Constituição brasileira. 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