UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
O LIVRO ENCENADO
Escrita e Representação na Obra de Ana Teresa Pereira
Amândio Pereira Reis
DISSERTAÇÃO
PROGRAMA DE MESTRADO EM ESTUDO ROMÂNICOS
LITERATURA PORTUGUESA
2014
Universidade de Lisboa
Faculdade de Letras
O LIVRO ENCENADO
Escrita e Representação na Obra de Ana Teresa Pereira
Amândio Pereira Reis
Dissertação orientada pelo
Prof. Doutor Fernando Guerreiro
Programa de Mestrado em Estudos Românicos
2014
René Magritte, La Cascade, 1961, guache sobre papel (36,4 x 44 cm), colecção privada.
ÍNDICE
Resumo ................................................................................................................ v
Abstract ...............................................................................................................vi
Agradecimentos................................................................................................. vii
Introdução
I. Nota prévia (Ana Teresa Pereira em contexto e fora dele) ................................ 1
II. “Inventar um outro livro” ............................................................................... 11
Capítulo 1
O Fim de Lizzie ou o princípio da incerteza .................................. 19
1.1. Entre imagens e realidades, uma estética não-aristotélica ............................. 22
1.2. “Usar a arte como se fosse magia”: o delito do criador................................. 35
Capítulo 2
Livros paralelos e fantasmas eloquentes ....................................... 50
2.1. O naufrágio do discurso em O Verão Selvagem dos Teus Olhos ................... 52
2.2. A Outra: um “inconsciente do texto” em The Turn of the Screw................... 62
Capítulo 3
Livro, palco e mundo ................................................................... 71
3.1. Autores e actores em duas novelas teatrais: Inverness e A Pantera ............... 73
3.2. Alice do outro lado do Lago......................................................................... 94
Conclusão
Das maquetas em literatura ........................................................ 112
Post scriptum.................................................................................................... 116
Bibliografia citada ............................................................................................ 117
RESUMO
Esta dissertação propõe uma leitura de um conjunto de obras de Ana Teresa
Pereira centrada nas relações entre escrita e representação. Estas obras são: O Fim de
Lizzie e outras histórias (2008), O Verão Selvagem dos Teus Olhos (2008), Inverness
(2010), A Outra (2010), A Pantera (2011) e O Lago (2011).
Partindo da hipótese de que aquele binómio constitui um problema teórico
importante na abordagem a estas obras, interroga-se as diversas instâncias em que ele se
manifesta nos textos, tendo em conta a encenação do acto de escrita e de outros actos de
criação, bem como o recurso a um campo semântico do domínio do teatro, com o qual a
narrativa se confunde, pondo em evidência e em diálogo diferentes acepções do
conceito de “representação”.
A reflexão atenta essencialmente em três eixos: o pensamento sobre arte que
atravessa estas narrativas, a figuração auto-reflexiva do texto e a forma como Ana
Teresa Pereira desenvolve uma noção de teatralidade na articulação entre escrever e
representar. Esta noção é também a que une ideias de livro, de palco e de mundo,
gerando tensões consequentes entre ficção, realidade e literatura.
PALAVRAS-CHAVE
Escrita, Representação, Ficção, Teatralidade, Ana Teresa Pereira
v
ABSTRACT
This dissertation offers a reading of several works by Ana Teresa Pereira focused
on correlations between writing and representation. These works are: O Fim de Lizzie e
outras histórias (2008), O Verão Selvagem dos Teus Olhos (2008), Inverness (2010), A
Outra (2010), A Pantera (2011) and O Lago (2011).
From the hypothesis that those two key concepts constitute an important
theoretical problem when approaching the author’s work, the many ways in which they
manifest themselves in the texts are put into question, considering the literary portrayal
of writing and other creative actions, combined with the use of a semantic field related
to the theatre, turned here into a narrative subject that points out and brings together the
various possible meanings of the word “representation”.
This study considers three essential aspects: the thoughts on art that pervade these
narratives, the self-reflexive figuration of the text, and the way Ana Teresa Pereira
develops her own notion of theatricality in the articulation between writing and
representing (or writing and acting). This notion also connects different views on the
book, the stage and the world, which in turn ask for a reflection on tensions between
reality, fiction and literature.
KEYWORDS
Writing, Representation, Fiction, Theatricality, Ana Teresa Pereira
vi
AGRADECIMENTOS
É difícil acabar de agradecer ao Professor Fernando Guerreiro, a quem eu e esta tese
devemos tanto. Agradeço-lhe profundamente a orientação, tão verdadeira e atenta, e a
prontidão e a generosidade com que acompanhou este trabalho desde o princípio.
Ainda na qualidade de aluno, e por tudo o que com eles tenho aprendido, agradeço à
Professora Clara Rowland e ao Professor Mário Jorge Torres. Os seus exemplos foram
luzes inestimáveis no meu percurso.
Deixo também aqui o meu reconhecimento à Fundação para a Ciência e a Tecnologia e
ao Projecto Falso Movimento – Estudos sobre escrita e cinema (PTDC/CLE-LLI/1202
11/2010), no seio do qual, enquanto bolseiro e colaborador, desenvolvi uma parte
importante da investigação cujo resultado aqui apresento.
A Ana Teresa Pereira, agradeço a disponibilidade para um encontro a que secretamente
regresso em tantas destas páginas.
Agradeço à minha família o acompanhamento e o apoio decisivos.
Ao meu pai, tenho de agradecer pelas minhas primeiras histórias. Agradeço-lhe também
pelo Júlio Verne, onde, depois de ter ouvido, fui aprender a ler.
Com a minha irmã, por quem estou grato, aprendi a recontar.
Um agradecimento necessariamente geral – porque onde coubesse um nome teriam de
caber demasiados – vai para todos os amigos que, de muitas maneiras, têm influenciado
a minha vida e o meu trabalho. Com eles, Lisboa é uma casa bonita.
Ao Zé, agradeço pela maior surpresa de todas e por tudo o que coube nela. Dedico-lhe
também esta tese, que quando começou a ser escrita já era para ele.
vii
INTRODUÇÃO
As oroilles vient la parole
ausi come li vans qui vole
Chrétien de Troyes
Yvain, le Chevalier au Lion
I. Nota prévia (Ana Teresa Pereira em contexto e fora dele)
A associação de A.T. Pereira a correntes e famílias literárias surge como um
problema maior em boa parte da bibliografia crítica que sobre ela se tem vindo a
compor, e a especificidade do seu lugar no panorama da literatura portuguesa
contemporânea chegou ao extremo de uma localização num “deserto” e numa “região
polar” (Coelho 2006: 16). Nesta dissertação, a nacionalidade da autora não é um dado
totalmente ignorado, porém, também não é nossa pretensão considerá-la segundo esse
critério, por ele nos parecer pouco adequado ao tipo de abordagem que adoptamos,
ancorada na leitura aproximada e na análise formal das obras em estudo, conduzidas por
uma interrogação das tensões entre diversas formas de (auto-)representação da escrita e
da literatura e uma ideia transversal de teatralidade integrada na ficção.
A parte mais relevante da bibliografia crítica dedicada a A.T. Pereira é composta
por artigos em periódicos impressos e electrónicos (JL, Público, Colóquio/Letras,
Ciberkiosk), pelas mãos de, sobretudo, Eduardo Prado Coelho, António Guerreiro e Rui
Magalhães. Objectos também importantes e diferentes deste conjunto, e que nos
sugeriram algumas coordenadas de leitura fundamentais, são o volume teórico e
filosófico O Labirinto do Medo, que reúne uma colecção de ensaios de Rui Magalhães
1
sobre a generalidade da obra publicada até 1999, e o posfácio de Fernando Guerreiro à
segunda edição de O Fim de Lizzie, “O Mal das Flores (notas para Ana Teresa Pereira)”.
Em anos recentes, a autora tem sido alvo de um número crescente de estudos
académicos. Entre os trabalhos que conseguimos identificar, três dissertações de
mestrado detêm-se essencialmente na exploração de tópicos generalistas e culturais1,
enquanto outras duas trabalham sobre a verificabilidade e a aplicação de abordagens
teóricas determinadas tematicamente, sob os signos da “ruína” e da “predação” 2,
deixando espaço para a ponderação que agora apresentamos, mais orientada para a
análise de características formais e literárias que ainda estão por sistematizar 3.
1
Anabela Sardo, A temática do amor na obra de Ana Teresa Pereira, U. Aveiro, 2001; Rosélia
Fonseca, A personagem Tom: unidade e pluralidade em Ana Teresa Pereira, U. Católica, 2003;
e Teresa Amaro, A Construção de Si: Ana Teresa Pereira e a Escrita como Edificação de um
Universo Literário e Cultural, U. Nova de Lisboa, 2008.
2
Pedro Corga, Os lugares da ruína em Ana Teresa Pereira, U. Aveiro, 2010; e Patrícia Freitas,
Do Escritor como Predador: Mistério e (Re)visões na Obra de Ana Teresa Pereira, U. Porto,
2011.
3
As duas teses de doutoramento dedicadas até ao momento à autora parecem-nos marcadas por
imprecisões que solicitam uma reconsideração aprofundada de determinados aspectos. Duarte
Pinheiro, o autor da primeira, incorre em afirmações categóricas que, ao contrário da sua própria
argumentação, apresentam a obra de A.T. Pereira como se ela consistisse numa ficção de tipo
naturalista: “Há dois temas fundamentais nas narrativas de Ana Teresa Pereira […]: o tema da
identidade […], e o tema da solidão” (Pinheiro 2011: 30). A relevância de outras declarações
em contexto dissertativo parece-nos também difícil de compreender: “[P]ensamos poder afirmar
que Henry James está de facto presente em Ana Teresa Pereira, e tal não deve constituir algum
tipo de pudor, pois é a própria autora funchalense a primeira pessoa a assumi-lo” (166).
Outra tese, mais recente, repete formulações que carecem de objectividade; por exemplo:
“Estamos, pois, perante uma obra cuja indivisibilidade labiríntica se entretece com a paixão
obsessiva pela Arte” (Sardo 2013: 21); “a obra pereiriana apresenta também uma característica
específica e crucial que leva a escritora a escrever […]: a questão da circularidade que se
entretece com a paixão obsessiva pela Literatura” (293); ou ainda: “[A] obra pereiriana
apresenta também uma singularidade específica e crucial que leva a autora a escrever, entre
outros, livros tão belos e peculiares como O Verão Selvagem dos Teus Olhos e A Outra, nos
quais a problemática da circularidade, circunscrita por uma indivisibilidade labiríntica, se
entretece com a paixão obsessiva pela Literatura” (358-9). Anabela Sardo parece ler também de
forma algo simplista, por exemplo, aquilo a que chama uma confissão da autora, oferecendo o
que consideramos uma chave de leitura muito errónea: “Ana Teresa Pereira considera a sua obra
autobiográfica, facto que confessa na entrevista dada no ano 2000 […]: «Os meus livros sou eu.
(…) todos os meus livros são eu própria, o material de que sou feita. Portanto, tem a ver com a
minha vida, com as minhas leituras, especialmente as de criança»” (38).
2
Os dois objectivos principais da nossa dissertação são: chegar a um entendimento
renovado das narrativas de A.T. Pereira, tanto mais específico na verificação das suas
particularidades quanto abrangente na perspectivação do seu lugar e da sua prática em
relação a quadros maiores da história estética e literária; e propor uma reapreciação
crítica deste modo de fazer ficções, entre outros modos com os quais ele comunica, e do
que para a autora parece significar, na interface com outras artes, o literário.
A nossa leitura, maioritariamente formal e parcialmente temática, será orientada
por coordenadas de diferentes linhas de pensamento sobre arte e a literatura que se têm
debruçado – especialmente na segunda metade do século XX – sobre a compreensão e a
descrição de alterações nos paradigmas estéticos normalmente associadas, de forma
explícita ou não, quer à Modernidade quer aos Modernismos, e à tradição que a partir
deles tem sido descrita. Neste sentido, e também à luz ou sob a orientação das reflexões
exercidas noutros contextos e com outros alvos, propomos no nosso estudo uma
reconsideração do que nos parecem atributos literários tendencialmente ignorados na
obra de A.T. Pereira.
Propomos ainda evidenciar a solidez com que se tem vindo a construir esta obra, e
a coerência com que ela segue e retrabalha determinados princípios, auto-estabelecidos
ou recebidos na filiação a determinadas tradições artísticas – não entendidas com
estanqueidade, mas sempre “a partir de uma perspectiva dinâmica”, de onde sobressai
“o seu potencial dialógico” (Buescu 1995: 26) – e a determinadas ideias de literatura,
isto é, vamos ater-nos ao seu carácter eminentemente teórico, para perceber com mais
exactidão o que pode ser um programa de literatura entrelinhado na ficção, por vezes
menorizado ou tomado por idiossincrasia narrativa que não carece de explicação mais
3
atenta4. No entanto, não nos referimos a um ‘programa literário’ em sentido tradicional,
que presida à escrita e a pré-determine segundo uma ‘agenda estética’, mas a uma
particular e desinteressada forma de teorizar (de olhar) que emana da autoconsciência
da prática da escrita, como reflexão colateral desta, e, em última instância, apenas a ela
dirigida e aplicável. Veremos que, em A.T. Pereira, a prática da escrita e o pensamento
sobre essa prática são dimensões indissociáveis.
Perspectivar A.T. Pereira no âmbito da literatura portuguesa enquanto disciplina é
observar necessariamente a sua posição em órbita. No que é a um tempo reconhecer um
descentramento comum e um parentesco com Jorge Luis Borges, A.T. Pereira inscreveu
numa crónica a sua morada no universo anglo-saxónico5. Este enquadramento passa
pelas linhas principais, de nenhum modo exclusivas, da literatura inglesa oitocentista
(Jane Austen, as irmãs Brontë e Lewis Carroll) e dos americanos Edgar Allan Poe e
Henry James, cultores de variantes problemáticas de real-naturalismo, bem como pelo
cinema clássico (Alfred Hitchcock, Joseph L. Mankiewicz, Nicholas Ray, entre outros),
contando ainda com a importância fundamental de um conjunto de autores populares de
romance policial (John Dickson Carr, William Irish e Ellery Queen, entre outros).
4
Vimos a perfeita ilustração disto naquela que nos pareceu a mais interessante crítica a As
Longas Tardes de Chuva em Nova Orleães, na qual o autor reconhece a dimensão auto-reflexiva
de A.T. Pereira para depois a menorizar enquanto tal: “Diversas vezes, a escrita da autora
reflecte sobre as suas próprias condicionantes, num jogo de espelhos, dissimulações e
desfigurações que sustenta (ainda que em bases sempre instáveis) o seu próprio caminho, e o
figura, em estruturas fantasmáticas – «Um escritor não tem mais do que dois ou três temas. E
escreve variações sobre eles» (p. 45); «No caso de Tom, creio que só há um tema» (idem).
Nestas afirmações, simples esboços teóricos – pistas falsas, como as que surgiriam nas histórias
de mistério que fazem parte do cosmos da autora –, Ana Teresa Pereira não avança princípios
sólidos: cria discretos marcos miliários para os mais atentos e mais perplexos” (Santos 2013,
itálicos nossos). Salvo indicação em contrário, os itálicos em citações corresponderão sempre a
ênfases já dadas no original.
“É estranho que nunca nos tenhamos encontrado. Afinal, vivemos no mesmo lugar: uma
infinita biblioteca de livros ingleses” (Pereira 2002: 75).
5
4
Acreditamos que, defendendo ela própria a sua genealogia literária estrangeira,
A.T. Pereira não é alheia à profunda distância que, nas margens de onde escreve, a
separa de um centro. Parecendo ter libertado o português inidiomático em que se
expressa de quase todos os traços culturais mais vinculativos, a escritora apresenta,
numa rara e extremamente sucinta referência à literatura portuguesa, uma contra-resposta directa à condição existencial propalada por António Vieira: “nós não somos o
sal da terra. Nós não somos a luz do mundo” (Pereira 2011a: 108). Estamos em crer que,
talvez mais do que uma posição político-filosófica, ou humanista, este poderá ser o sinal
de uma preferência de A.T. Pereira pela exclusão, isto é, pela não-pertença e pela
marginalidade, no que toca à arte e aos motivos da sua prática.
Acresce a isto o facto de, numa interessante triangulação entre a obra e a vida de
Cornell Woolrich, escritor de policiais, o “ensaio” de Francis M. Nevins sobre ele, e o
seu próprio trabalho, a autora se opor criticamente a determinadas expectativas quanto à
literatura e à sua normatização, preferindo uma forma particular de “escrever mal” em
detrimento implícito do que António Guerreiro apelidou de “literatice” (Guerreiro 2012:
30): “Talvez [Woolrich] escrevesse mal. A sua escrita era uma corrida contra o tempo,
contra a morte, onde por vezes se notava a falta de disciplina e a paixão levada ao
extremo. Só espero, um dia, escrever tão mal como ele” (Pereira 2002: 37).
Não obstante este quadro, pensamos ser possível estabelecer pontos de contacto
entre a obra de A.T. Pereira e a de outros autores portugueses. A busca talvez tenha de
acontecer em lugares inesperados, como seja o caso – mencionado, como todos os
restantes, apenas a título de exemplo, sem outro critério de selecção que não o da nossa
própria experiência –, da poesia de Herberto Helder, e da sua concepção revisiva e
cumulativa da obra, que tende para reuniões sucessivas de fragmentos no todo de uma
súmula ou palimpsesto (cf. Gusmão 2010: 362-6).
5
Este ‘deslaçamento ligado’ é uma espécie de qualidade paradoxal dos textos de
A.T. Pereira, separados entre si por formas de contiguidade suspensa: cliffhangers (ou
irresoluções que apontam para a iminência do passo seguinte) nos limites que os
separam entre si e que também os unem. Esta característica é apenas identificável ao
adoptar-se uma visão panorâmica – talvez a situação de leitura ideal – não da obra
completa, um conceito eternamente adiável, parece-nos, mas da obra manifesta. Ou seja,
ao reconhecer o carácter sumativo que é precisamente potenciado pela multiplicação,
talvez se vislumbre uma espécie de horizonte da obra, ou de ponto ideal de
convergência de todas as versões da história das histórias.
Neste sentido, e recorrendo muito antes de nós a uma identificação fulcral da
escrita de A.T. Pereira com o cinema, Rui Magalhães afirmou:
Os textos de Ana Teresa Pereira são fragmentos de um filme impossível que
contasse eternamente a mesma história. Eternamente porque a história é,
naturalmente, infinita; não através de factos, nem de acontecimentos, mas de
ambivalências exaustivamente repetidas e deslocadas. Toda a história
residiria na interpretação dessas deslocações. Os factos são muito pouco
para Ana Teresa Pereira; eles são apenas a imagem do que é suposto ser
real. (1999b: 137-8)
Por outro lado, pensamos que, também como Helder, e segundo Manuel Gusmão,
a autora “constrói a sua alteridade e a sua singularização num processo de configuração
da sua própria genealogia, e no modo como abre o seu caminho pelas margens das
várias conjunturas poéticas que a sua obra atravessa” (Gusmão 2010: 372).
Com Maria Gabriela Llansol, A.T. Pereira parece partilhar uma “evidência
imagética” (Cantinho: § 17) trabalhada sobre a representação do espaço-tempo, ou “[d]o
que [lhe] aparece como real” (§ 16), ou como “[o] que é suposto ser real” (Magalhães,
ibid.), em cenas fulgor – o que para nós assumirá uma analogia muito directa, embora
6
de maneira nenhuma simplificada, com o conceito de cena no cinema e no teatro –, e na
reconvocação a-histórica de elementos humanos (actores, actrizes, escritores e artistas
inscritos na História), de personagens, animais, objectos e elementos arquetípicos,
enquanto figuras do texto, para os “inserir numa outra ordem de significação”, através
de uma “técnica visual de sobreimpressão” (§§ 17-8).
Por fim, e sobre Luiza Neto Jorge e o seu lugar numa tradição moderna que é
“uma poética do ver e da descrição”, Fernando Cabral Martins, voltando a descrever o
poeta como um “fazedor de imagens”, que redesenha o mundo e a sua relação com ele,
diz aquilo que gostaríamos de repetir agora em relação a A.T. Pereira: “A formidável
impossibilidade de usar as palavras, que são comuns, para representar a experiência
individual, que é única, é rasgada pela ponta de fogo de uma máquina de imagens”
(2000: 242).
“Máquina de imagens”, “máquina de produzir fantasmas” (Guerreiro 2011: 7) ou
dispositivo visual são formulações possíveis para as ideias que exploraremos com
recorrência no que toca a uma escrita feita de imagens ou baseada no acto de fazer
imagens, que, quando qualificada como cinematográfica, tem muito mais do que uma
relação íntima, temática ou formal com os géneros fílmicos. Por meio de uma sintaxe
maioritariamente fundada numa concepção própria de montagem, ‘dando a ver’ os
segmentos narrados e descritos muito mais do que entretecendo-os num texto lógicocausal de índole realista, esta escrita emula verbalmente a expansão da “imagem-movimento” numa luz reveladora (por outras palavras, o modo de representar – ou de
se manifestar – próprio do Cinema), de tal maneira que descrever a visualização pode
dar a uma tela de pintura o dinamismo de uma tela de cinema, afectando a nossa leitura
do que, tomando em conta as implicações psíquicas do filme, Jean-Louis Baudry,
pioneiro dessa corrente teórica, chamou “efeito-cinema” (1975: 66):
7
Sentou-se no chão em frente da tela.
No centro, dois meninos. Iguais. Sentados com ar muito sério, como se
posassem para uma fotografia. Mas à volta o quadro parecia enlouquecer.
Havia pássaros e asas soltas, sangue… Um pássaro azul, enorme,
perseguia uma figura que parecia um aborto… (Pereira 1996b: 116-17)
Enquanto meio de captação do real, o aparato fílmico pode ser encarado como
uma tecnologização da visão humana, aproximável, em termos fenomenológicos, ao
processo de ver na Natureza, ao mesmo tempo que, tratando-se de uma representação
“percepcionada” enquanto tal [représentation perçue] (Baudry 1975: 67) 6, ultrapassa
esse processo. Na verdade, segundo Baudry, o modo alucinatório do sonho e do cinema
origina um “real-mais-do-que-real”7. Tentaremos demonstrar adiante que a escrita de
A.T. Pereira, em contacto íntimo com o cinema e figurando-se muitas vezes como
prolongamento dele, também terá incorporado em si a exploração e a autocrítica da
visualidade que lhe são inerentes.
A selecção das obras incluídas neste estudo tem por base a proposta de que de O
Fim de Lizzie (2008) a O Lago (2011) podemos circunscrever uma fase particular na
escrita da autora, em que, atenuando certos traços até aí mais evidentes, determinados
tópicos e referências recorrentes foram remetidos a um estatuto não mais do que
vestigial. O esquema policial e a trama detectivesca, que na verdade foram sempre
corrompidos por intersecções com outros géneros literários e cinematográficos, e pela
escrita ‘supra-genológica’ de A.T. Pereira, quase desapareceram. Nas obras aqui em
análise, a ficção concentra-se fundamentalmente, quando não em si mesma, em campos
6
Por uma questão de maior coerência e de economia de espaço, optámos por citar, sempre que
nos foi possível (tendo em conta o conhecimento da língua e o acesso aos textos), as versões
originais da bibliografia de apoio.
“[L]a perception […] acquière en tant que perception le mode d’existence propre à
l’hallucination, se remplisse du caractère de réalité spécifique que la réalité ne confère pas, mais
que l’hallucination provoque: un réel-plus-que-réel” (id. 67).
7
8
semânticos e temáticos associados à criação artística e ao sistema da acção literária (no
que se entende tanto a escrita como a leitura), em correlação essencial com o teatro e
outras artes do palco.
A escrita e o ofício do escritor surgem no conjunto de ficções que seleccionámos
como um problema obsidiante, quando não o problema fundamental, e são objecto de
tratamento tanto literal como alegórico, num texto ostensivamente metaficcional em que
a porta para outras escritas, ou actos de significação, se encontra na Representação
entendida em dois sentidos: como o modo de ‘re-apresentação’ do mundo (e da arte) na
arte, e como a actividade de actores e autores, quer no mundo, quer na ficção.
O corpus seleccionado nesta dissertação pretende acentuar o desenvolvimento
gradativo de um processo. Considerando-se O Fim de Lizzie o ponto de partida, a obra
em que a relação com um esquema de representação teatral e a actuação de uma figura
pigmaliónica (de autor) começam a ser mais axialmente trabalhadas, parte-se para as
publicações seguintes, dividindo-as em dois pares em variação e exponenciação
daqueles aspectos: O Verão Selvagem dos Teus Olhos e A Outra (‘prequelas’ impuras
de Rebecca, de Daphne du Maurier, e de The Turn of The Screw, de Henry James), e
Inverness e A Pantera (novelas de enredo e temática teatrais). O ponto de chegada da
nossa análise será O Lago, novela bipartida em que tanto o pendor fantasmático e
‘guionístico’ das prequelas quanto a problematização dramática e teatral das novelas ‘de
bastidores’ se reúnem em iguais proporções, sincretizando-se numa súmula formal.
Através do encontro com o cinema e com o teatro, colocaremos uma hipótese de
teorização literária para A.T. Pereira que terá por vezes em conta certas (con)fusões
categoriais, nomeadamente, entre o escritor e o encenador, as personagens e os actores,
o texto narrativo e uma forma textual híbrida, aproximada do drama pelo reconhecer das
9
qualidades ‘performáticas’ do texto, tornado visível por uma acção da linguagem sobre
o pensamento: nos termos de Baudry, o “efeito-sonho” e o “efeito-cinema”.
Resumidamente, a reflexão que propomos aqui fazer atentará no desenvolvimento
ficcional de uma hipótese lançada na epígrafe de A Última História (1991), atribuída a
Sigmund Freud: “as palavras de um escritor são acções”.
10
II. “Inventar um outro livro”
Metamorfosear (mais tarde, direi fulgurizar) é um
acto de criação. E criar é sempre criar Alguém. E
este Alguém não é um exclusivo do humano.
Maria Gabriela Llansol
O Senhor de Herbais
A ficção de A.T. Pereira dedica-se desde cedo à descrição de situações de escrita
que denunciam estratégias de sobreposição entre o livro que se lê, isto é, aquele a que o
leitor tem acesso, e o livro ou o texto que está a ser escrito, ou já foi no passado,
enquanto objecto do enredo8, e que parece constatar, no seio da ficção, a imanência
literária do real, como uma forma de potência da escrita9. Estes elementos contribuem
para a formação de um campo semiótico centrado numa ideia de grafia.
A etimologia permite-nos inclusivamente recuperar o verbo grafar como
indicador de qualquer acto de representação de formas legíveis numa superfície, que
inclui ao mesmo tempo os conceitos de escrever e pintar, já que, em última instância,
“l’écriture est une figuration” (Zumthor 1987: 138)10. O nosso conceito de ‘escrita’ terá
pois de equivaler mais rigorosamente a inscrição, sendo esta noção de inscrição (registo
8
“«Mas eu estou a escrever isto», pensou” (Pereira 1993: 30).
“«Se eu ainda escrevesse», pensou, «podia nascer tanta coisa desta porta fechada»” (Pereira
1989: 74).
9
Na mesma passagem, o autor observa que: “L’ancien français escrire signifie aussi bien
«dessiner» ou «peindre» que tracer des lettres […]. Et ce qui nous apparaît comme un flottement
sémantique est profondément motivé dans les mentalités de ce temps: le grec byzantin graphein
référe, lui aussi, à l’inscription e à l’image, au récit et à la fresque” (138-9). Embora não faça
referência à obra de Zumthor no seu estudo sobre a écfrase, João Adolfo Hansen explora nele
uma ideia semelhante: “[N]os textos gregos o verbo graphein significa tanto escrever quanto
pintar, assim como o substantivo graphé significa escrita e pintura. A equivalência de escrita e
pintura no grego graphein permite propor não a identidade da poesia e da pintura, por exemplo,
mas a homologia dos procedimentos miméticos aplicados a uma e outra” (Hansen 2006: 91).
10
11
materializador de um escrito num espaço susceptível à arte, análogo do papel em branco
ou da tela) explorada nestes textos como imagem transversal da Criação.
Também o termo ‘escrever’ sofrerá em A.T. Pereira uma dilatação de limites para
passar a abarcar e a mediar todo o acto (plástico) de criação-significação. Será por isso
que para a intérprete de Tarot do conto “Forget-me-not” – que “[c]omo noutros tempos
dispunha as cartas […] agora escrevia versos soltos no caderno branco tentando ler nas
palavras obscuros sinais” –, “[e]screver era como mergulhar as mãos em argila”, “criar
formas que depois voltavam à massa amorfa” (Pereira 1997: 13, 17).
O fenómeno aparentemente simples da representação em literatura de actos de
criação interessar-nos-á por abrir à nossa leitura o espaço de tensão entre o que é escrito
e quem é escritor, e por ser ao mesmo tempo um dado à partida diegético, do domínio
da trama, mas também um processo auto-reflexivo em que o texto ‘performatiza’ a sua
própria natureza. Iluminando o que viemos a encontrar em A.T. Pereira, Rosa Maria
Martelo desenvolveu o seguinte argumento num breve estudo sobre “cenas de escrita”
na poesia portuguesa:
A asserção “j’assiste à l’éclosion de ma pensée: je la regarde, je l’écoute”,
de Rimbaud, pode servir como referência para o distanciamento meta-reflexivo do qual as cenas de escrita são uma espécie de efeito secundário,
digamos assim. E não é por acaso que uso aqui a palavra cena, com tudo o
que ela tem de alusão ao teatro, pois a especularidade da escrita que absorve
o acto de se escrever, ou que o figura, tem algo de cenografia, de uma ceno-grafia. Quando um poema se transforma em cena de escrita, o que nos é
dado ver é sempre a poética que lhe está subjacente, numa situação que lhe
dá corpo, espessura e concreção – naquele mesmo sentido em que, como faz
notar Patrice Pavis, hoje, a cenografia se apresenta como um dispositivo que
tem em vista “iluminar” o texto, “figurar uma situação de enunciação”,
estabelecendo um intercâmbio entre um espaço e um texto. […] Nada é
inocente nas cenas de escrita, e elas são concebidas – e lidas, também –
nesse pressuposto. (2010: 323-5)
12
A.T. Pereira identificou o “grito” como o seu género preferencial: “Num ensaio de
Francis M. Nevins lê-se que existe uma arte em que a forma não é o romance nem o
conto, mas o grito; e nessa arte William Irish [pseudónimo de Cornell Woolrich] era um
mestre. O meu mestre” (Pereira 2002: 37)11. Não se tratando este “grito” de uma
denominação de género minimamente fundamentada, ou sequer sustentável quando
transposta para o nosso discurso crítico, ele parece-nos precisamente a reivindicação de
um certo desprendimento formal e intelectual, em favor do qual são desprezadas
determinadas expectativas em relação à ficção literária, e através do qual A.T. Pereira
parece chegar a uma estetização do espontâneo e do subjectivo. Assim, colocamos a
hipótese de as ficções de A.T. Pereira estarem mais próximas da poesia e da expressão
lírica (a “massa amorfa” ou a “forma informe” [Martelo 2010]), do que da prosa
romanesca construída com base na verosimilhança e na determinação aristotélicas,
Regressando à sistematização taxonómica dos actos de fala de John Austin, e
reformulando-a nalguns pontos relativos à linguagem literária, Jonathan Culler observou
que, não sendo sujeita aos valores de “verdadeiro” ou “falso”, mas também não, como
argumentara o filósofo da linguagem, aos de “bem sucedido” ou “mal sucedido”, uma
obra literária “performatively brings into being what it purports to describe” (2006:
144). Esta afirmação de Culler vem ao encontro do antes exposto, especialmente
recuperando a citação de Freud, ao alinhar-se com uma tradição de pensamento sobre a
actuação e o poder originador da matéria verbal (“brings into being”), que enfatizou na
obra literária uma qualidade performática, passando a encarar o seu ‘inscritor’ –
Curiosamente, Rosa Maria Martelo dedicou um subcapítulo da sua tese à “Estética do Grito”
na poesia portuguesa neo-realista, na qual detecta justamente a “vigência de uma componente
expressionista” (1996: 127).
11
13
enunciador figurado12 – como performer ficcionalizado retroactivamente: “The
performative utterance automatically fictionalizes its utterer when it makes him a
mouthpiece for a conventionalized authority” (148).
A autoridade convencional do narrador e da sua voz enunciativa será então,
figurativamente, o vaso em que se verte a voz de um autor que sabemos ser real e
humano. No entanto, defrontamo-nos nestas obras com a particularidade de termos de
falar também de autores ficcionais, que cumprem funções numa fábula.
Uma vez que criar seja um desígnio atribuído, aquele que cria está a tornar-se, no
cumprimento do seu papel, criatura. A distinção entre o plano da ficção e o plano da
realidade esbate-se quando o juízo de ficção emana dela própria. O plano da realidade
(exterior) sofre uma explicitação no plano fictício, de tal modo que ser ‘de faz-de-conta’
se torna a realidade da obra:
Tivera várias vezes a sensação de que se tratava de uma farsa, que ninguém
ali falava espontaneamente, que tudo obedecia a um plano prévio.
[Q]uando estava no jardim, o mundo parecia imobilizar-se do outro lado da
rua. “Como se fosse um cenário. Uma tela. E não houvesse nada por detrás”.
As descrições de Tom eram extremamente secas […]. As suas páginas eram
visíveis, os cenários tinham três dimensões, as personagens tinham carne,
sangue… e medo. […] Era quase como ver um filme. (Pereira 1993: 43,
108, 122)
À equivalência entre escrever e pintar, escrever e encenar, escrever e representar,
subjaz uma tarefa comum de realização, isto é, de transformação em realidade de uma
espécie de texto primordial inacessível, em infinita reescrita. O resultado de o que está a
ser escrito ter já sido prescrito são sucessivas narrativas de encenação da escrita de
12
Remetemos aqui para a expressão de Pavis, citado em Martelo 2010: 325, segundo o qual a
cenografia (ceno-grafia) pretende “figurar uma situação de enunciação”.
14
textos em segundo grau, manifestações hipotéticas de um ‘arquitexto’ maior, versões
parcelares, repetições que são “[c]omo uma aproximação infinitamente diferida que
sempre que estivesse prestes a tocar o seu destino este se deslocasse infinitesimalmente”
(Magalhães 1999a: 2).
Como se fossem ensaios teatrais, os diferentes textos produzem efeitos de
reactualização sistemática daquela pré-escrita original, o que, em última análise, é
estruturalmente semelhante ao processo de interpretação literária. Por vezes, e no limite,
as equivalências sugeridas desdobram-se em escrever e ser – e ser lido e escrito –,
resvalando para um ensaísmo da identidade, em sentido teatral, que parece responder à
comparação de Paul Ricoeur entre personagem e humano com base na imitação da
acção que, deixa o autor implícito, é comum aos dois13.
Também Antonin Artaud, no primeiro manifesto do seu “Teatro da Crueldade”,
sublinhou uma confluência aqui relevante, com a qual ele substituiu a velha dualidade,
entre “l’auteur et le metteur en scène, remplacés par une sorte de Créateur unique, à qui
incombera la responsabilité double du spectacle et de l’action” (Artaud 1985: 144).
Segundo Artaud, para quem “il n’y a rien d’existant et de réel,/ que la vie
physique extérieure” (Artaud 1974: 110), caberão ao Criador as tarefas de projectar no
abstracto as palavras ou ideias, e de organizar no espaço, materialmente, as acções, para
formar enfim e sequenciar os signos de uma linguagem unificada, fisicamente
concretizável. O seu tratado em verso sobre o “teatro da crueldade” diz: “La terre se
peint et se décrit/ sous l’action d’une danse terrible” (id. 115). A missão desta forma de
“Les personnages de théâtre et de roman sont des humains comme nous. Dans la mesure où le
corps propre est une dimension du soi, les variations imaginatives autour de la condition
corporelle sont des variations sur le soi et son ipséité. […] La Terre est ici plus et autre chose
qu'une planète : c’est le nom mythique de notre ancrage corporel dans le monde. Voilà ce qui
est ultimement présupposé par le récit littéraire en tant que soumis à la contrainte qui en fait une
mimèsis de l’action. Car l’action «imitée», dans et par la fiction, reste elle aussi soumise à la
contrainte de la condition corporelle et terrestre” (Ricoeur 1990: 178).
13
15
teatro é então “achever de construire la réalité./ Car la réalité n’est pas achevée,/ elle
n’est pas encore construite” (id. 110). Parece-nos pertinente ler os contos e as novelas
de A.T. Pereira, adoptando esta linha de análise, enquanto objectos literários dotados de
uma hiperconsciência da sua própria poiesis, ou da construção da (sua) realidade.
Como já referido, lidamos na argumentação que orienta este trabalho com uma
acepção dupla do termo ‘representação’: enquanto uma acepção generalizada da
imitação ou mimesis clássica; e enquanto função atribuída aos actores, a acção de
representar ou de interpretar. A par desta segunda acepção estará também o que, em
“Turning the Screw of Interpretation”, Shoshana Felman (1982: 94-207) classificou
como o “acting out” do texto, uma ideia de figuração do discurso, inspirada na novela
de Henry James, que poderemos localizar no cerne da prática literária de A.T. Pereira 14.
Ao citar nesta introdução apenas as obras iniciais da autora, a nossa intenção é
constatar a genealogia possível de uma problemática. Vejamos que, no primeiro caso
(Matar a Imagem [1989]), o início da narrativa coincide já com o fim de uma escrita
(“Terminara o livro” [9]). Isto quer dizer que a protagonista concluiu no início daquele
livro a escrita de um outro livro. O primeiro bloco de texto faz-se, depois, de pequenas
meditações sobre o sucedido: tratou-se de uma entrega sacrificial (“um vampiro
visitara-a todas as noites e sugara-lhe o sangue até ao amanhecer”); ela tinha estado
“muito longe”, “[n]a quinta dimensão”; a ficção tinha passado a integrar a sua realidade,
mas fora finalmente banida para o espaço do papel (“As personagens com as quais
vivera ultimamente tinham partido e ela estava só”), e, mais do que banida, “a história
ficava aprisionada, já não podia fugir, desaparecer no ar” (9-10).
Além de abrir caminho a este conjunto de (im)possibilidades epistemológicas,
escrever pode prolongar-se para uma forma terrífica de ontologia (“havia nela um medo
14
Este ponto e uma leitura do texto de Felman são abordados no subcapítulo 2.2.
16
feroz da escrita, de cair no poço sem fundo que era ela própria”), e desperta a
necessidade de repetição da experiência e recuperação do convívio com os “seres
fantasmagóricos”, regressando ao esquema de vampirismo: “Era preciso começar de
novo, inventar um outro livro” (11-2), como se a realidade, sem a ficção, permanecesse
incompleta.
O diálogo com Der Himmel über Berlin (1987) dita claramente a posição da
protagonista desta novela no espaço interdimensional: “O anjo da biblioteca, o da
solidão, o narrador... ela mesma” (20). É também do filme de Wim Wenders que vem
um dilema aparentemente crucial: “Havia dois caminhos, talvez: ser um poeta no
mundo da palavra ou ser um poeta na vida”. Crucial, no entanto, é que em qualquer dos
casos, no “mundo da palavra” ou na “vida”, o caminho seja ser poeta, indiferenciando,
em última análise, literatura e vida.
Além destes exemplos, há que referir o caso representativo de As Personagens
(1990), novela em que, lembrando os pressupostos críticos em relação a Henry James e
ao “texto actuante” elaborados por Shoshana Felman, A.T. Pereira recorre ao motivo da
carta enquanto pedra-de-toque da ficção e do livro. Resumidamente, as personagens que
aqui encontramos são convocadas para o texto e reunidas numa mesma casa através de
cartas-convite que as chamam a cumprir determinados papéis, sob contrato, numa peça
não identificada. Entre elas está, por exemplo, um escritor que responde à proposta de
interpretar o papel de um escritor, ou, mais especificamente, de um argumentista.
As personagens mostram-se perturbadas ao aperceberem-se de que, uma vez
reunidas na ‘casa-texto’ e sem quaisquer instruções sobre o que deverão fazer, há num
quarto vazio uma máquina de escrever que expele com sistematicidade e autonomia
páginas que descrevem cada um dos seus movimentos pela casa. Sabemos pouco antes
do fim que “[o]s jogos e as personagens preexistem” (92), e que o texto subjuga à sua
17
prescrição o escritor contratado para o escrever, ele próprio tornado objecto da máquina
indómita e auto-suficiente.
Sobre a ideia de construção literária que está no centro desta parábola, Rui
Magalhães já havia detectado que:
Há em Ana Teresa Pereira qualquer coisa que não se compadece com a
facilidade do literário, que recusa, por exemplo, aquele artifício tão literário,
que consiste em sugerir. Ana Teresa Pereira não sugere, enuncia, constrói
situações, mesmo quando essas situações se assemelham quase
perigosamente a estereótipos. (1999b: 32)
Nos termos de Magalhães, A.T. Pereira adopta uma concepção literária no âmbito
da qual toda a realidade é encarada como poesia, e toda a poesia é uma forma de
realidade que, como uma máquina de escrever em rebelião, a primeira constrói à sua
medida, por um efeito activo e constante. Afinal, “[o] livro não dorme enquanto está
fechado, transforma-se noutra coisa, o tempo todo” (Pereira 1990: 112).
Como veremos, a arte para A.T. Pereira não parece aspirar à imitação da natureza,
mas à inclusão na natureza, sendo a natureza entendida como o Todo, o pré-existente e
o inventado. Disse Todorov que “[l]’art n’a pas à représenter la vie, dans ce qu’elle a de
plus essentiel, il doit l’être” (1971: 223). A ficção não é entendida como alternativa ao
mundo, mas sim como uma dimensão aumentativa dele. A realidade da ficção é tão
contingente quanto a realidade do real, e prende-se, muitas vezes, com questões de
construção da autoria e da identidade. Recordando a lição de Narciso, o reflectido e o
reflexo existem em dependência mútua. Cancelar a visão e aquilo a que ela dá acesso
significa nestes textos, ‘edipianamente’, matar a imagem de si mesmo 15.
“À volta dos olhos começavam a surgir rugas pequeninas. Fechou-os com força, matando a
imagem que detestava profundamente” (Pereira 1989: 11).
15
18
CAPÍTULO 1
O Fim de Lizzie ou o princípio da incerteza
An unhappy alternative is before you, Elizabeth.
Jane Austen
Pride and Prejudice
A arrumação em tríptico de “Numa manhã fria”, “O fim de Lizzie” e “O sonho do
unicórnio”16 oferece especial evidência ao sistema de ‘intra-referencialidade’ que
atravessa a produção literária de A.T. Pereira, que tende a ser apresentada, também pela
própria autora, como um caudal narrativo incessável e refringente, ou “[c]omo um longo
livro inacabado. Fragmentos de um palimpsesto” (Pereira 2008b: 28).
As três histórias do conjunto, com os mesmos narrador, ponto de vista e
personagens, e ainda enredos comunicantes, acabam por ser tão ‘inter-exclusivas’
quanto são, paradoxalmente, complementares. Elas desmentem-se e complementam-se
na medida em que, se a primeira for aceite como a ‘verdadeira’ história, a segunda não
pode ser, acontecendo o mesmo com a terceira, sem que isso desfaça, todavia, a verdade
rizomática formada na justaposição das três histórias divergentes.
Tendo em conta esta características, podíamos referir-nos a uma estruturação
‘lynchiana’ da narrativa, um apresentar histórias e tecer narrativas que, sem ser
propriamente surrealista, é independente de regimes estritos de verosimilhança e de
causa-efeito.
Utilizamos a edição de 2009 (O Fim de Lizzie e outras histórias, Relógio D’Água), que
acrescenta à edição de 2008, da Biblioteca Editores Independentes, um terceiro conto, intitulado
“O sonho do unicórnio”. A maleabilidade deste conjunto ternário atesta-se ainda no facto de
“Numa manhã fria” ter aparecido antes, isoladamente, na antologia Histórias Policiais (1996).
16
19
Žižek escreveu sobre o problema das várias leituras possíveis dos filmes de David
Lynch – que, sendo diferentes e até contrárias, não têm de se anular – resvalando para
termos que parecem retomar implicitamente a visualização onírica de Baudry, e optando
por uma abordagem psíquica da recepção que já para este tinha sido fundamentalmente
importante no princípio dos anos 1970. Os termos a que o filósofo recorre ajudam-nos a
completar a aproximação entre A.T. Pereira e Lynch, esclarecendo o que, na ficção
desta, é também uma “lógica do sonho” que não conhece a contradição entre elementos
opostos, e que é conceptualmente reforçada no substantivo composto, ele próprio de
certa forma oximorónico, “dream-logic”17.
Neste ponto, pensamos ser pertinente estabelecer na obra de A.T. Pereira uma
analogia entre livro e objecto pictural que se fundamenta sobretudo nesta problemática
da visualidade, bem como na constatação de efeitos de especularidade na construção
literária e na representação da escrita, que ora denotam a necessidade de decifração
(literária), ora advogam a percepção (imaginária, ou figural) de um intérprete que se tem
de constituir a um tempo como legente e observador. Na senda de uma identificação ao
que parece primeva entre livro – ou escrita – e pintura – em sentido “emblemático”,
mais do que como nome de arte –, esta ideia pode ser definida a partir da seguinte
consideração de Paul Zumthor:
Omnis mundi creatura/ quasi liber et pictura… (“la création entière nous est
comme livre et peinture…”): ces vers célèbres d’Alain de Lille nous
interdisent de dissocier liber de pictura, repris ensemble, à la ligne suivante,
par le mot speculum (“miroir”). De ce point de vue, l’écriture tends moins,
en sa fonction primaire, à noter les paroles prononcées qu’à fonder une
visualité emblématique; elle lit, sur la page, l’univers. Celui-ci se souvient –
“The two main alternative readings of Lost Highway can thus be interpreted as akin to the
dream-logic in which you can «have your cake and eat it too,» like in the «Tea or coffee? Yes,
please!» joke: you first dream about eating it, then about having/ possessing it, since dreams do
not know contradiction. The dreamer resolves a contradiction by staging two exclusive
situations one after the other” (Žižek 2000: 38, itálico nosso).
17
20
même si la chute d’Adam lui ravi cette vertu – d’avoir été l’idéogramme
tracé par Dieu pour l’homme. (1987: 138)
A ligação de elementos opostos acontece em A.T. Pereira numa espécie de
‘intratexto’ organizado em unidades léxico-semânticas cristalizadas (a repetição, o
leitmotiv, a citação, o refrão, a imagem, a canção, o feitiço, entre outras), que tanto se
podem corroborar como excluir mutuamente, e que tanto podem ser provenientes dos
modelos da autora como resultar do que é uma – lembrando Helder, ‘poeticamente
contínua’ – autoficção, evidenciada na relação assimilativa entre as três histórias.
Num plano mais superficial, o que vemos nos vários textos são personagens que
ressurgem para ocupar diferentes máscaras (personae), imagens obsidiantes e enredos
parecidos no essencial, que se desdobram e são cortados ou amplificados. Aqui, uma
ideia, uma frase, uma personagem, é a mesma e é também outra em simultâneo, num
exercício aparentemente inacabável de emenda, acrescento e reformulação, e talvez
mais acertadamente de reescrita, incluído na escrita e simultâneo desta, que aumenta o
cômputo das hipóteses na formação de verdades ficcionais pluralizadas. “Noutros
termos” – disse Fernando Guerreiro em Teoria do Fantasma –, trata-se de “um novelo
de ser(es) simulacro(s)” (2011: 15).
Esta proposta de leitura vai ao encontro do que A.T. Pereira declarou em relação à
primeira versão de O Fim de Lizzie: “Há duas realidades possíveis e nunca sabemos
qual delas tem a ver com o mundo exterior. Eu mesma não o sei […]. Posso continuar a
escrever estas histórias indefinidamente” (Pereira 2008c: 11).
21
1.1. Entre imagens e realidades, uma estética não-aristotélica
Ah! si nous avions d’autres organes qui accompliraient
en notre faveur d’autres miracles, que de choses nous
pourrions découvrir encore autour de nous!
Guy de Maupassant
Le Horla
A epígrafe de “Numa manhã fria”, a partir de um poema de Poe ligeiramente
alterado18, dá conta de um paradigma de percepção visual que é a um tempo o meio de
acesso a um todo sensível, ao mundo da superfície e das percepções (“All we see, and
all we seem”), e um índice duplamente deceptivo, do que se vê e do que se mostra, já
que nos chega por um canal eminentemente onírico, preso na analogia entre sonho e
visão (o sentido de onde parece decorrer a alucinação).
A visão enganadora, ou, mais rigorosamente, a visão turva e inviável, tão
recorrente na obra de A.T. Pereira, pode conhecer as suas mais fortes inspirações nas
sombras do film noir, e nas pistas falsas, nos buracos de fechadura e nos relances de
olhos dos policiais que alicerçam o seu imaginário, mas também na atmosfera enublada
de certa literatura gótica, e, mais especificamente, nos episódios desse teor que
encontramos nos labirintos de The Turn of the Screw (1898), de Henry James: o vulto
de Peter Quint, ou de outro – não sabemos –, à janela e no cimo da torre de Bly.
A menção a um tipo de literatura ‘gótica’ permite-nos, por outro lado, abordar um
tema da obnubilação que remonta ao texto bíblico, reapropriado por Sheridan Le Fanu
“All we see, and all we seem,/ are but a dream./ A dream within a dream” (9). O refrão
original do poema de Poe diz, primeiro afirmativa e por fim interrogativamente: “All that we see
or seem/ Is but a dream within a dream”, e “Is all that we see or seem/ But a dream within a
dream?” (Poe 1984: 97).
18
22
em In a Glass Darkly (2008)19. Na verdade, esta colectânea do autor irlandês veio a
público em 1872, não muito antes de Le Horla (1887), de Guy de Maupassant (1986:
35-80), uma narrativa paradigmática de questionação da dimensão visível das coisas e
de evidenciação da falibilidade perceptiva do homem, que, segundo, Henry James,
emula e imita (mal) Edgar Allan Poe20.
Ainda neste particular, e para referir outro texto fundamental para a compreensão
do universo literário de A.T. Pereira, notamos um efeito correlato ao que vem sendo
descrito, embora a um nível mais sensorial e emotivo, no tratamento do que muitas
vezes não é mais do que pressentido ou entrevisto nas deambulações de Jane por
Thornfield Hall (a figura desconhecida que caminha de noite pelos corredores, a
silhueta que se insinua à janela do quarto proibido no sótão), no romance de Charlotte
Brontë, Jane Eyre (1847).
Kevin, o narrador intradiegético (“narrador-rolo, palimpsesto, matéria ao mesmo
tempo sensível e inteligente da história” [Guerreiro 2009: 216]), entra num ‘sonho
transporte’ provavelmente inspirado no da protagonista de Rebecca (1938), de Daphne
du Maurier. A abertura de “Numa manhã fria” (“A noite passada sonhei que tinha
voltado à casa do avô” [11]) ecoa inequivocamente o romance: “Last night I dreamt I
went to Manderley again” (Maurier 2003: 1). Esta declaração, por sua vez, associa-se à
voz que, replicando as mesmas palavras, desencadeia o flashback e a entrada no sonho
no filme de Hitchcock, Rebecca (1940).
19
O versículo a que Le Fanu se reporta no título, na versão que o mesmo terá consultado,
encontra-se na epístola ao Coríntios: “For now we see through a glass, darkly; but then face to
face: now I know in part; but then shall I know even as also I am known” (Cor. I, 13:12, The
English Bible, King James Version, 364-5).
“Le Horla […] is not a specimen of the author’s best vein – the only occasion on which he
has the weakness of imitation is when he strikes us as emulating Edgar Poe” (James 1894: 267).
20
23
Convém sublinhar neste ponto que sob o ‘real lynchiano’ da obra de A.T. Pereira
persiste uma relação estruturante com o cinema de paradigma clássico de Hitchcock,
que não só se manifesta na evidente apropriação das narrativas e da imagética do
cineasta, como chegou em tempos a uma espécie de recriação intermedial, com a
‘falsificação’ literária (talvez, melhor dizendo, realização literária) de um suposto filme
do realizador inglês (cf. Reis 2013: 25-38).
A entrada de Kevin na ficção dá origem a sobreposições irresolúveis no que toca à
sua localização espacial e temporal. “[D]espertei” – e lembremo-nos de que, segundo o
poema de Poe, este não é o despertar para a realidade mas apenas a transição de um
sonho para outro –, “e com uma sensação de irrealidade percebi que estava mesmo na
casa do avô”, e “o jardim estava mergulhado em nevoeiro, como no sonho” (12-14).
Se é de notar que o sonhado e a situação admitida como concreta coincidem num
plano de indeterminação, o estado de alma de Kevin corrobora ainda um princípio de
confluência e de permeabilidade entre categorias de real e irreal. É “com uma sensação
de irrealidade” que ele experiencia o despertar do sonho, e com esse sentimento
inquietante apercebe-se do que é factual (“estava mesmo”)21. O sonho corresponderá
aqui, então, a um estado infantil da consciência. Traduzindo e complementando Poe,
diz-se que “[s]onho é tudo o que vemos e pensamos, desde a infância” (17). O sonho
arrasta consigo um manancial de fenómenos entre os quais se destacará a recuperação
sistemática, mais cognitiva e sensorial do que nostálgica, do tempo infantil, fase onírica,
ou, pelo menos, própria do onirismo e da crença: “tempo em que acreditávamos em seis
coisas impossíveis antes do almoço” (11).
A ‘sobrenaturalização’ do sujeito sonhador – isto é, o solapamento de fronteiras visuais e
espacio-temporais por parte do narrador e protagonista da história – era já um traço importante
no texto de Daphne du Maurier, que foi cinematograficamente replicado na cena de abertura do
filme de Hitchcock: “Then, like all dreamers, I was possessed of a sudden with supernatural
powers and passed like a spirit through the barrier before me” (Maurier 2003: 1).
21
24
Em vez de surgir como revisitação imaginária do passado, a memória anamnésica
é a forma de manifestação e prolongamento daquele num espaço já atemporal. A
memória é o ponto de contacto entre um sonho e outro sonho que nunca acabou: “Às
vezes tenho a impressão... de que somos ainda aquelas crianças. E de que tudo o que
aconteceu depois não foi mais do que um sonho” (116). Como o “I would prefer not to”
de Bartleby, as ladainhas e as recordações não redimem aqui o que terá acontecido na
infância, mas representam o regresso à possibilidade de um passado que na verdade não
foi nem deixou de ser, devolvido à “potenza di non essere” (Agamben 1998: 79).
“Impressão”, “sensação” e “imagem” são palavras-chave do dispositivo visual
deste texto, e denotam ainda a desconfiança das personagens em relação à sua própria
‘percepção alucinatória’ da realidade, que, como sugerido na introdução deste capítulo,
é eminentemente cinematográfica, e foi de certo modo ‘re-conceptualizada’ por
Deleuze em L’Image-temps poucos anos antes de A.T. Pereira começar a publicar 22.
Utilizando termos que ecoam os de Deleuze, a reflexão de Helena Carvalhão
Buescu sobre o “inflacionado enchimento dos tempos que convergem tumultuosamente
para o instante do presente” (2005: 35) convida-nos a ler os textos do nosso estudo
também como eflúvios de um conjunto de práticas e formas artísticas que se tem vindo
a (re)definir como “Modernidade”, marcado por uma fluidez imagética, perceptiva e
constitutiva, que, em última análise, desemboca numa reponderação-em-relação do que
possa significar a nossa contemporaneidade, e do lugar que nela ocupam escritores
como A.T. Pereira. Buescu desenvolve a ideia de que:
“On touche là au plus vif la réalité du cinéma. «Hallucination» est aussi le mot que retient
Gilles Deleuze pour son évocation de «la perception dans les plis». […] [D]ans Le Pli, que
Deleuze a forgé le modèle, psychique-corporel, d’une «perception hallucinatoire»” (Bellour
2009: 114).
22
25
[E]ste carácter historicamente saturado do presente […] explica a sua
transitoriedade e a sua representabilidade paradoxal através de imagens
cristalizadas: as “imagens que passam pela retina” (Pessanha) são tudo
aquilo a que o sujeito acede. Por um lado nelas se concentra a acção
histórica dos tempos que foram e serão; por outro lado elas não podem não
passar pela retina, precisamente. Cristalizá-las, encontrar através do
discurso modos de sua representação pelos quais esses “charcos” se possam
transformar em “lagoas de brilhantes” (Cesário) será, no fundo, a tarefa
daquele a quem Baudelaire chamava já (e repare-se na metáfora visual) “o
pintor da vida moderna”. (id. ibid.)
A inquietação das personagens de A.T. Pereira parece resultar precisamente da
consciência, ou, pelo menos, da desconfiança, de uma diferença axial entre planos do
real fictício e outros reais imaginados ou pressentidos. Poderíamos dizer que, de certo
modo, todas elas são assombradas pelo seu próprio Horla.
A origem do dilema epistemológico das personagens, da história que é
“demasiado confusa” (15) – e enfrentando o problema do flashback/analepse tanto no
filme Rebecca como no conto “Numa manhã fria” –, reside na apresentação “cristalina”
de uma visão do mundo, de uma ‘mundi-vidência’, que já é “dupla por natureza”23.
Em última instância, admitir que a escrita de A.T. Pereira produz algo da ordem
da alucinação cinematográfica implica admitir a alteração que isso reproduz no acto de
leitura. O leitor de um texto construído dentro destes moldes terá de se colocar a si
mesmo numa situação de alucinação, forçado a activar a sua própria ‘performatividade’
de leitor, de maneira a reconstituir em si imagens que correspondam às que estão
codificadas, e já não ilustradas ou “anotadas” – citando Derrida quando este se refere a
“[L]’indiscernabilité [de l’image-cristal] constitue une illusion objective; elle ne supprime pas
la distinction des deux faces, mais la rend inassignable, chaque face prenant le rôle de l’autre
dans une relation qu’il faut qualifier de présupposition réciproque, ou de réversibilité. En effet,
il n’y a pas de virtuel qui ne devienne actuel par rapport à l’actuel, celui-ci devenant virtuel sous
ce même rapport: c’est un envers et un endroit parfaitement réversibles. […] L’indiscernabilité
du réel et du imaginaire, ou du présent et du passé, de l’actuel et du virtuel, ne se produit donc
nullement dans la tête ou dans l’esprit, mais est le caractère objectif de certaines images
existantes, doubles par nature” (Deleuze 1985: 94, itálicos nossos).
23
26
Artaud –, numa nova “escrita teatral”: “écriture hiéroglyphique, écriture dans laquelle
les éléments phonétiques [e, acrescentamos, os elementos gráficos] se coordonnent à
des éléments visuels, picturaux, plastiques” (Derrida 1967: 353). Não estamos distantes,
neste ponto, daquilo que Mário Avelar sintetizou como uma capacidade central da
palavra ecfrástica: “permitir ao leitor visualizar um signo ausente” (2006: 92).
A cinefilia destas personagens parece ter acima de tudo um papel didáctico e
cognitivo: a aprendizagem da vida, ou, mais especificamente, de uma forma de
replicação daquilo a que “[as pessoas] chamam vida” (56). Kevin exemplifica: “Há uma
certa nobreza em aceitar a derrota. Nós tínhamos aprendido isso, como quase tudo o que
sabíamos na vida, num filme. The Browning Version” (id. ibid.).
No seguimento desta ideia, a ontogénese das personagens parte dos filmes que
elas vêem e das imagens que recebem e mimetizam, em detrimento de uma experiência
empírica ou de um relacionamento com o mundo dito ‘real’ em primeira mão. O seu
universo é quase exclusivamente fabular: “falámos de livros de aventuras, de filmes a
preto e branco, de histórias de piratas, de histórias de fantasmas” (33).
O irreal e o real ocorrem como categorias contíguas e reversíveis dentro de
possibilidades infinitas de apreensão e representação do mundo24. Tudo se subordina a
um regime de “experiência visceral” que, parece, advirá da concepção de literário da
própria autora25.
Rui Magalhães expôs eloquentemente esta dinâmica: “A história do real torna-o mais forte do
que o próprio real, i.e., a sua definição. A história do real acrescenta-se ao real, tornando-se
quase a sua única definição possível. A história do real (história real ou imaginária) é a história
da sua continuidade e a história da suspeita de que essa continuidade só existe na palavra que a
define” (1999b: 23).
24
“[N]ão separo a vida da literatura. Não me interessam os exercícios literários mas uma
experiência visceral” (Pereira 2008b: 29).
25
27
A vivenda em que as quatro crianças (Kevin, John, Lizzie e Miranda) cresceram
chamava-se Wistaria Hall26 e estava impregnada das características de outra mansão:
Manderley, em sobreimpressão com os cenários de Hitchcock. O nome da preceptora
das crianças vem também de Rebecca: Miss Winter (como Rebecca de Winter).
Contudo, nas enigmáticas relações que esta mantém com o “avô”, lembra a preceptora
anónima de The Turn of the Screw e o “tio” das crianças, ainda com a especial
roupagem dada pela convocação do corpo de Deborah Kerr, da adaptação fílmica de
Jack Clayton (The Innocents, 1961):
Miss Winter era parecida com Deborah Kerr, uma inglesa alta e de traços
perfeitos, com um ar frio e olhos que exprimiam coisas muito distantes da
frieza. Era loura, de olhos azuis, e quando nos vinha chamar à noite para nos
irmos deitar, com um roupão verde-escuro e o cabelo solto, tinha uma
beleza inesperada. Miss Winter parecia-se com Deborah Kerr, uma bonita
preceptora inglesa numa antiga casa de campo inglesa. (31)
Devemos pois ultrapassar a constatação de uma relação inspiradora entre o cinema
e o tipo de literatura que A.T. Pereira nos apresenta, para notar um elo mais importante
entre eles: uma aproximação, para utilizar os termos de Aguiar e Silva, dada ao nível da
“intersemioticidade”. Encontramos uma explicitação desta ideia na crítica de John ao
romance de Kevin, em “Numa manhã fria”: “É um livro muito cinematográfico. Os
estados de alma representados em imagens” (53, itálicos nossos).
Por outro lado, e tendo em conta o papel que atribui ao advento do nouveau
roman e a autores como Alain Robbe-Grillet e Claude Simon, a reflexão de Aguiar e
F. Guerreiro nota: “Como em Wuthering Heights, de Emily Brontë (as duas mansões,
Wuthering Heights e Wistaria Hall, encontram-se substancialmente ligadas pela partilha dessas
duas primeiras maiúsculas, WH), é desse apego ao antes do nome (identidade, biografia) que
vem o lado selvagem [...], animal ou inumano [...], dos personagens de Ana Teresa Pereira”
(2009: 216).
26
28
Silva, porquanto sucinta e embutida de terminologia semiológica27, pode oferecer pistas,
cum grano salis, para uma tentativa de circunscrição de género, ou, pelo menos, de
delineamento de um parentesco das obras de A.T. Pereira em contraponto com uma
corrente literária pujante na segunda metade do século XX e certamente relevante para o
nosso estudo28.
No caso que nos ocupa, o nó górdio da “transcodificação intersemiótica” para um
modo visualista da narrativa, que seria próprio da imagem em movimento, reside
precisamente numa “focalização” narrativa convertida em estrita subjectividade visual,
ao contrário do que fora previsto por Aguiar e Silva. Excluímos à partida o princípio
discutível de que a câmara de filmar tenha por regra uma “visão neutral”. Kevin –
narrador, lente e participante – é quem, paradoxalmente, (re)apresenta estas histórias
segundo o “ponto de vista superior dos pássaros, ou do destino sobre os homens”
(Guerreiro 2009: 216).
No entanto, o mesmo sistema de sobreposições que dá forma à memória e à
experiência da vida das personagens através de imagens modelares estende-se à pintura,
ela própria dinamizada no voo rasante de um olhar focal (um olhar de leitor). A imagem
“Alguns escritores têm cultivado um subgénero narrativo que se poderá designar por cineromance e que se caracteriza por construir as personagens, as situações e os eventos narrativos
em conformidade com a gramática do cinema, de tal modo que os seus textos se configuram
como que pré-organizados para a sua transcodificação fílmica. [...] A câmara cinematográfica
ensinou o escritor de textos narrativos a converter a focalização em estrita objectividade visual.
Tal como a câmara cinematográfica recolhe e fixa, sem comentários e interpretações, os
objectos, as coisas, a exterioridade, os movimentos e os actos das personagens, [...] uma
narrativa como que «não-narrada», uma narrativa como que entretecida e ordenada pela visão
neutral de uma câmara de filmar («camera eye style»). [...] A gramática e a sintagmática do
texto fílmico influenciaram profundamente a gramática e a sintagmática do texto narrativo
literário e esta influência traduziu percepções e visões novas do real possibilitadas e originadas
pelo discurso cinematográfico. [...] [A] transcodificação intersemiótica da textualidade fílmica
para a textualidade narrativa literária alcançou um elevado nível índice de complexidade
técnico-compositiva e estilística e como ela co-envolve a problemática da construção de novas
visões da realidade” (Silva 2008: 178-9).
27
28
No subcapítulo 2.2 (p. 64), consideraremos uma aproximação à obra polimorfa de Marguerite
Duras e à noção de “réécriture” trabalhada por Marie-Claire Ropars-Wuilleumier.
29
de Lizzie no jardim lembra a Kevin um quadro de Monet (Femme en blanc au jardin
[1867])29; e a recordação de uma paisagem de infância corresponde às telas de
Kokoschka – “A paisagem agreste e rochosa e o mar, onde mesmo nos dias calmos se
adivinhava uma corrente subterrânea [...]. Os quadros que Oskar Kokoschka pintou em
Polperro fazem-me lembrar desse tempo” –, Polperro I e II, de 1939.
Sendo Kevin pintor, a relevância e a simbiose destas paisagens pictóricas na
câmara da sua mente, convertidas em discurso, foi explicitada numa entrevista com a
autora: “Gosto muito de Oskar Kokoschka. Acho que a mente de Kevin se parece com
aquelas pinturas. Rothko, a certa altura. Whistler” (Pereira 2008c: 11). Portanto, esta
também é uma atribuição de afinidades, porventura iluminantes, entre determinada obra
de arte, a rede de associações que ela concentra em si, e a psicologia da personagem.
Depois de estabelecer uma equivalência perfeita entre literatura e pintura,
retomando a debatida formulação horaciana, Henry James declara em “The Art of
Fiction”, a propósito da mentalização da experiência sensível:
Experience is never limited […]; it is an immense sensibility, a kind of huge
spider-web of the finest silken threads suspended in the chamber of
consciousness, and catching every air-borne particle in its tissue. It is the
very atmosphere of the mind; and when the mind is imaginative […] it takes
to itself the faintest hints of life, it converts the very pulses of the air into
revelations. (1984: 52)
Todavia, um dos marcos de O Fim de Lizzie é exactamente o afastamento em
relação ao que poderíamos chamar um paradigma de ‘escrita-pintura’ que conduzira a
obra da autora até então, de sentido figurativo, narração estática, quase sempre
29
“Uma mulher no nevoeiro. Uma mulher no jardim. Femme au jardin” (79).
30
heterodiegética e no pretérito30, no sentido de um paradigma de ‘escrita-cinema’, de
narração problematicamente focalizada (o ponto de vista, subjectivo, é afinal o “das
gaivotas” [133]), quase sempre intradiegética e eternamente contemporizável. A tónica
na escrita permite-nos falar da dimensão figural, mais do que figurativa, deste
paradigma de representação, no qual “la pure figure fait sens sans faire histoire”, e
“quelque chose […] ne peut se dire mais seulement se montrer” (Schefer 1999: 916)31,
orientando o leitor e a sua interpretação para fora da narrativa escrita, ou seja, para uma
forma de excrita que o inclui32.
Muitas páginas depois da primeira ocorrência deste conceito operativo em
Corpus, Jean-Luc Nancy descreve uma nova condição vibrátil da “escrita” que aqui que
nos interessa particularmente: “[l]’écriture ne vaut pas comme une débandade ou
comme un chaos de la signification: elle ne vaut que dans la tension à même le système
signifiant” (2000: 74).
Esta inflexão será sobretudo determinante no nosso estudo para as reflexões em
torno da (auto-)representação do texto e do livro, da figuração da entidade autoral no
interior da ficção e do entendimento da prática literária como forma de criação.
Em O Mar de Gelo podemos ler, por exemplo: “Kate e Clive encontravam-se nos Kensington
Gardens numa manhã de Novembro. Ainda não fazia muito frio e ambos vestiam camisolas de
malha sobre os jeans; o casaco dele servia-lhes de cobertor porque chovera de noite e a relva
estava húmida. Katie sentara-se de encontro a um velho castanheiro e Clive deitara-se no chão,
de olhos fechados, a cabeça nos seus joelhos” (Pereira 2005: 11).
30
31
Schefer relembra no mesmo artigo que a incompatibilidade que se pudesse interpor entre o
figural e a linguagem literária – portanto, à partida verbal e não visual – está, já muito depois de
Discours, figure, de François Lyotard (1971), completamente ultrapassada: “[L]’analyse de
Lyotard consiste […] à renverser plutôt qu’à les dissocier les termes de ce rapport: c’est le
lisible (le texte, l’écriture) qui est à voir, qui se donne à voir comme une réalité spatiale et
sensible […]. «L’écriture, à la différence de la parole, institue une dimension de visibilité, de
spatialité sensible»” (916).
Usamos este neologismo com o sentido que lhe atribui Jean-Luc Nancy: “L’excription de
notre corps, voilà par où il faut d’abord passer. Son inscription-dehors, sa mise hors-texte
comme le plus propre mouvement de son texte: le texte même abandonné, laissé sur sa limite.
[…] [I]l n’y a plus qu’une ligne in-finie, le trait de l’écriture elle-même excrite, à suivre
infiniment brisé, partagé à travers la multitude des corps, ligne de partage avec tous ses lieux:
points de tangence, touches, intersections, dislocations” (Nancy 2000: 14).
32
31
Kevin vai formular uma poética da realização, ou da concretização pela arte,
espoletada pelos retratos de Lizzie que começa a pintar, em referência directa a O
Banquete, de Platão: “Aproximar-se, a palavra mais misteriosa do mundo. Quando faço
um retrato de Lizzie estou a torná-la mais real. Não imagens de beleza, mas realidades”
(124). Nancy, por seu turno, havia dito: “Écrire: toucher à l’extrémité” (2000: 12).
O passo citado, um marco a reter no pensamento sobre a criação que percorre O
Fim de Lizzie e que se estende para as obras seguintes, parece ter origem numa fala da
sacerdotisa Diotima em diálogo com Sócrates:
Ou não sentes que somente a esse, quando olha o Belo pelos meios que o
tornam visível, será dado gerar, não já imagens de virtude (pois não é já a
uma imagem que se apega), mas a virtude verdadeira, uma vez que é ao real
que está apegado? Mais, não achas que o facto de gerar e alimentar a virtude
verdadeira lhe permite ser querido aos deuses e que, se há alguém entre os
homens que possa tornar-se imortal, será esse, precisamente? (Platão 2001:
84, § 212b, itálicos nossos)33
Note-se que, conservando a ênfase na capacidade puramente gerativa, divina, que
Diotima descreve, a formulação de A.T. Pereira substitui a “virtude” pela “beleza”, isto
é, rejeita quaisquer ideias de fundo moral para considerar apenas a dimensão estética da
criação. A adversativa que revoga e reformula o paradigma ético-poético de Platão,
baseado na Beleza, já não se faz entre “imagens de beleza” e beleza verdadeira, mas
entre, apenas, “imagens” e “realidades”.
Curiosamente, os termos do grego εἴδωλα αρετῆς [eidola aretês] encontram-se diversamente
traduzidos como “simulacros de virtude” [simulacres de vertu] (Platon 1992: 71); “fantasmas de
virtude” [fantômes de vertu] (Platon 1964: 73); e “imagens de virtude” [images of virtue] (Plato
1997: 494). O conceito de ídolo, termo primordial traduzível quase indiferenciadamente por
imagem, simulacro ou fantasma, dá assim azo a um campo semântico e lexical variado, de
absoluta relevância na leitura de A.T. Pereira.
33
32
Aquele criador, dotado de um órgão especial (o nous, ou actividade intelectiva),
que – como viria a ser noutros termos sugerido em Le Horla – o capacita para ver além
do imanente, é nada menos do que um criador de realidade, ou, mais rigorosamente, de
realidades. Ele próprio localiza-se num texto que “são várias hipóteses de texto”, “com
diversas camadas (fenoménicas) de objectividade” (Guerreiro 2011: 15).
Por outro lado, o desvio da “verdade” e da “beleza” para o enfoque no processo
que vai da representação (imagem) à realização sugere no texto de A.T. Pereira um
distanciamento desse ideal aristotélico de Beleza para a adopção de um outro, fundado
na enargeia, ou na expressão criativa, como se o órgão de que fala Diotima passasse
aqui a não ter a qualidade de lente (que torna o Belo visível), mas a de motor (sopro,
segundo Derrida), de sintetizador da energia que confere realidade à representação, por
conseguinte, ‘irrepresentando-a’.
À luz da reformulação do primado platónico, podemos avançar que A.T. Pereira,
na senda de Nietzsche e de Artaud, e de princípios românticos, certamente
reconfigurados, está, usando os termos de Derrida, a romper com “le concept imitatif de
l’art. Avec l’esthétique aristotélicienne en laquelle s’est reconnue la métaphysique
occidentale de l’art” (344). O filósofo transcreve depois no mesmo texto a seguinte
declaração de Artaud (que, na verdade, vem funcionando como uma espécie de eixo
comum em torno do qual giram muitos dos autores aos quais temos aqui recorrido):
“L’Art n’est pas l’imitation de la vie, mais la vie est l’imitation d’un principe
transcendant avec lequel l’art nous remet en communication” (id. ibid.).
Encontramos pois aqui o princípio de uma religação (religião) com o universo
através de uma arte que visa o que está “mais fundo” do que as palavras, o seu lado de
33
lá – os seus “rostos” e “vozes” 34, visão e audição, o seu cinema – , e que também
promove, em jeito parcialmente modernista, “uma ideia de poesia [digamos, poética]
que autonomiz[a] o acto poético da sua concretização verbal” (Martelo 2012: 15).
Em última instância, estamos a referir-nos a um tipo de “estética não-aristotélica”,
que implica uma relação entre arte e vida que prescinda de hierarquia e cisão entre elas,
baseando-se na sensibilidade (isto é, sendo sensorial) e na força (Campos 2006 e Cappa
2004), e comparável, como proposto pelo heterónimo de Pessoa, às geometrias não-euclidianas, na medida em que ambas são “abstracções de vários tipos da mesma
realidade objectiva” (Campos 2006: 106).
Caracterizando a arte clássica e suas “derivadas”, para as quais “a beleza é o fim”,
e afastando-se delas, como A.T. Pereira veio a fazer, o poeta explica:
Creio poder formular uma estética baseada, não na ideia de beleza, mas na
de força – tomando, é claro, a palavra força no seu sentido abstracto e
científico […]. A arte, para mim, é, como toda a actividade, um indício de
força, ou energia […]. [A] arte, como é feita por se sentir e para se sentir –
sem o que seria ciência ou propaganda –, baseia-se na sensibilidade. A
sensibilidade é pois a vida da arte. […] Assim, ao contrário da estética
aristotélica, que exige que o indivíduo generalize ou humanize a sua
sensibilidade, necessariamente particular e pessoal, nesta teoria o percurso
indicado é o inverso: é o geral que deve ser particularizado, o humano que
se deve pessoalizar, o “exterior” que se deve tornar “interior”. […] O artista
verdadeiro é um foco dinamogéneo […]. (id. 107-11)
34
Cf. p. 40, Nota 40.
34
1.2. “Usar a arte como se fosse magia”: o delito do criador
This is indeed Life itself!
Edgar Allan Poe
The Oval Portrait
Veremos adiante que ao processo de formação de “realidades” a partir de
“imagens de beleza”, de que a figura de Lizzie, uma descendente de Galateia 35, é aqui o
paradigma, subjaz um fenómeno de desumanização pela arte que redunda na
‘artificação’ do humano. A transferência pictural entre a natureza e a arte, que
transporta a realidade para a segunda vampirizando-a da primeira, é decerto uma
recriação de A.T. Pereira da situação central de “The Oval Portrait”, de E.A. Poe.
Em relação íntima com o autor americano, mas também com The Picture of
Dorian Gray, de Oscar Wilde, que, tendo contornos substancialmente diferentes (e uma
dinâmica aparentemente inversa entre o retrato e o retratado), passa por questões
semelhantes, “O fim de Lizzie”, e, em variação, cada uma das histórias do tríptico
parece incorporar a premissa de que a vida é morte e a arte é vida.
Desde o momento em que Kevin faz uso daquilo que em certas instâncias do
pensamento sobre a arte se considera o “poder mágico de transubstanciação de que [o
artista] é dotado” (Bourdieu 1996: 199), ao pintar os retratos de Lizzie, ao recriá-la, ao
torná-la mais real, investido de “uma capacidade demiúrgica que tal” (id. ibid.), ele está
a actuar sobre ela, logo, a fazer obra sua e a incorrer numa insolência de índole
Sobre o valor de ideal de Lizzie, leia-se: “Ainda hoje não sei se era Lizzie, o seu duplo, ou
uma mulher que se parecia vagamente com ela. Talvez àquela hora da noite todas as mulheres
se parecessem com Lizzie” (113).
35
35
prometeica que, como o próprio revela, não o deixa impune: “Eu quis usar a minha arte
como se fosse magia, e os deuses não me perdoaram” (137).
O conjunto de actividades profissionais a que cada personagem se dedica sintetiza
as linhas de interesse e de trabalho mais importantes na obra de A.T. Pereira: a
psicologia e a psicanálise, a escrita, a filosofia, a pintura e a representação. O seu
tratamento em O Fim de Lizzie mostram claramente que elas constituem uma cadeia
permutável entre as personagens de ‘disciplinas-funções’ que guardam na raiz um
princípio comum, ou seja, que têm algo de semelhante ou de totalmente equivalente.
Veja-se, por exemplo, a seguinte consideração de Kevin, anterior à primeira alusão ao
“[s]eu livro”:
A psicanálise interessava-me muito, particularmente Freud, Melanie Klein,
Otto Rank e Bruno Bettelheim. Os autores contemporâneos deixavam-me
indiferente. Acho que para mim a psicanálise era acima de tudo uma forma
de ficção, talvez um ramo da literatura fantástica: a interpretação dos
sonhos, a concepção animista do universo, a inquietante estranheza, o
retorno constante da mesma coisa, o poder mágico das palavras, o duplo e a
sua ligação com o reflexo na água e nos espelhos. (42)
Além do leque de temas da própria autora enumerados por este escritor ficcional,
é de reter aqui sobretudo o entendimento da psicanálise enquanto “forma de ficção”, que
remete para Borges e para os metafísicos de Tlön, que, como Kevin, “no buscan la
verdad [em sentido comum] ni siquiera la verosimilitud: buscan el asombro” e “[j]uzgan
que la metafísica es una rama de la literatura fantástica” (Borges 1986: 20). Será este
um dos principais afluentes da “arqui-ficção” (Guerreiro 2009: 221) em que consiste o
universo destas personagens36.
Leia-se, por exemplo: “Nós acreditávamos em Deus devido a Sherlock Holmes, e fumávamos
por fidelidade a um filme de Nicholas Ray, e aprendêramos a contar histórias com Eudora
36
36
Em “O fim de Lizzie”, reconhece-se a parecença entre Kevin e John, o seu duplo,
na figura comum de “[u]m deus que vagueava pelo nevoeiro. Um deus a quem rezava
todas as noites porque no fundo tinha medo dele” (164). Os dois homens são então
deuses proscritos e escritores. Kevin pode oferecer ao outro o seu corpo oco, esvaziado
pela escrita “dinamogénea”37 do livro que “[o] matara por dentro” (169), e John é, como
Sherlock Holmes, o fantasma que o pode possuir, “[u]ma personagem que passava de
um corpo para outro. No seu lado mais negro, […] um vampiro que sugava a vida dos
actores, depois de sugar a vida do criador” (179).
Esta é então a condenação de Kevin, um ser ambíguo, personagem e autor:
“sonhar os sonhos das personagens” e perder-se no ‘livro-labirinto’ que o próprio ergue
em seu redor na tentativa de “saber quem [é]” (176). A palavra ‘livro-labirinto’ traduz
uma justaposição efectuada por ele próprio: “Um labirinto é um lugar onde alguém se
perde ou alguém se encontra; era nesses termos que eu pensava no livro que acabara de
escrever” (156).
A presença de Borges é novamente evidente. Por um lado, no seu percurso
enquanto criador de Lizzie, Kevin replica o sonhador de “Las ruinas circulares”, cujo
fito era “soñar un hombre […] con integridad minuciosa e imponerlo a la realidad”
(1986: 54, itálicos nossos). Tal como este eremita, Kevin será confrontado com um
desfecho que inverte toda a situação, e que o levará a suspeitar de que ele próprio
também era uma aparência (o “sonho dentro de um sonho” de Poe). Por outro lado,
Kevin segue a lição de construção literária de Ts’ui Pen, o antepassado do autor da
declaração encaixada em “El jardín de senderos que se bifurcan”, e que teria dito uma
vez: “Me retiro a escribir un libro”, e outra vez: “Me retiro a construir un laberinto”
Welty (as mulheres que vinham do mercado ao fim da manhã e contavam tudo o que tinham
visto)” (204).
37
Cf. p. 34 (Campos 2006: 107-11).
37
(1986: 99). No conto de Borges, “[t]odos imaginaran dos obras” (id. ibid.), mas livro e
labirinto eram um único objecto, e é com o conhecimento desse facto, já de certo modo
apriorístico, que devemos ler o conto de A.T. Pereira.
No centro da primeira narrativa, numa posição estrategicamente medial, Kevin
afirma, na qualidade de autor e storyteller, que “[a] história ainda não acabou” (45). Na
verdade, a história acabará apenas quando ele a der por terminada, dando
simultaneamente por terminado o (seu) livro, o que está simbolizado no fecho de um
manuscrito que implica o cessar da narração. Lê-se exactamente no fim de “Numa
manhã fria”: “De passagem, fecho o caderno que está em cima da secretária” (86).
A partir daqui existirá dentro das histórias – remetendo para fora delas, para o
universo do leitor e daquilo a que ele acede, originando um comprometimento ‘tlönico’
da distinção entre o que são objectos do real e elementos da ficção –, um livro real que
se confunde irresoluvelmente com um livro fictício, a tal ponto materializado que se
torna citável: “Uma frase de um livro: «ninguém tinha os olhos mais azuis, a cintura
mais fina, as pernas mais bonitas»” (93), diz o narrador logo no primeiro capítulo da
segunda história38, referindo-se ao livro que seguramos. Portanto, quando lidas em
relação, as histórias de O Fim de Lizzie reconhecem-se entre si como partes de um livro,
sem que isso prejudique a fábula, que inclui em si mesma esse desdobramento para fora,
para a materialidade literária.
A primeira fase do trânsito do texto é resumível num esquema em quiasmo entre
as duas primeiras histórias: há um livro, que Kevin escreve (O Fim de Lizzie), dentro de
um sonho (“Numa manhã fria”), lembrado dentro de outro sonho (“O fim de Lizzie”),
38
Esta trata-se da descrição recorrente da figura de Lizzie, também associada à de Miranda, que
surge efectivamente e pela primeira vez em “Numa manhã fria”, o “livro” citado na abertura do
segundo conto, nos seguintes termos: “Ninguém tinha os olhos tão azuis, como os miosótis à
beira dos riachos que atravessam a charneca. Ninguém tinha a cintura tão fina, tão incrivelmente
fina, ninguém tinha as pernas tão bonitas. A não ser Miranda, claro” (18).
38
que está dentro de um livro (O Fim de Lizzie). Na terceira volta ao parafuso que vem
dar “O sonho do unicórnio”, o conjunto das narrativas é inexoravelmente absorvido pelo
onirismo, e comparado a “[u]ma maldita história de urze e nevoeiro, como o sonho de
uma escritora do século XIX”. O seu narrador mitificado – Heathcliff e “unicórnio” –,
pode apenas regressar, no fim, ao princípio, sonhando continuamente consigo mesmo,
para concluir: “A noite passada sonhei com um unicórnio” (210).
A “maldita história”, os deuses que “não perdoaram”, a casa que “parecia existir
num dos seus malditos livros” (129), os escritores que “devem estar todos no inferno”
(id. ibid.), e mesmo a proximidade fonética entre “Inverno” (espaço-tempo transversal
aos três contos) e “inferno”, qualificam e simbolizam a actividade sacro-profana da
escrita, ao mesmo tempo que prenunciam a maldição aplicada aos que ambicionam
criar. As analogias mais frequentes, porquanto implícitas, aplicadas a Kevin/John
fazem-se ora com Deus (“maker [...] of all that is, seen and unseen” [119]), ora com um
assassino (“capaz de matar” [id. ibid.]).
Em “Numa manhã fria”, ele dormia com um revólver “debaixo da almofada” (65);
em “O fim de Lizzie”, matava Lizzie “aos poucos” enquanto a desenhava (117-18), ou
seja, enquanto se aproximava dela na esfera ideal, para a fazer depois prisioneira da
realidade39; em “O sonho do unicórnio”, frustrado ante a impossibilidade de, mesmo sob
a sua acção pigmaliónica, Miranda (a que “existia” [200]) ser realmente Lizzie (que era
“mais um fantasma do que outra coisa” [188]), ele culmina como enunciador e
assassino, usando a palavra com o valor reverso ao da criação, e aniquila o corpo de
Miranda através de um acto de fala literalmente performativo, uma sentença de morte:
“Morre, meu amor” (201).
“Aproximar-se, a palavra mais doce do mundo. Acho que me aproximo dela mais do que
antes, e mesmo o seu reflexo no espelho ou na água é muito mais real. [...] E neste momento é
isso que conta. A única coisa que conta. Dar-lhe realidade, não a deixar ir embora” (124).
39
39
Assim, faz sentido que Kevin tivesse desde cedo “a intenção de tornar-[se] um
psicólogo criminal”, para atingir um domínio intelectualizado – artístico, se, como a
psicanálise, a psicologia for uma “forma de ficção” – da criminologia, sendo certo que
“também pensava ser escritor”, “mas não [lhe] parecia que as duas profissões fossem
incompatíveis” (23-4, itálicos nossos).
A compatibilidade das profissões, uma de inspiração divina e outra versando o
demoníaco, reflecte-se na dupla natureza das duas principais intervenientes na acção:
Lizzie e Miranda. A primeira é uma personagem romanesca e um ideal da narrativa
sentimental, uma mulher angélica, espírito assumidamente furtado ao “romance de Jane
Austen”40; a segunda é uma personagem dramática e uma actriz (Miranda, “como na
Tempestade” [110], de Shakespeare), um corpo material possuído na representação da
primeira, e, por isso, demoníaco, ou, em oxímoro, endemoninhado por um anjo 41.
Se o epílogo de “Numa manhã fria” veio responder à resolução de Kevin: “Um
final feliz, pensei”, “[n]ós tínhamos direito a um final feliz” (81), ele sofre um efeito de
inversão (“Todos os epílogos são tristes” [198]), e é retomado no penúltimo capítulo da
última história: “Começava a anoitecer quando fechei o caderno e me ergui do sofá. [...]
Escrevo a primeira versão com uma esferográfica azul, num caderno liso ou em folhas
soltas. O conto estava quase terminado, só faltava escrever o epílogo” (id. ibid.).
De certa forma, é como se o que ficou entre a primeira situação epilogal e a
segunda não passasse de uma grande elipse, de um intervalo delirante entre parar de
escrever e continuar a escrever, e a compilação das histórias fosse a própria história
40
Mais tarde, Lizzie dá sinais da sua pertença a esse outro microcosmo já esbatido na sua
memória, oferecendo pistas do rapto literário: “Ao serão, [...] li em voz alta o primeiro capítulo
de um romance de Jane Austen. Lizzie ouvia-me com os olhos muito abertos, como se tentasse
reconhecer as palavras. Ou talvez algo mais fundo do que as palavras. O rosto das personagens.
As suas vozes” (135).
Em Num Lugar Solitário, por exemplo: “Os anjos são ambivalentes. É impossível separar a
beleza do terror, a vida da morte. Como escreveu Rilke: «Todo o anjo é terrível»” (1996b: 77).
41
40
intermitente dessa escrita, acção continuada, ou, do ponto de vista exclusivo de Kevin, a
narrativa in(de)terminável da sua narração. Nos mesmos moldes, o romancista oriental
de Borges não havia conjecturado “otro procedimiento que el de un volumen cíclico,
circular. Un volumen cuya última página fuera idéntica a la primera, con posibilidad de
continuar indefinidamente” (1986: 99-100).
Note-se que o segundo epílogo prolonga e leva a um extremo a recursividade
linguística do que nas artes visuais se conhece como efeito Droste – uma imagem que se
repete dentro de si mesma –, que fora instaurado no primeiro, e remete tanto aos contos
anteriores como ao fim iminente deste livro, numa confusão de sentidos que neutraliza
qualquer sequencialidade lógica da escrita, e, no fundo, assume um “aleatório princípio
de «eterno retorno»” (Guerreiro 2009: 218): “As folhas manuscritas amontoam-se na
secretária, no meio dos livros. Não estão numeradas, mas acho que isso não tem
importância. Dois contos terminados42. No fim da última página escrevo to be
continued” (209).
As páginas inumeradas do livro de Kevin fazem parte de uma dimensão caótica da
ficcionalidade que já havia sido sugerida na persistência do “nevoeiro” que surge em
determinados momentos, como um aviso, envolvendo os espaços e as pessoas da
criação. Este nevoeiro das narrativas de A.T. Pereira representa o caos ‘pré-genesíaco’,
“um factor de embranquecimento: espiritualização (com passagem para outro plano) do
real (o seu estatuto é semelhante ao do éter [Poe, Eureka…])” (Guerreiro 2010: 58).
Citando Poe, ele é “the great medium of creation” (Poe 1984: 825). Análogo da palavra
bíblica, o nevoeiro antecede o momento da formação e da revelação das coisas, e
regressa ciclicamente a cada nova manhã da (re)criação. Repare-se no seguinte trecho
de “Numa manhã fria”, repetido ipsis verbis em “O fim de Lizzie” (121):
42
Podemos inferir que se trata de “Numa manhã fria” e “O fim de Lizzie”.
41
No princípio era o nevoeiro.
Nós assistíamos ao início da criação todos os anos: o mundo era feito de
nevoeiro, e um dia, quando menos esperávamos, Deus afastava as nuvens,
como se afastasse um véu, e a terra revelava-se com as cores e os cheiros, e
uma luz inesperada… (29)
Nas três histórias, é fundamental a relação do nevoeiro com a casa – como em
“The Fall of the House of Usher”, de Poe, e como na adaptação de Jean Epstein – na
charneca onde Kevin se dedica a escrever: um nevoeiro “muito denso. Como se
estivesse concentrado à volta da casa. Como se quisesse entrar na casa” (77).
Interromper a segurança desta casa, bem entendida como scriptorium, é dar passagem
ao elemento intangível subitamente insuflado pelo acto da escrita: “Abri a porta que
dava para o jardim e o nevoeiro envolveu-me quase imediatamente” (79). O nevoeiro
era uma matéria volátil que descia sobre o contador de histórias, que “chegava de
repente e transformava o mundo num lugar estranho, incompreensível” (92).
Em síntese, é atribuída ao nevoeiro a função de fazer “desaparecer o tempo, a
realidade”, e de confundir as identidades: “E nem sequer sabemos quem somos” (118),
conduzindo à demência e à dissociação identitária sob um lema: “loucos de bruma e de
neve” (189), que se repete, como num “poema de Yeats que [Kevin] recordava
vagamente”43 (207). Este vapor que exsuda das florestas do sonho terá de ser lido, antes
de tudo, como manifestação colateral da ficcionalidade, tanto como matéria-prima como
excrescência do acto de criar.
A nossa leitura tem em conta o desejo de ubiquidade de Lizzie (“estar ao mesmo
tempo em vários quartos da casa, em vários cantos do jardim” [89]), sendo ela própria
nebulosa, “feita da matéria dos sonhos de Inverno [de Kevin]” (98). Os seus cabelos,
“húmidos, revoltos, cheiravam a nevoeiro” (81). Lizzie é a personificação de um ideal
43
“Mad as the Mist and Snow” (Yeats 1994: 316).
42
artístico que nunca se completa devido ao choque com a imanência: Miranda44; ou o
símbolo antropomórfico de uma ideia maior de ficção, Galateia interrompida 45.
Em “O anjo esquecido”, A.T. Pereira escreve sobre uma relação “com o invisível.
Em toda a parte, como uma escrita” (2003: 120), isto é, de uma dimensão invisível do
mundo que existe em permanente devir literário, e da escrita como matriz atómica e
(in)inteligível do universo. Em “O sonho do unicórnio”, por outro lado, o escritor
(Kevin) e a actriz (Miranda) dialogam sobre a semelhança entre o que fazem:
– Imaginas o que é… transformar-se noutra pessoa todas as noites?
– Acho que sim.
– Sim. Tu és escritor.
– Eu também ganho a vida a mentir. (170)
“Ganhar a vida a mentir” pode ser entendido em sentido literal. Repare-se nas
elucubrações de Kevin um pouco depois: “para nós a única coisa que fazia sentido era
entregarmo-nos a uma personagem”, e “[q]uando não estou a trabalhar sinto-me
completamente irreal” (182-3). São a representação e a escrita, o trabalho, que acabam
por surgir como vias de acesso ao real. As duas personagens realizam – ela um papel, o
de Lizzie, e ele um texto, a história de contar a história dessa “mentira” –, e, na
confluência das duas acções (agir, actuar, indo à polissemia do verbo inglês to act),
realizam-se, e coincidem com uma realidade imaginada através da sua representação em
sonhos (“Se me lembro dos sonhos, então devo ser real” [183]).
44
Na cena de disjunção entre os duplos de Lizzie e de Miranda que conduz à revelação da
segunda em “O sonho do unicórnio”, Kevin vê precisamente o corpo carnal de Miranda, pela
primeira vez, como “um vulto magro a desprender-se do nevoeiro” (168), isto é, vê-a recuperar
a realidade que a encarnação da fantasia (Lizzie) até então havia ocultado.
45
Significativamente, no último capítulo da terceira história, Kevin lê Lament for a Maker, de
Michael Innes (207).
43
A encenação da memória é também um critério de “realidade” aprendido com os
replicantes do romance de Philip K. Dick, aos quais é providenciado um “synthetic
memory system” (Dick 2009: 97) que colapsa ao ser posto em questão pela mesma
criatura antropomórfica confundida por ele: “When one thinks it’s human” (id. ibid.).
As personagens de A.T. Pereira também acontecem como sobreposição de vozes e
de imagens, como participantes na mise en scène de um texto dramático prescrito:
– Mas não me interessa fazer nada além de representar.
– E não me interessa fazer nada além de escrever… […]
– É tudo o que eu quero… – disse com firmeza. – Escrever. Não me
interessa ser rico, mas quero ganhar a vida com o meu trabalho. E quero que
os meus livros fiquem.
Ela olhava para longe.
– Entrar num palco todas as noites. Saber quem sou todas as noites.
– Sim. Saber quem sou durante uns meses ou uns anos.
– Entrar num palco todas as noites. E depois dormir e sonhar os sonhos
das personagens. […]
– E apaixonar-me por pessoas que não existem.
– E apaixonar-me por pessoas que não existem. (176)
Jean-Pierre Sarrazac descreveu a “teatralidade”, associada ao “vazio da cena
moderna” (Sarrazac 2009: 16), em termos que sintetizam grande parte das nossas
questões, e que guiam a nossa própria abordagem a este assunto, na medida em que,
quando utilizamos aquele substantivo, ainda que metaforicamente, estamos a pensar
especialmente na definição deste autor: “teatralidade… Mudança de regime no teatro,
que se liberta do espectacular associando o espectador à produção do simulacro cénico e
ao seu desenvolvimento” (17).
Esta forma de arte poética moderna – “um elemento de criação, não de realização
[cénica]” (Barthes apud Sarrazac 2009: 32) a que se junta a ideia de um regresso ao real
através da ficção – justifica uma aproximação às teorias de Artaud e do seu “teatro da
crueldade”, que, lido por Derrida, passa pela renúncia, importante nas leituras que aqui
44
fazemos, de “un certain modèle de parole et d’écriture: parole représentative d’une
pensée claire et prête, écriture […] représentative d’une parole représentative” (Derrida
1967: 286, itálicos nossos).
Estamos então a lidar em A.T. Pereira com um novo modelo de “escrita” de que O
Fim de Lizzie é porventura a melhor configuração na obra da autora: a passagem do
enunciado ao acto, ou de uma linguagem verbal a uma linguagem teatral, “[u]n langage
qui n’est pas séparé de son avenir, de sa propre création”, e cujo pólo de atracção, em
vez da Ordem, é o Caos (Todorov 1971: 214-5)46.
Reverberando o que, segundo Maria Cristina Ferraz, é um princípio poético da
Grécia arcaica, podemos afirmar que estes textos estão escritos fora do modelo da
“palavra-diálogo” (da linguagem verbal), em favor do uso da palavra num “contexto
mítico-religioso, representado por três personagens: o rei de justiça, o adivinho e o
poeta” (da linguagem simbólica), conforme coloca a estudiosa num ensaio dedicado à
mimesis e ao fingimento poético na antiguidade. A recuperação de um “contexto mítico-religioso” no uso da palavra será um ponto fundamental na nossa leitura de A Pantera,
no subcapítulo 3.1. A mesma autora explica que:
A partir do momento em que fosse articulada, [a palavra] tornava-se, de
imediato, uma potência, uma força, uma acção. Submetida às leis da physis,
era percebida como algo vivo, como uma realidade natural que, como todas
as demais, também brotava e crescia. […]
Dotado de um dom de vidência, o poeta da Grécia arcaica pronunciava
uma palavra eficaz que instituía, por sua virtude própria, um mundo
simbólico-religioso que se confundia com o próprio real. (2010: 32-3)
46
Também Blanchot (1969: 432-8) interpreta o texto de Artaud como uma teoria da arte em
geral (ou como uma arte poética), não exclusivamente aplicada ao teatro.
45
Por outros termos, Fernando Guerreiro nota que “a escrita (ou a linguagem) em
Ana Teresa Pereira possu[i] o poder instaurador de uma primeira nomeação que cria
conjuntamente o nome com a coisa” (2009: 215), e que se manifestará, acrescentamos,
na ‘dicção-grafia’ sempre original da palavra enquanto actuação. É por isto que Kevin
pode afirmar: “Azul, bruma, neve. Inverness. Acontecia-me de tempos a tempos,
quando estava a escrever: escrever uma palavra pela primeira vez” (162). O ‘contador
de histórias’ foi já anteriormente descrito como mago, criador e herege:
John era um grande contador de histórias, que nos hipnotizava durante o
serão inteiro. Como um bom mágico (que fazia crescer uma laranjeira em
poucos segundos, fazia as borboletas esvoaçar, transformava um homem em
dois, em quatro, em muitos), acreditava na sua magia, deixava-se envolver
pelo mundo que imaginara. (104)
Envolvido numa acção demiúrgica mas simultaneamente impotente, Kevin é
levado a questionar: “De onde é que me viera aquela ideia?” (158). Se ele escrevesse
pelo mesmo punho que Derrida, teria a resposta:
Soufflée: entendons du même coup inspirée depuis une autre voix, lisant
elle-même un texte plus vieux que le poème de mon corps, que le théâtre de
mon geste.
[Il] est l’inspiration elle-même: force d’un vide, tourbillon du souffle d’un
souffleur qui aspire vers lui et me dérobe cela même qu’il laisse venir à moi
et que j’ai cru pouvoir dire en mon nom. (1967: 262-3)
Não por acaso, Kevin é assombrado no final do livro por uma voz do alto, não
identificável, que “parece a de alguém sentado nos [seus] ombros” (210), e que lhe vem
explicar a sua história e questionar os seus intentos. Esta voz omnisciente e
reivindicativa da palavra que lhe fora “furtada” pelo narrador escritor, reafirma o poder
inescapável da ficção (“Qual delas sonhava realmente com um unicórnio. «As duas
46
sonhavam com um unicórnio», disse a voz, trocista” [207]), mesmo em relação ao seu
autor, que, como em As Personagens, é feito prisioneiro perpétuo na ‘casa-livro’: “Há
muitos dias que estou sozinho em Wistaria Hall. […] Mesmo que quisesse, não poderia
ir embora. «Ir embora para onde», pergunta a voz” (209).
Tal como acontece com as personagens femininas, criaturas do seu artifício, o
narrador pode apenas reencenar o seu papel, regressar ao princípio do livro e ao sonho,
vendo-se já completamente desprovido de realidade e reduzido a uma operação da
memória: “A noite passada sonhei com um unicórnio” (210).
Repare-se que as epígrafes do tríptico, se lidas em sequência, são elas mesmas um
programa literário. Do “sonho dentro de um sonho” inspirado por Poe – ou seja, de um
movimento inicial para dentro da alucinação, aqui, como se viu, equivalente a
ficcionalização que constitui o Todo ou o Universo (“All”) –, passa-se em “O fim de
Lizzie”, a novela epónima do conjunto, a um novo estado, o do ser fantasmático, da
espectralização da personagem antes sonhada e agora dotada de uma existência
sublinhadamente vestigial, dada pelos indícios da sua passagem: “pegadas de uma
mulher na lama” (89).
Na última história, com o consolidar deste processo, dá-se a encarnação da arte
(ou a ‘artificação’ da carne, tendo em conta a circularidade do efeito): um contágio da
carne pelo artifício, que os torna comuns, juntos em inquietante familiaridade, e
elementos de um sistema circulatório entre-mundos, capaz de produzir “as mais
estranhas formas”. A epígrafe é atribuída a Sherlock Holmes: “Art in the blood is liable
to take the strangest forms” (141).
Também em Artaud encontramos uma sistematização destes problemas que
preconiza uma união entre corpo e pensamento, em que o primeiro, inclusivamente, e
como observa Guy Scarpetta identificando precisamente aquilo que considera “o que se
47
deve reter” de Artaud, deriva do segundo como uma das suas dimensões, “active,
dérobée, enfouie” (1973: 276)47, estabelecendo “le bond dialectique incessant, de la
matière à l’esprit, du corps à la pensée, et de la pensée au corps, dans un procès illimité”
(id. ibid.).
Podemos pois confirmar que, estruturalmente, esta é uma autoficção, espoletada
pela ficção ela mesma, quando nasceu para dentro de si com a forma do sonho da
personagem que um autor imaginou. Através do sonho, a relação destas narrativas com
a adaptação cinematográfica de Ridley Scott, Blade Runner (1982), do romance de Dick
torna-se premente, especialmente na polissemia do título da última história, que retoma
uma inovação do filme em relação ao romance: a agudização da suspeita, não mais do
que ironicamente aflorada no livro, de que o protagonista possa ser ele mesmo um
andróide. Cinematograficamente, isto traduziu-se na revelação não comentada, isto é,
sem intervenção da linguagem verbal, de um sonho48.
Associar o último conto de O Fim de Lizzie a esta rede de significações obriga-nos
a fazer uma pergunta que, não tendo como objectivo uma resposta definitiva, mas antes
a enfatização da impossibilidade de resposta que caracterizava já as perguntas de Philip
Trata-se do que Scarpetta definiu como “le procès de surgissement organique” que marca o
texto de Artaud, a emergência de “un corps qui soit une idée” [Artaud apud Scarpetta], uma
saída do “mentalismo” que pretende ultrapassar sistematicamente a relação hierárquica entre
espírito e corpo imposta pela ideologia religiosa (1973: 275).
47
48
A certa altura vemos o protagonista, Deckard, debruçado sobre um piano. Esta cena corta para
outra em que é mostrado um unicórnio. Depois, Deckard acorda; era um sonho ou uma
alucinação. No entanto, no fim do filme, um outro detective da empresa para a qual o
protagonista trabalhava faz um unicórnio em origami que Deckard depois vê no chão. Ele
apanha-o e há um grande plano do unicórnio em origami. A questão levantada é que, não
havendo antes qualquer comunicação entre eles, o outro não podia saber que Deckard sonhara
com um unicórnio, nem há qualquer outra referência a um unicórnio ao longo do filme. Isto
constitui uma sugestão muito persuasora de que Deckard é um replicante (um andróide), e as
suas memórias (e os seus sonhos) foram implantados. Todo ele estava predeterminado à partida,
e a sua vida (e os seus sonhos) prescritos. Como Kevin, ele é uma criatura de arte: ambos foram
“escritos” (criados) pelos deuses (humanos) com os quais se confundem. O desfecho projectado
para ambos (lembrando Borges) consiste em eles perceberem que, em vez ou além de estarem a
sonhar, foram sonhados.
48
K. Dick e Ridley Scott: o “sonho do unicórnio” é um sonho no qual figura este animal
mitológico (como o sonho de Deckard, em Blade Runner) ou é o sonho que um
unicórnio, já ele sonhado por “Alguém” (Llansol 2002:191), sonha por sua vez (o
andróide, Deckard, e o narrador em primeira pessoa, Kevin – imitações de humanos – a
sonharem a fantasia de si mesmos)?
A.T. Pereira apresenta-nos ainda, para lá do fim da história, um explicit em inglês:
“to be continued”. A promessa, utilizada no final de episódios intercalares de uma série
televisiva e por vezes até em longas-metragens, surge como se em vez de palavras
aquelas fossem imagens projectadas numa tela, inscritas por um dispositivo de
construção de ficções. Este dispositivo de ficcionalização corresponde às alucinações de
um contador de histórias moribundo, no intervalo de um precipício – cliffhanger – entre
o fim de um sonho e o princípio de outro, num “mundo [que] começa inúmeras vezes”
(151).
Em boa verdade, este livro já tinha começado antes de começar, no sonho de uma
outra personagem, em Quando Atravessares o Rio (Pereira 2007): “[Katie] comprara
um caderno de apontamentos. Talvez escrevesse um romance policial. Algumas
imagens soltas. A ideia para uma história. O Fim de Lizzie” (108).
49
CAPÍTULO 2
Livros paralelos e fantasmas eloquentes
Numa ágil manobra de prestidigitador, o fabulador
deu de facto acesso ao lugar da fábula, mas de uma
fábula diferente, dramaticamente incompatível
com aquela real e antiga terra das fábulas,
certificada pelo áureo círculo de uma coroa.
Giorgio Manganelli
Pinóquio: um livro paralelo
Entre O Fim de Lizzie, em 2008, e A Pantera, em 2010, A.T. Pereira publicou
uma novela e um conto, O Verão Selvagem dos Teus Olhos e A Outra, semelhantes na
estrutura e com um esquema narrativo de base idêntico. Trata-se de releituras e
recriações, algures entre a prequela e o que poderíamos chamar, inspirando-nos em
Manganelli, ‘livro paralelo’ de textos-fonte (Rebecca, de Daphne du Maurier, e The
Turn of the Screw, de Henry James) aos quais estas regressam pela reconvocação da voz
de personagens mortas na origem (Rebecca e Miss Jessel), estabelecendo ainda uma
ponte com adaptações cinematográficas dos textos originais. São estas Rebecca, de
Alfred Hitchcock, e as transposições de The Turn of the Screw, por Jack Clayton, em
The Innocents (1961), e por Michael Winner, em The Nightcomers (1971), tendo este
último a particularidade de, tal como o conto de A.T. Pereira, apresentar essencialmente
uma história antes da história do conto de Henry James.
Sob a forma de relatos póstumos de fantasmas de personagens, recuperadas de
textos em que estavam desprovidas de eloquência e onde auferiam presença discursiva
apenas em diferido (isto é, em ausência, por descrição), estas histórias representam
exercícios da narração enquanto possibilidade de ‘exumação’ pela fala, uma estratégia
50
narrativa encontrada também em obras como Memórias Póstumas de Brás Cubas, de
Machado de Assis, ou Sunset Boulevard (1950), de Billy Wilder.
Veremos ainda que estes monólogos interiores, formados em torno do problema
de base de estas personagens não-mortas terem de, de alguma maneira, cumprir o papel
que tinham em vida, quando entendidos em sentido meta-literário e na sua teatralidade
(a qualidade ‘ficcionalizante’ da intriga), são desenvolvimentos específicos do que,
reportando-se a Nietzsche, Maria Cristina Franco Ferraz chamou a “potência ontológica
da máscara e do artifício” (2007: 74).
51
2.1. O naufrágio do discurso em O Verão Selvagem dos Teus Olhos
The fire that stirs about her, when she stirs,
Burns but more clearly. O she had not these ways
When all the wild Summer was in her gaze.
William Butler Yeats
The Folly of Being Comforted
Mas, porque não compreendia as outras pessoas, e tinha de viver no meio
delas, tornei-me uma actriz.
Eu sempre gostei de teatro. O meu pai levava-me ao teatro, em Londres.
Uma vez, passámos duas semanas em Stratford-upon-Avon, quando lá
decorria um festival. E quase não perdíamos um filme: filmes russos,
americanos, alemães, ingleses. Quando era miúda, sonhava vagamente ser
actriz. Depois percebi que tinha mesmo de sê-lo, mas que só havia um papel
para representar, o papel da minha vida, o papel de Rebecca. E a primeira
vez que pensei nisso a ideia apaixonou-me totalmente, era tão bom como ser
Hamlet, era melhor do que ser Hamlet, porque em mim não havia grandes
indecisões, eu queria tirar da vida tudo o que ela pode oferecer. (Pereira
2008d: 25-6)
Para a Rebecca de A.T. Pereira, ser é apenas conjugado na afirmativa. Isto não
acontece por um efeito de simplificação do dilema shakespeariano, como parece estar
sugerido, mas porque a exclamação existencial da personagem que se tem de auto-representar (“o papel da minha vida”) transporta em si, por inerência, a interrogação e a
dualidade: a cisão que lhe permite referir-se na terceira pessoa (“o papel de Rebecca”).
Para se efectivar no mundo e “viver no meio das pessoas” – para ser social –, a
personagem, cada vez mais confundida por A.T. Pereira com a entidade performativa do
actor49, tem de, paradoxalmente, fazer de conta que é ela própria, para fingir a verdade
de um ser unificado: “só um papel”. Em resumo, esta Rebecca tem de cindir consigo
mesma para poder ser-se com mais rigor e realidade.
“É como se trabalhasse com um pequeno número de actores: dou-lhes papéis diferentes, os
cenários mudam um pouco” (Pereira 2008b: 28).
49
52
Nos termos de Pirandello, ela terá de “ganhar consciência da sua vida, ou seja, da
sua essência de personagem”, e viver, não no sentido abstracto e fugaz, mas de facto,
“enquanto espírito” (Pirandello 2009: 96).
Pirandello resume do seguinte modo o processo de construção de personagens,
generalizando para toda a “arte” uma forma teatral que lhe está aparentemente na base:
“Cada fantasma, cada criatura da arte, para existir, deve ter o seu drama, ou seja, um
drama de que seja personagem e pelo qual o é. O drama é a razão de ser da personagem:
é a sua função vital, necessária à sua existência” (95).
À luz desta explicação, percebemos por que a Rebecca de O Verão Selvagem dos
Teus Olhos se autodefine enfaticamente como “criatura”, corrigindo qualquer confusão
com a espécie humana: “A mais bela criatura que ele tinha visto na sua vida. Não a mais
bela mulher. A mais bela criatura” (12). O drama desta personagem é justamente o de
ser o que é: uma “criatura” de ficção. Ela já se “separou do seu «papel»”, auferindo
vida, e é agora assolada pelo conhecimento de que a única forma de vida possível é a
persecução desse mesmo papel, que, por sua vez, a conduzirá à morte.
Assim, Rebecca é um espírito em sentido ‘pirandelliano’. Tal como os “espíritos”
do autor italiano, e como será esclarecido em O Lago, os fantasmas de A.T. Pereira são
invariáveis de sentido que se manifestam em infinitas variantes (ao serem representadas,
ao serem personificadas), e que subsistem ao fim desse acto, ou seja, à separação do
intérprete (personagem/actor) do papel (espírito/fantasma) que interpreta50. A autora
escreve em A Pantera que “[os] teatros são lugares assombrados [pelos espíritos das
personagens]” (46)51, fazendo depois uma inflexão quase imperceptível para a literatura,
“As peças de teatro passavam, uma atrás da outra… mas as personagens ficavam e voltariam
talvez, com outros corpos, com outros rostos…” (O Lago, 36).
50
Encontráramos já uma imagem idêntica em Inverness: “[O]s teatros são assombrados pelas
personagens que os actores abandonaram ao ir embora” (22).
51
53
que tem tanto de Pirandello quanto de Frankenstein e do seu “Prometeu moderno”:
“Enquanto um autor está a trabalhar na personagem, ela continua com ele. Mas, quando
está completa, tem a sua vida para viver e desprende-se daquele que a criou” (id. ibid.).
Este é um modo-de-ser ficcional liberto dos dualismos platónicos entre “essência”
e “aparência”, e “verdadeiro” e “falso”, e assente, em contrapartida, num grau absoluto
da kosmetike, actividade da mulher, do actor e do pintor, originadora de um tipo
“perverso” de realidade, em “total autonomia quer em relação ao real quer frente à
natureza”: a nietzschiana e anti-platónica realidade da arte (Ferraz 2007: 73).
No passo citado inicialmente, Rebecca utiliza a palavra “teatro” com o sentido que
ela tem em inglês, theatre, em que está incluída também a sala de cinema. O relato que
faz quase sugere uma relação de causa-efeito entre ver filmes – ver a Rebecca de
Hitchcock(?) – e a epifania de que é uma actriz e tem um papel a representar: “o papel
da [sua] vida, o papel de Rebecca”. Esta formulação ecoa e mantém a ambiguidade que
se adivinha desde o início na novela: a possibilidade de se ler o “papel da vida” como,
tautologicamente, o papel dela mesma (aquele que já representa antes de decidir
representar).
Já no romance de Du Maurier e no filme de Hitchcock, nos quais a personagem de
Rebecca não está viva, faz parte do passado e é uma figura absolutamente ausente,
eliminada ainda antes do início da história, ser ou não ser Rebecca apresenta-se como o
grande problema da protagonista.
A substituta que Du Maurier concebeu para a falecida Mrs. de Winter oferece-nos
regularmente descrições da sua emulação e episódios em que exuma através de si, uma
personagem de que não conhecemos o nome próprio, e da sua movimentação em
Manderley, a memória e o corpo da Mrs. de Winter original. Num desses passos, ainda
antes do seu casamento com Max de Winter e perante a notícia de que tinha havido no
54
passado outra mulher, entretanto desaparecida, já a jovem fantasia a existência da outra,
e parece compreender de imediato, se não mesmo impor-se, a sua condição de suplente.
Note-se a sugestão de uma preparação literalmente cosmética que inicia o delírio:
And we were busy then with powder, scent and rouge, until the bell rang
and her visitors came in. I handed them their drinks, dully, saying little […].
[…]
It was not I that answered, I was not there at all. I was following a
phantom in my mind, whose shadowy form had taken shape at last. Her
features were blurred, her colouring indistinct, the setting of her eyes and
the texture of her hair was still uncertain, still to be revealed.
She had beauty that endured, and a smile that was not forgotten.
Somewhere her voice still lingered, and the memory of her words. […] In
my bedroom, under my pillow, I had a book that she had taken in her hands,
and I could see her turning to that first white page, smiling as she wrote, and
shaking the bent nib. Max from Rebecca. (Maurier 2003: 47, itálicos nossos)
A prevalência literária da personagem de Rebecca é veiculada naquele livro,
oferecido ao seu marido, no qual, através da dedicatória e da assinatura, ela parece
firmar a um tempo a posse dele e a perpetuidade da sua própria existência, ambas
figuradas no perfil caligráfico da mensagem.
A dedicatória e a assinatura de Rebecca devem aqui ser entendidas como o
símbolo daquela que ganha vida em literatura, por inscrição. A assinatura e a mensagem
de posse são ingredientes do presentificar daquela entidade verbal no seu processo de
ser. Rebecca, a única personagem que não pode falar porque já morreu, é aquela que,
não obstante, exerce sobre as outras o poder da palavra, violentamente: “Max was her
choice, the word was her possession; she had written it with so great a confidence on
the fly-leaf of that book. That bold slanting hand, stabbing the white paper, the symbol
of herself, so certain, so assured” (id. ibid., itálicos nossos).
Literalizando visualmente a separação de Pirandello entre personagem (aquela a
que Joan Fontaine oferece um rosto) e o papel que está a ser representado, a adaptação
55
fílmica de Hitchcock traz outra interveniente ao drama: a actriz que interpreta uma
personagem que tem de (não) ser ela mesma imitando Rebecca. Em boa verdade, e aqui
está o paradoxo da construção de A.T. Pereira, Rebecca, ou o aglomerado de traços que
podemos identificar como “Rebecca”, é sempre, necessariamente, uma ‘não-presença’ e
um disfarce, jogo de faz-de-conta e “como-se ficcional” (Ferraz 2007: 75).
A condição multifacetada da personagem ganha especial evidência neste ‘livro
paralelo’. Em Verão Selvagem, Rebecca já surge como a actriz (de Hitchcock), a
representação ideal do ser-in-progress. Não nos referimos à pessoa de Joan Fontaine,
mas ao seu corpo em acção, participante visível, figurado, do filme, trazendo à
personagem uma identidade em excesso – já que a consciência de si, em termos
pirandellianos, a acusa de ser ao mesmo tempo mais do que uma Rebecca, a sua
substituta e a sua actriz – por via da concretização da sua função de simulacro.
Daniel Sibony afasta-se em Entre dire et faire das metáforas teatrais e
diplomáticas do verbo “representar”, para fazer notar a subtileza semântica e o sentido
diferenciador do prefixo re- com que ele se forma, encarando-o mais na sua acepção
prospectiva e processual, que enfatiza a eterna novidade inerente a “re-apresentar”, e
menos nos habituais sentidos repetitivo e retrocessivo 52.
Pierre Klossowski parece convergir com Sibony na ideia de que a representação (a
que vem acresentar o conceito de “simulação”) se baseia fundamentalmente na
‘presentificação’ – de uma ausência original e da atracção que o centro vazio desperta (o
“irrepresentável” e o obsessivo) – como efeito da actividade mimética, no qual esta, em
“Parfois, le seul désir de représenter, de ne pas être en proie à une présence déferlante et sans
recours. Re-présenter, remettre en présentation, c’est ré-actualiser ce qui est de l’ordre de la
présence, du don de l’être. La pré-sence c’est l’être offert, l’être devant; et l’ab-sence c’est l’être
loin (le “sence” de pré-sence est le gérondif de l’être, de l’esse, comme dans “essence”). Le
présent lui-même est comme un gérondif de l’être offert (et on l’a vu, gérondif est l’acte de
gérer: il implique le geste d’assumer et de mettre en acte l’être en tant que placé devant; on est
confronté à lui)” (Sibony 1989: 241).
52
56
termos performativos, se completa: “Le simulacre au sens imitatif est actualisation de
quelque chose d’incommunicable en soi ou d’irreprésentable: proprement le phantasme
dans sa contrainte obsessionelle” (Klossowski 2001: 131).
Encontrando no colapso das categorias do tempo a possibilidade da sua realização
material, a imitação ‘presentificante’ do fantasma depende da reiteração do presente e
da obediência às convenções associadas à legibilidade e à ‘receptividade’ dos seus
espectadores, no que se subentende um acordo entre a fabricação de simulacros e a sua
recepção interpretável, isto é, a sua performance reorganizadora (“exorcizante”) que
produz ‘re-comunicabilidade’ e presença:
Pour en signaler la présence – faste ou nefaste – la fonction du simulacre est
d’abord exorcisante; mais pour exorciser l’obsession – le simulacre imite ce
qu’il appréhende dans le phantasme. Dans cette double fonction
relativement à ce qu’il tend à reproduire soit l’indicible ou l’immontrable
selon la censure sociale, religieuse ou morale, comment le prononce-t-il
imitativement? En emprutant, pour les retourner au profit de son imitation,
les stéréotypes institutionnels donc conventionels du dicible et du
montrable. (id. ibid.)
Por contraponto ao que acontece com a caligrafia muda no romance de Du
Maurier, a presença de Rebecca nesta novela é curiosamente demonstrada através da
figuração da voz, “o Outro da escrita” (Zumthor 1987: 135).
O próprio livro é estruturado em duas continuidades discursivas intercaladas nos
capítulos ímpares e pares: a voz da protagonista, uma morta eloquente, paradoxalmente
conjugada no presente do indicativo e contemporânea da trama que encontramos no
romance de Du Maurier53; e a narrativa na terceira pessoa do passado da personagem,
contada por um narrador heterodiegético, da chegada a Manderley até à sua morte.
“Digo baixinho o meu nome, muitas vezes seguidas, o que também me tranquiliza um pouco.
[…] Rebecca de Winter” (13).
53
57
O regresso de Rebecca, nunca explicitado na novela de A.T. Pereira, está
inteiramente contido no título do primeiro capítulo: “Je reviens”, anúncio que activa na
primeira pessoa o “regresso” e a presença da personagem narradora. “Je reviens” é
ainda o nome com que Du Maurier baptizou o pequeno veleiro em que Rebecca
encontraria a sua morte54.
Esta intitulação tem o efeito de transformar o livro numa espécie de Barca de
Caronte, e trazer Rebecca de volta, revertendo através do seu discurso subjectivado –
que vem substituir a primeira pessoa gramatical da ‘substituta’ no romance de Du
Maurier – os efeitos do naufrágio, literal e metafórico, naquele outro fluxo discursivo
em que ela fora subsumida (o romance original).
Comparando a novela de A.T. Pereira e o romance de Du Maurier, a primeira e a
segunda Mrs. de Winter são figuras simetricamente opostas, que ganham a identidade e
o ‘ser-em-história’ pelos mesmos mecanismos de rememoração e relato na primeira
pessoa. A memória é nos dois casos a condição sine qua non da manifestação, a
paisagem onde o simulacro apreende os marcadores da ficção e recolhe os objectos do
setting literário em que se move e existe, e onde assiste ao refluxo imagético que
eterniza o ensaio da sua existência, ou seja, onde pode ser continuamente “re-presentado”.
Verão Selvagem parece ser um texto fortemente inspirado, pelo menos no que toca
à sua estrutura narrativa e ideia de base, na ‘prequela’ que Jean Rhys escreveu para Jane
Eyre, intitulada Wide Sargasso Sea (1966), que recupera, pela voz da sua protagonista,
54
A ironia e o jogo do texto de A.T. Pereira em relação aos tópicos do romance de Du Maurier
tornam-se mais claros em confronto com o seguinte passo do ‘original’: “«Je Reviens». What a
funny name. Not like a boat. Perhaps it had been a French boat though, a fishing boat. Fishing
boats sometimes had names like that; «Happy Return», «I’m Here», those sort of names. «Je
Reviens» – «I come back.» Yes, I suppose it was quite a good name for a boat. Only it had not
been right for that particular boat which would never come back again” (171, itálicos nossos).
58
o passado de uma mulher substituída no romance de Charlotte Brontë por outra. A
simpatia de A.T. Pereira pela primeira figura foi evidenciada numa crónica em que a
nova versão da história, oferecida pela boca da condenada, é entendida como uma
oportunidade de redenção semelhante ao que ela própria viria a fazer aqui:
Jean Rhys não se limitou a escrever um romance belíssimo sobre o amor, o
desejo, a loucura, a condição da mulher no século XIX, o medo da natureza
e da mulher identificada com a natureza, ela libertou uma personagem do
seu pesadelo”. (Pereira 2002: 25)
Além de uma experiência com as possibilidades redentoras e exumadoras da
literatura, recuperar Rebecca é uma “encenação de pesadelo” (119) e um exercício sobre
a memória da leitura:
Não me quero esquecer. De nada. Das coisas importantes. Eu sou uma
mulher que perdeu o contacto com as coisas não essenciais. Uma frase de
um livro, de uma peça de teatro talvez. E, como se rezasse, tento lembrarme das coisas essenciais. (13)
E pergunto a mim mesma se a eternidade será isto, recordar uma e outra vez,
um vestido, um beijo, um dia de Outono, a primeira neve, os meus cães. As
coisas essenciais. O nome das rosas e as frases dos livros, o tempo em que
alguém nos amou, o jardim que fizemos com as nossas mãos. (108)
Na versão de A.T. Pereira de uma cena de crise durante o baile de máscaras – em
que a segunda mulher de Max de Winter, sem o saber, se disfarça de Rebecca usando
uma cópia do vestido que esta tinha usado no último baile, por sua vez modelado a
partir de um retrato de Caroline de Winter, uma tia de Max havia muito desaparecida –,
a única mulher de carne e osso da história é precisamente a que mais se ‘espectraliza’ ao
oferecer no seu corpo uma representação do fantasma, ou, nos termos de Klossowski, ao
“mostrar” o “imostrável”.
59
Perante isto, a imagem icónica (pictural) e fixa da tia de Max é a única dotada de
realidade no momento do encontro ao cimo das escadas entre a jovem mascarada de
Rebecca e a Rebecca mascarada de Caroline:
Três mulheres com vestidos iguais, […] e a única de nós que tem alguma
realidade é Caroline. (109)
Estamos as três aqui e tenho de novo a impressão de que só Caroline é real,
nós somos outra coisa, um ser que ainda não existe e um que se recusa a
deixar de existir. E, meu deus, como a mulher do quadro é a mais autêntica,
com os seus grandes olhos tranquilos e as mãos pousadas no regaço,
sorrindo ao de leve para o pintor, sorrindo ao de leve para nós duas. (111)55
Quando se trata de arte, parece estar a dizer-nos A.T. Pereira em Verão Selvagem,
só a própria arte pode ser entendida como real, e a realidade como uma dimensão
contingente e efémera, afectada pelo esquecimento (daí a importância da memória que a
ficção inscreve). “Os livros”, diz-nos, “têm uma existência própria mesmo quando
ninguém os lê, ninguém os folheia, ninguém os cheira” (12).
Coalescem em frente do retrato de Caroline de Winter, na novela de A.T. Pereira,
duas figuras ou cópias de Rebecca já antes multiplicadas entre o romance de Du
Maurier e o filme de Hitchcock, onde se tornam literalmente visíveis pela qualidade
simulacral – figural – do cinema. Convém explicitar que utilizamos aqui os termos
“figuras” ou “cópias” à luz dos sentidos que Auerbach encontrou para elas num passo,
fundamental para o nosso estudo a vários níveis, de “Figura”:
A special variant of the meaning “copy” occurs in Lucretius doctrine of the
structures that peel off things like membranes and float round in the air, his
Democritean doctrine of the “film images” (Diels), or eidola, which he takes
in a materialistic sense. These he calls simulacra, imagines, effigies, and
55
Cf. episódio análogo em Maurier 2003: 238 et seq.
60
sometimes figurae; and consequently it is in Lucretius that we first find the
word employed in the sense of “dream image,” “figment of fancy,” “ghost.”
(1984: 17)
Para regressar à leitura de Maria Cristina Ferraz de Para Além do Bem e do Mal e
da “aposta niezschiana na potência do falso”, podemos dizer que aquela coalescência de
figuras “convoca o procedimento da mise en abîme, caro ao pictórico, que remete, por
trás das máscaras, sempre a outras máscaras, e assim indefinidamente” (2007: 73).
Nestas “perspectivas significativamente retiradas do campo da ficção, o teatro e a
máscara” – e lembremo-nos do papel (espírito por encarnar) que Rebecca, desde o
início, simultaneamente desempenha e é, gerando entre personagens diferentes, de obras
e media diferentes, um complexo sistema de homonímia – “surgem como a própria
condição de possibilidade da experiência ontológica da multiplicidade, na sempre
arriscada aventura de outrar-se” (Ferraz 2007: 76), ou seja, são meditações sobre o que
pode significar ser e existir em ficção.
Em Do Androids Dream of Electric Sheep?, para sublinhar a ligação entre o
protagonista de Verão Selvagem e o narrador de “O sonho do unicórnio”, a mesma
questão é colocada de outra maneira, alegorizada na figura de Wilbur Mercer, uma
“archetypal entity from the stars” (55), um deus tecnológico fabricado para controlar o
pensamento dos seres (que podem ser humanos ou andróides)56.
Rick Deckard, o protagonista do romance de Dick, pondera: “Mercer [Kevin e
Rebecca, dizemos nós] isn’t a fake […]. Unless reality is a fake” (186, itálicos nossos);
para entrar depois na contradição que são aqui todas as personagens: “I’m afraid […]
that I can’t stop being Mercer. Once you start it’s too late to back off” (id. ibid.).
O acesso a este ‘deus’ acontece através de uma “empathy box”, uma espécie de realidade
virtual que, paradoxalmente, oferece ao indivíduo que nela entra sensações e experiências reais.
56
61
2.2. A Outra: um “inconsciente do texto” em The Turn of the Screw
L’imagination est la reine du vrai, et le
possible est une des provinces du vrai. Elle
est positivement apparentée avec l'infini.
Charles Baudelaire
La reine des facultés
A construção narrativa do conto A Outra (Pereira 2010) parte de um segmento de
texto inicial que inaugura o livro “sem que ninguém lhe tivesse tocado” (9). É assim
que, num novo exemplo da analogia entre a casa e o livro, deslizam para dentro de uma
“casa”57 folhas de árvore, e nós percorremos, simultaneamente, as primeiras folhas do
livro, em representação alegorizante do acto de leitura: “A porta abriu-se sem que
ninguém lhe tivesse tocado. O vento trouxe as folhas para dentro de casa, num
movimento suave, com algo de musical”.
A passagem citada corresponde à primeira parte de um encadeamento ritmado
(“com algo de musical”) que atravessa a organização paratáctica do conto, inaugurando
todos os capítulos com a repetição plena das duas frases iniciais, e acrescentando a cada
vez um novo bloco de informação àquela fórmula fixa, num processo de acumulação
que reescreve e completa o texto na mesma medida em que este se desenrola. O leitor
vê-se confrontado com o facto de ter de reaprender sucessivamente um mesmo que
nunca é o mesmo porque vai sendo amplificado em pequenas porções que o
reconfiguram no seu todo, a cada nova (re)leitura. Reler, portanto, não significará aqui
57
Num passo de The Turn of the Screw encontramos uma analogia semelhante, de onde esta
poderá ter surgido: “Wasn’t it just a story-book over which I had fallen a-doze and a-dream?
No: it was a big, ugly, antique but convenient house” (James 1996: 645).
62
ler outra vez, mas sim ler mais, e, por conseguinte, ler a mesma/outra coisa de maneira
diferente, à luz de um conhecimento renovado.
O confronto entre a novela de James e o conto de A.T. Pereira evoca, embora com
diferenças irredutíveis, o que Marie-Claire Ropars chamou “obra em estado duplo”
(Ropars-Wuillemier 1990: 172), referindo-se à coexistência de versões cinematográficas
e literárias de obras de Marguerite Duras. No caso aqui em análise, a dinâmica acontece
entre obras literárias de autores diferentes; não obstante, o nexo entre A Outra e o seu
texto de partida (The Turn of the Screw) parece provir de “un même geste qui à la fois
écrit et récrit le texte” (id. ibid.), ou seja, a escrita de A Outra é já uma reescrita.
Por outro lado, a nossa autora parece partilhar ainda com Duras uma determinada
concepção de “forma gráfica” na apresentação do livro, que retomaremos adiante no
nosso estudo. Ropars descreve-a do seguinte modo:
[D]es textes courts, des frases brèves, souvent nominales, et sourtout, entre
les phrases ou les groupes de frases, des espaces blancs de deux types,
étendu et restreint, qui découpent la page tout en donnant à l’oeuvre l’allure
d’une suite de versets. (id. 175)
Estamos pois perante um livro que traz instalado em si o seu dispositivo de
reconstrução e releitura, num jogo que sublinha o estatuto gráfico do texto, e que, em
determinados aspectos, é uma readaptação do “acting out” que Shoshana Felman
identificou em The Turn of the Screw: “Through its very reading, the text, so to speak,
acts itself out. As a reading effect, this inadvertent «acting out» is indeed uncanny:
whichever way the reader turns, he can but be turned by the text, he can but perform it
by repeating it” (Felman 1982: 101). Portanto, a expectativa de uma narrativa em
“primeira mão” que resolvesse enfim a dúvida epistemológica deixada pela novela
anterior dissolve-se. Repetir o texto de A Outra não é mais do que recriar a alucinação
63
de um fantasma, fora do tempo, que narra a sua própria história e finge falar de onde ele
próprio não está (na vida, no texto original).
A primeira analepse do conto revela a disjunção egótica da protagonista, ao
mesmo tempo que convoca o motivo trágico do auto-reconhecimento:
Eu penso que tudo começou no dia em que me vi, de corpo inteiro, no
espelho do meu quarto em Bly. […]
Assim, posso dizer que foi em Bly que me vi pela primeira vez. Nos
primeiros instantes, aquela mulher pareceu-me uma estranha. Aos poucos,
fui-me familiarizando com ela. (10)
Temos assim um momento de dupla identificação: Miss Jessel “reconhece-se” a si
mesma e o leitor também a identifica como a personagem de The Turn of the Screw. No
entanto, esta identificação é tripla, uma vez que há que manter activa a memória do
texto de James, no qual, em moldes semelhantes, a segunda preceptora sofrerá o mesmo
espanto: “the long glasses in which, for the first time, I could see myself from head to
foot, all struck me” (James 1996: 643). A réplica do gesto sugere então uma
identificação directa entre Miss Jessel e a segunda preceptora de James. Porém,
prosseguindo, veremos a identificação volver-se ainda quádrupla, com referência ao
ideal de mulher inspirado nas “mulheres pintadas por Dante Gabriel Rossetti” (10).
A Miss Jessel de A.T. Pereira chega a Bly após uma determinada dieta de leituras;
mas é na referência fundamental a Jane Eyre que nos vamos ater:
O meu livro preferido nos longos serões de Inverno, quando o vento da
charneca chegava à aldeia e uivava do outro lado da janela, o meu livro
preferido nas calmas noites de Verão quando o cheiro a madressilva do
muro e o cheiro das flores do cemitério entravam pelo meu quarto, era Jane
Eyre. (13)
64
Também a preceptora de James indicia muito subtilmente ter conhecimento do
romance, numa provável alusão à personagem de Bertha Mason: “Was there a «secret»
at Bly – […] an insane, an unmentionable relative kept in unsuspected confinement”
(654-5, itálicos nossos). No entanto, mais do que uma evidência da partilha de
identidades entre Miss Jessel e a segunda preceptora, esta referência ilustra o percurso e
a caracterização da primeira, passando por uma atitude declarada de paralelismo e de
emulação em relação a Jane Eyre e à sua história:
[S]entia que tinha muito em comum com ela. A história da jovem preceptora
que chega a um velho casarão, e se apaixona pelo dono da casa… havia
alguma coisa de familiar nessa história. […]
Eu sabia que mais tarde ou mais cedo chegaria a minha vez […]. E se
Jane, que não tinha grande encanto, conseguira o amor de Mr. Rochester, eu
podia sonhar com algo parecido, eu com o meu cabelo cor de cobre e os
olhos azuis…
E quando respondi ao anúncio do jornal que pedia uma jovem culta e
com boas referências para ser a preceptora de duas crianças, tive a sensação
vertiginosa de que chegara o meu momento… (13)
O desdobrar das personagens de A.T. Pereira é manifestação das suas próprias
obsessões, que as levam a entrar em circuitos infinitos de espelhos refractários, em que
se vão descobrir gradualmente “o outro do eu e a negação do eu” (Magalhães 1999a: 1),
para entrar numa espécie de ‘performativização’ incessante da identidade.
A dimensão performática desse processo surge de forma mais contundente quando
a jovem conhece Mrs. Grose:
Quando me aproximei da mulher, tive uma vaga ideia de que eu podia ser
assim daí a muitos anos. Magra e com rugas no rosto, o cabelo grisalho. O
vestido era parecido com o meu.
No entanto, sentia que o meu papel não era aquele. Como nas peças de
teatro que nunca vi, há personagens principais e personagens secundárias.
Aquela mulher era nitidamente uma personagem secundária.
65
Essa era a grande diferença entre nós. Eu era jovem e bonita e não
nascera para um papel secundário. Não era da sua família mas da família das
heroínas dos romances que lera nos últimos anos. (23)
Miss Jessel reconhece a sua ascendência especial de “heroínas dos romances”; ela
afirma o seu parentesco com personagens, e é justamente nessa consanguinidade que
encontra o seu molde trágico. O seu percurso, cada acção sua, estão inscritos num guião
que lhe é anterior e que não depende da sua escolha seguir ou não, decorar ou ignorar,
porque se trata da própria matéria que lhe dá forma e lhe permite ser.
Miss Jessel é “eu”, e “eu” é “a outra”, numa relação em que livro e identidade se
cosem, sendo este livro, lembremos, um relato seu, no qual ela se projecta igualmente
como narradora e narrada, fechando-se no círculo da enunciação. A partir daqui, a
aproximação à teatralidade é sistemática, como se a cada novo momento do conto
“começasse a cena seguinte de uma peça” (24).
O narrador de James advertira-nos de que “nothing was more natural than that
these things should be the other things they absolutely were not” (669), e A.T. Pereira,
no desenvolvimento deste drama de actos e de personae, parece seguir fielmente o
preceito de nos confrontar com coisas que são o que “absolutamente não são”.
A este propósito, será útil averiguar em que trâmites é apresentada a personagem
de Peter Quint. Em The Turn of the Screw ele é “like nobody”, e quando aparece à nova
preceptora o seu semblante transmite-lhe “a sort of sense of looking like an actor”
(662). Em A Outra, Peter Quint surge no cimo da mesma torre, suscitando o mesmo erro
de percepção de um episódio da primeira novela. Inicialmente, ele é tomado por outro
(“Por instantes, pensei que era ele [isto é, o tio das crianças]” [35]), numa pressuposição
em que, igualmente tolhida pela obsessão pelo “Master” inominado, a sua substituta
66
viria a incorrer, para desiludir-se: “the man who met my eyes was not the person I had
precipitately supposed” (653).
Depois do choque, Miss Jessel pensa que aquela figura, na verdade, “parecia um
actor”, “quase como alguém”, “[s]ó quase” (36). Não obstante, convém recordar uma
distinção essencial entre as duas situações: quando aparece à segunda preceptora, na
descrição de James, Quint já havia morrido, e portanto, a ser algo, só podia ser um
fantasma; enquanto que no tempo de que nos fala a Miss Jessel de A.T. Pereira ele vive.
A similitude dos episódios torna-o aqui um ‘fantasma’ de tipo diferente. Isto
complexifica-se com o posterior encontro físico entre ele e a preceptora:
Eu também tinha um guarda-roupa que não sentia como inteiramente meu.
Como uma actriz. […]
Mas, se ambos estávamos vestidos como actores, que peça diabólica nos
preparávamos para representar? (36)
A “peça diabólica” é uma em que, após um período de idílio durante o qual os
dois “actores” se encontram, caracterizados, para jantar, como se estivessem num palco,
se envolvem amorosamente – “Peter Quint e Miss Jessel gostavam de estar juntos, tal
como Miles e Flora gostavam de estar juntos” (48) 58 –, e cuidam das crianças, num
“mundo criado por [eles]”, no qual Miles e Flora “[se] sentiam protegidos, e felizes”
(49). Peter Quint vai assumindo o seu papel de duplo na cauda da aprendizagem, da
parte de Miss Jessel, da “importância dos substitutos”: “Eu continuava a lembrar-me do
homem de Londres. […] Mas estávamos no Verão, e eu aprendera a importância dos
substitutos” (47).
58
Em The Turn of the Screw: “The four, depend upon it, perpetually meet” (692).
67
Se a relação de Miss Jessel com Peter Quint se construíra sobre esta ideia, o
pedido de casamento que ele lhe faz parece introduzir um curto-circuito na comutação,
para a “desaprendizagem” que a leva a reconhecer a substituição como um mecanismo
falho:
Naquela noite, Peter pediu-me para casar com ele. […]
Lembrei-me das minhas primeiras fantasias, e de como seria diferente se
tivesse sido o amo a pedir-me em casamento. Afinal, isso acontecera a
Jane… […]
E nem saberia que existiam substitutos…
Mas Peter Quint era só um criado que vestia as roupas do amo. Como um
actor… Um criado que tomava o lugar do dono da casa quando estava
ausente… que tomara o lugar do dono da casa na minha cama. (55)
A.T. Pereira declarou numa recensão, seis anos antes da publicação de A Outra:
“Eu sempre achei que havia uma terceira leitura da novela, uma outra volta no parafuso:
o ponto de vista não é o da preceptora mas o do menino” (2004a, s.p.). Mas o que vemos
aqui é ainda “uma outra volta no parafuso”, com contornos substancialmente diferentes.
O ponto de vista é o de Miss Jessel, que fala depois da sua morte, recordando o passado
e o seu reflexo nos espelhos quando ele ainda era “inteiro”, até que quem ela vê nesse
mesmo espelho é já outra mulher:
Ela nunca se tinha visto de corpo inteiro num espelho […]
A princípio recuou, como se tivesse visto outra pessoa no quarto…
Tem a mesma altura do que eu, mas é mais magra. O cabelo castanhoclaro, os olhos um pouco mais escuros. Os traços correctos, a boca bem
desenhada.
O seu vestido é castanho. Tem um ar tão gasto como o meu ao chegar a
Bly. Pergunto a mim mesma se ele lhe terá dito para comprar outros
vestidos.
Pergunto a mim mesma se ele lhe terá pegado na mão.
Entre os livros que ela colocou na estante, há um exemplar de Jane Eyre.
(62)
68
Miss Jessel sabe perfeitamente que é uma quimera: “Ela começou a sentir-nos,
depois a ver-nos” (65); como sabe que “depois, há a história dos substitutos” (66). O
que ela não sabe, ou o que, provocatoriamente, pergunta, é “[p]or quem está apaixonada
a preceptora de cabelo castanho?” (id. ibid.). A própria autora disse que “a resposta […]
não é de forma alguma a mais óbvia” (2004a, s.p.).
Walter Benjamin escreveu sobre A fraude ou A águia branca, de Leskov, que:
O extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o
contexto psicológico da acção não é imposto ao leitor. Ele é livre para
interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma
amplitude que não existe na informação. (Benjamin 1985: 203)
Lembremo-nos, em articulação com esta ideia, da ambiguidade da carta que em
The Turn of the Screw a nova preceptora de cabelos castanhos viu (ou alucinou) Miss
Jessel escrever, sentada na antiga secretária que havia entretanto passado para si e onde
– tal como a nova Mrs. de Winter fazia com os objectos de Rebecca – ela imitava os
gestos da anterior proprietária, “possuindo”, por meio do seu corpo de carne, aquele
fantasma feito de memória plástica e cenográfica: “Seated at my own table in the clear
noonday light I saw a person whom […] had applied herself to the considerable effort of
a letter to her sweetheart” (705). Esta carta pode ser a que agora, pela mão de A.T.
Pereira e pela narração de Miss Jessel, lemos; por outras palavras, este livro.
Igual liberdade interpretativa permite-nos ler de pelo menos duas maneiras a
declaração enigmática de Miss Jessel: “Nós rondamos a casa como se fôssemos
fantasmas” (65). Quando Miss Jessel diz isto, já a nova preceptora chegou, e “eles” só
podiam ser fantasmas. Todavia, ela recorre a uma comparação em que os dois termos
coincidem: “como se fossem” o que já são. Podemos acreditar que ela não tinha
69
consciência da sua condição de fantasma. No entanto, o vocabulário que usa desmente-o: “Ela começou a sentir-nos, depois começou a ver-nos” (id. ibid.).
Numa segunda hipótese, podemos aceitar que Miss Jessel e Peter Quint não
fossem sentidos nem visíveis, mas que também não fossem fantasmas, mas fossem
apenas “como” eles, “quase como alguém”; isto é – e para concluirmos na mesma nota
de inconclusividade em que nos deixa Henry James –, eles podem não ser mais do que
personagens imaginadas pela nova ocupante de Bly, ela também uma personagem (o
“sonho de um sonho”). Eles são o que está no inconsciente da segunda preceptora, e, em
última análise, o que está no “inconsciente do texto” de The Turn of the Screw,
materializado nesta novela:
James fala do “segredo” que o autor vai tecendo no próprio corpo do texto,
o fio no qual estão enfiadas as pérolas, enfim a verdadeira história que, se o
romance ou conto tiver vida, está em todas as partes, e é contada por cada
palavra, por cada sinal de pontuação. Claro que se existe um inconsciente do
texto, e eu não tenho dúvidas de que existe, o autor pode ser o último a
saber ou até nunca saber. (Pereira 2004a: s.p.)
O próprio texto de A.T. Pereira constitui-se como o simulacro de uma ficção, isto
é, como a figuração do fantasma que assombra outro texto. A sua relação indissociável
(palimpséstica) e no entanto antagónica com a novela de Henry James pode ser mais
bem compreendida recuperando o tratamento de Ropars de uma certa ideia de
“reescrita” com a qual iniciámos a nossa reflexão: “Dans l’horizon de la réécriture, le
palimpseste n’est rien d’autre que le paradoxe d’un texte dont l’avènement suppose et
recuse en même temps l’antériorité d’un autre texte” (1990: 178).
70
CAPÍTULO 3
Livro, palco e mundo
En la literatura de este hemisferio […] abundan
los objetos ideales, convocados y disueltos en
un momento, según las necessidades poéticas.
Los determina, a veces, la mera simultaneidad.
Jorge Luis Borges
Tlön, Uqbar, Orbis Tertius
Se estabelecemos antes uma ligação formal entre a escrita de A.T. Pereira e um
determinado modo lírico da tradição moderna, viramo-nos agora para uma outra, já
naquele momento sugerida por Rosa Maria Martelo (como “ceno-grafia”), entre uma
concepção lata de poética e o modo ‘dramatizante’ da prosa da autora.
Inverness (2010) e A Pantera (2011) formam um par de novelas que, justificando
uma leitura conjunta, se apropriam de temas e cenários teatrais para a construção de
narrativas dramáticas em duplo sentido (localizadas narrativamente na esfera do teatro,
e exploratórias, a um nível mais reflexivo e poetológico, da sua estética, em permanente
tensão com as ideias de texto, livro e estrutura romanesca), a partir de elementos e
motivos cooptados do universo do palco.
Ao nível do enredo, as novelas giram essencialmente em torno de encontros entre
escritores e actrizes, e escritoras e actores, e do problema nuclear de representar,
acabando por evocar, também por isso, muitos ‘dramas de bastidores’ que pontuaram a
história do teatro e do cinema, pensando em certos filmes de Cukor, Mankiewicz e
Cassavettes (A Double Life [1947], All About Eve [1950] e Opening Night [1977]), e
peças de Pirandello ou Shakespeare (Sei personaggi in cerca d’autore e Hamlet), que
71
são, para usar a terminologia fundadora de Lionel Abel (1963), exemplos mais ou
menos representativos de “metateatro” a que muitas vezes a autora alude.
No último subcapítulo, veremos, a partir da sua primeira identificação por Rui
Magalhães, a “questão do «esgotamento» e da «repetição»” nas narrativas de A.T.
Pereira (Magalhães 2000: 1), entre a epígrafe de O Lago, de Rudolf Nureyev, e o
conceito de Maurice Blanchot e Pierre Klossowski de “ressassement”, mas também em
articulação com uma ideia de “surgimento” ou “emergência” da arte (Henry James,
Robbe-Grillet e Peter Brook).
Na nossa leitura, O Lago constituirá um ponto de confluência dos problemas
principais que temos vindo a explorar. Veremos, então, como a própria estruturação
formal do livro permite interpretá-lo alegoricamente como obra de síntese de toda a
ficção de A.T. Pereira, lendo-o também, um pouco mais especificamente, como novo
“ponto culminante” de uma fase da escrita da autora que Rui Magalhães havia
identificado como uma longa série de narrativas “em que os mitos ainda estão
enunciados, mas reduzidos ao seu esqueleto […]; mais apresentados do que
enunciados”, isto é, mais vistos do que lidos, “e isto muito para além do carácter
cinematográfico da história” (id. ibid.).
72
3.1. Autores e actores em duas novelas teatrais: Inverness e A Pantera
“You can’t play a part until you’ve lived it.”
Bryan Forbes
The L-Shaped Room (1962)
No primeiro volume de Temps et récit, Paul Ricoeur defende que “le lecteur est
l’operateur par excellence qui assume par son faire l’action de lire” (1983: 86).
Enquanto participante central de uma hermenêutica da mimese, o leitor não é para
Ricoeur uma testemunha da obra mas o seu operador por excelência, isto é, não o que
imagina a acção, mas o que “assume a acção” de imaginar (ler). Para este tipo de leitor,
só ficcionalizando o real é que a literatura o pode decifrar e recriar, atribuindo-lhe de
antemão uma refiguração temporal e passando-o pelo mesmo processo de semiose que a
afecta: “Si, en effet, l’action peut être raconté, c’est qu’elle est déjà articulée dans des
signes, des règles, des normes: elle est dès toujours symboliquement médiatisée” (90).
No tratamento que Barthes dera a esta problemática, alguns anos antes, a literatura
já era uma forma de acção independentemente daquilo a que ele, no paradigmático
ensaio sobre a “morte do autor”, chamou “Dieu et ses hypostases, la raison, la science,
la loi” (1984: 68). O seu scripteur é munido de um “imense dictionnaire où il puise une
écriture qui ne peut connaître aucun arrêt” (id.ibid.)
Scripteur é uma designação formada a partir do latim (scriptor), através da qual
Barthes recupera precisamente o valor agencial do nome dado ao que desempenha a
acção de escrever. O leitor barthesiano, precursor do leitor operativo de Ricoeur, tem de
terminar em si a escrita. Para Barthes, o leitor tem a dimensão de um lugar da escrita,
“l’espace même où s’inscrivent […] toutes les citations dont est faite une écriture” (69).
73
Estes prolegómenos têm o objectivo de orientar a leitura das obras em estudo
neste último capítulo no sentido de uma conceptualização específica da literatura,
classificada por Barthes como a escrita moderna, em que o texto passa a ser entendido
como “un tissu de citations” (67), num tempo em que “la vie ne fait jamais qu’imiter le
livre, et ce livre lui-même n’est qu’un tissu de signes, imitation perdue, infiniment
reculée” (68). Esta afirmação serve-nos ainda de pretexto para a recuperação de um dos
temas mais recorrentes na obra de A.T. Pereira e neste estudo: a repetição.
Num artigo que já antes citámos, Rui Magalhães aborda directamente esta
questão, dando sinais de se querer afastar do seu “sentido meramente superficial”59. Este
afastamento, para o que seria um sentido mais profundo e criticamente relevante da
questão, pode dar-se justamente na direcção do “tecido de signos infinitamente
recuado” com que Barthes identifica o livro. Numa citação anterior, o mesmo autor
falava de uma escrita moderna que é – traduzamos assim – “sem paragem” (1984: 68).
Em termos semelhantes, tomámos antes conhecimento dos planos de Borges para um
“volume cíclico”, que pudesse “continuar indefinidamente” 60, assim como veremos no
próximo capítulo que Martin Gardner encontrou nos sonhos de Alice uma forma de
“infinite regress”61; e, embora de modo menos explícito, esta ideia já era importante no
conceito de “re-presentação” de Daniel Sibony62. Assim, entre a estrutura regressiva de
O Fim de Lizzie e a prospecção para o infinito de O Lago (que trataremos adiante),
podemos enquadrar A.T. Pereira numa poética da ‘eterna repetição’ que conheceu uma
“A obra de Ana Teresa Pereira atingiu com Rosas Mortas e O Rosto de Deus, um ponto
culminante. Tratava-se, a partir daí, de saber qual seria o caminho a trilhar pela autora a partir
do momento em que, muito dificilmente, seria possível levar mais longe a exploração da via até
aí seguida. A questão do «esgotamento» e da «repetição» (entendida num sentido meramente
superficial) colocava-se, agora, com alguma aparente legitimidade” (Magalhães 2000: 1).
59
60
Cf. p. 41.
61
Cf. p. 105, Nota 96.
62
Cf. p. 56, Nota 52.
74
das suas formulações mais contundentes no posfácio de Blanchot ao díptico ficcional
precisamente intitulado Le ressassement éternel, no qual o autor descreve uma forma de
relato constituída num “processus interminable dont le terme est ressassement et
éternité” (1983: 94).
Em Inverness e em A Pantera, às quais, numa tentativa de definição que conjugue
a um tempo o enredo, o tema central e o recorte formal de cada novela, chamaremos,
respectivamente, drama teatrológico e drama logográfico, o sujeito scripteur parece
corresponder em larga medida ao dispositivo literário de Barthes, no qual “l’énonciation
n’a d’autre contenu (d’autre énoncé) que l’acte par lequel elle se profère” (67).
De acordo com este modelo, o acto de leitura e a figura do leitor – servindo de
base aos trabalhos de Ricoeur, Derrida (com o conceito de “invenção” associado ao
poema “Fable”, de Francis Ponge63) e Derek Attridge (e a obra literária como “acto” e
“evento” de leitura, indissociável do “acto-evento” da escrita64) – têm perante o texto
inacabado uma função completiva (“achèvement”65), de con-figuração dos “buracos”,
lacunas” e “zonas de indeterminação” que nele existem.
No entanto, a verosimilhança ou o grau de completude dos elementos da intriga
são aqui questões irrelevantes, e, pensando no caso das histórias de “segredos” (centros
de escuridão e ‘indecidibilidade’ narrativa e epistemológica) de Henry James (The
63
O autor define este poema, essencialmente, como uma fábula sobre o acontecimento de si
mesma (1992: 310-43).
“This is what a literary work «is»: an act, an event, of reading, never entirely separable from
the act-event (or acts-events) of writing that brought it into being as a potentially readable text,
never entirely insulated from the contingencies of the history into which it is projected and
within which it is read” (2004: 59).
64
“C’est enfin le lecteur qui achève l’oeuvre dans la mesure où […] l’oeuvre écrite est une
esquisse pour la lecture; le texte, en effet, comporte des trous, des lacunes, des zones
d’indétermination, voire, comme l’Ulysse de Joyce […]. Dans ce cas extrême, c’est le lecteur,
quasiment abandonné par l’oeuvre, qui porte seul sur ses épaules le poids de la mise en intrigue”
(1983: 117, itálicos nossos).
65
75
Aspern Papers, The Turn of the Screw e The Beast in the Jungle, por exemplo),
percebemos que ler e “achever” um texto (ou, parafraseando Barthes, fazer a sua escrita
em nós) pode não ser mais do que compreender e reafirmar a sua inconclusividade. Esta
atitude interpretativa reduz decisivamente a importância da trama e dos seus sentidos,
fazendo com que “l’intrigue entière”, em vez de pensada como uma sucessão lógica,
seja “traduite en une «pensée», […] sa «pointe» ou son «thème»” (Ricoeur 1983: 105).
A teatralidade inerente a um tal modo de produção e interpretação literária,
significativamente apelidado de “mise en intrigue” (id. 106), e dependente de múltiplos
actos cooperativos entre escritor e leitor, é central nestas duas novelas.
Kate, uma jovem actriz, a protagonista de Inverness, é levada por Clive, um
escritor, a representar (na vida, e não no palco) o papel de Jenny, a mulher dele, que
havia desaparecido misteriosamente havia alguns meses. Deixando de parte a suspeita
criminal que uma tal proposta levanta, assim como o evidente decalque no enredo da
‘pré-história’ de Vertigo, que nos convida a ver aqui a contratação de Judy Barton por
Gavin Elster e a subsequente mascarada que visou ocultar o assassinato de Madeleine,
observaremos de que maneira este faz-de-conta dá lugar a um já referido drama da
dramaturgia, focalizado numa actriz de profissão que, quando não está a representar, se
olha ao espelho para ver uma “desconhecida” (Inverness, 9)66.
A Pantera forma com Inverness, na esteira do que já vimos acontecer com os
contos de O Fim de Lizzie, um par complementar. Kate, protagonista da segunda novela,
usa o mesmo “pequeno colar de prata, com o nó celta, um pouco tosco” (Pantera, 11),
que usa a personagem sua homónima na novela anterior. Este adereço remete uma vez
mais para Vertigo e para o colar que Judy/Madeleine utilizava na sua imitação de
66
De modo a evitar ambiguidades quanto à proveniência das citações neste subcapítulo
dedicado simultaneamente a duas obras, passaremos a indicar sempre que necessário o título da
obra em questão seguido do número de página.
76
Carlotta Valdes, funcionando tanto como objecto de identificação quanto como
elemento de ruptura, de queda do disfarce, na relação pigmaliónica entre Scottie e
Madeleine e, aqui, entre Kate e Clive.
Na segunda novela Kate é escritora, e Tom, seu amante, é um actor há pouco
tempo afastado dos palcos. Tal como em Inverness, o par amoroso personifica uma
relação cooperante e concorrente entre escrita e representação. Foi a partir desta tensão
entre texto e o que está além dele – “those frames and boundaries that conventional
dramatic realism would hide” (Abel 2003: 133) – que formulámos o nosso conceito de
drama teatrológico, com o qual nos queremos referir a uma narrativa que é ao mesmo
tempo auto-reflexiva e “metateatral” (id. ibid.).
Reiterando uma das afirmações mais insistentes na obra recente de A.T. Pereira,
também aqui o escritor Clive revela à actriz Kate que “não há grande diferença entre
aquilo que faz[em]”, uma vez que “[n]o [seu] caso, também, trata-se de entrar na pele de
uma personagem e criar, durante algum tempo, a suspensão da dúvida” (Inverness, 15).
De igual modo, “[h]á algum tempo que [a escritora protagonista de A Pantera] usava as
palavras representar e escrever como se fossem exactamente a mesma coisa” (78).
O drama logográfico que associámos à segunda novela, cuja acção também se
desenvolve dentro de coordenadas teatrais, remete para a reflexão sobre o conhecimento
(logos) e a escrita (grafia) como problema nuclear da narrativa.
Esta segunda novela parece retroceder à história da mulher in disguise da
primeira, unindo os dois textos num elo que replica aquele que une os pares amorosos
(escritor e actriz, e escritora e actor) que nelas figuram, suscitando a permanente
reconsideração de ambas na contaminação da leitura de uma pela leitura da outra.
O maior indício deste último ponto, com importantes efeitos retroactivos, é o
passo em que a Kate de A Pantera, revendo a sua biobibliografia de jovem escritora,
77
menciona “a novela curta que publicara aos vinte e seis anos”, na qual “[a]s
personagens eram um jovem escritor e uma actriz sem trabalho”, e “a história tinha algo
de circular, como se os dois se encontrassem presos numa jaula” (18). Lembrando as
dinâmicas intratextuais das três histórias de O Fim de Lizzie, Inverness encaixa
perfeitamente nesta descrição, e não terá sido, ao que parece, mais do que uma ficção da
autoria de uma personagem da novela seguinte, A Pantera.
No entanto, se Kate – a actriz de A Pantera – está a fingir, a escrita da primeira
novela, da qual, não obstante, nós pudemos tomar conhecimento enquanto leitores, não
passa também de uma ficção, tal como, por implicação, seria uma ficção a leitura que
dela fizemos. Este é o grande paradoxo da mise en abyme que A.T. Pereira instalou na
origem do texto e que ficcionaliza inclusivamente o acesso a ele.
Se esta segunda história for tida como verdadeira, a própria Kate, que no-la está a
contar, não pode existir, uma vez que vem com o seu colar de uma novela que foi, na
realidade, apenas uma ficção sua, e onde a própria se subsumiu enquanto simulacro de
Jenny, tal como Judy perecera ao interpretar o papel de Madeleine em Vertigo.
Ou seja, se Kate está a fingir que é Kate a fingir que é Jenny, então ela é ao
mesmo tempo verdade e mentira (“por vezes perguntava a si mesma se transformar-se
em Jenny seria transformar-se em algo que já era” [Pantera, 12]), gerando uma
plurivocidade ontológica e perspectival na personagem na qual o texto está focalizado, e
através da qual nós próprios acedemos a ele, e retirando, como consequência, toda a
estabilidade interpretativa à nossa leitura, pondo em causa o sentido do texto.
Primeiro, Kate insinua a Tom que não passa de uma alucinação:
– És mesmo real? […]
– Nem por sombras.
– És uma imagem criada pela minha imaginação?
– Sim. (id. ibid.)
78
Depois, é ela própria que pode estar a imaginar tudo: “[a]final, talvez nada tivesse
acontecido. Talvez tivesse imaginado a história, no intervalo de uma peça” (85).
Da ironia da epígrafe tirada de Hamlet67, ao facto de Kate “ver a desconhecida no
espelho” e ter a percepção de que os seus olhos “podiam ser os olhos de qualquer pessoa
porque não tinham nada por detrás”, “[u]ma casa vazia, onde ninguém vivera por muito
tempo” (10), constroem-se em Inverness as imagens da actriz e do escritor como seres
dotados de corpos ocos e anteriores à identidade, só alcançada por via da representação:
“E quando estamos a representar tornamo-nos naquilo que realmente somos” (55).
A dada altura, é-nos oferecida nesta novela uma descrição de Kate de alguma
forma relacionada com o “nevoeiro”, que já vimos antes abundantemente referido como
símbolo da matéria-prima ficcional: “Um ser amorfo, sem consistência, que roubava
quase inconscientemente pedaços das suas personagens” (54). A tragédia identitária de
Kate parece traduzir-se então numa impossibilidade de anagnórise, permanentemente
transferida e adiada:
Eram as personagens que interpretava que lhe davam uma ilusão de
identidade, quando estava sem trabalho, era só uma mulher que caminhava
nas ruas, que se confundia com as outras, um punhado de sensações e de
memórias que tinha de juntar cuidadosamente para formar um ser humano.
Havia dias em que tinha de procurar-se a si mesma, num quadro da National
Gallery, numa recordação de infância, num dos livros da sua estante, numa
sala de cinema onde repunham um filme antigo.
Não sei quem sou. Não sei o que quero.
E não gosto muito de mim mesma. (id. ibid., itálicos nossos)
A qualidade proteica dos actores lembra tanto o scripteur moderno anunciado por
Barthes, que “naît en même temps que son texte” (Barthes 1984: 66), quanto o seu
“This above all: to thine own self be true,/ And it must follow, as the night the day,/ Thou
canst not then be false to any man” (Inverness, 7).
67
79
“alguém” leitor, “sans histoire, sans biographie, sans psychologie” (69). Pensamos que a
ênfase do autor na subtracção de qualidades ao leitor, embora retoricamente extremada,
não o concebe realmente como um receptáculo vazio, mas antes como um configurador
activo, disponível e não obnubilado, ao qual caberá completar a sua própria história,
biografia e psicologia, atributos imperfeitos (não-acabados), ao mesmo tempo que
recebe em si o texto, completando-o e completando-se, através dele, enquanto leitor.
A conivência entre as duas figuras (escritor e leitor) é uma ideia perfeitamente
razoável em A.T. Pereira, e o melhor exemplo disto será Clive, que, no seu ofício de
escritor, é ao mesmo tempo agente e espectador da escrita. Tudo se resumirá, no fundo,
a “[e]ntrar na pele da personagem e criar, durante algum tempo, a suspensão da [sua
própria] dúvida” (Inverness, 76). Neste particular, e em jeito de coda desta questão,
citamos um verbete em que Manuel Gusmão faz notar que:
A admissão da fictividade da enunciação literária e da alterização do autor
no processo de escrita não inviabilizam antes exigem a construção da noção
de autor. […]
Nesse sentido também, se o autor não é um demiurgo, ele é o limite que
permite ao leitor compreender que também ele o não é; assim como é um
nome para a alteridade do texto que, por sua vez, preserva a possibilidade da
autoformação do leitor como outro. (Gusmão 1995: 488)
A plasticidade destas entidades textuais permite que a voz narradora passe da
terceira para a primeira pessoa, e que o tempo verbal da narração oscile entre o pretérito
imperfeito e o presente. Estes momentos de irrupção na narração de uma voz subjectiva,
pontuais nas duas novelas68, fundamentam uma suspeita, em primeiro lugar, sobre a
identidade daquele narrador impessoal, e sobre quem é de facto, na novela, o sujeito da
Em A Pantera, por exemplo: “As palavras eram desconhecidas, ameaçadoras. Mas algo nela
lembrava-se vagamente de as ter escrito, esta página tem a ver com o lago num entardecer de
nevoeiro […]. E um barco. Creio que havia um barco” (94).
68
80
enunciação, pondo em causa a aparente fidedignidade do que estamos a ler; e, em
segundo lugar, aliados à alteração do tempo verbal, os calculados instantes produzem o
que Javier Marías descreveu como um efeito de identificação entre “o vivido” e o
“sonhado”, ou o real e a fantasia, que confere ao narrado “uma dimensão mais fantasmal
ou difusa”69, numa (anti-)dialéctica narrativa entre passado e presente semelhante à que
dá estrutura a O Verão Selvagem dos Teus Olhos.
Inverness, o drama teatrológico, põe assim em jogo, mais do que um problema de
representação esquizofrénica da identidade, as cisões e intersecções das entidades que
pululam o texto, que em A Pantera vão evoluir no sentido da naturalização – numa
acepção muito específica do termo – da personagem de Kate, quando o seu nome
próprio se torna nome comum, justaposto aos elementos da natureza (“Katie, neve,
lilases” [103]).
Esta cisão da unidade ôntica, sempre relacionada com estados anteriores às
actividades de escrever ou representar (nas quais tudo converge), possibilitará a
autoscopia da protagonista. Como Clive, a partir de um “ponto de vista dos pássaros”,
Kate vê-se a si mesma “sempre de fora”70. Em A Pantera, por exemplo, quando o seu
trabalho de escritora não corria bem, quando não conseguia chegar ao que identifica
como a “pureza no trabalho”, ela “separava-se lentamente de si mesma, e ficava a ver-se
enlouquecer” (17).
69
Marías desenvolve a sua explicação deste processo estabelecendo uma comparação
especialmente interessante para nós: “O presente do indicativo […] não é apenas utilizado para
aquilo que é único, actual, imediato, para o que sucede neste momento (como acontece com as
anotações teatrais e os guiões cinematográficos), mas também para o contrário, para o que se
presume eterno e invariável ou pelo menos duradouro, para as afirmações que se pretendem
imutáveis e definitivas, «Deus existe» ou «Deus não existe», tanto faz” (Marías 1998: 83).
“Eu vejo-me sempre de fora… vejo-me a andar na rua, em vez de me limitar a andar na rua”
(Inverness, 17).
70
81
A ‘diabolia’ das personagens, isto é, a sua divisão do Uno – sabemos que “[t]em
algo a ver com os demónios” (id. ibid.) – permite-lhes a experiência extracorporal de
observar a sua movimentação no cenário. Kate balbucia frequentemente um refrão em
que é ela própria o termo de comparação: “Como Alice, ela caiu num buraco” (19,
itálico nosso).
Este ponto de vista descentrado, liberto do obscurecimento subjectivo, resulta
numa valorização das superfícies especulares e da epiderme. Kate, a actriz de corpo oco
de Inverness, na angústia de (não) ser ela mesma e na ânsia de ser outra (Jenny), tem de
se valer da objectividade da representação teatral (em que se incluem os literais objectos
da caracterização: o colar celta, o guarda-roupa de Jenny, a maquilhagem, o perfume, a
coloração do cabelo, etc.), sabendo que “o que as tornava diferentes estava à superfície,
e o que está à superfície pode ser representado” (63).
Aquele ponto de vista diabólico, lugar-onde de uma perdição, dá aos observadores
de si mesmos uma noção espacial do mundo em que habitam, ou do palco em que
actuam, que, como veremos adiante, se desenvolverá numa curiosa perspectivação
espacial do livro.
Entre o facto de Clive, o escritor, ver as pessoas “como personagens das suas
histórias” (37), isto é, apreender o mundo como matéria dúctil da ficção, e o facto de
Kate sentir que, por todo o lado, “[h]á muitos espectadores” (79), ensaia-se uma escrita
que se distende no espaço para modificar a realidade. Quando Clive escreve, algo
“acontec[e] à sua volta”, e ele é colocado no centro da construção alegórica de um
‘escritor-aranha’ – sem dúvida dotado da percepção em teia de que falou James71 – para
o qual “escrever” é uma actividade metafísica que transcende o acto em si mesmo:
71
Cf. p. 30.
82
– Pensei que era aqui que queria escrever os meus livros.
– O centro da teia.
– O centro da teia.
– Um lugar sagrado.
– Como um palco.
Ela sobressaltou-se.
– Como o quê?
– Como um palco.
– Sim… suponho que sim.
– Um homem que trabalha com marionetas… que as faz, com madeira,
tecido, tinta…
– Tu não eras capaz.
– Não com as minhas mãos.
– Só quando escreves…
– Mas não escrevo só quando estou sentado à secretária.
– Eu sei.
– Eu acho que queria ser tudo. O homem que trabalha com as marionetas,
mas também uma marioneta. (119)
Em Inverness, Clive é simultaneamente escritor, actor, encenador, marionetista e
marioneta, e ainda bonecreiro. A sua escrita consiste, no fundo, na encenação de uma
‘realização literária’ através da qual ele monta cenários, concebe situações e dirige a
actriz principal de acordo com as coordenadas visuais de uma mise en scène. O seu
texto não é como um drama escrito para teatro, mas como uma forma imediata de
‘teatro escrito’.
Também A.T. Pereira encena, paralelamente a Clive e, depois, a Kate, uma escrita
da “ceno-grafia”, jogando com sobreposições frequentes entre a narração aparentemente
heterodiegética e o discurso indirecto livre das personagens, a partir do ponto de vista –
não necessariamente metafórico – de uma lente72.
Mas é na espacialização da própria ficcionalidade que as duas novelas mais
axialmente se encadeiam uma na outra, encadeando-se também com O Fim de Lizzie ou
A Outra. Os textos confundem-se entre o nevoeiro que inunda o fim de Inverness, e que
“Jenny com o cabelo preso na nuca e um vestido castanho, a olhar para além da câmara”
(Inverness, 59).
72
83
engole Jenny (ou Kate) e o seu duplo, e aquele que se alastra nos espaços intersticiais de
A Pantera, circundando e isolando as ilhas, os palcos e as bibliotecas, e conduzindo os
actores na sua “viagem para a escuridão” (67).
Este é um nevoeiro que, como temos observado, é um conceito constelar que se
declina em muitos sentidos na ficção de A.T. Pereira, representando simultaneamente a
fronteira e a ligação entre as coisas. O seu efeito de indefinição permite um encontro
entre personagem e actor, original e duplo, e realidade e fantasia, que leva à desaparição
dos dois elementos do binómio por um esbatimento – conceptual mas também visual –
dos contornos. Em última instância, o nevoeiro não conduz ao apagamento, mas à
dúvida, ao interstício caótico entre uma coisa e outra coisa, onde os contrários são
possíveis, e a um espaço sideral da literatura onde as palavras soltas regressam a um
estado pluripotencial.
As peças de teatro, os poemas, a escrita e o fazer-de-conta ganham aqui o valor
molecular das grandes massas solventes: “o nevoeiro ou o mar”, “[o]u a noite” (Pantera,
42-3)73. O livro começa “a tomar forma”, ainda antes de ser escrito, com as “palavras e
as imagens, a ternura e o terrível” (9), e o autor desta escrita fenomenológica –
verdadeiramente cinética – “transform[a] o lugar em que [se] encontra e o homem que
está a olhar para [si]” (53). Já no diálogo filosófico de Poe sobre “the physical power of
words” que citámos antes a propósito do valor metafórico do éter em O Fim de Lizzie,
se fizera a pergunta: “Is not every word an impulse on the air?” (1984: 825).
Em Inverness, Kate espiava Clive a escrever, “[c]om a sensação estranha de que
algo estava a acontecer à sua volta” (84). Como os fios de uma teia que se estende, uma
parte perigosa desta escrita “pair[a] nas águas” (Pantera, 77), e outra parte é
73
Na mesma linha temática, Ropars havia já apelidado o Sena de Aurélia Steiner (Melbourne)
(1979), de Marguerite Duras, de “grand liquidateur d’images” (1990: 176).
84
apresentada como cartografia, modelo do mundo que o escritor apresenta a Kate, como
o tabuleiro onde as peças se dispõem e ela tem de actuar para que a representação se
inscreva: “Ele pôs os mapas em cima da cama. […] Para começar, a aldeia. A igreja, a
casa do pároco. As lojas onde Jenny faz compras. E, claro, as pessoas” (Inverness, 59).
Para reutilizar termos de Attridge, o “poder linguístico” está resumido nestas
novelas a um equilíbrio precário entre “cognoscibilidade” ou “incognoscibilidade” do
mundo, e os seus utilizadores, apanhados numa trama em que são tanto criaturas e
personagens como criadores e autores, já filtram o real através de uma rede de
elementos simbólicos, ingredientes de um eu que têm depois de reinterpretar de acordo
com a distribuição dos papéis. Trata-se daquilo de que são feitas “as primeiras
histórias”, as primeiras imagens e os primeiros cheiros, como descobre a protagonista de
Inverness (99), para na novela seguinte concentrar toda a pulsão artística numa
“imagem na mente” (porque, no drama logográfico, gráfico também significa visual ou
pictural). Falamos de uma verdade produzida no colapso do binómio “memória e
imaginação” (Pantera, 19), de que o resultado é a obra destes poetas “outrados”, ou a
ficção profundamente en abyme de A.T. Pereira.
Fazer a imagem (escrever/imaginar) é fazer o “acontecimento” (Janvier apud
Martelo 2012: 26), na medida em que, como sugere a autora de O Cinema da Poesia à
luz de Blanchot e Deleuze, estamos “ao nível de um «de-fora» da linguagem (que não
lhe é exterior, mas que é a exterioridade da linguagem)” (id. ibid.).
Neste sentido, Attridge reformulou a pergunta crucial da interpretação literária de,
em tradução livre, “como ler um texto para entender o seu sentido”, para “como
performatizar as relações que o texto estabelece com o poder linguístico” (2004: 98,
85
tradução nossa)74. O autor justifica a mudança da desencriptação do texto para a
comparticipação do leitor, também ele “outrado”, do seguinte modo:
[A]nything that language can do in the world may be performed in
literature. In performing the work, I am taken through its performance of
language’s potency; indeed, I, or the “I” that is engaged with the work,
could be said to be performed by it. This performed I is an I in process,
undergoing the changes wrought by, and in, the encounter with alterity. (id.
Ibid.)
Um dos aspectos mais interessantes de A Pantera é o facto de Kate recorrer a
“uma linguagem secreta” (22), reservada para actos de fala performativos e um muito
específico “tipo de «acção»” (Austin 1980: 110).
Usado como língua estritamente simbólica, o gaélico é o idioma de maldições,
orações, feitiços, magia e xamanismo:
Repetiu as palavras em gaélico.
Bhí na comhrá ardnósach seo faoi cheilt.
Soavam a um encantamento.
Kate sorriu. Quase todas as palavras em gaélico soavam a um
encantamento.
[…]
Ela sempre acreditara em magia. Era esse o seu trabalho. Transformar as
palavras em maldições, em encantamentos.
Geis. (100)
De resto, e regressando às investigações etimológicas de Paul Zumthor, ter-se-á
verificado até ao século XIII a associação do livro a práticas rituais que encontravam na
‘gramática’ um sentido de feitiçaria subsistente nas línguas modernas em determinadas
Explorando uma ideia curiosamente próxima, Duras afirma procurar um “primeiro estado” do
texto por oposição ao seu sentido, para o que recorre a uma comparação com a memória
auditiva: “comme on cherche à se souvenir d’un événement lointain, non vécu, mais «entendu
dire»…” (apud Ropars-Wuillemier 1990: 180).
74
86
derivações: “le mot grimoire, designant quelque recette de sorcellerie, vient du latin
grammatica; et l’anglais, d’origine dialectale écossaise, glamour («charme»,
primitivement au sens le plus fort) a la même étymologie” (1987: 126).
A incoerência que se poderia encontrar no facto de uma língua natural, o gaélico
escocês, estar exclusivamente votada às práticas de “linguagens simbólicas”, das artes e
do teatro, foi posta de parte por Todorov em observância às palavras de Artaud75.
Além de introduzirem no texto narrativo, pelo menos para a maioria dos leitores
portugueses, a ausência de sentido do que é ilegível, as frases e os versos em gaélico das
falas e do pensamento de Kate, raramente traduzidos, oferecem ao discurso da
personagem a materialidade e o mistério de uma cadeia fonética que vale por si, como a
música ou a prosódia que nos contos de fadas se associam a palavras mágicas. Resta,
no papel, a disruptiva superfície gráfica de um fundo de sentido que nos escapa:
“Cuirim m’anam ar choimrí Chríost. […] Cuirim ann crann ar ar céasadh Críost idir mé
agus an tromluí agus idir mé agus gach ní eile a bheadh ar mo thí” (27).
Mesmo quando há tradução, aquilo a que se tem acesso está num interstício entre
o desconhecido e algo que se furta à explicação: “«idir mé agus na tromluí». Entre mim
e o pesadelo. Entre mim e o pesadelo. Ou o que quer que venha ao meu encontro”
(id.ibid.).
Enquanto escritora, a maior obsessão de Kate é o estatuto da linguagem,
problematizado entre o processo de assombração que é o seu próprio trabalho, a
eloquência dos actores ‘possuídos’ no teatro (por fantasmas de personagens feitas de
“um conjunto de palavras” [46]), e “o silêncio pensativo, profundo” que o seu pai,
dramaturgo, levava consigo para os lugares em que entrava (“o silêncio nascia dele”
“[I]l n’est pas impossible de manier le langage verbal comme un langage symbolique. La
différence est moins, nous l’avons noté déjà, entre deux types de langage indépendants, qu’entre
deux conceptions de langage […] et par conséquent entre deux emplois (ou fonctions) du
langage” (Todorov 1971: 220).
75
87
[16]), transportando o efeito do intervalo e do não-dito nas peças de teatro: a interrupção
da linguagem como possibilidade de epifania, em que “as pessoas se lembrassem de
qualquer coisa que tinham esquecido há muito tempo” (id. ibid.).
Quando conheceu Tom, o actor por quem já estava apaixonada quando, em
pequena, o via nas encenações de peças escritas pelo pai, Kate percebeu que havia
palavras incomuns, não generalizáveis, que pareciam “escritas para ele”, assim como se
apercebeu do poder da sua autoria, e da possibilidade de este lhe escapar ao controlo:
– O poder das minhas palavras fará que venhas sempre ao meu encontro.
– Mesmo que tu não o queiras.
– Mesmo que conscientemente não o queira…
– O poder das tuas palavras muda a aparência das coisas…
– E a essência das pessoas.
– Sim.
Eu dou forma à tua alma, pensou ela. (55)
No fundo, esta é uma replicação do comportamento literário do seu pai, uma
espécie de master builder, como o da peça de Ibsen em que Kate inventou que tinha
entrado76: um mestre construtor que, antes de empreender uma queda fatal, sobe ao
ponto mais íngreme da sua torre, onde pode alcançar e fazer o “impossível”77.
O pai de Kate, por seu lado, habita a torre de um castelo no centro de uma ilha
onde só se chega, como à ilha lendária de Avalon, pela eterna solicitude de um
barqueiro mudo, atravessando o nevoeiro numa viagem de meditação 78. A morada deste
“Depois inventou as peças em que tinha entrado, The Tempest, claro, e The Glass Menagerie,
mas também The Master Builder e The Three Sisters” (67).
76
“HILDE Foi assim que o vi durante estes dez anos. Como ele está seguro! […] Agora está a
pendurar a coroa no cata-vento! RAGNAR Isto é como estar a ver uma coisa completamente
impossível. HILDE Sim. Sim, é o impossível, o que ele está a fazer!” (Ibsen 2006: 320).
77
“Era uma viagem estranha, quase tão estranha como os seus pensamentos. Estava a atravessar
o rio, estava a atravessar o lago, para um lugar que não conhecia, para um lugar que ninguém
78
88
dramaturgo, em contínua queda (em cascata) para dentro da sua construção, fica para lá
do centro da imaginação de Kate, sua filha e personagem, que nas peças e nos poemas
do pai se prendia sempre a determinadas palavras, como “neve” e “lilases”. Mas
também além da memória de Tom, por sua vez personagem de Kate (“fantasmas dentro
de fantasmas” [67]), na mente do qual ela mergulha, desenvolvendo o motivo do
afunilamento que é afinal uma circularidade: “Na infância dele havia um jardim que
levava a um campo, que levava a um bosque, que levava a um pequeno cais onde a
família tinha dois barcos”, que, naturalmente, levavam “à outra margem do lago”, para
lá da “cortina de salgueiros”, “no meio do nevoeiro” (69), até à morada do dramaturgo.
Tal como antes fizera Clive, em Inverness, e tal como aprendera do pai, um
escritor mago-xamã, que lhe contava em pequena uma história “para fazer nevar” (70),
Kate instrumentaliza e subjuga o real a um objectivo puramente literário79, envolve-o
em encenação, em prol do literário (“Ela aguardara uma tarde de nevoeiro para deixá-lo.
Era bom para o seu livro” [81, itálicos nossos]), e encontra, inspirada na personagem de
Larry, em The Iceman Cometh, de Eugene O’Neill, uma alternativa à morte, ou, uma
vez mais, uma maneira de ganhar a vida, em “escrever peças” (59). Clive, a figura mais
marcadamente fáustica destes textos, confessa que “venderia a alma ao diabo para não
deixar de escrever” (Inverness, 30).
Kate está a escrever precisamente A Pantera, a mesma história que nós estamos a
ler, “sobre a casa e o lago, e as histórias que [Tom] lhe contava, os papéis que
interpretara, as memórias de infância”; ela “[e]screvia sobre eles dois juntos” (60). Isto
conhecia, mas as pessoas diziam que ficava sempre a noroeste. O homem que remava com
firmeza conservava-se em silêncio, e ela também não sabia o que dizer” (27).
“Porque ele estava apaixonado. Kate tinha consciência disso. Pensou que era bom para o
livro” (52, itálicos nossos).
79
89
faz dela um figura ‘avatárica’ de A.T. Pereira, ou, pelo menos, um elemento de
inclusão/eclosão do autor dentro do próprio texto.
Mas esta coincidência traz mais implicações. Inspirada no filme Track of the Cat
(1954), de William A. Wellman, em que uma pantera nunca realmente vista deixa sobre
a neve os indícios aterrorizadores da sua presença, Kate entrecruza a sua narrativa com
uma espécie de mitografia felina que toma a forma de um poema em inglês que assoma
pontualmente no texto:
Kate estremeceu a primeira vez que pensou nisso. Uma frase solta, talvez
um verso: “and I felt the smell of the panther”.
I went to the porch, that was no longer a porch,
open and lonely, part of the night,
and I felt the smell of the panther.
And I followed the smell of the panther. (40, por exemplo) 80
A caminho do fim da novela, junta-se a esta ameaça uma outra, um fundamental
susto caligráfico (o momento de crise no drama logográfico da novela) nas páginas do
manuscrito em que Kate está a trabalhar.
Ela já havia confessado anteriormente que:
Quando estava a escrever, quando estava a escrever fluentemente […], tinha
a sensação de que aquele era um estado de consciência alterada. Não
precisava de drogas para o induzir. […] Ao fechar o caderno, quase não
recordava o que tinha escrito. Não era de estranhar que as anotações nas
margens fossem tão enigmáticas. […] Uma escrita simples mas não seca,
imagens fortes, e a presença do que não estava escrito. (76-7)
80
Embora tenham sido envidados todos os esforços, não conseguimos encontrar uma origem
alheia, em fontes históricas ou literárias, para esta ‘ode à pantera’ em língua inglesa, o que nos
leva a deduzir, embora não a afirmar, que se trata de uma criação original de A.T. Pereira.
90
Mas, depois de o próprio livro irromper com o corpo de uma pantera, ela percebe
que a “assimetria” (67) que encontrava nele se deve a uma autoria partilhada:
E o livro estava ali, e quando aproximou as páginas abertas do rosto e sentiu
o cheiro da pantera. E era um cheiro quente e doce. Um cheiro vivo. Ela
criara uma coisa. (88)
Procurou as anotações nas margens.
Agora, curiosamente, sabia quais as que escrevera. E havia as outras, que
alguém escrevera, e que eram muito enigmáticas. Ela não entendia o seu
sentido, nunca entenderia.
As mensagens dele. (91)
A Pantera parece assim uma extrapolação directa das interrogações de “The
Tyger”, de William Blake81, sendo que a construção animista deste ‘livro-pantera’
obriga a uma releitura quer da novela, quer do poema do autor inglês. O que parece ficar
sublinhado na sua articulação é o entendimento de ambos enquanto obras de
questionação da autoria, nas quais o sujeito da enunciação se relaciona intimamente com
a criatura felídea82.
Kate expressa-se como se não tivesse tido qualquer intervenção em tudo o que
acontecera, relegando a Tom, embora no fim isso fique por esclarecer, a disposição das
peças do jogo: “Pergunto a mim mesma se ele escolheu os dias. Os dias de sol e os dias
“Tyger Tyger burning bright,/ In the forests of the night:/ What immortal hand or eye,/ Dare
frame thy fearful symmetry?” (Blake 1970: 42, vv. 21-4).
81
Esta linha de leitura recorre em muitos diversos críticos de “The Tyger”. Harold Pagliaro, por
exemplo, centra-se na evidente disparidade entre a linguagem verbal do poema e a ilustração
que o acompanha para chegar a uma relação iluminante: “«The Tyger,» speaker, Tyger, Creator,
and Lamb are in the first instance supposed to be very different. But the perceptual progress of
the speaker, as it is indicated by his questions about the Tyger’s Creator and the Lamb’s, implies
the inaccuracy of this initial view. The speaker of «The Tyger,» who begins by seeing the Tyger
as a unique terror, recognizes in the course of his thinking that he, with the rest of creation, is
himself the Tyger in some sense” (Pagliaro 1987: 87-8).
82
91
de nevoeiro. As primeiras horas da manhã e o crepúsculo vermelho. Como se pintasse o
cenário. Ele trabalhou nisso, pintar cenários…” (95).
Nos mesmos moldes, talvez o eu lírico de Blake, quando se dirige ao Tigre, se
esteja a interrogar a si próprio sobre que mão terá enquadrado a terrível simetria daquele
poema, nomeado “Tigre” como este foi “Pantera”, ao mesmo tempo que relega a um
inominado a responsabilidade de uma criação que, inadvertidamente, produz o mal.
Então, além de como uma ponderação acerca da coexistência de realidades
antagónicas na esfera terrestre (o bem e o mal, o cordeiro e o tigre), o poema de Blake
pode ser lido como a imagem do espanto do autor perante a sua obra, e o que ela pode
ter de inesperado e de indómito – constituindo-se como “cela même qui sans cesse
remet en cause toute origine” (Barthes 1984: 67) –, de tal forma que conduz o poeta a
um questionamento do seu próprio estatuto e a um distanciamento de si que expõe o seu
pecado de atrevimento e a sua vulnerabilidade perante o que, depois de feito, o
ultrapassa: o enigma de uma superfície inteligível e perfeita, de temerosas simetrias, e
do que ela pode esconder. Falamos, claro, do intervalo – “entre mim e o pesadelo” 83 –
em que o poeta é leitor da sua obra.
No fundo, este encontro permite-nos comparar ou resumir A Pantera a uma lição
de escrita e de leitura. Depois do caos discursivo que vai encerrar a novela, toda a
matéria narrativa é misturada e rearranjada sob a forma de um último livro, “a novela de
Kate” (114), dado a ler a um interveniente epilogal, um “espectador” chamado Byrne
que, além de Gabriel Byrne, o actor irlandês cuja figura já foi chamada a participar de
outras ficções de A.T. Pereira 84, pode representar-nos, ou representar a personagem do
83
Cf. p. 87 (Pereira 2011a: 27).
84
Ele é, por exemplo, o ‘protagonista’ de Se Nos Encontrarmos de Novo (2004).
92
leitor, à qual resta fazer o seu próprio caminho de (re)conhecimento (logos) por entre os
despojos (gráficos) que se lhe apresentam, as pegadas da fera, as terríveis simetrias.
Respondendo a Blake, tornou-se claro, por fim, que “[o] mistério estava no livro,
em cada linha, em cada página; e do outro lado das palavras” (81).
93
3.2. Alice do outro lado do Lago
Plus nous voyons des choses dans une oeuvre d’art, plus
elle doit faire naître d’idées; plus elle fait naître d’idées,
plus nous devons nous figurer y voir des choses.
Gotthold Ephraim Lessing
Laocoon
Na abertura de O Lago, Tom recorda um princípio poético: “dirigir uma peça ou
um filme é procurar algo de tímido e interior, escondido nos bosques do nosso ser” (11).
Este afirmação veicula pelo menos três dados essenciais a considerar na nossa
leitura: a criação artística será aqui, como tem sido nos textos analisados anteriormente,
o motivo predominante; a ideia implícita de ‘ficção’ corresponde a uma invariável de
expressões variantes, assimiladas na sua ‘performatividade’ comum, reflectida no verbo
de acção (“dirigir uma peça”, “dirigir um filme”, ou, acrescentamos, escrever um livro);
e, por último, a criação será entendida como um fenómeno de cariz ontológico, uma
escavação no “interior” do sujeito criador, com vista à desocultação do que já é latente e
constitutivo dele mesmo. Será por esta razão que mais tarde se adivinha, na síntese das
actividades criativas de Tom, o artista completo, a possibilidade de uma solipsística e
radical ‘auto-bio-grafia’:
– Tu escreveste a peça, fizeste uma grande parte do cenário com as tuas
mãos, compuseste a música da abertura e és o actor principal. Talvez um dia
escrevas uma peça só com uma personagem, um cenário inteiramente feito
por ti. E não precisarás de mais ninguém. […]
– Isso estaria demasiado próximo da vida. (25)
A metáfora visual na base destas ideias estabelece ligações entre o texto e uma
estrutura imagética com um efeito modalizador sobre a nossa leitura. Referimo-nos,
94
portanto, a uma experiência visual de ler que está “muito para além do cinematográfico
da história” (Magalhães 2000: 1). Por um conceito como o de “escrita cinematográfica”
se revelar aqui insuficiente, voltamos a referir-nos a uma escrita eminentemente visual,
que se desenvolve na exploração de figuras – “imagens de sonhos” na acepção de
Lucrécio, segundo Auerbach (1984: 17) – de origem própria ou alheia, pictórica,
cenográfica, cinematográfica, literária ou real, num processo que podemos definir
genericamente como imaginação por palavras, e que encontra uma descrição possível
num documentário dedicado a Pierre Klossowski que começa com uma introdução
muito pertinente para o nosso argumento, ligando livro e palco, seguida pelas palavras
do próprio sobre o papel das imagens na sua mundividência e praxis artística: “Pour
Pierre Klossowski, la littérature est un théâtre et le livre une scène. […]
KLOSSOWOSKI: «Je me trouve sous la dictée de l’image. C’est la vision qui exige que
je dise tout ce que me donne la vision»”85.
Muito mais do que sobre uma ideia de texto fundamentalmente sintáctico, o texto
de A.T. Pereira constrói-se à luz de uma concepção xadrezista de linguagens
‘multimediais’ convertidas em literatura, com organização sintagmática e representação
e interpretação predominantemente figurais e, em certa medida, reusando o termo de
Auerbach em Mimesis, “omnitemporais” (2003: 161).
Tal como o “além” concebido por Dante Alighieri na Divina Comédia, as
convenções da sua composição literária procuram um “figural realism”, e, por
implicação, um “overwhelming realism” (Auerbach 2003: 196-7). Esta será uma forma
de realidade excessiva, transbordante, que, sublinhamos, não está de modo nenhum
relacionada com os critérios de verosimilhança do Realismo oitocentista. Na verdade,
85
Pierre Klossowski, un écrivain en images (1996), Dir. Alain Fleischer, 47 minutos. DVD,
Paris: Centre national de la cinématographie, 2008. Transcrição nossa.
95
este realismo mais do que real86 apresenta-se, segundo o mesmo autor, como “eternal
and yet phenomenal; […] changeless and of all time and yet full of history” (197).
Como vimos em A Outra, através da aproximação a Marguerite Duras, este
dispositivo de operações literárias, dotado de um carácter autotélico, justifica o recurso
abundante à não-frase e ao sintagma nominal, neste caso indefinido, isolado ou em
cadeia agramatical, traduzindo-se em imagens que se associam à função mnemónica e
significante do sujeito:
Memórias. Tinha de encontrar um sentido para o que estava a acontecer.
Algumas imagens soltas. Uma pintura em madeira, uma madona numa
árvore. Um ícone de bronze que alguém punha numa mala antes de viajar.
Uma pequena árvore de fruto. Mas a árvore de fruto estava num quadro. Um
teatro. (115)
Para A.T. Pereira, a experiência da arte, que se confunde “visceralmente” com a
da vida87, parece pois sincretizar-se em fazer imagem, e, nesse sentido, a sua idealização
do artista – transversalmente “plástico” – parece coincidir com a de Varro 88, mas
também com a que a própria autora associa, em Num Lugar Solitário, a Duras: “Você
está apaixonado pela Marguerite Duras. […] – Sim. O amor é uma busca de imagens. A
vontade de recriar uma cena” (1996b: 28).
Este grau superlativo da realidade, que não tem lugar no mundo mas apenas num “além”
poético, foi acutilantemente afirmado por Baudelaire em, por exemplo: “La Poésie est ce qu’il y
a de plus réel, c’est ce qui n’est complètement vrai que dans un autre monde” (Baudelaire 1968:
103); e continua a ser um conceito importante no pensamento crítico mais recente associado ao
figural, como no ensaio de Olivier Schefer anteriormente citado: “le figural se veut bien plutôt
expression d’une réalité en excès, en débordement sur l’ordre discursif et intelligible” (1999:
916, itálicos nossos).
86
87
Cf. p. 27, Nota 25.
Na tradução de Auerbach: “The image-maker (fictor), when he says fingo (I shape), puts a
figura on the thing” (1984: 12).
88
96
Pensando a transitividade entre a experiência sensorial humana e, digamos, a sua
expressão, enquanto algo próximo de um “devenir texte” (Calle-Gruber 1993: 32) – ou
“le surgissement à l’état de veille d’une vive et précise vision intérieure qui demande à
voir le jour” (Robbe-Grillet, Angélique [125], apud Calle-Gruber) –, tal como víramos
no subcapítulo 1.1 colocado por Henry James, percebemos melhor a dimensão
reveladora do episódio inicial, em que Tom, confrontado com a imagem em palco de
uma candidata em audição para um papel na sua peça, deixa de ver a imagem matérica
como ela se lhe apresenta para passar a ver a imagem imaginada do que ela (não) é:
E então, quase sem se dar conta, Tom começou a vê-la.
Não era uma verdadeira loura. O seu cabelo era castanho. Os seus olhos,
os seus olhos cor de avelã, tinham muito de verde. O cabelo castanho, um
corte diferente, um vestido verde, solto e um pouco abaixo dos joelhos,
sapatos pretos, rasos. (12)
Tom interpreta a visão que tem de Jane como o que ela já é potencialmente: uma
actriz sob a sua direcção, na qual espera operar um efeito cosmético ‘artificializante’89,
e também uma personagem, desde logo atingida de uma crise pirandelliana da
existência (“a simples dor de estar vivo” [11]). A ficção de Tom, reescrita e encenada na
narrativa que progride com a nossa leitura deste livro en abyme, insiste nas
multiplicações do mesmo pelo mesmo, respondendo ao estatuto ‘elevado ao quadrado’
de todos os elementos centrais: o sonho do sonho, a imagem da imagem, a personagem
da personagem, a representação da representação.
Para poder dedicar-se à escrita e à encenação, Tom, que antes entrava também em
palco, contrata um actor profissional para ocupar o seu lugar. Porém, a sofisticação de
89
Este neologismo é inspirado na articulação de Charles Baudelaire, em Le peintre de la vie
moderne, entre a arte e a maquilhagem, por oposição ao que é natural e, portanto, contrário ao
belo (cf. Baudelaire 1885: 99-103).
97
tal tarefa escapa inicialmente ao substituto. Quando este confronta Tom com a
afirmação: “Na verdade, queres que te represente a ti” (25), o seu contratante corrige-o:
“Quero que me representes a representar a personagem” (26).
Este intervalo axial entre as coisas e elas mesmas faz com que ver Jane implique,
para Tom, um ajustamento anamórfico da perspectiva inverso àquele que nos mostra
Hitchcock em Vertigo (1958). Se ela é posteriormente comparada a Audrey Hepburn,
dona do rosto “substancial” definido por Barthes como “Acontecimento” (1957: 65-7),
as duas figurações que primeiro apresenta são claras reminiscências daquele filme, mas
com uma mudança no que toca aos papéis de original e substituta.
Aqui, a loura aparentemente original (equivalente de Madeleine) é obrigada a
reverter para a morena (“voltar à cor original” [30]) de vestido verde (como Judy,
quando Scottie a vê pela primeira vez), que no entanto ela já é em devir, segundo o
olhar penetrante, reorganizador (e autoral) de Tom. O seu grande papel é o de ser outra
quando, enquanto criatura de ficção, coincide fatalmente consigo mesma (essa outra),
pelo duplo recorte e pela ambivalência com que foi criada. Lembremo-nos do primeiro
título de A.T. Pereira, Matar a Imagem – a imagem que está no espelho.
Tal como acontece com Scottie, a pulsão escópica de Tom “desdobra-se”, e
“aquela «imagem dentro da imagem» […] encaixa uma imagem fixa numa imagem
móvel”, e ‘sobreimprime’ no objecto visado o seu destino fatal, já que “à imagem móvel
corresponde a acção, o movimento, a vida; à imagem fixa, a morte” (Stoichita 2011:
204)90. É ao remover a primeira camada do corpo visível de Jane que se tem acesso à
sua parcela, ou verdade, mais intrínseca, e a qual, ironicamente, ela será coagida a
Não obstante Stoichita estar a reportar-se especificamente à tensão entre a “imagem-movimento” do cinema e a imagem fixa da pintura, consideramos o passo citado, dada a
natureza complexificada do texto de A.T. Pereira, também pertinente neste contexto.
90
98
representar. Assim sendo, esta é uma personagem paradoxalmente construída pela
extracção da essência para o nível da epiderme, ou seja, por vampirismo ou morte.
As dramatis personae desta peça de teatro em modo narrativo são a um tempo
objectos e agentes de uma estética não-mimética, de tal modo consciente da verdade de
ser uma ficção que se pode dedicar apenas à continuação de realidades assente em ideias
de plasticidade e coreografia de simulacros, para o “outro lado” (107), o espaço vazio
entre “um mundo dentro do mundo” (83) e os “teatros”, que são “espaços sagrados.
Fechados em si mesmos. Fora do mundo” (50)91.
Talvez se possa afirmar que o estágio ficcional a que chegaram os textos e as
categorias da narrativa na obra de A.T. Pereira deriva directamente do corte “escritural”
com o nível “representante” da literatura que, em 1970, Julia Kristeva situou no final do
século XIX (“Rabelais, Swift, Dostoiévski”), para ir ao encontro do que a mesma autora
chama “romance polifónico moderno”, de estrutura carnavalesca, que se faz “«illisible»
(Joyce) et intérieur au langage (Proust, Kafka)” (1970: 92-3).
Ao encontro da noção de “alteridade” de Attridge, Kristeva explicou, no que
parece um desenvolvimento da teoria de Barthes da despersonalização ou da morte do
autor (concebida, desta feita, como textualização), que no romance polifónico moderno
(a que também arrisca chamar “poligráfico”), o autor se dobra sobre si mesmo enquanto
sujeito escrevente e leitor, tornado um texto que se relê e se reescreve a si mesmo 92.
Na ficção não-imitativa de A.T. Pereira, os actores de O Lago têm de merecer a
existência na sua condição absolutamente literal de “becomers” (105), ou seja, têm de
91
Sobre este tópico, v. Reis 2014: 37.
“Dans la structure romanesque plyphonique (polygraphique?) le premier modele dialogique
(S – D) se joue entièrement dans le discours qui écrit, et se presente comme une contestation
perpétuelle de ce discours. L’interlocuteur de l’écrivain est donc l’écrivain lui-même en tant que
lecteur d’un autre texte. Celui qui écrit est le même qui lit. Son interlocuteur étant un texte, il
n’est lui-même qu’un texte qui se relit en se réécrivant” (Kristeva 1970: 96).
92
99
assumir a função para que nasceram, e que lhes aportará o mesmo castigo e o mesmo
pecado do conhecimento que afectaram o Homem afastado do Paraíso inerte. O
processo gnóstico fundamental por que têm de passar foi formulado em A Outra como
“a aprendizagem «da importância dos substitutos»” (47). Em O Lago, Tom afirma:
“Quando estou a representar sou eu mesmo”; Jane confirma: “Só quando estás a
representar” (105). Assim, assumir a identidade de personagens é de tal forma um
processo material que a identidade em si atinge a mensurabilidade de uma massa; de tal
forma que a dada altura Jane pode surgir no palco com “uma concentração de ser” (62).
A retórica contra a imitação que vamos encontrar nesta novela reforça que
“representar” tem aqui um sentido substancialmente diferente do imputado por Kristeva
ao romance dialógico anterior ao século XX, e retoma o primado platónico de O Fim de
Lizzie, que procura a legitimação e a verdade da cópia enquanto matéria convergente da
natureza, ou inseparável dela, (“[Tom] não separa o palco da vida” [56]) e completude
metamórfica, isto é, “não algo de perfeito, mas algo de inteiro” (24), que nasce do
delirante, “psicopata” (24) e “fanático” (27) gesto criador que interfere no real para o
revelar como obra sua:
O vislumbre da personagem que tivera quando a rapariga estava a ler. Mas
as respostas estavam certas: uma casa no meio de um campo de narcisos, a
criação do mundo nas aguarelas de Turner, o mistério das livrarias do West
End.
E o rio. […]
Desta vez quero the real thing. Não uma imitação barata.
Mas, se a queria mesmo, tinha de criá-la.
Ele criara-a no papel. Agora precisava de um corpo. Material para ser
modelado. (14)
Se estamos perante uma estética baseada na força (Álvaro de Campos), ou, como
explicou Artaud, na “legge de la Forza” (Cappa 2004: 47), na enargeia da representação
100
que transforma o enunciado em “imagem”, pondo diante dos olhos o que é descrito (cf.
Krieger 1992: 93 et seq.)93, ou na “crueldade” do teatro no seu drama essencial,
associado ao “second temps de la Création, celui de la difficulté et du Double, celui de
la matière et de l’épaississement de l’idée” (Artaud 1985: 77), então, a posição do
criador é também posta em xeque. Já não afastado, mas interveniente, performer no
drama em que Deus emudeceu 94, ele é um actor que se tem de ajustar ao papel de
demiurgo, e, cumprindo a falta prometeica a que é destinado, é substituto daquela figura
arquetípica, ela própria uma máscara sucessivamente ‘recorporizada’ nos seus
representantes e ‘descorporizada’ na efemeridade de todos eles. Não por acaso,
encontrámos o motivo de um rosto impermanente como metonímia da personagem, ou
da metamorfose em personagem, perfeitamente desenvolvido em O Rosto de Deus:
Abriu um livro e tentou ler.
Era A Mulher de Branco […].
Lembrou-se de que Tom o comprara no original há algumas semanas. No
dia em que lhe tocara no rosto como se o criasse de novo.
Passou a mão pelo rosto, tentando reviver aquele contacto.
Mas não sentiu nada. (177)
Relacionando-se retrospectivamente com uma epígrafe, de Iris Murdoch (“He
called himself a maimed monster and said he felt he was crammed with demons” [77]),
este rosto de deus torna-se afinal desfigurado, e o que ele encobre é a condição
monstruosa e multiplamente possuída da sua persona. Na mesma ordem de ideias, o
escritor de O Lago, e, por implicação, A.T. Pereira, perceberá, por fim, que “não há
“Longinus […] now is turning to «images,» an appropriate term for the visual appeal of the
figure the ancient rhetoricians called enargeia” (id. ibid.).
93
“Havia um mudo, que era Deus, e não tinha ninguém com quem falar. Deus não tem ninguém
com quem falar” (116).
94
101
qualquer diferença entre escrever e representar” (105), ou entre escrever e ser um actor
que encarna por algum tempo, “demoniacamente”, a personagem do autor.
A esquizofrenia controlada entre actor e autor, termos propícios à confusão
fonética e semântica (actor e auctor) (Kristeva 1970: 98), evidencia o processo de
construção dessa figura como “sujet RHÉTORIQUE (acteur du récit) et sujet
LITTÉRAIRE (auteur du roman)” (id. 99), e reveste-se de um cunho ritualístico que
reverbera também nas declamações encantatórias de A Pantera, na forma da oração de
Miguel Ângelo: “Senhor, liberta-me de mim mesmo […] [p]ara que eu possa servir-te”
(66). A oração, proferida tanto por Jane como por Tom, coloca-os numa espécie de pé
de igualdade existencial, e se é indubitável e explícito que a personagem feminina é
uma Galateia nas mãos do escritor (“Sempre o seduzira a história de Pigmaleão”, “só
podia amar de facto um ser criado por ele” [26], e “ela era, de certa forma, a sua
criatura” [84]), a posição de poder de cada um é complexificada na própria estrutura
binária da narrativa, organizada num número par de vinte capítulos focalizados
alternadamente numa personagem e na outra. A suspeita de que a criatura indómita – a
pantera – possa intervir mais do que o esperado na criação adensa-se quando
descobrimos que também Jane “[p]assara duas noites sentada à mesa da cozinha, […] a
escrever a peça num caderno” (53).
Deixando por agora de lado a hipótese de ser Jane a autora daquela história, numa
replicação do problema da co-autoria de A Pantera, o casal de O Lago parece sintetizar
os pares, que se podem organizar essencialmente em escritor/actriz e escritora/actor, das
duas novelas precedentes neste estudo, e na sequência da rarefacção das personagens
nas três histórias de O Fim de Lizzie, aqui anunciada como um destino: “Ed dissera que
um dia [as peças de Tom] teriam apenas uma personagem. Esta tinha duas” (26).
102
Por outro lado, a ambivalência discursiva criada pelos dois polos narrativos (o da
‘criatura-actriz-escritora’ e o do ‘criador-escritor-actor’) denuncia o perigo acarretado
pela representação e a iminência do seu descontrolo, que põem em causa a estabilidade
do próprio texto em que os actuantes participam, também ele irresolvido e
geograficamente projectado para um ponto de não retorno, para além das fronteiras da
ficção:
– E se um dia eu não conseguir voltar?
– É um risco que corres.
– Ficar sempre lá.
– Não é um lugar muito mau.
– Um alpendre no meio da neve.
– E um lago. (67, itálicos nossos)
Numa curiosa sinédoque e intersecção bibliográfica, Jane ganha a memória e o
sonho, isto é, aquilo a que chamaríamos o retrato psicológico da personagem, que terá
depois de representar devidamente, ao mesmo tempo que introduz na novela que nós
próprios estamos a ler o problema da intertextualidade “como tal” (Kristeva 1970: 93),
por uma simbiose com The Other Side of the Tunnel, de Carol Kendall: “Ao amanhecer,
pensou que a peça [O Lago] e o seu livro de infância tinham entrado um pelo outro, e
que já não era possível separá-los. E ela era a protagonista dos dois” (45).
Esta permeabilidade do texto fora conceptualizada desde cedo nas referências,
agora implícitas, aos romances da Alice, de Lewis Carroll, de tal maneira que ser
personagem pode significar “pass[ar], completamente, para o outro lado” (21). Diante
do espelho, Jane percebe que “nunca se perdera daquela forma numa personagem. Era
como se já não estivesse ali” (65). O lago trazido de A Gaivota, de Tchékhov, superfície
reflectora e campo de atracção suicida, é o fundo de “um buraco no universo” (27) que,
oferecendo-se à queda, dá acesso a “um lugar fora do mundo” (72), e é ainda como que
103
uma membrana transparente entre o cenário e “todos os mundos para onde”, através
dele, “[se pode] ir” (96).
Para A.T. Pereira, o espelho da arte já não apresenta um reflexo numa superfície
obdura, ou uma “imitação barata” (14), mas um simulacro que ganha corpo (“carne”)
num mundo paralelo e transitável, uma carne-simulacro que constrói uma língua sua,
“che pretende una vicinanza alla língua divina”, e que “non subisce la separazione che
sempre si dà fra conoscenza e vita, fra parola e cosa” (Cappa: 48). O objecto reflector,
nas suas várias configurações, altamente embrenhado em simbologia, representa a
possibilidade de passagem a uma dimensão em que a ficção é “the real thing”, como
Alice – a presença mais marcada no subtexto de O Lago, depois de ter sido mencionada
em A Pantera – teve oportunidade de aprender.
Alice não só identifica nos elementos da “aborrecida realidade” uma permuta
directa com os do “País das Maravilhas”, sublinhando, ao invés do antagonismo, a
transitoriedade total na relação especular entre os dois mundos, como se refere a este
último em termos nostálgicos, como o lugar aonde se pode regressar através da simples
credulidade e de um fechar de olhos95.
Será proveitoso determo-nos mais longamente em Lewis Carroll e na influência
que exerce na escrita de A.T. Pereira, tendo em conta que ele é pouco mencionado na
bibliografia crítica sobre a autora, e, no entanto, é autor de uma obra cuja memória é
aqui decisiva. Isto faz-se sentir, primeiramente, num efeito de credulidade perante a
fantasia, associado nos dois escritores aos processos mentais, oníricos, da infância, que
“So she sat on, with closed eyes, and half believed herself in Wonderland, though she knew
she had but to open them again, and all would change to dull reality […] – the rattling teacups
would change to tinkling sheep-bells, and the Queen's shrill cries to the voice of the shepherdboy – and the sneeze of the baby, the shriek of the Gryphon, and all the other queer noises,
would change (she knew) to the confused clamour of the busy farm-yard – while the lowing of
the cattle in the distance would take the place of the Mock Turtle's heavy sobs” (Carroll
2001:131-2, itálicos nossos).
95
104
ultrapassa em larga escala qualquer circunstancial suspension of disbelief aquando da
fruição estética, para ser, em boa verdade, e como já tivemos ocasião de observar entre
as crianças de O Fim de Lizzie, uma acção na afirmativa, isto é, não suspender a
descrença, mas acreditar continuamente como única via de compreensão do mundo:
“Ela sempre acreditara na existência de Nessie, sempre o procurara nas águas geladas
do Loch. Ela também acreditava que havia monstros em todos os lagos. De outra forma,
onde se esconderiam os monstros?” (Inverness, 25).
Mas é ainda no sonho que nos devemos deter com mais atenção, já que em Carroll
ele tem contornos muito semelhantes aos que assume nos versos de Poe que orientaram
antes a nossa leitura das narrativas encaixadas de O Fim de Lizzie. Perante a conclusão a
que chega Alice, depois de despertar, de que “the whole place around her became alive
with the strange creatures of her little sister’s dream” (Carroll 2001: 131), Martin
Gardner identificou um “dream-within-a-dream motif” em que o sonho de O Lago
também se inscreve claramente96.
De Tom ser “representado a representar” (26) por Kevin, a ele sonhar “com as
personagens que interpretava, com as personagens que criava” (54), e a Jane,
personagem sua, ganhar acesso, como veremos adiante, ao mais profundo da
consciência do seu autor, deparamos em O Lago com uma estrutura semelhante aos
sonhos encaixados que Carroll engendrou, uma estrutura traduzida na imagem do
“Both Alice adventures are dreams, and in Sylvie and Bruno the narrator shuttles back and
forth mysteriously between real and dream worlds. «So, either I’ve been dreaming about
Sylvie,» he says to himself early in the novel, «and this is the reality. Or else I’ve really been
with Sylvie, and this is a dream! Is Life itself a dream, I wonder?» In Through the LookingGlass Carroll returns to the question in the first paragraph of Chapter 8, in the closing lines of
the book, and in the last line of the book’s terminal poem.
An odd sort of infinite regress is involved here in the parallel dreams of Alice and the Red
King. Alice dreams of the King, who is dreaming of Alice, who is dreaming of the King, and so
on, like two mirrors facing each other, or that preposterous cartoon of Saul Steinberg’s in which
a fat lady paints a picture of a thin lady who is painting a picture of the fat lady who is painting
a picture of the thin lady, and so on deeper into the two canvases” (Gardner in Carroll 2001:
198, Nota 10).
96
105
mergulho interior, com Alice a “fechar os olhos” e Tom a procurar o “centro do bosque”
(125) nos “bosques do nosso ser” (11), como na queda do master builder de A Pantera.
Esta ideia foi muito curiosamente aproveitada na advertência da abertura da
adaptação de Jan Švankmajer, Alice (1988), em que, contrariamente ao expectável num
filme, o espectador é instruído a fechar os olhos para uma correcta visualização: “Now
you will see a film… made for children. Perhaps. But I nearly forgot! You must… close
your eyes. Otherwise… you won’t see anything”97.
Neste particular, entramos uma vez mais, no caso de A.T. Pereira, no tema do
espelho como meio de transporte, e na transformação profunda dos modos de
representar em literatura trazida pelas “teorias expressivas” da crítica romântica, tal
como circunscritas no estudo angular de M.H. Abrams (1971). O autor observa que, ao
deixar de ser encarado como um reflexo da natureza, fosse ele fiel ou fosse ele
aperfeiçoado, “the mirror held up to nature becomes transparent and yields the reader
insights into the mind and heart of the poet himself” (23).
O primado platónico que conduzia O Fim de Lizzie será pois retomado aqui numa
retórica de apego a um real que deve vencer a “imagem”, de tal modo que o problema
não se coloca entre representar ou não um papel, mas entre representar a personagem ou
ser a personagem “durante o dia inteiro” (111), exigindo-se desta personagem que ela
tenha “força suficiente para manter a sua realidade” (91, itálicos nossos).
Uma certa ‘matéria negativa’, figurada no vazio da “fenda” (Pereira 2011a: 23) e
do “buraco” no universo, reflectida num “fora” do mundo, num lá (um Horla), e num
“outro lado” indefinidos, não só faz parte da falha constitutiva de um texto que é, à
maneira programática de A.T. Pereira, inacabado e feito também de lacunas, no qual o
Něco z Alynke [literalmente, Algo de Alice] (1988), Dir. Jan Švankmajer, 86 minutos. Disco
Blu-ray, s.l.: BFI Video, 2014. Transcrição das legendas oficiais em inglês.
97
106
nada e o silêncio (o “ilegível” [Kristeva 1970: 92]) têm valor material, como evidencia
também a “máquina combinatória” e a “endogénese” (Todorov 1978: 42) que lhe estão
na origem, e que, com base numa ideia de construção parcelar, possibilitam a divisão e a
falha. Num ensaio dado a público inicialmente sob a forma de palestra, Italo Calvino
formulou de diversas maneiras, ainda antes de Todorov, a ideia de um “jeu
combinatoire des possibilités narratives”98.
Mais tarde, o mesmo autor recorreria a uma analogia idêntica à que no início
vimos posta em prática pela poetisa de “Forget-me-not”: “un altro mio libro, Il castello
dei destini incrociati, […] vuol essere una specie di macchina per moltiplicare le
narrazioni partendo da elementi figurali dai molti significati possibili come un mazzo di
tarocchi” (Calvino 1988: 117). Tom, por seu lado, construía “o puzzle […] na sua
mente” (117); um puzzle incompleto, em que “cada peça” que se juntasse para
“encontrar algum sentido […] podia ser a última e revelar algo de terrível” (120). Esta
ars combinatoria reconvertida aos moldes de A.T. Pereira já ocorrera antes como uma
espécie de lei de Lavoisier do escritor e da actriz:
– O meu trabalho também é a minha vida.
– Criar algo que não existia antes.
– Não criamos nada. Juntamos coisas.
– Juntamos coisas diferentes.
– Ou as mesmas coisas de forma diferente. (63)
“Une des expériences intellectuelles les plus ardues du Moyen Age connaît seulement
aujourd’hui sa pleine réalisation: je veux parler de l’ars combinatoria du moine catalan
Raymond Lulle”; “l’acte d’écrire n’est qu’un processus combinatoire entre des éléments
donnés”; “[l]e processus de la poésie et de l’art, dit Gombrich, est analogue à celui du jeu de
mots; c’est le plaisir infantile du jeu combinatoire qui pousse […] le poète à tenter certains
rapprochements de mots”; “la littérature est, certes, un jeu combinatoire qui suit les possibilités
implicites à son propre matériau” (Calvino 1984: 13, 15, 21, 24, 25).
98
107
A adição de peças à estrutura de O Lago, análoga do mapa onde coubera antes
todo o cenário de Inverness99, participa de um princípio de revelação da escrita que se
propõe acompanhar ritmicamente a actuação das personagens e a nossa leitura do texto,
não se furtando ao significado nem se subjugando a ele: “O sentido está debaixo da
superfície e deve emergir gradualmente” (42).
Esta ideia de emersão do sentido, ao invés da sua imposição, já de certa forma
importante para Antonin Artaud, porquanto não colocada exactamente nestes termos, foi
lapidarmente veiculada por Alain Robbe-Grillet, e, segundo o próprio, tê-lo-á guiado
durante a realização de L’Immortelle (1963): “L’art n’est pas forcèment quelque chose
que signifie. C’est quelque chose qui apparaît, qui surgit”100. A mesma ideia seria
aplicada também à encenação, como, por exemplo, uma fórmula essencial para Peter
Brook e o seu “Holy Theatre” ou “Theatre of the Invisible-Made-Visible”: “the notion
that the stage is a place where the invisible can appear” (Brook 1996: 49).
Recuperando a circularidade de obras anteriores, a autora convida-nos a completar
em O Lago a peça de teatro do livro, tolhendo a nossa consciência de leitores com a
irremediável “sensação de que [ela] não est[á] terminada […] …talvez para poder
começar outra vez” (49). Sobrepondo o texto ao mapa e ao puzzle, e sem dúvida
recuperando conceitos ‘jamesianos’ de “impressão” e “segredo”101, conexos da ideia de
“surgimento” da obra de arte, o seu método é claro e eminentemente visual: “As coisas
99
Cf. p. 85 (Pereira 2010b: 59).
100
Entrevista com Alain Robbe-Grillet, conduzida por Frederic Taddeï (2006, 34 minutos). In
L’Immortelle, Dir. Alain Robbe-Grillet. Disco Blu-ray, New York: Redemption/Kino, 2014,
141 minutos. Transcrição nossa.
“Na escrita de James o mundo interior e o mundo exterior misturam-se muitas vezes, o
importante não é o que acontece mas a impressão que fica na consciência de alguém”; “James
fala do «segredo» que o autor vai tecendo no próprio corpo do texto” (Pereira 2004a s.p.).
101
108
tinham de revelar-se, não ser explicadas” (48); até porque, segundo Harold Pinter,
“usamos a linguagem para esconder a verdade” (Inverness, 52).
Calvino fez do “Leitor” o protagonista de Se una notte d'inverno un viaggiatore,
trabalhando sobre a explicitação do lado fenomenológico da leitura de uma forma que
nunca encontramos em A.T. Pereira, que prefere o que “emerge gradualmente”, e não o
que é explicado, e essa diferença de abordagem marca uma distinção radical na auto-reflexividade dos dois autores. Não obstante isso, certas asserções do escritor italiano
lembram os esforços gaélicos de Kate em A Pantera, e o mistério que estava “em cada
linha, em cada página”, e que leva a que a nossa autora, como os do grupo Tel Quel,
numa tendência que teve o seu profeta em Mallarmé, se concentre também na
materialidade da literatura, ou “sur une ontologie du langage, de l’écriture, du «livre»”
(Calvino 1984: 41), e no que existe do “outro lado das palavras”, sem um valor
definido: “Le combat de la littérature est précisément un effort pour dépasser les
frontières du langage; c’est du bord extrême du dicible que la littérature se projette;
c’est l’attrait de ce qui est hors du vocabulaire qui meut la littérature” (22, itálicos
nossos).
No seguimento de uma concentração espacial quase transversal a toda a obra de
A.T. Pereira, e que começa geralmente com o recolhimento de um homem e de uma
mulher para uma casa – e que deve muito a narrativas em que a casa não se limita a
preencher a categoria do espaço, sendo elevada ao estatuto de personagem (no sentido
de interveniente na acção), como em Jane Eyre, Rebecca ou The Turn of the Screw –,
nota-se uma rarefacção gradual a partir dos contos de O Fim de Lizzie, da mansão de
Wistaria Hall, transfigurada em Owl Cottage em Inverness e A Pantera, para os mundos
de fantasia dos jardins, as ilhas do norte e os castelos no meio de ilhas, no meio de
lagos, estruturas em círculos concêntricos (“um mundo dentro do mundo” [83]) envoltos
109
em bruma e nevoeiro. O Lago parece vir apertar este cerco até que se atinja um ponto
máximo na penetração “para lá” do espelho.
Para que se conclua a metamorfose de Jane na sua personagem e para que Tom
possa dar por terminada a sua peça (processos interdependentes), ele refugia-se com a
actriz, algumas semanas antes da estreia, numa casa que possui à beira de um lago, no
fundo de um vale não identificado. Esta deslocação, que parte o livro exactamente no
centro (capítulo 11, “O Vale”), é susceptível de duas linhas de interpretação
concomitantes. Por um lado, este espaço é definido como “um lugar fora do mundo”
(72), e um “vale solitário” (74), tal como os teatros vinham sendo descritos como
“espaços sagrados”, “fechados em si mesmos”, “fora do mundo” (50). Podemos dizer,
portanto, com larga margem de segurança, que este vale replica (é) a utopia (o “mundo
perfeito” [101]) de um palco, e de um palco apetrechado de um lago, uma casa e um
alpendre “rodeado de neve” (99), decalcado de A Gaivota.
Por outro lado, este “vale”, onde, como vimos, a narrativa encontra uma divisão
simétrica em dois, simula também a figura de um livro aberto ao meio, e a letra inicial V
pode, inclusivamente, ganhar o valor de um hieróglifo – um “espaço figural” (Schefer
1999: 917) – que torna sinónimos elementos com uma forma idêntica: o vale do “fim do
mundo” (99) e o livro que, sendo diviso e aberto, ali quer completar-se.
Entre os dois níveis de significação do espaço do vale está a figura de Tom, o
metteur en scène e o escritor, em cuja mente este microcosmo ceno-gráfico encontrou
realidade, como um eflúvio imaginário que vem responder e dar corpo à ideia inicial de
“um único cenário: uma casa, um alpendre, a terra coberta de neve e um lago ao fundo”,
uma essencialização absoluta e um ponto de convergência de todas as coisas, que “fazia
[Jane] pensar em A Moon for the Misbegotten e em The Seagull” (41).
110
Rimando com a busca de “algo de tímido e interior, escondido nos bosques do
nosso ser” (11) do início, O Lago termina no capítulo 20, “O centro do bosque” (125)
onde Jane se vai perder, “rodeada de flores” e por “entre a neve” (129). A memória da
máxima com que a novela é inaugurada ganha aqui nova luz, e esclarece que chegámos
ao mais íntimo da mente criadora, a fronteira irreversível a partir da qual não há
progresso mas sim uma espécie de esgotamento ideal 102, e onde se ouve ecoar a
reiteração de Macbeth, abrindo para o eterno recuo: “Amanhã, e amanhã, e amanhã…”
(128).
Assistimos ao renascimento da personagem de Jane e ao culminar da novela a
partir de um ponto imaginário no interior do seu criador, de quem aquele microcosmo
fora uma invenção, fantasia, ou imaginação: “Aquele pequeno mundo, e ela, precisavam
da sua consciência para existir” (120). Esta foi a mesma realidade que o leitor de A.T.
Pereira, talvez sem saber o que fazia, criou: a encenação de um livro escrito por uma
personagem, e que, como ela, não existia antes, na verdade.
O motivo do aprimoramento pelo cansaço – anunciando talvez um estado de saturação, ou de
chegada ao limite, que vai ao encontro da nossa leitura de O Lago como uma possível súmula
do último conjunto de textos de A.T. Pereira – está já à porta do livro, na epígrafe atribuída a
Rudolf Nureyev: “I dance best when I am tired” (9).
102
111
CONCLUSÃO
Das maquetas em literatura
L’interruzione della scrittura segna il passaggio alla creazione seconda,
in cui Dio richiama a sé la sua potenza di non essere e crea a partire dal
punto di indifferenza di potenza e impotenza. La creazione che ora si
compie non è una ricreazione né una ripetizione eterna, ma, piuttosto,
una decreazione, in cui ciò che è avvenuto e ciò che non è stato sono
restituiti alla loro unità originaria nella mente di Dio e ciò che poteva
non essere ed è stato sfuma in ciò che poteva essere e non è stato.
Giorgio Agamben
“Bartleby o della contingenza”
Num conto publicado originalmente em 1996 na colectânea Fairy Tales, e
recompilado no ano seguinte em A Coisa Que Eu Sou, A.T. Pereira descreveu um filme
de Alfred Hitchcock que nunca existiu, intitulado Nightmare e supostamente estreado
em 1947. Na conclusão desta espécie de écfrase enganadora, a atenção do narrador
centra-se na casa, uma figura tão importante neste ‘filme’ como tinha sido antes em
Rebecca. Contudo, a descrição que então nos oferece merece uma leitura atenta:
Talvez só exista um sonhador na casa sobre os rochedos, talvez só haja uma
presença nos quartos abandonados, na torre de pedra batida pelas ondas.
Qual deles…
Ou talvez não exista ninguém.
Um sonho sem sonhador.
Quase o vazio.
Uma simples maqueta.
O mar.
Gaivotas.
E as flores brancas que crescem entre os rochedos. (1997: 144)
Ao intitular-se “O ponto de vista das gaivotas” (conexo com o ponto de vista de
Deus e com o plano picado em cinema), este texto continha já em si uma reflexão sobre
112
a posição do criador em relação à arte; no entanto, as linhas finais que atrás
transcrevemos são como que uma cápsula de questões que nos permitirá retomar, em
jeito de conclusão, muitos dos problemas em que nos detivemos neste estudo.
Por um lado, estamos diante de uma “casa” na qual, como víramos em A Outra ou
O Lago, entre outros, cabe toda a história, e da qual na verdade a própria matéria
literária emana, propiciando uma equivalência entre a casa e o texto, ou a casa e o livro,
recorrente e axial em A.T. Pereira, e que também observámos aqui noutros contextos.
Por outro lado, a narrativa está intimamente relacionada com o sonho, confundindo-se
com ele; mas este é um sonho que, por sua vez, se emancipa do sujeito sonhador, ou
que, por outras palavras, põe em questão o papel de sujeito da personagem sonhadora ao
reconhecer, ou pelo menos sugerir, a sua origem igualmente sonhada.
Em última instância, este esquema, sem dúvida precursor do que viríamos a
encontrar na terceira história de O Fim de Lizzie, “O sonho do unicórnio”, corresponde,
pelo seu recorte quase ensaístico, a uma visão teorética da imagem que se autonomiza
do seu criador e que o pode superar em poder (como o tigre e a pantera do subcapítulo
3.1). Para A.T. Pereira, convém recordar, ‘imagem’ é muitas vezes outra palavra para
dizer memória ou obra de arte.
A primeira parte da gradação a que acima nos referimos, uma espécie de cascata
de sintagmas apresentados como versos que encerra o conto, e em cuja linha medial está
o fulcro do problema, vai da aparente dissolução material do objecto à sua total
reconfiguração: “ninguém”, “um sonho sem sonhador”, “quase o vazio” e, subitamente,
“uma simples maqueta”.
A utilização do termo “maqueta” no âmbito de uma narrativa que é, num primeiro
nível, justamente sobre a produção cinematográfica de um filme, releva a artificialidade
que subjaz ao set design e à criação fílmica. No entanto, o efeito é mais complexo, e não
113
deve de modo nenhum ser confundido com uma estratégia de desilusão perante a
descoberta da falsidade. Contagiada pela insistência no ‘onirismo’ que percorre o
conto103, esta maqueta estabelece um nexo fundamental: a matéria de que são feitos os
filmes é a mesma matéria de que são feitos os sonhos, e a literatura.
Este campo semântico, por sua vez, remete para os cenários tridimensionais que
Tom concebia em A Cidade Fantasma104, para os mapas de Clive em Inverness105, ou
para o que Tom imaginava como um palco “no centro do bosque” em O Lago106. Todos
estes elementos fazem parte de uma ‘poética da construção’ fortemente inspirada no
Master Builder de Ibsen, e que já assomava no poema de Blake 107, entre outros
exemplos possíveis de uma ars combinatoria, aqui antes descrita por Italo Calvino, que
coloca o artista numa posição de jogador perante um tabuleiro sobre o qual ele aplica
uma determinada organização (etimologicamente, uma cosmética). Já num ensaio sobre
The Turn of the Screw, Mannoni havia identificado Henry James precisamente como
“meneur de jeu” (1969: 279).
Todavia, a segunda parte da gradação oferece uma nova dimensão ao problema; e
o que a construção de A.T. Pereira tem de especialmente interessante, e que tanto
reflecte como sintetiza um dos principais traços da sua estética literária, é a passagem
abrupta do setting para a natureza (ou do nada para o ser) através do elemento central
que os une: “uma simples maqueta”, “o mar”, “gaivotas”, “e as flores brancas que
crescem entre os rochedos”. A transição do nada e do sonho para a grande superfície
“Hitchcock acrescentou: «Sim, é uma velha história, um conto de fadas, talvez… É acima de
tudo, literalmente, um pesadelo»” (id. ibid., itálicos nossos).
103
104
Cf. p. 14 (Pereira 1993: 122).
105
Cf. p. 85 (Pereira 2010b: 59).
106
Cf. p. 106 (Pereira 2011a: 125).
107
O poeta inglês recorre a um vocabulário associado à metalurgia na sua interrogação sobre as
origens do tigre: “What the hammer? what the chain,/ In what furnace was thy brain?/ What the
anvil?” (Blake 1967: 42, vv. 16-8).
114
aquática, para o ponto de vista revelador e para o despontar da vida é praticamente
imperceptível, e, em boa verdade, não existe uma componente de oposição entre os dois
grupos de elementos da enumeração, uma vez que a relação entre eles não é adversativa.
Existe, sim, uma contiguidade imediata entre as duas dimensões, encontrada num
“tertium quid (entre o texto e aquilo que ele evoca), originado na imaginação estimulada
para a produção de imagens e imbuído de «vida» na passagem da esfera logocêntrica
(“emblemática” […]) para a interpretativa (visionária/concretizante)” (Reis 2013: 30).
Sendo que a nossa reflexão se centrou sobretudo em dinâmicas entre a escrita e a
representação, mas também em várias formas de representação da escrita, num conjunto
de obras em que essa articulação entre os dois termos se afigura especialmente
importante, parece-nos adequado encerrá-la com este exemplo anterior e, portanto, de
algum modo fundador, que culmina com uma manifestação de vida, o crescimento das
“flores brancas […] entre os rochedos”, quer elas estejam num sonho, quer estejam num
cenário ou num penhasco. A.T. Pereira parece querer assim dizer que não há nenhuma
diferença fundamental entre uma maqueta e o mundo, ou entre arte e natureza.
115
POST SCRIPTUM
Antes da entrega desta dissertação para provas, A.T. Pereira lançou três originais:
A Porta Secreta (infanto-juvenil, Relógio D’Água, 2013), As Longas Tardes de Chuva
em Nova Orleães e As Velas da Noite (Relógio D’Água, 2013 e 2014). As datas de
publicação, coincidentes com a realização deste estudo, não permitiriam um pensamento
amadurecido que os pudesse enquadrar numa reflexão que construímos previamente ao
seu conhecimento, razão pela qual ficaram dela excluídos.
Não obstante, se estas obras não revogam nenhum ponto do que aqui se disse,
nem inviabilizam a acepção operativa na nossa análise de O Lago como uma narrativa
de síntese de temas e problemas fundamentais num conjunto de obras anteriores, talvez
elas possam ajudar, retrospectivamente, a consolidá-la, reforçando porventura algumas
das suas questões mais importantes.
Nesse sentido, As Velas da Noite representam o caso especialmente relevante de
um volume de contos que, como elemento final, traz uma curta peça de teatro, um
diálogo entre uma escritora e um psicanalista. Este era um género até agora totalmente
inédito no historial de publicações de A.T. Pereira e, acreditamos, é de certa maneira
uma prova e uma manifestação formal, a posteriori, da progressão que identificámos ao
longo do nosso pensamento sobre escrita e representação (que inclui a noção de
teatralidade) na obra da autora, bem como da pertinência desse binómio, que foi
justamente o que serviu de mote a esta dissertação.
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Escrita e Representação na Obra de Ana Teresa Pereira Amândio