Abordagem Psicopedagógica às Dificuldades de Aprendizagem Brasília - DF. Elaboração Odnea Quartieri Ferreira Pinheiro Produção Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e Editoração SUMÁRIO APRESENTAÇÃO...................................................................................................................................... 4 ORGANIZAÇÃO DO CADERNO DE ESTUDOS E PESQUISA.................................................................................. 5 Introdução.......................................................................................................................................... 7 unidade I Conceito de aprendizagem e seus impedimentos, etiologia, taxonomia e modelos de intervenção............. 9 capítulo 1 Conceituação de Aprendizagem.............................................................................................. 11 capítulo 2 Definindo as Dificuldades de Aprendizagem............................................................................. 16 capítulo 3 As origens das Dificuldades de Aprendizagem......................................................................... 19 unidade II A Abordagem Psicopedagógica às Dificuldades de Aprendizagem........................................................... 27 capítulo 4 Articulação da História do Fracasso Escolar com o Surgimento das Dificuldades de Aprendizagem: uma Breve Análise Histórica............................................................................. 29 capítulo 5 Análise dos Fatores que Impedem a Aprendizagem a partir de um Enfoque Psicopedagógico....... 34 unidade III Compreensão das Dificuldades de Aprendizagem.................................................................................. 41 capítulo 6 Taxonomia e Características das Dificuldades de Aprendizagem: Uma Abordagem Psicopedagógica.................................................................................................................... 43 referências ...................................................................................................................................... 58 GLOSSÁRIO.......................................................................................................................................... 60 3 APRESENTAÇÃO Caro aluno A proposta editorial deste Caderno de Estudos e Pesquisa reúne elementos que se entendem necessários para o desenvolvimento do estudo com segurança e qualidade. Caracteriza-se pela atualidade, dinâmica e pertinência de seu conteúdo, bem como pela interatividade e modernidade de sua estrutura formal, adequadas à metodologia da Educação a Distância – EaD. Pretende-se, com este material, levá-lo à reflexão e à compreensão da pluralidade dos conhecimentos a serem oferecidos, possibilitando-lhe ampliar conceitos específicos da área e atuar de forma competente e conscienciosa, como convém ao profissional que busca a formação continuada para vencer os desafios que a evolução científico-tecnológica impõe ao mundo contemporâneo. Elaborou-se a presente publicação com a intenção de torná-la subsídio valioso, de modo a facilitar sua caminhada na trajetória a ser percorrida tanto na vida pessoal quanto na profissional. Utilize-a como instrumento para seu sucesso na carreira. Conselho Editorial 4 ORGANIZAÇÃO DO CADERNO DE ESTUDOS E PESQUISA Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em unidades, subdivididas em capítulos, de forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de textos básicos, com questões para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam a tornar sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também, fontes de consulta, para aprofundar os estudos com leituras e pesquisas complementares. A seguir, uma breve descrição dos ícones utilizados na organização dos Cadernos de Estudos e Pesquisa. Provocação Pensamentos inseridos no Caderno, para provocar a reflexão sobre a prática da disciplina. Para refletir Questões inseridas para estimulá-lo a pensar a respeito do assunto proposto. Registre sua visão sem se preocupar com o conteúdo do texto. O importante é verificar seus conhecimentos, suas experiências e seus sentimentos. É fundamental que você reflita sobre as questões propostas. Elas são o ponto de partida de nosso trabalho. Textos para leitura complementar Novos textos, trechos de textos referenciais, conceitos de dicionários, exemplos e sugestões, para lhe apresentar novas visões sobre o tema abordado no texto básico. Sintetizando e enriquecendo nossas informações abc Espaço para você fazer uma síntese dos textos e enriquecê-los com sua contribuição pessoal. 5 Sugestão de leituras, filmes, sites e pesquisas Aprofundamento das discussões. Praticando Atividades sugeridas, no decorrer das leituras, com o objetivo pedagógico de fortalecer o processo de aprendizagem. Para (não) finalizar Texto, ao final do Caderno, com a intenção de instigá-lo a prosseguir com a reflexão. Referências Bibliografia consultada na elaboração do Caderno. 6 Introdução O objetivo desta disciplina é compreender a aprendizagem e as dificuldades de aprendizagem situadas em um contexto histórico e cultural. A identificação dos problemas impeditivos à aprendizagem surgiu em decorrência das múltiplas transformações vivenciadas pela humanidade nas últimas décadas e que alteraram significativamente o papel da escola e da aprendizagem no contexto das sociedades modernas. O mundo nunca experimentou tamanha transformação em seus tecidos social, econômico e cultural como vem ocorrendo nas últimas décadas. O avanço indescritível do conhecimento e a proliferação das tecnologias têm modificado profundamente a experiência humana de modo a exigir do sujeito frequentes condutas adaptativas. Essas transformações trazem, a reboque, significativas mudanças nas crenças, valores e práticas sociais que são transmitidas culturalmente pelas agências educacionais, com destaque para a família e a escola. Diante de um cenário sociocultural tão mutável e com características tão complexas, surgem enormes dificuldades por parte das famílias e instituições escolares em prover processos educacionais adequados e de qualidade, que acompanhem tantas mudanças. Desse descompasso, dessa fissura, emergem as dificuldades de aprendizagem. Elas surgem como sintomas que deflagram a dificuldade em articular educação e vida e apontam para a necessidade de revisão das práticas educacionais diante de uma nova sociedade, que se transforma cotidianamente. Compreender as dificuldades de aprendizagem como um fenômeno multideterminado é indispensável na atualidade, especialmente para o educador. Investigá-las para além de seus conceitos e/ou taxonomias também consiste em tarefa indispensável para os profissionais que trabalham com ensino e aprendizagem, em especial os psicopedagogos. É necessário compreender as dificuldades de aprendizagem como fenômeno cultural, que atinge uma pessoa de modo particular, mas que se constitui nas relações entre o sujeito da aprendizagem e seu contexto social e cultural. Uma criança deixa de aprender não somente por ser portadora de alguma restrição cognitiva ou fisiológica, mas especialmente porque em sua trajetória de vida algumas rotas desenvolvimentais encontraram obstáculos intransponíveis que se expressaram no impedimento à aquisição do conhecimento. Aprender é ato revestido de concepções e ideologias típicas de cada cultura. Uma criança que deixa de aprender não o faz por incompetência individual, mas provavelmente porque, em algum momento, deixou de atender às exigências postas por esta cultura com relação aos conteúdos que devem ser aprendidos e de que forma isto deve ocorrer. Apresentar dificuldades para aprender pode ser uma reação saudável do sujeito, especialmente quando esta carga vem carregada de valores e atitudes sem sentido ou significado para ele. A escola, uma instituição feita “para todos”, esquece que seres humanos são únicos, em suas características personológicas assim como em seus anseios e desejos. Se os conteúdos que a escola empurra goela abaixo de uma criança não interessam ou não fazem sentido para a sua existência, é muito provável que surja a recusa em aprender. Parece uma atitude correta, que vai privar o indivíduo de profundos dissabores. É sob essa perspectiva que investigaremos, inicialmente a Aprendizagem e seus conceitos e a partir desse entendimento, estudaremos as dificuldades de aprendizagem. 7 Além das dificuldades de aprendizagem este texto pretende também investigar o fracasso escolar como ocorrência típica da sociedade industrializada, ou seja, como fenômenos deste momento histórico e social. Fracasso escolar e dificuldades de aprendizagem são conceitos que se esbarram continuamente e necessitam ser compreendidos em suas particularidades. Uma criança fracassa na escola porque apresenta dificuldades para aprender ou começa a apresentar dificuldades de aprendizagem em decorrência de frequentes experiências de fracasso escolar? A princípio, as duas proposições procedem, ou não. Compreender o fracasso escolar e suas inter-relações com as dificuldades de aprendizagem é tarefa que exige aprofundamento teórico e conceitual em distintas áreas do conhecimento, com destaque para a educação, a psicologia e, em especial, a psicopedagogia. O presente texto pretende contribuir neste sentido, apresentando uma discussão mais elaborada sobre esse tema. Dessa forma, a disciplina, Abordagem Psicopedagógica às Dificuldades de Aprendizagem, busca o desafio de analisar essa temática em íntima relação com o fracasso escolar, a partir de uma perspectiva ampla e complexa, porém sem desconsiderar a relevância de uma leitura pontual acerca dessas dificuldades. Da mesma forma que é indispensável compreender o fenômeno do não aprender em uma perspectiva sistêmica e abrangente, é necessário apropriar-se das especificidades contidas em cada situação de dificuldade de aprendizagem apresentada por diferentes crianças, em distintos contextos sociais. Nossa proposta é olhar o todo sem perder as especificidades das partes. Esta abordagem prioriza uma perspectiva dialética do fenômeno das dificuldades de aprendizagem, aqui compreendido como situação construída nas relações sociais macrossistêmicas e interações microssistêmicas que dão origem e destino aos processos de ensino e aprendizagem. Objetivos »» Conceituar aprendizagem e seus impedimentos: etiologia e taxonomia das dificuldades de aprendizagem. »» Investigar o contexto das dificuldades de aprendizagem com ênfase em sua conceituação e construção histórica. »» Identificar as principais dificuldades de aprendizagem e compreender suas estruturas constitutivas. »» Compreender o fracasso escolar como fenômeno histórico e social, gerador de atrasos desenvolvimentais tanto individuais como coletivos. 8 unidade Conceito de aprendizagem e seus impedimentos, etiologia, taxonomia e modelos de intervenção I 10 capítulo 1 Conceituação de aprendizagem Aprendizagem é um termo abrangente, que permite diversas conceituações. Na Psicologia representa uma área de extrema importância, à qual se dedicaram teóricos de grande porte, como Bandura, Gagné, Guthrie, Hull, Kohler, Lewin, Piaget, Rogers, Skinner, Thorndike, Tolman, entre outros. Definir aprendizagem é uma tarefa complexa. Nesta Unidade optamos por apresentar conceituações elaboradas por investigadores renomados na área, com o propósito de ampliar as possibilidades de compreensão desse fenômeno assim como do seu oposto: o processo do não aprender. Seguem diversos conceitos para apreciação: A ideia teórica mais distinta, talvez, é a de que a aprendizagem de qualquer nova capacidade, em seu sentido ideal, requer a aprendizagem prévia de capacidades subordinadas que estão envolvidas na nova capacidade. Especificamente, aprender regras de ordem superior requer a aprendizagem prévia de regras mais simples; aprender regras requer a aprendizagem prévia de conceitos relevantes; aprender conceitos requer aprendizagens prévias de discriminação etc. (Gagné, 1968 em Sahakian, 1980, p. 1). A aprendizagem é definida como alteração no comportamento que resulta da experiência. O estudo do comportamento e de suas alterações deve selecionar acontecimentos observáveis e designáveis. (Guthrie, 1942 em Sahakian, 1980, p. 23). A aprendizagem é a ligação de um estímulo e uma resposta mediada por variáveis intervenientes ou construções simbólicas, isto é, atividade acontecendo dentro do organismo. Incorpora propósitos, ideias, conhecimento e insights característicos de comportamento molar. A aprendizagem é uma resposta a uma recompensa. (Hull, 1943 em Sahakian, 1980, p.124). Aprende-se perseguindo sinais para o objetivo, mapeando nosso caminho para esse objetivo (mapa cognitivo); a aprendizagem é adquirida por meio de comportamento significativo, não do mero movimento. A compreensão, mais que o condicionamento, é a essência da aprendizagem. (Tolman, 1932 em Sahakian, 1980, p. 220). A aprendizagem é um fenômeno que resulta de experiências diretas, que podem ocorrer numa base vicariante, por meio da observação do comportamento de outras pessoas e suas consequências para o observador. Um indivíduo pode adquirir padrões intrincados de respostas simplesmente observando os desempenhos de modelos apropriados. (Bandura, 1969 em Sahakian, 1980, p. 261). 11 UNIDADE I | Conceito de aprendizagem e seus impedimentos, etiologia, taxonomia e modelos de intervenção A aprendizagem por insight corresponde a uma apreensão significativa súbita de relacionamentos, sem recurso à experiência prévia. É o aparecimento de uma solução completa com referência à disposição total do campo.(Köhler, 1959 em Sahakian, 1980, p. 274). As concepções sócio-construtivistas, discutidas na atualidade, expressam, especialmente, as ideias de Piaget e Vygotsky sobre a aprendizagem e seus processos. De acordo com Bassedas e cols. (1996, pp. 1415): Do ponto de vista construtivista da evolução e da aprendizagem dos seres humanos, defende-se que o indivíduo participa ativamente na construção da realidade que conhece e que cada modificação ou avanço que realiza no seu desenvolvimento pressupõe uma mudança na estrutura e organização dos seus conhecimentos. Segundo esse ponto de vista, quando uma pessoa enfrenta algumas situações específicas, a sua resposta, reação ou aprendizagem dependerá, obviamente, das características dessa situação, mas será determinada também, em grande parte, pelas suas características pessoais e pela organização dos seus conhecimentos. Existem muitas teorias sobre a aprendizagem. No quadro a seguir, encontram-se resumidas as características de algumas delas. Quadro 1: Teorias de Aprendizagem Teorias de Aprendizagem 12 Características Epistemologia Genética de Piaget Ponto central: estrutura cognitiva do sujeito. As estruturas cognitivas mudam por meio dos processos de adaptação: assimilação e acomodação. A assimilação envolve a interpretação de eventos em termos de estruturas cognitivas existentes, enquanto que a acomodação se refere à mudança da estrutura cognitiva para compreender o meio. Níveis diferentes de desenvolvimento cognitivo. Teoria Construtivista de Bruner O aprendizado é um processo ativo, baseado em seus conhecimentos prévios e os que estão sendo estudados. O aprendiz filtra e transforma a nova informação, infere hipóteses e toma decisões. Aprendiz é participante ativo no processo de aquisição de conhecimento. Instrução relacionada a contextos e experiências pessoais. Teoria Sócio-Cultural de Vygotsky Desenvolvimento cognitivo é limitado a um determinado potencial para cada intervalo de idade (ZPD); o indivíduo deve estar inserido em um grupo social e aprende o que seu grupo produz; o conhecimento surge primeiro no grupo, para só depois ser interiorizado. A aprendizagem ocorre no relacionamento do aluno com o professor e com outros alunos. Aprendizagem baseada em Problemas/ Instrução ancorada (John Bransford & the CTGV) Aprendizagem se inicia com um problema a ser resolvido. Aprendizado baseado em tecnologia. As atividades de aprendizado e ensino devem ser criadas em torno de uma “âncora”, que deve ser algum tipo de estudo de um caso ou uma situação envolvendo um problema. Teoria da Flexibilidade Cognitiva (R. Spiro, P. Feltovitch & R. Coulson) Trata da transferência do conhecimento e das habilidades. É especialmente formulada para dar suporte ao uso da tecnologia interativa. As atividades de aprendizado precisam fornecer diferentes representações de conteúdo. Aprendizado Situado (J. Lave) Aprendizagem ocorre em função da atividade, contexto e cultura e ambiente social na qual está inserida. O aprendizado é fortemente relacionado com a prática e não pode ser dissociado dela. Conceito de aprendizagem e seus impedimentos, etiologia, taxonomia e modelos de intervenção | UNIDADE I Gestaltismo Enfatiza a percepção ao invés da resposta. A resposta é considerada como o sinal de que a aprendizagem ocorreu e não como parte integral do processo. Não enfatiza a sequência estímulo-resposta, mas o contexto ou campo no qual o estímulo ocorre e o insight tem origem, quando a relação entre estímulo e o campo é percebida pelo aprendiz. Teoria da Inclusão (D. Ausubel) O fator mais importante de aprendizagem é o que o aluno já sabe. Para ocorrer a aprendizagem, conceitos relevantes e inclusivos devem estar claros e disponíveis na estrutura cognitiva do indivíduo. A aprendizagem ocorre quando uma nova informação ancora-se em conceitos ou proposições relevantes preexistentes. Aprendizado Experimental (C. Rogers) Deve-se buscar sempre o aprendizado experimental, pois as pessoas aprendem melhor aquilo que é necessário. O interesse e a motivação são essenciais para o aprendizado bem-sucedido. Enfatiza a importância do aspecto interacional do aprendizado. O professor e o aluno aparecem como os corresponsáveis pela aprendizagem. Inteligências múltiplas (Gardner) No processo de ensino, deve-se procurar identificar as inteligências mais marcantes em cada aprendiz e tentar explorá-las para atingir o objetivo final, que é o aprendizado de determinado conteúdo. Fonte: http://www.nce.ufrj.br/ginape/publicacoes/trabalhos/renatomaterial/teorias.htm As teorias de aprendizagem buscam reconhecer a dinâmica envolvida nos atos de ensinar e aprender, partindo do reconhecimento da evolução cognitiva do homem e tentam explicar a relação entre o conhecimento preexistente e o novo conhecimento. A aprendizagem não seria apenas inteligência e construção de conhecimento, mas, basicamente, identificação pessoal e relação por meio da interação entre as pessoas. Depois de ler todos estes conceitos sobre a aprendizagem, seria interessante você construir o seu conceito. Com base no texto e exercendo sua capacidade de síntese de conteúdos, defina: Aprendizagem é.... __________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________ 13 UNIDADE I | Conceito de aprendizagem e seus impedimentos, etiologia, taxonomia e modelos de intervenção A função da aprendizagem, segundo Fernández (1991, p. 30), “é incorporar o indivíduo à espécie humana, fazendo-o sujeito de uma cultura”. A criança necessita ser interpretada/traduzida/ensinada por outra pessoa, para que assimile e compreenda a cultura em que está inserida. A mãe, no princípio da vida, surge como este outro que outorga, dá significados aos comportamentos, movimentos, sons e desejos incluindo a criança no mundo, investindo-a de humanidade. O nível qualitativo dessa relação de significação vai depender do tipo de vínculo emocional existente entre os dois sujeitos do processo. Para que uma criança alcance a autonomia de pensamento, é imprescindível que conte com pais significadores, capazes de suportar a originalidade e a diferença de seu pensamento. Considerando que os pais representam as primeiras figuras que ensinam e que exercem grande influência sobre a criança, percebe-se a importância de uma ação tolerante, paciente e amorosa por parte deles no sentido de interpretar e traduzir as expressões infantis sem atropelar ou impedir seus esforços em direção à autonomia e liberdade de pensar e sentir. É indispensável para a criança sentir-se aceita e desejada como ser pensante, sentir-se valorizada por seus produtos e criações. Segundo Aulagnier (em Fernández, 1991, p. 32), “a mãe é a porta-voz do bebê quando este chega ao mundo, mas se emerge na mãe um desejo de não mudança, isso tem um poder desestruturante porque a criança não poderá usar a sua voz para enunciar a sua palavra”. É nesse contexto que se configura a gênese das dificuldades de aprendizagem, na dimensão das interações sociais, em que o sujeito se constroi, de modo ativo e coparticipativo, contando sempre com a mediação do outro, mesmo que este outro não se dê conta disto. É fácil visualizar, nas conceituações e proposições de Fernández (1991), a influência dos pressupostos psicanalíticos e do enfoque sócio-construtivista sobre a aprendizagem. Quando enfatiza a relação mãe/ bebê, situando-a como fonte e origem dos distúrbios que, posteriormente, afetarão a aprendizagem, a autora reflete um aspecto muito valorizado pela psicanálise que considera o palco onde se vive o drama da primeira infância o ponto nevrálgico que irá determinar os comportamentos futuros do sujeito. Quando argumenta que o sujeito aprendiz é atuante em seu processo de aprender, ressalta a visão sócio-construtivista que percebe o conhecimento como construção do sujeito agindo em um mundo de significados, por meio das relações com o outro e com o legado cultural. Ao falar de aprendizagem, Fernández (1991) argumenta que a visão usual encara o processo de aprender como ação vinculada à mão e ao cérebro, desconsiderando o sujeito desejante e criador, que atribui sentido e expressão ao ato da aprendizagem. 14 Conceito de aprendizagem e seus impedimentos, etiologia, taxonomia e modelos de intervenção | UNIDADE I A ação psicopedagógica, como extensão, tenta também “curar” o aprendiz, enfocando o orgânico e o cognitivo e excluindo o desejo, o afeto, a emoção e a criatividade como aspectos significativos do processo. O que você acha disto? Ao desconsideramos as dimensões do desejo, do afeto, da emoção, da imaginação e da criatividade terminamos por reforçar a tendência de desperdiçar talento e potencial latentes existentes nos seres humanos. Como nos diz Fernández (1991, pp. 33-34): Quantos Leonardo da Vinci – gênio artístico e científico de sua época – estaremos hoje expulsando de nossas escolas e, o que é mais grave, afogando-lhes também sua capacidade criadora, cerceando a construção de sua identidade como sujeitos pensantes. As ideias de Fenelon (1994) sobre a aprendizagem e sua contrapartida, o não aprender, assemelham-se aos pressupostos defendidos por Alícia Fernández (1991, p. 20): A aprendizagem é vista como um processo que se dá no vínculo entre o ensinante e o aprendente em uma inter-relação. Este processo inicia-se quando a pessoa nasce e com seus primeiros ensinantes, aqueles que lhe dão a sobrevivência, e continua ao longo da vida com aquelas pessoas que intervêm na sua história e lhe transmitem significações. A aprendizagem é uma teia, tecida conjuntamente pelas mãos de quem ensina e de quem aprende, cujos fios condutores do fenômeno correspondem ao organismo, à inteligência, ao desejo e o corpo. É no jogo complexo e dinâmico desses fios que se constroi o processo de aprender e também o de não aprender. Fenelon (1994, p. 20) completa seu raciocínio acrescentando: No problema de aprendizagem o que acontece, particularmente, é que a inteligência e o corpo ficam aprisionados pelos desejos inconscientes. O sintoma é um nó que se dá na trama dos fios que tecem a aprendizagem. Pain (1992) considera que as dificuldades de aprendizagem representam todas as perturbações que impedem a normalidade do processo de aprender, qualquer que seja o status cognitivo do sujeito. Independente de o sujeito obter escores de inteligência altos ou baixos serão considerados problemas de aprendizagem outros fatores que o impeçam de aprender, não permitindo o aproveitamento de suas potencialidades. 15 capítulo 2 Definindo as dificuldades de aprendizagem A definição de dificuldades de aprendizagem, elaborada pelo National Joint Committee of Learning Disabilities - NJCLD - USA, 1988, p. 71, diz o seguinte: Dificuldades de aprendizagem (DA) é um termo geral que se refere a um grupo heterogêneo de desordens manifestadas por dificuldades significativas na aquisição e utilização da compreensão auditiva, da fala, da leitura, da escrita e do raciocínio matemático. Tais desordens, consideradas intrínsecas ao indivíduo, presumindose que sejam devidas a uma disfunção do sistema nervoso central, podem ocorrer durante toda a vida. Problemas na autorregulação do comportamento, na percepção social e na interação social podem existir com as DA. Apesar das DA ocorrerem com outras deficiências (por exemplo, deficiência sensorial, deficiência mental, distúrbios sócio-emocionais) ou com influências extrínsecas (por exemplo, diferenças culturais, insuficiente ou inapropriada instrução etc...), elas não são o resultado dessas condições. Nos Estados Unidos, há uma definição criada por lei (US Public Law, pp. 94-142), para o termo learning disabilities, de acordo com a publicação Learning Disabilities: A Guide for Parents and Teacher – Silber Psychological Service, 1992 (Zorzi, 1994, pp. 15-16), que relata a seguinte conceituação: Dificuldades de aprendizagem (learning disabilities) é uma desordem em um ou mais dos processos psicológicos envolvidos na compreensão ou uso da linguagem, falada ou escrita, que pode manifestar-se como uma habilidade imperfeita para ouvir, pensar, falar, ler e escrever ou realizar cálculos matemáticos. Chegamos às definições de Dificuldades de Aprendizagem. Vocês vão perceber que, a princípio, a tendência era compreender o “não aprender” como fenômeno situado no aluno, em problemas médicos, mentais e/ ou psicológicos apresentados por ele. Essa visão “medicalizada ” das Dificuldades de Aprendizagem será ultrapassada nos conceitos que virão a seguir. 16 Conceito de aprendizagem e seus impedimentos, etiologia, taxonomia e modelos de intervenção | UNIDADE I As dificuldades de aprendizagem no entender da Psicopedagogia Percebe-se, com clareza, a visão americana das dificuldades de aprendizagem. A conceituação das DAs, nesta cultura, vincula-se especialmente aos fenômenos observados em sala de aula, como ler, escrever e contar, tendo como etiologia, basicamente, desordens nas dimensões orgânicas, psicológicas e neurológicas. Tarnopol, 1981 (em Drouet, 1995, p. 91) apresenta uma definição para distúrbios da aprendizagem influenciada por uma visão interacionista. Segundo este autor, “distúrbios são perturbações de origem biológica, neurológica, intelectual, psicológica, socioeconômica ou educacional, encontradas em escolares, que podem tornar-se problemas para a aprendizagem dessas crianças”. Já Kirk e Bateman, 1962 (em DROUET, 1995, p. 92) preferem reservar o termo distúrbios de aprendizagem “apenas para aqueles casos de crianças com dificuldades de aprendizagem de causas desconhecidas, uma vez que essas crianças não apresentam defeitos físicos, sensoriais, emocionais ou intelectuais de espécie alguma”. Autores como Parente e Ranña (1990) discutem as inúmeras definições existentes para as dificuldades de aprendizagem como efeito resultante do caráter complexo e amplo desse campo do conhecimento. Diversas áreas estão envolvidas na formulação desse conceito, criando determinantes de várias ordens, como sociais, culturais, pedagógicos, psicológicos, neurológicos, entre outros, que influenciarão a conceituação formal das dificuldades de aprendizagem. A partir dessa mistura surgem termos como: distúrbios psiconeurológicos, disfunção cerebral mínima, dislexia, dislalias, disortografias e muitos outros que só servem para mascarar o processo diagnóstico, criando confusão na classificação e avaliação das crianças com problemas de aprendizagem. O uso indiscriminado desses rótulos em diagnósticos, sem conhecimento de causa, pode comprometer a ação benéfica da psicopedagogia, incorrendo em erros, reducionismos e atitudes parciais. Para Parente e Ranña (1990, p. 51), um problema de aprendizagem é “considerado como um sintoma que expressa algo e possui uma mensagem. Assim o não aprender tem uma função tão integradora quanto o aprender”. A conceituação das dificuldades de aprendizagem parece tarefa complicada, uma vez que é cercada de posicionamentos distintos, oriundos de áreas do saber que precisam ser conjugadas para um entendimento global do fenômeno. Reflete também movimentos sociológicos, provenientes das diferentes demandas que a sociedade impõe aos indivíduos, ao longo de seu desenvolvimento. Novos tempos exigem novos currículos, novos conhecimentos são produzidos, novas metodologias surgem. As crianças e os adolescentes nem sempre conseguem se adaptar às modificações que surgem com os novos métodos; assim como o contrário, nem sempre a escola consegue acompanhar a intensa transformação pela qual passa a sociedade, tornando-se um lugar dissociado da realidade e pouco interessante para a criança e o jovem. 17 UNIDADE I | Conceito de aprendizagem e seus impedimentos, etiologia, taxonomia e modelos de intervenção Há concordância quanto à falta de consenso com relação à conceituação das dificuldades de aprendizagem e os problemas oriundos desse fato na intervenção clínica e institucional. É imprescindível para um bom trabalho de intervenção psicopedagógica que ocorra uma avaliação psicopedagógica acurada e precisa. A tarefa de elaborar um bom processo de avaliação psicopedagógica, tanto no âmbito clínico quanto institucional, constitui-se em um enorme desafio para o psicopedagogo, uma vez que a dimensão conceitual das dificuldades de aprendizagem permanece ainda um setor confuso e ambíguo, com especificações imprecisas e generalizações inapropriadas. Segundo Fonseca (1995a, pp. 72-73): A falta de uma teoria sólida e coesa nos seus paradigmas e pressupostos e de uma taxonomia pormenorizada e compreensível é, assim, uma das razões que explicam a ambiguidade e a legitimidade das dificuldades de aprendizagem, daí que a criação e promulgação de serviços educacionais sejam, presentemente, muito restritas e ineficazes, porque não surge, nem se vislumbra um critério ou uma definição fidedigna e aquiescente. As dificuldades de aprendizagem representam um assunto conceitualmente confuso, decorrente de uma investigação teórico-prática ainda incipiente, contraditória e demasiado complexa nas suas variáveis e nos seus pressupostos. 18 capítulo 3 As origens das dificuldades de aprendizagem uma discussão inicial sobre as origens das dificuldades de aprendizagem requer uma constatação importante: a criança que apresenta dificuldades no processo de aprender não é uma criança deficiente. Em geral pertence a uma população heterogênea, com subtipos de dificuldades, alguns comportamentos desviantes e outros semelhantes às crianças normais e sem a apresentação de características específicas. Tal fato dificulta a avaliação psicopedagógica e, consequentemente, os limites da intervenção. Para Fonseca (1995a), a criança que apresenta dificuldades no processo de aprendizagem emite um conjunto de comportamentos que podem ser considerados desviantes, concomitantemente a comportamentos considerados absolutamente normais. Em pesquisas diversas, foram listados mais de 100 itens comportamentais característicos de conduta desviante de dificuldade de aprendizagem. As Dificuldades de Aprendizagem consistem em um fenômeno com uma etiologia complexa e que nos remete a uma avaliação dos seus componentes, a partir de uma perspectiva múltipla, dialética, buscando sempre uma síntese que, por menos completa que seja, pelo menos possa esclarecer a dinâmica das dificuldades de aprendizagem em seus processos de construção e cristalização. Segundo McCarthy, 1974 (em Fonseca, 1995a, p. 92), os dez comportamentos desviantes mais frequentes em crianças com problemas de aprendizagem são: 1. hiperatividade; 2. problemas psicomotores; 3. problemas emocionais; 4. problemas gerais de orientação espacial; 5. desordens de atenção; 6. impulsividade; 7. desordens na memória e no raciocínio; 8. dificuldades específicas de aprendizagem: dislexia, disgrafia, disortografia e discalculia; 19 UNIDADE I | Conceito de aprendizagem e seus impedimentos, etiologia, taxonomia e modelos de intervenção 9. problemas de audição e fala; 10. sinais neurológicos ligeiros e equívocos e irregularidades no EEG. A busca do entendimento da história do sujeito que apresenta dificuldades de aprendizagem é o método utilizado por Fonseca (1990, p. 67) para avaliar os graus de condutas desviantes. O processo evolutivo das dificuldades de aprendizagem deixa marcas em certos níveis de funcionamento que devem ser rastreados para a clarificação da avaliação psicopedagógica. Entre esses níveis, a autora destaca o psicomotor, o perceptivo e o cognitivo. Investigações nos domínios da linguagem falada, lida e escrita e de determinadas aquisições pedagógicas também são realizadas como parte importante da verificação das origens dos problemas de aprendizagem. De acordo com a autora: Procuramos detectar as características emocionais e condutuais, anteriores e atuais, as expectativas e exigências dos pais e a sua vida escolar anterior e atual. Na realidade, busca-se montar ou reconstituir a história de todo um processo de desenvolvimento para, através de sua gênese e evolução, melhor compreender o momento atual. Para Drouet (1995, pp. 97-98), as dificuldades de aprendizagem atendem a uma origem complexa, que envolve aspectos múltiplos da vida inter e intrapsíquica, orgânica e social do sujeito que as apresenta. Tentando agrupar as possíveis causas das dificuldades de aprendizagem, a autora chegou a uma classificação que inclui: a. causas físicas, relacionadas a perturbações somáticas transitórias ou permanentes; b. causas sensoriais, compreendendo os distúrbios que atingem os órgãos sensoriais e a percepção; c. causas neurológicas, relacionadas ao equipamento cerebral e sistema nervoso; d. causas emocionais, formadas pelos distúrbios psicológicos e de personalidade; e. causas intelectuais ou cognitivas, relacionadas à inteligência do sujeito; f. causas educacionais, vinculadas ao contexto da escola; g. causas socioeconômicos, provenientes do status vivenciado pelo sujeito, seus recursos e limites. Na visão de Pain (1992, p. 28), nenhum fator isolado é determinante no surgimento das dificuldades de aprendizagem. Suas origens surgem “da fratura contemporânea de uma série de concomitantes”. Entre os fatores considerados fundamentais na etiologia das dificuldades de aprendizagem, esta autora destaca: a. os fatores orgânicos, que se relacionam à integridade anatômica e funcionamento dos órgãos diretamente comprometidos com o processo de aprender; b. os fatores específicos, que surgem de inadequações nas áreas perceptivo-motoras, causando problemas na aquisição da linguagem e da escrita; 20 Conceito de aprendizagem e seus impedimentos, etiologia, taxonomia e modelos de intervenção | UNIDADE I c. os fatores psicógenos, relacionados a distúrbios emocionais e de personalidade; d. os fatores ambientais, que correspondem ao meio ambiente material do sujeito, suas possibilidades e recursos reais. Vários autores apresentaram diferentes listas de fatores que são originários das Dificuldades de Aprendizagem. Organizem esses fatores em uma só lista e analisem a relevância de cada um deles na gênese das DAs. Crie uma lista de fatores originários das Dificuldades de Aprendizagem de acordo com a sua compreensão acerca do texto lido e estudado. _________________________________________________________________ _________________________________________________________________ __________________________________________________________________ Ampliando a investigação sobre dificuldades de aprendizagem, evidencia-se que sua gênese situase nas dinâmicas que envolvem a criança, a família, o professor e a escola, inseridos em um contexto sociocultural. A aprendizagem é um processo que ocorre na relação. É dialético, pois necessita de um sujeito e um objeto em embate para que aconteça, para que ocorra a síntese. Necessita que haja essa interação para que os processos de assimilação e acomodação se desenvolvam conforme descreveu Piaget (1991). Se o aprender pertence à esfera da relação, o não aprender também tem a mesma origem, podendo ser acrescido de fatores de ordem orgânica que completam o quadro. O sintoma que delata o não aprender surge como um emissário que aponta a origem ou o ponto modal de sua própria essência. De acordo com Parente e Rannã (1990, p. 53): A origem do problema de aprendizagem pode estar relacionada com o modelo de relação vincular que cada criança estabelece e que foi desenvolvido e articulado nas suas primeiras relações com a mãe, num determinado contexto familiar. Esse modelo de relação vincular tende a ser reproduzido na escola. Fichtner (1990, p. 56), posicionando-se sobre a origem dos distúrbios de aprendizagem, argumenta que: Atualmente, um enfoque multidimensional e histórico está substituindo o posicionamento unívoco. Este tipo de pensamento dialético, oposto ao pensamento causal, faz com que já não se procure a explicação dos distúrbios de aprendizagem neste ou naquele déficit particular, mas em uma constelação de fenômenos sociais, psicológicos, neurológicos, pedagógicos e familiares, que só adquirem o seu pleno sentido quando referidos à história de cada criança ou adolescente, considerando-se as múltiplas interações e os conflitos que marcam essa história. 21 UNIDADE I | Conceito de aprendizagem e seus impedimentos, etiologia, taxonomia e modelos de intervenção E a capacidade de aprender ? Segundo o professor Vicente Martins (2004) são três os fatores que influem no desenvolvimento da capacidade de aprender: 1. Atitude de querer aprender: e é aí que entra a responsabilidade da escola - é preciso que ela desenvolva, no aluno, o aprendizado dos verbos querer e aprender, de modo a motivar para conjugá-los assim: eu quero aprender. Tal comportamento exigirá do aluno, de logo, uma série de atitudes como interesse, motivação, atenção, compreensão, participação e expectativa de aprender a conhecer, a fazer, a conviver e a ser pessoa. 2. Respeito às competências e habilidades: desenvolvimento de aptidões cognitivas e procedimentais. Quem aprende a ser competente, desenvolve um interesse especial de aprender. No entanto, só desenvolvemos a capacidade de aprender quando aprendemos a pensar. Só pensamos bem quando aprendemos métodos e técnicas de estudo. É este fator que garante, pois, a capacidade de autoaprendizagem do aluno. 3. Aprendizagem de conhecimentos ou conteúdos: para tanto, a construção de um currículo escolar, com disciplinas atualizadas e bem planificadas, é fundamental para que o aluno desenvolva sua compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade, conforme o que determina o artigo 32 da LDB. 22 Conceito de aprendizagem e seus impedimentos, etiologia, taxonomia e modelos de intervenção . | UNIDADE I Já trabalhamos o conceito de dificuldades de aprendizagem, suas origens e possíveis causas e as características da criança que apresenta problemas para aprender. Agora vamos complementar nossos estudos analisando como se classificam as dificuldades de aprendizagem. Antes de iniciarmos uma classificação dos tipos e subtipos de dificuldades de aprendizagem existentes, discutiremos, ainda, sobre algumas definições relacionadas aos problemas e/ou dificuldades que acometem uma criança no processo de aprender. Muitas vezes, adotam-se termos técnicos que não encontram lastro ou contrapartida no campo orgânico, como a célebre “disfunção cerebral mínima” (DCM), que muitos discutem ser a causa da maioria dos casos de dificuldades de aprendizagem e ninguém, até hoje, conseguiu localizá-la ou comprová-la por meio dos exames neurológicos, permanecendo a mesma como uma disfunção sem representação ou verificação orgânica. Uma conceituação precisa das dificuldades de aprendizagem permite um maior rigor na determinação de quem pertence a essa categoria de problemas e quem não pertence. O termo dificuldade de aprendizagem tem sido utilizado em uma população heterogênea de sujeitos, muitas vezes designando situações bastante diferenciadas. A proliferação de termos que buscam explicar os sintomas ou características do problema termina por confundir os profissionais no momento de elaboração de uma avaliação psicopedagógica. Em Fonseca (1995a), encontramos uma série de definições para as dificuldades de aprendizagem, que atendem ao critério aqui estabelecido de informar, com o máximo de precisão, quem faz parte desse grupo e quem não faz. São elas: Dificuldade de aprendizagem [...] é um atraso, desordem ou imaturidade em um ou mais processos: da linguagem falada, da leitura, da ortografia, da caligrafia ou da aritmética, resultantes de uma possível disfunção cerebral e/ou distúrbios de comportamento, e não dependentes de uma deficiência mental, de uma privação sensorial (visual ou auditiva), de uma privação cultural ou de um conjunto de fatores pedagógicos. (Kirk, 1973, p. 194, em Fonseca, 1995a). As crianças que têm dificuldades de aprendizagem são as que manifestam discrepâncias educacionalmente significativas. Discrepância entre o seu potencial intelectual estimado e o atual nível de realização escolar, relacionada essencialmente com desordens básicas do processo de aprendizagem, que pode ser ou não acompanhada por disfunções do sistema nervoso central. As discrepâncias de qualquer maneira não são causadas por um distúrbio geral de desenvolvimento ou provocadas por privação sensorial. (Bateman, 1965, p. 194, em Fonseca, 1995a). 23 UNIDADE I | Conceito de aprendizagem e seus impedimentos, etiologia, taxonomia e modelos de intervenção A criança com dificuldade de aprendizagem é uma criança com problemas em seu desenvolvimento que revelam uma disparidade no processo psicológico relacionado com a educação, disparidade tal (muitas vezes de 2, 4 ou mais anos escolares) que requer programas adequados de evolução acadêmica, de forma a adaptá-los à natureza a ao nível do desvio do seu processo de desenvolvimento (Gallagher, 1966, p. 195, em Fonseca, 1995a). A dificuldade de aprendizagem é uma desarmonia do desenvolvimento normalmente caracterizada por uma imaturidade psicomotora, que inclui perturbações nos processos receptivos, integrativos e expressivos da atividade simbólica. Traduz uma irregularidade biopsicossocial do desenvolvimento global da criança, que normalmente envolve, na maioria dos casos: problemas de lateralização e de praxia motora, deficiente estruturação perceptivo-motora, dificuldades de orientação espacial e sucessão temporal e outros tantos fatores inerentes a uma desorganização da constelação psicomotora, que impede a ligação entre os elementos constituintes da linguagem e as formas concretas de expressão que os simbolizam (Fonseca, 1974, pp. 195-196, em Fonseca, 1995a). A partir desse elenco de definições, podemos concluir que, se não há consenso quanto ao que seja dificuldade de aprendizagem, pelo menos a grande maioria dos autores concorda com as características que as crianças com problemas para aprender “não” possuem. De acordo com Fonseca (1995a), a criança com dificuldade de aprendizagem não possui deficiência sensorial, seja ela visual ou auditiva; não é deficiente motor, com quadros de paralisia cerebral ou de membros; não é deficiente intelectual, mantendo escores de QI por volta de 90 pontos e não apresenta distúrbios emocionais graves, que podem caracterizar quadros de psicoses severas. Em geral, a criança com dificuldade de aprendizagem apresenta um desnível entre o seu potencial e aquilo que realiza. É como se ela não percebesse ou não conseguisse expressar suas habilidades, caracterizando um bloqueio na dimensão da expressão e/ou realização de suas competências. Essa discrepância sempre se relaciona às desordens básicas no processo de aprendizagem, que podem sugerir um quadro de comprometimento do sistema nervoso central ou não. Na sua maioria, não apresentam sinais de debilidade mental, privação cultural, perturbações emocionais ou privação sensorial, porém perturbações no campo perceptivo, comportamentos inadequados e problemas no processamento de informações são evidenciados com freqüência em crianças com dificuldades de aprendizagem. 24 Conceito de aprendizagem e seus impedimentos, etiologia, taxonomia e modelos de intervenção | UNIDADE I A importância de uma taxonomia das dificuldades de aprendizagem reside na necessidade de se conhecer como um aspecto ou função de natureza psiconeurológica pode ter sido afetado a ponto de comprometer o processo de aprendizagem ou se a origem da dificuldade pode possuir uma etiologia diferenciada, proveniente do seu ambiente sócio-histórico-cultural. Nesta perspectiva, é importante compreender de que forma se constrói um quadro de dificuldades e como este evolui até alcançar os processos gerais de aprendizagem, prejudicando-os. Fonseca (1995a) propõe uma classificação das dificuldades de aprendizagem em dois níveis, a saber: a) as dificuldades de aprendizagem primárias e b) as dificuldades de aprendizagem secundárias. Falaremos sobre elas no próximo capítulo, aqui é importante frisar que inúmeras são as causas das dificuldades de aprendizagem. Fatores biológicos, orgânicos, emocionais, ambientais, ecológicos, entre outros, interagem de forma sistêmica na composição de um quadro problemático para a aprendizagem. Uma classificação apropriada das dificuldades de aprendizagem facilita os passos posteriores, em uma intervenção psicopedagógica, seja ela realizada em âmbito de atendimento individualizado ou na instituição escolar. Tentar clarificar o que são ou o que representam os sintomas que surgem em quadros de dificuldades de aprendizagem é tarefa básica do profissional desta área, especialmente como contribuição para a composição do corpo teórico psicopedagógico. Se conseguirmos estruturar avaliações psicopedagógicas criteriosas, se falarmos a mesma linguagem, talvez possamos tornar mais fácil a dura tarefa de compreender por que algumas pessoas, com todos os atributos e elementos presentes, constroem barreiras que as impedem de aprender, tanto na vida diária quanto na escola. Mas continuaremos este estudo na próxima Unidade especificamente voltada para as dificuldades de aprendizagem e sua taxonomia. É importante lembrar que as crianças com dificuldades de aprendizagem costumam ser absolutamente normais, com aspectos do seu comportamento evidenciandose normalmente, e parte apresentando desvios. Saber diferenciá-las das crianças com incapacidades reais ou deficiências orgânicas é de extrema importância, não só para a avaliação psicopedagógica, mas, especialmente, para a escolha de procedimentos de intervenção psicopedagógica adequados para a solução do problema. 25 unidade A Abordagem Psicopedagógica às Dificuldades de Aprendizagem II 28 capítulo 4 Articulação da história do fracasso escolar com o surgimento das dificuldades de aprendizagem: uma breve análise histórica João da Silva tem 12 anos e ainda está na 3ª série do Ensino Fundamental. Por mais que a professora se esforce, João não consegue aprender. Seus pais dizem que ele é imaturo e não tem jeito “para a escola”. Sua professora também não acredita mais que João possa melhorar. Ela está certa de que ele tem alguma coisa de errado que não permite que ele aprenda. “João não tem jeito”, costuma dizer sua professora. “Ele já é atrasado demais, impossível recuperar!”. Você acha que João é um caso perdido? João da Silva engrossa as estatísticas do fracasso escolar no Brasil. Como ele, milhares de brasileiros são rotulados, diariamente, como incapazes de aprender por questões que rondam a esfera das competências individuais dos sujeitos. Quando contestada sobre outras possíveis causas para que um aluno não aprenda, a escola amplia a causa do fracasso escolar à família e à situação econômica do país. Raramente a instituição escolar se inclui no rol dos elementos causais da aprendizagem fracassada de milhares de crianças. O fracasso escolar é, sem dúvida, um dos mais graves problemas sociais e econômicos com o qual nos deparamos. Ele se espalha por todos os níveis educacionais, penalizando desde crianças da Educação Infantil até adultos que sofrem em programas de alfabetização, em busca de um mínimo de condições para o exercício de sua cidadania. Apesar de incidir em quase todas as etapas de escolarização, é nas primeiras séries do Ensino Fundamental que o fracasso escolar faz o grande “estrago”. Há décadas lidamos com dados que indicam a manutenção dos altos índices de retenção, evasão e exclusão escolar. Ao longo das últimas décadas, as crianças brasileiras não conseguiram se libertar desse vaticínio que as impele para uma vida escolar repleta de situações de frustração e insucesso. Afinal, por que essas crianças fracassam tanto e por tanto tempo? No Brasil, o número de sujeitos que não conseguem aprender aumenta a cada ano. Diante de um quadro caracterizado por crescente retenção em séries escolares, exclusão do aluno do sistema educacional ou encaminhamento para serviços psicológicos, psicopedagógicos ou médicos, a escola sente-se perdida e repete, continuamente, o comportamento de responsabilizar o sujeito e sua família pelo fracasso na aprendizagem. Surgem os rótulos, que atribuem ao aluno deficiências de toda ordem e que em nada colaboram para a solução do problema. Em geral, esses rótulos legitimam uma suposta “incompetência 29 UNIDADE II | A Abordagem Psicopedagógica às Dificuldades de Aprendizagem individual ou orgânica para a aprendizagem”, excluindo o aluno não só da vida escolar como do mundo social e do trabalho. Se a culpa pelo fracasso escolar é do aluno, as outras instâncias pertencentes ao sistema escolar não assumem responsabilidade diante desse cenário. Sociedade, políticas públicas e sociais, ideologias educacionais, escola, educadores e professores não são diretamente responsáveis por essa tragédia e, portanto, muito pouco têm a fazer. O fracasso escolar tem origem complexa e multideterminada. Analisar suas causas partindo apenas de aspectos diretamente relacionados ao sujeito que fracassa consiste em visão reduzida do processo. Para compreender como se constitui um quadro de fracasso escolar é necessária uma análise minuciosa de suas origens sem desconsiderar a participação ativa de distintas instâncias na estruturação desse processo. Por ser um fenômeno de alta complexidade, sua construção vai espelhar essa natureza intrincada e vai exigir uma avaliação de todos os aspectos que contribuem para o surgimento dessa situação, tanto no contexto escolar como também no do trabalho. Hoje encontramos, com frequência, adultos que apresentam situações de fracasso no exercício laboral em decorrência de contextos educacionais pregressos que não foram adequados o suficiente para promover nesses sujeitos as competências exigidas pelo mercado de trabalho da atualidade, caracterizado por sua competitividade e alto grau de exigência. Ao pensarmos sobre o papel social da educação e, concomitantemente, buscarmos respostas para os altos índices de fracasso escolar nas escolas públicas brasileiras fica difícil não considerar a existência de uma dimensão perversa no sistema escolar que parece excluir essas crianças quase que “de propósito”, como garantia de um projeto ideológico que se beneficia dessa exclusão. Sociólogos franceses investigaram exaustivamente as dimensões simbólicas presentes nas propostas educacionais e que traduzem a ideologia dominante de um dado sistema de poder. Não há dúvida de que a escola, em certa instância, atende ao poder dominante e reproduz, por meio de suas práticas, um contexto sociocultural que garanta a manutenção das condições ideológicas desejáveis. Porém, também somos sabedores de que o espaço escolar, apesar de sua função reprodutivista, é, ainda, um dos poucos contextos que favorecem o surgimento de uma reação popular ao sistema ideológico dominante. Renomados educadores brasileiros, como Saviani e Libâneo, vêm discutindo a possibilidade concreta de construção de uma pedagogia crítica, capaz de restituir ao sujeito sua condição de cidadão, uma pedagogia a serviço do povo brasileiro e não das elites política e ideológica. O fracasso escolar deve ser compreendido a partir dessa instância macrossistêmica, que delata um projeto ideológico que exclui a população pobre não apenas da escola, mas, principalmente, da possibilidade de construção do seu conhecimento, assim como do acesso ao mercado de trabalho em iguais condições de competição com os raros cidadãos formados nas elites. Não é por acaso que uma criança fracassa na escola. O fracasso escolar tem uma missão, infelizmente mais perversa do que imaginamos. Ele legitima a exclusão escolar e social, de modo sutil e quase imperceptível, ao culpabilizar o aluno pelo seu insucesso. Uma vez que ainda se discute a não aprendizagem como oriunda de aspectos orgânicos, fisiológicos e individuais não há porque duvidar das intenções democráticas 30 Conceito de aprendizagem e seus impedimentos, etiologia, taxonomia e modelos de intervenção | UNIDADE I do sistema educacional que provê a todos os sujeitos as mesmas condições de ensino. Se o aluno não aprende, não é o sistema que tem “culpa”, nem o aluno, necessariamente. Esse aluno não aprende porque, “infelizmente”, pertence a um contexto social e econômico desprivilegiado que termina por minar suas possibilidades desenvolvimentais e suas condições de vida. Diante desse cenário tão precário é quase impossível para o aluno passar pela escola sem apresentar uma quantidade enorme de dificuldades de aprendizagem que vão legitimar o seu fracasso, ou seja, a sua participação ativa no seu insucesso escolar. Para revigorar a perversidade do sistema, surge o discurso de que a solução para esse problema ultrapassa os muros da escola e deve ser objeto de discussão de instâncias superiores. O sistema educacional deixa claro que a solução para esse intrincado problema diz respeito a essas instâncias superiores, como se elas não pertencessem, também, ao sistema político dominante. Ao que parece, a solução para esse problema também ultrapassa o desejo político das elites governantes. Se assim não fosse, a realidade seria outra. O sistema escolar ainda se solidariza com o aluno que fracassa ao inventar múltiplas formas de auxiliálo em sua “recuperação”. Nesse ínterim surgem ações como a implantação da progressão automática nas distintas etapas do Ensino Básico, programas de aceleração da aprendizagem, entre outros artifícios que apenas prorrogam o veredicto final, que sempre é a exclusão. Enquanto o poder político se digladia em busca de soluções para a sofrível situação da educação brasileira, nas salas de aula a construção do fracasso escolar toma corpo a cada dia, expresso pelos obstáculos criados pela própria escola e que impedem o aluno de aprender. A burocratização do trabalho pedagógico, a obediência cega a uma carga curricular excessiva e pouco formadora, a prioridade dada aos conteúdos quantitativos em detrimento da experiência qualitativa do aluno, a má formação dos professores, as precárias condições físicas e materiais da escola, entre tantas outras mazelas constituem barreiras presentes que os alunos das camadas pobres enfrentam e que, muito dificilmente, conseguirão sobrepujar. Diante de constatações tão sérias, a necessidade de investigar com maior profundidade esse fenômeno dissimulado que é o fracasso escolar torna-se imperativa. Neste ponto partimos para a escola, com o propósito de compreender o que ocorre em seus espaços, na tentativa de lançar luz sobre essa questão obscura. Ao chegarmos à escola nos deparamos com o inevitável: a total apropriação do discurso dominante por parte dos educadores, de modo pouco explícito, demonstrando em sua dimensão microssistêmica a existência das mesmas propostas evidenciadas na instância macrossistêmica já discutida neste Caderno. Escutamos de educadores e professores que as causas do fracasso escolar têm origem no aluno e em suas precárias condições de vida. Mais uma vez as outras dimensões são salvas “do julgamento” e permanecem omissas em relação ao quadro do insucesso na escola. O ciclo se fecha e a escola legitima a ideologia dominante ao assumir que o aluno e seu precário contexto socioeconômico são os elementos responsáveis pelo seu fracasso porque dão origem às suas deficiências de aprendizagem. O fracasso escolar é fenômeno complexo, multideterminado e condicionado por ideologias, políticas educacionais, sistemas sociais e econômicos. É um fato concreto que preocupa pais, educadores e toda uma nação. Seus efeitos são nocivos e geram exclusão escolar, social, econômica e cultural. Suas causas são, geralmente, imputadas às características do sujeito que fracassa, seu contexto familiar, social e 31 UNIDADE I | Conceito de aprendizagem e seus impedimentos, etiologia, taxonomia e modelos de intervenção econômico. Ao situar a origem do problema no sujeito, eximem-se a escola e todo o sistema restante da partilha da responsabilidade pelo insucesso escolar. Na maioria das vezes o aluno não é responsável pelo seu fracasso na escola. Em algumas circunstâncias, ele tem pouco sucesso na escola por vivenciar situações que trazem, em seu bojo, algum tipo de impedimento ou dificuldade para aprender. Nesses casos, evidenciamos a possibilidade de identificação das dificuldades de aprendizagem. Antes de conceituar dificuldade de aprendizagem é de extrema relevância estabelecer alguns parâmetros que permitam a articulação desse conceito com o de fracasso escolar. Esse cuidado é necessário, pois esses fenômenos não mantêm, necessariamente, uma relação causal ou mesmo uma correlação. Eles refletem faces distintas de um grave problema, que é a não aprendizagem, mas nem sempre estão juntos em sua construção. Vamos aos parâmetros: 1. O fracasso escolar costuma ser compreendido como um fenômeno social que afeta, especialmente, a população de baixo poder aquisitivo e que frequenta o sistema público de ensino. 2. O fracasso escolar também acomete a população privilegiada socialmente e financeiramente, mas, em geral, nessas condições, não é compreendido como fenômeno social e de impacto no desenvolvimento da nação. Esse tipo de fracasso escolar não gera estatísticas educacionais. 3. O fracasso escolar tem origem na relação do sujeito de aprendizagem com seu contexto social e cultural. O que observamos é que, em geral, esse contexto não é construído para promover o sucesso escolar do aluno e ele não tem outra opção senão falhar. Esse é o fracasso legitimado e cantado em verso e prosa na literatura da área. 4. O fracasso na escola pode gerar dificuldades de aprendizagem, que caracterizam impedimentos à construção do conhecimento e que são compreendidas como fenômenos oriundos “do sujeito”, a partir de suas interações sociais e características orgânicas e individuais. 5. O conceito de dificuldades de aprendizagem tem evoluído e se distanciado de uma perspectiva médica assim como do enfoque “da causa no indivíduo”, inserindo o sistema ecológico do sujeito como elemento significativo em sua construção. 6. A criança que fracassa na escola não necessariamente tem dificuldades de aprendizagem. 32 7. Uma criança pode apresentar dificuldades de aprendizagem e não fracassar na escola. Tudo depende do grau de ajuda que ela recebe. A Abordagem Psicopedagógica às Dificuldades de Aprendizagem | UNIDADE II 8. Os conceitos de dificuldades de aprendizagem e fracasso escolar se aproximam o tempo todo, mas não mantêm uma relação de causalidade ou reciprocidade. 9. Para compreender o fenômeno da não aprendizagem é indispensável conhecer as origens e trajetórias do fracasso escolar e das dificuldades de aprendizagem, em suas múltiplas interações e distanciamentos. 33 capítulo 5 Análise dos fatores que impedem a aprendizagem a partir de um enfoque psicopedagógico Neste capítulo vamos explorar os diferentes fatores que podem impedir a aprendizagem. Ao longo dessa discussão esbarraremos, novamente, nos conceitos de fracasso escolar e de dificuldades de aprendizagem, pois os fatores impeditivos da aprendizagem são múltiplos e se relacionam intimamente tanto com o insucesso escolar como com as dificuldades para aprender. Por que algumas crianças, absolutamente normais, não aprendem? Essa é uma pergunta intrigante. Dizer que uma criança não aprende porque possui um distúrbio orgânico, fisiológico, cerebral ou semelhante é menos complicado do que atribuir o seu fracasso escolar a outros fatores difíceis de serem mensurados ou mesmo diagnosticados mediante exames. Por essa razão, há uma enorme tendência em medicalizar o fracasso escolar e tratá-lo como um distúrbio passível de cura por uma terapêutica adequada ou medicação suficiente. Porém, mesmo quando cedemos a essa tendência, somos cientes de que há outros aspectos presentes na construção das dificuldades de aprendizagem que extrapolam as nomenclaturas médicas e psicológicas. Há também situações nas quais a criança ingressa na escola em condições perfeitas para aprender e sai dela apresentando limitações sérias à aquisição do conhecimento. Como explicamos tal fenômeno? Antes da escola a criança aprendia perfeitamente. Depois da escola essa competência torna-se comprometida? A escola pode impedir a aprendizagem? Quando evidenciamos quadros dessa natureza é impossível relacionar as causas da não aprendizagem somente a fatores individuais, orgânicos ou fisiológicos. O sistema escolar é competente para gerar dificuldade de aprendizagem, por incrível que pareça. Muitas vezes é isto o que a escola faz: “impede o sujeito de aprender”. O foco de investigação das causas da não aprendizagem também pode mudar de rumo e apontar para a família, as condições sociais e econômicas do aluno, as crenças e concepções do seu contexto social, os valores culturais, entre tantos outros fatores. Compreender o fracasso escolar e o surgimento das dificuldades de aprendizagem em um sujeito exige investigação minuciosa, detalhada, aprofundada. Diz respeito a um processo de pesquisa da história desse sujeito, considerando suas inserções familiares, sociais e culturais. Os impedimentos à aprendizagem são múltiplos, derivam de distintas fontes e demandam muita atenção e discernimento em sua identificação. 34 A Abordagem Psicopedagógica às Dificuldades de Aprendizagem | UNIDADE II . Uma investigação psicopedagógica dos fatores que impedem a aprendizagem vai lançar luz sobre as distintas instâncias que operam na construção das dificuldades de aprendizagem e que também são geradoras do fracasso escolar. Essa leitura abrangente se recusa a compreender a não aprendizagem como oriunda de uma única fonte e considera que só é possível identificar o que impede a aquisição do conhecimento ao considerarmos os pontos de partida dessa situação, que são muitos. O ser humano pertence a uma espécie e partilha com ela características desenvolvimentais comuns. Isso é fato biológico, genético, fisiológico. Entretanto, sabemos que o homem não se torna “humano” por legado biológico ou genético. Uma criança só se torna “humana” quando faz parte de uma cultura e conta com mediadores aptos a transmitir a ela os significados dessa cultura. É por meio da mediação que a criança se torna “uma pessoa”, desenvolve suas funções psicológicas, cresce, matura, aprende, passa a pertencer à humanidade. A construção do ser humano se dá no palco cultural, no qual a família, a escola e diversas instituições atuam como poderosos mediadores nesse processo. Considerando que hoje prevalece no planeta o modelo das sociedades industrializadas e que nesse modelo as crianças passam um longo tempo na escola para “adquirirem conhecimentos”, imaginem o impacto da instituição escolar na construção da personalidade do homem. Ele é imenso, incomensurável, definitivo, tanto para o sucesso dessa criança como para o seu fracasso. O processo de socialização do homem assim como sua experiência em instituições de ensino constituem vivências repletas de desafios, situações-problema, escolhas e opções. Nem sempre esse sistema se apresenta para o sujeito em concordância com seus desejos e aspirações. Muitas vezes, socializar-se e educar-se são experiências difíceis, que demandam auxílio constante dos pares sociais mais experientes e nem sempre a escola ou a família estão prontas para ofertar esse auxílio. Em situações desse gênero é muito provável o surgimento de dificuldades que podem se expressar tanto no processo de desenvolvimento do sujeito como em sua aprendizagem. No Quadro 2 identificamos as dimensões por meio das quais um ser humano se constitui como sujeito e que podem originar distintos fatores impeditivos à aprendizagem, a saber: (a) biológicas/genéticas; (b) físicas/orgânicas; (c) psicológicas; (d) escolares/institucionais; (e) socioeconômicas; (f) ideológicas; (g) ecológicas, (h) culturais/históricas. Uma breve investigação de cada uma dessas dimensões é necessária para clarear o processo de construção desses fatores impeditivos da aprendizagem e suas interações com todo o sistema que cerca o sujeito. 35 UNIDADE II | A Abordagem Psicopedagógica às Dificuldades de Aprendizagem Quadro 2 – Dimensões Constitutivas do Homem 1) Dimensões biológica e genética: dizem respeito à herança genética que cada ser humano recebe no momento da concepção e que dá origem a um ser biológico, pertencente a uma espécie com a qual ele partilha inúmeras regularidades, tanto desenvolvimentais como de aprendizagem. O homem é único, porém atende a regularidades desenvolvimentais típicas de sua espécie. Seu processo de desenvolvimento tem aspectos definidos pelo seu código genético e sua biologia, entretanto essas dimensões também são afetadas por contextos ambientais, sociais e culturais, promovendo mudanças e transformações. Diversos estudos mostram que transtornos biológicos ou mesmo genéticos podem gerar dificuldades de aprendizagem, com destaque especial para os déficits neurológicos. Situações dessa natureza ocasionam comprometimentos no processo desenvolvimental do sujeito, especialmente em sua cognição, promovendo alterações biológicas, comportamentais e emocionais que podem impedir a aprendizagem. Entre os transtornos relacionados às alterações biológicas identificamos: (a) lesões cerebrais; (b) paralisia cerebral; (c) epilepsia: (d) deficiência mental; (e) deficiência sensorial e (f) deficiência visual, auditiva ou de fala. Os fatores genéticos podem originar os seguintes quadros: (a) fibrose cística; (b) síndrome de Down; (c) hemofilia; (d) neurofibromatose; (e) fenilcetonúria; (f) anemia falciforme; (g) síndrome de Turner, entre tantos outros. É importante que o psicopedagogo saiba que necessita de auxílio especializado para elaborar um diagnóstico no qual os fatores impeditivos à aprendizagem são, primariamente, de origem biológica ou genética. O trabalho interdisciplinar é indispensável no momento da elaboração de um diagnóstico, seja ele no âmbito clínico ou no institucional. 2) Dimensões física e orgânica: relacionam-se ao desenvolvimento físico e orgânico do sujeito, incluindo os processos de crescimento e maturação. Ao nascer, um bebê já traz registros genéticos que vão orientar seu processo de desenvolvimento. Entretanto, o ambiente que o cerca vai dar cartas em pé de igualdade com suas determinações genéticas e biológicas, tecendo uma trama complexa que engendrará a construção de suas rotas desenvolvimentais. O bebê vai crescer, vai vivenciar processos de maturação e desenvolver-se a partir da interação dos seus fatores genéticos e ambientais. Portanto, suas dimensões físicas e orgânicas 36 A Abordagem Psicopedagógica às Dificuldades de Aprendizagem | UNIDADE II podem ter suas trajetórias de desenvolvimento alteradas por fatores de outra ordem, originando situações potencialmente capazes de impedir os seus processos de aprendizagem. Entre os possíveis fatores físicos e orgânicos com potencial para impedir ou prejudicar os processos de aprendizagem, destacamos: (a) desnutrição; (b) exposição a agentes teratogênicos, como drogas, infecções; (c) incompatibilidade de Rh; (d) exposição à irradiação e/ou poluição; (d) déficits psicomotores; (e) déficit no crescimento e (f) baixo peso. 3) Dimensão psicológica: corresponde aos fatores psicológicos e seu desenvolvimento durante a vida do sujeito. Fatores psicológicos incluem os seguintes processos: emoções, afeto, cognição, inteligência, memória, percepção, linguagem, pensamento, criatividade, imaginação etc. As funções psicológicas determinam o surgimento do sujeito humano. A nossa espécie se diferencia do reino animal por possuir funções psicológicas superiores e mediadas, que permitem a construção da consciência e, consequentemente, a noção de “eu”. Somente os homens têm identidade, personalidade ou subjetividade. Esta vida psíquica rica, complexa e subjetiva é construída ao longo do nosso desenvolvimento e depende de todas as dimensões que cercam o ser humano. Necessitamos de condições físicas, biológicas, genéticas, ambientais, sociais e históricas favoráveis para desenvolvermos uma personalidade saudável. Quando essas condições são abaladas por qualquer circunstância, o desenvolvimento psicológico do sujeito pode apresentar comprometimentos, entre os quais destacamos aqueles que vão impedir, especificamente, a aprendizagem. Os fatores psicológicos impeditivos da aprendizagem são numerosos e atuam de modo conjunto. Uma criança com baixa autoestima, por exemplo, pode apresentar dificuldades de aprendizagem que, por sua vez, vão gerar déficits na aquisição da linguagem, que, também, por sua vez, transformam-se em um outro fator psicológico originário do problema de aprendizagem. Esse ciclo demonstra a relação sistêmica existente entre sintoma e situação, mostrando que muitas vezes a dificuldade de aprendizagem tem poder de gerar um novo sintoma de não aprendizagem. Há necessidade de análise minuciosa dos fatores psicológicos na composição dos quadros de não aprendizagem. O psicopedagogo deve se apropriar de saberes da psicologia, da psicanálise e de outras linhas teóricas no sentido de ampliar seus conhecimentos sobre a dinâmica e a estrutura do funcionamento psicológico. Só assim será possível elaborar diagnósticos ou avaliações precisas. Também é importante destacar, novamente, a necessidade do trabalho interdisciplinar. Em alguns momentos, a melhor opção é contar com a participação de um psicólogo clínico experiente no momento de fechar um processo de avaliação psicopedagógica. Entre os fatores psicológicos intervenientes na aprendizagem, destacamos: (a) baixa autoestima e autoconceito; (b) distúrbios afetivos e emocionais; (c) distúrbios comportamentais; (d) neuroses e psicoses; (e) transtornos psicomotores etc. 4) Dimensões Escolar e Institucional: representam a influência e capacidade de intervenção da escola e das instituições que a cercam no processo de aprendizagem do aluno. A instituição escolar é apenas uma das instâncias sociais que participam ativamente no desenvolvimento e na aprendizagem dos seres humanos. A família, a comunidade, a igreja e tantos outros espaços de socialização também assumem papel relevante na constituição da personalidade de um indivíduo. Essas instituições, em conjunto, estabelecem padrões, crenças, valores e expectativas com relação ao sujeito e sua trajetória de vida. Em 37 UNIDADE II | A Abordagem Psicopedagógica às Dificuldades de Aprendizagem geral, esse sujeito tentará atender a esses padrões e nessa trajetória pode vivenciar situações conflitantes que refletem em sua personalidade, em seu desenvolvimento e em seu aprendizado. Nas sociedades industrializadas, a escola é a instituição onde as crianças passam a maior parte do seu tempo. Ela também é o local, por excelência, de transmissão do legado cultural da humanidade. Na escola, a criança constrói seu conhecimento sobre o mundo e sobre si mesma. Ela também aprende a ser uma pessoa, por meio das diversas interações com os pares, no espaço escolar. A sala de aula é muito mais do que um espaço de aprendizagem; ela é um espaço privilegiado de desenvolvimento humano, onde crianças “tornam-se seres humanos” e aprendem a viver em coletividade. Portanto, a escola assume papel de extrema importância na construção de bom ou mau processo de aprendizagem. A intenção contida no processo educativo formal, em geral, é boa; os resultados nem sempre. A escola impede a aprendizagem quando: (a) estrutura o mesmo tipo de ensino para diferentes crianças; (b) não prepara seus professores de modo adequado; (c) não oferta metodologias de ensino modernas, sofisticadas e de qualidade; (d) enfatiza a aquisição de conteúdos em detrimento da produção do conhecimento; (e) utiliza a avaliação como sistema punitivo, ao invés de caracterizá-la como momento especial de aprendizagem; (f) elimina a dimensão lúdica da sala de aula; (g) distancia conteúdos curriculares da vida do aluno; (h) constrói ambientes de aprendizagem opressivos, sem destaque para a criatividade. As instituições familiares também não cooperam com o sucesso escolar quando: (a) não valorizam a aprendizagem e o estudo; (b) não participam da vida escolar dos seus filhos; (c) não incentivam ou valorizam a leitura; (d) não estimulam adequadamente as crianças; (e) negligenciam a educação de valores; (f) associam alto nível de ansiedade ao processo escolar; (g) nutrem relações interfamiliares pouco ajustadas. 5) Dimensões Socioeconômicas: dizem respeito ao contexto social e econômico das crianças e suas famílias em etapa de escolarização e refletem, diretamente, no desempenho dos alunos em sala de aula. Uma das causas mais representativas do fracasso escolar é o baixo padrão social e econômico da maioria das crianças brasileiras. Desprovidos de moradia, condições sanitárias, cuidados médicos, nutrição adequada, conforto familiar e emocional e recursos financeiros, as crianças das classes sociais desfavorecidas encontram obstáculos instransponíveis quando chegam à escola. É impossível aprender com qualidade quando não há cadernos, lápis, computadores, alimentação adequada, falta de apoio familiar, trabalho precoce, descanso e lazer, todos os ingredientes que favorecem a aquisição do conhecimento com certo grau de tranquilidade e prazer. As crianças pertencentes às classes socioeconômicas desprivilegiadas apresentam, em geral: (a) condições habitacionais, sanitárias, de higiene e nutrição deficientes; (b) pouca estimulação cognitiva; (c) fraca interação sociolinguística; (d) privações lúdicas, simbólicas e culturais; (e) baixo desempenho na expressão linguística e no desenvolvimento do vocabulário; (f) conhecimentos gerais inadequados; (g) pouca habilidade no uso de tecnologias; (h) acesso restrito aos recursos físicos necessários à aprendizagem (livros, revistas, jornais, cadernos); (i) ausência de uma rede de apoio com relação às etapas de aprendizagem por parte da família e mesmo dos professores. Diante de tantos impedimentos, torna-se quase impossível para uma criança pobre alcançar sucesso na escola. Se somarmos esse aspecto aos outros já relacionados veremos o fracasso escolar se constituindo, tornando-se um fenômeno muito mais social do que pedagógico, urdido na perversidade da má 38 A Abordagem Psicopedagógica às Dificuldades de Aprendizagem | UNIDADE II distribuição de renda, fato ainda tão presente em nosso país. Mesmo quando consegue ultrapassar todas as barreiras impostas pelo macrossistema, a criança pobre sai da escola em condições precárias para competir em um mercado de trabalho delimitado pela alta especialização e pela busca de excelência. Nesse contexto, parece que não há saída para essas crianças. 6) Dimensão Ideológica: toda sociedade ou grupo cultural constrói ideologias que sustentam suas crenças e valores. Por ideologia compreendemos “um conjunto articulado de ideias, valores, opiniões, crenças que expressam e reforçam as relações que conferem unidade a determinado grupo social, seja qual for o grau de consciência que disso tenham seus portadores”. As ideologias surgem a partir de ideias disseminadas como dominantes e representativas do desejo de uma sociedade. Ela é incutida mediante distintas práticas, entre as quais se destaca a escolar. A escola é uma das instâncias transmissoras da ideologia de um povo. Ela dissemina, de modo subentendido, sistemas de ideias dogmaticamente organizadas e as transforma em instrumento de manipulação, domínio ou, até mesmo, de luta de classes. Não percebemos o processo de apropriação da ideologia que domina o nosso contexto social, histórico e cultural. Quando percebemos já somos portadores desses valores e, muitas vezes, lutamos para preservá-los. De que modo uma ideologia pode gerar dificuldades de aprendizagem ou mesmo fracasso escolar? Quando ela, por exemplo, dissemina para os membros de uma sociedade que o ingresso no trabalho se dará por meio do preparo do sujeito, no ambiente escolar, para o exercício de uma profissão e, ao mesmo tempo, não oferta condições democráticas de acesso a uma escolarização de qualidade. Ao partilhar esse ideário, o sujeito considera que o fracasso escolar e profissional de muitos dos seus pares se justifica por esse conjunto de valores, ou seja, não há lugar para todos, portanto nada mais natural do que o fracasso de uma boa parcela. A escola faz isso com muita competência e, como boa reprodutora da ideologia dominante, lança a responsabilidade do fracasso nas mãos do aluno, eximindo o contexto social de sua enorme parcela de culpa. O aluno apresenta dificuldades para aprender porque “já espera” esse quadro. Afinal, ele é pobre, não tem condições financeiras nem culturais de alcançar o topo da pirâmide social, já disseram a ele que nem todos chegarão lá e que o melhor a fazer é aceitar sua condição subalterna sem reclamar. A família também legitima o problema ao assumir que seu filho “não dá para os estudos”, “não é muito inteligente”, “deve ter a mesma profissão do pai”, entre outras crenças semelhantes que só fortalecem o sistema ideológico vigente. O psicopedagogo tem a obrigação de investigar essa dimensão que sempre surge como componente em quadros de dificuldades de aprendizagem e fracasso escolar. 7) Dimensão Ecológica: esta dimensão compreende a criança inserida em distintos contextos que são formados pelos vários ambiente em que ela habita no seu cotidiano. Esses microssistemas se relacionam uns com os outros de distintas maneiras, formando mesossistemas que, por sua vez, interagem com ambientes e espaços institucionais (exossistemas) em que a criança não necessariamente está presente, mas que influenciam seus processos de desenvolvimento e aprendizagem de modo significativo. Todos esses sistemas encontram ressonância no macrossistema que representa as crenças, ideologias e padrões culturais de cada criança. A abordagem ecológica é de extrema relevância na análise dos processos de desenvolvimento e aprendizagem da criança, pois desnuda as intricadas relações entres os diferentes sistemas e suas interferências positivas ou negativas nos resultados desenvolvimentais. Quando compreendemos a criança 39 UNIDADE II | A Abordagem Psicopedagógica às Dificuldades de Aprendizagem como sujeito inserido em uma teia de relações que se amplia progressivamente, passamos a percebê-la de modo mais complexo e ampliamos as possibilidades de identificar possíveis pontos nodais de situações problemas, o que permite a intervenção. Para a Psicopedagogia é fundamental a adoção de uma visão ecológica do desenvolvimento e da aprendizagem. Ela nos permite identificar, por exemplo, quando uma dificuldade de aprendizagem é originária de: (a) relações familiares nucleares (pai, mãe e filhos); (b) relações familiares ampliadas (avós, primos, tias); (c) conflitos ideológicos entre membros da mesma família; (d) discrepância de valores entre família nuclear e família ampliada; (e) expectativas disfuncionais com relação à criança; (f) expectativas disfuncionais com relação à escola, entre outros fatores. 8) Dimensões históricas e culturais: para finalizar, vamos analisar o contexto histórico e cultural e suas interferências no contexto da aprendizagem e seus impedimentos. Já discutimos bastante sobre a natureza dos processos de desenvolvimento humano e aprendizagem. Somos sabedores de que o filhote do homem só se torna “humano” pela mediação da cultura, ou seja, de significados simbólicos que damos às coisas e ao mundo e que são transmitidos aos nossos descendentes mediante os processos educacionais. O homem se torna homem por meio de outros homens. Esse processo depende da cultura e de seu contexto histórico. A escola é a instituição responsável pela transmissão do legado cultural da humanidade. A ela cabe a tarefa de ensinar aos mais novos os significados construídos pela cultura que representa. Por isso, a escola necessita de tempo longo e contínuo para formar um habitus no aluno, ou seja, para incutir-lhe os valores, crenças e saberes escolhidos pela dimensão histórica e cultural. Espera-se que esse aluno seja o guardião e também reprodutor dos padrões históricos e culturais herdados. Deseja-se que ele, como futuro da sociedade, garanta a sobrevivência dela. A escola treina o aluno para manter o status quo, para garantir a continuidade do grupo social, para reproduzir crenças e valores. Ao se estruturar para tal tarefa, a escola termina por eliminar de suas práticas a produção de novos valores culturais, a renovação do legado histórico, a transformação do tecido social tão imprescindível para nossa subsistência. Portanto, é nesse aspecto que as dimensões históricas e culturais podem atuar no sentido de gerarem dificuldades de aprendizagem, ao ceifarem no aluno o seu ímpeto criativo e inovador. Parece um contrassenso, mas tal fato ocorre com uma infeliz frequência. 40 unidade Compreensão das Dificuldades de Aprendizagem III 42 capítulo 6 Taxonomia e características das dificuldades de aprendizagem: uma abordagem psicopedagógica Neste capítulo, vamos abordar, especificamente, as dificuldades de aprendizagem em seus aspectos de classificação e identificação. É importante ressaltar que a leitura aqui adotada é de natureza psicopedagógica, o que significa uma opção por analisar esses impedimentos à aprendizagem com ênfase em suas dimensões pedagógicas e escolares. Não vamos estudar as dificuldades de aprendizagem com olhos médicos ou mesmo estritamente psicológicos. Nosso foco será, prioritariamente, a compreensão das DAs inseridas em um cenário educacional, o que não impede uma investigação precisa, complexa e com maior grau de profundidade de cada uma delas. A importância de uma taxonomia das dificuldades de aprendizagem se expressa no conhecimento de como um fenômeno de natureza difusa pode individualizar-se em um conjunto de sintomas e/ou características a ponto de comprometer o processo de aprendizagem de um sujeito. Estudar o sistema de classificação das DAs também orienta sobre suas etiologias diferenciadas, provenientes de distintas dimensões, como já evidenciado em capítulo anterior. Nessa perspectiva, é importante compreender de que forma se constrói um quadro de impedimentos ao ato de aprender e como este evolui até alcançar os processos gerais de aprendizagem, prejudicando-os. Retomando Fonseca (1995), identificamos uma classificação das dificuldades de aprendizagem em dois níveis, a saber: a) as dificuldades de aprendizagem primárias e b) as dificuldades de aprendizagem secundárias. O quadro comparativo a seguir apresentará as principais diferenças entre os dois tipos: Quadro 3 – Comparativo das dificuldades de aprendizagem Dificuldades de Aprendizagem Dificuldades de Aprendizagem Primárias – DA I Secundárias – DA II (1) DAs primárias são aquelas em que não se identifica uma causa orgânica específica. (2) Compreendem perturbações nas seguintes aquisições: práxicas e simbólicas, como: a linguagem falada (receptiva e expressiva), a linguagem escrita (receptiva e expressiva) e a linguagem quantitativa. (3) O potencial sensorial, intelectual, motor e social está intacto e é, portanto, normal. (1) DAs secundárias resultam de condições, desordens, limitações ou deficiências devidamente diagnosticadas em: deficiência visual, auditiva, mental, motora, emocional ou privação cultural. (2) As DAs são a consequência secundária de deficiências nervosas, sensoriais, psíquicas ou ambientais. (3) O potencial sensorial, intelectual, motor e social é atípico e desviante. 43 UNIDADE II | A Abordagem Psicopedagógica às Dificuldades de Aprendizagem (4) Se há perturbações, elas dependem de alterações mínimas, tão mínimas que não são detectadas pelos exames médicos pediátricos, neurológicos, psiquiátricos, psicológicos porque são insuficientes para identificar distúrbios e problemas no processamento da informação. (5) As aquisições da linguagem falada, da linguagem escrita e da linguagem quantitativa estão primariamente perturbadas. (4) Se há perturbações, elas dependem secundariamente de deficiências sensoriais, neurológicas, psíquicas ou ambientais como, por exemplo: privação cultural, desvantagem socioeconômica, má nutrição, envolvimento afetivo, facilidades de estimulação precoce, expectativas etc. (5) As aquisições da linguagem falada, da linguagem escrita e da linguagem quantitativa estão secundariamente perturbadas. CATEGORIAS DE DAs PRIMÁRIAS 1. Disfunções CATEGORIAS DE DAs SECUNDÁRIAS 1. Afecções biológicas 1.1. Da linguagem falada »» Disnomia »» Disfasia »» Disartria »» Deficiência Mental 1.1. Do sistema nervoso central »» Lesões cerebrais »» Paralisia cerebral »» Epilepsia 1.2. Dos sistemas sensoriais »» Deficiência auditiva »» Hipoacusia (diminuição da audição) »» Deficiência visual »» Ambliopia (diminuição da visão) 1.2. Da linguagem escrita »» Dislexia (auditiva e visual) »» Disgrafia »» Disortografia 2. Problemas de comportamento 1.3. Da linguagem quantitativa »» Discalculia 2. Problemas Perceptivos »» Reativo »» Neurótico »» Psicótico 2.1. Do processo auditivo »» Discriminação »» Síntese »» Memória de curto termo 3. Fatores ecológicos e socioeconômicos »» Envolvimento afetivo »» Má Nutrição »» Privação cultural »» Dispedagogia (problemas de ensino) 2.2. Do processo visual »» Discriminação »» Figura-fundo »» Complemento »» Constância da forma »» Posição e relação espacial »» Visualização 3. Problemas Psicomotores, controle vestibular e proprioceptivo »» Lateralização »» Imagem do corpo »» Estruturação espaço-temporal »» Praxia global »» Praxia fina (visuomotricidade) Baseado em Fonseca, 1995 (pp.199-200) 44 A Abordagem Psicopedagógica às Dificuldades de Aprendizagem | UNIDADE II Na taxonomia de Fonseca (1995), as dificuldades de aprendizagem se dividem em primárias e secundárias, considerando-se os motivos expostos na primeira parte da tabela. As dificuldades de aprendizagem primárias são aquelas de maior evidência e não caracterizam dano orgânico específico. Elas têm origem em múltiplas causas, mas não apresentam, especificamente, um déficit no organismo do sujeito nem em suas funções cognitivas. A criança que apresenta uma DA primária é considerada uma criança de desenvolvimento normal, entretanto, situações endógenas ou exógenas favoreceram o surgimento de impedimentos à aprendizagem que assumem caráter transitório, ou seja, podem ser eliminadas sem deixar rastro na história do sujeito. Em geral, as DAs primárias se expressam por irregularidades transitórias no comportamento psicomotor, no raciocínio lógico e na expressão simbólica. Surgindo modificações no funcionamento dessas instâncias, emergem perturbações que podem se expressar na linguagem falada, escrita e quantitativa o que, consequentemente, vai promover déficits na aquisição da leitura, da escrita, do conhecimento matemático, entre outros. Por motivos que são plurais, uma criança normal começa a apresentar dificuldades para ler, escrever e raciocinar matematicamente. Compreender a origem dessas irregularidades é uma das funções do psicopedagogo, que já sabe que tais DAs são multideterminadas e que exigirão investigação interdisciplinar minuciosa e criteriosa. No caso das DAs primárias é muito comum a criança manter um padrão intelectual, motor e social aproximado do normal. O desvio da conduta normal é pouco evidenciado nas DAs primárias, mas em caso de persistências das irregularidades na aprendizagem, é possível que o quadro evolua a ponto de incluir problemas de comportamento. Em sua maioria, as DAs representam respostas que as crianças normais dão quando se encontram em situações adversas de ensino. É muito comum, no atendimento clínico e mesmo institucional, verificar o surgimento de impedimentos à aprendizagem quando os alunos são expostos a metodologias de ensino pouco criativas e conteudistas, a professores com dificuldades de interação em sala de aula ou mesmo situações de constrangimento ou violência vividas com os colegas. Nem sempre as delicadezas presentes nas relações em sala de aula são percebidas pelo professor ou por outros educadores, mas elas podem atuar fortemente no sentido de promover sentimentos negativos no aluno a ponto de ele optar por não aprender, como uma forma de se defender de uma possível ameaça emocional. Infelizmente tal realidade é muito mais comum nas escolas do que imaginamos. Hoje em dia é comum observar a escola rotulando alunos como portadores de hiperatividade, déficit de atenção ou mesmo deficiência mental por desconhecer a etiologia e desenvolvimento desses transtornos e por desejar medicalizar a dificuldade para aprender, medida que a exime de sua responsabilidade diante do problema. A escola não percebe que ela é a construtora da maioria dos quadros de não aprendizagem e, assim como se recusa a perceber o seu papel, também se omite na reconstrução do vínculo da aprendizagem, deixando o aluno nas mãos de médicos e psicólogos que nem sempre conseguem ajudar. 45 UNIDADE II | A Abordagem Psicopedagógica às Dificuldades de Aprendizagem Para piorar o quadro, a rotulação de uma pessoa como portadora de um déficit ou transtorno em nada auxilia em sua recuperação, muito pelo contrário. Essa medida gera discriminação e agrega valores negativos ao sujeito, implicando em baixa autoestima e percepção de si mesmo como incompetente. A escola deve se preparar para lidar com as dificuldades de aprendizagem e com o fracasso escolar e o psicopedagogo é um profissional apto a auxiliar a instituição escolar nesse sentido. É importante que o trabalho psicopedagógico institucional atue no sentido de evitar a rotulação precoce de crianças com problemas de aprendizagem, mas também não negligencie aquela pequena parcela de alunos que podem, de fato, apresentar transtornos que vão demandar ajuda especializada. Atuar nos extremos, em se tratando de avaliação psicopedagógica, não é medida segura. Ampliando a taxonomia proposta por Fonseca (1995) e assumindo uma leitura psicopedagógica das dificuldades de aprendizagem, apontamos as principais irregularidades que caracterizam as DAs primárias: Irregularidades da linguagem falada »» Disnomia: é a incapacidade para recordar nomes próprios. Consiste em uma anomalia que é mais presente em quadros neurológicos. Uma criança com disnomia apresenta dificuldade para recordar substantivos e nomes próprios podendo chegar a uma alteração grave da fluidez da fala. Para diagnosticar precisamente um quadro de disnomia é recomendável o auxílio de fonoaudiólogos e neurologistas. »» Disfasia: consiste em transtornos evidenciados na evolução da linguagem, em especial na recepção e análise do material auditivo e verbal. Crianças com disfasia apresentam dificuldade na integração da linguagem e na construção do discurso, com presença de insuficiência sensorial. Elas se comunicam verbalmente, porém apresentam dificuldades na construção da fala. O nível mental das crianças com disfasia é considerado normal. A disfasia, em geral, associa-se à dislalia (gagueira). Um exemplo de disfasia: a criança escuta um comando simples da professora e não consegue interpretar o que deve ser feito, assim como não consegue reproduzir a fala da professora. »» Disartria: caracteriza-se pela articulação defeituosa dos sons da fala sem comprometer, entretanto, o processo linguístico. Em geral, essa dificuldade tem origem em distúrbios motores dos órgãos da fonação (língua e lábios) e necessita de apoio fonoaudiológico para ser diagnosticada. Um exemplo de disartria: troca fonética dos sons “f ” e “v”, “p” e “b” como faz o personagem Cebolinha, dos quadrinhos do Maurício de Souza. »» Dislalia: é a famosa gagueira. Consiste em uma irregularidade no desenvolvimento da fala caracterizada por hesitação repetitiva e demora na emissão das palavras. Muitas vezes inclui o prolongamento atípico dos sons. Surge na infância, mas pode prolongar-se na vida adulta, se não for tratada adequadamente. 46 A Abordagem Psicopedagógica às Dificuldades de Aprendizagem | UNIDADE II O psicopedagogo também deve incluir, em sua avaliação psicopedagógica, os seguintes aspectos da linguagem falada: (a) fluência e riqueza do vocabulário; (b) pronúncia dos fonemas, sílabas e palavras; (c) sequência lógica na construção das frases, entre outros aspectos relacionados. Irregularidades da linguagem escrita »» Disgrafia: é uma irregularidade da linguagem escrita conhecida comumente como “letra feia”. A criança com disgrafia apresenta uma escrita inferior ao esperado para sua etapa desenvolvimental e série escolar. É comum também evidenciar a inversão de sílabas, a omissão de letras, a escrita em espelho e a escrita contínua. »» Disortografia: caracteriza-se pela presença de aglutinações, omissões, contaminações, alterações nas palavras, gerando desorganização na estrutura das frases e sentenças. Não é fruto da falta de coordenação motora e reflete distorções nos processos cognitivos responsáveis pela linguagem escrita. A criança com disortografia apresenta muitos erros de ortografia que não são oriundos do desconhecimento do código gramatical e ortográfico. Processos de letramento de pouca qualidade geram disortografia com frequência. Irregularidades da linguagem quantitativa »» Discalculia: é uma irregularidade que impede a criança de compreender adequadamente os processos de raciocínio matemático, gerando múltiplas dificuldades na aquisição dos conteúdos dessa área. O aluno com discalculia não consegue solucionar problemas verbais, tem dificuldade em construir raciocínios quantitativos e estabelecer relações entre as categorias de números e numerais. Garcia (1998) estabeleceu seis subtipos de discalculia, podendo todos eles combinarem entre si e com outros tipos de DAs: a. Discalculia Verbal – dificuldade para nomear as quantidades matemáticas, os números, os termos, os símbolos e as relações. b. Discalculia Practognóstica – dificuldade para enumerar, comparar e manipular objetos reais ou em imagens matematicamente. c. Discalculia Léxica – Dificuldades na leitura de símbolos matemáticos. d. Discalculia Gráfica – Dificuldades na escrita de símbolos matemáticos. e. Discalculia Ideognóstica – Dificuldades em fazer operações mentais e na compreensão de conceitos matemáticos. f. Discalculia Operacional – Dificuldades na execução de operações e cálculos numéricos. 47 UNIDADE II | A Abordagem Psicopedagógica às Dificuldades de Aprendizagem A criança com discalculia tem dificuldades para: »» Visualizar conjuntos de objetos inseridos em um conjunto maior. »» Conservar a noção de quantidade, ou seja, ela não compreende que 1 quilo corresponde a quatro pacotes de 250 gramas. »» Sequenciar números, estabelecendo relações entre antecessor e sucessor, como, por exemplo: qual é o número que vem antes do 9 e depois do 19? »» Classificar números. »» Compreender os sinais matemáticos de soma, subtração, multiplicação, divisão, inclusão, pertença etc. »» Estruturar operações matemáticas. »» Compreender as conservações de medida, peso, altura, tempo. »» Estruturar as sequências lógicas no momento de solucionar operações matemáticas. »» Contar utilizando os cardinais e ordinais. Irregularidades da linguagem em geral »» Dislexia: de acordo com a Associação Brasileira de Dislexia (http://www.dislexia. org.br/), a dislexia é: [...] um distúrbio ou transtorno de aprendizagem na área da leitura, escrita e soletração [...] sendo um dos transtornos de maior incidência nas salas de aula. Pesquisas realizadas em vários países mostram que entre 05% e 17% da população mundial é disléxica. Ao contrário do que muitos pensam, a dislexia não é o resultado de má alfabetização, desatenção, desmotivação, condição socioeconômica ou baixa inteligência. Ela é uma condição hereditária com alterações genéticas, apresentando ainda alterações no padrão neurológico. Por esses múltiplos fatores é que a dislexia deve ser diagnosticada por uma equipe multidisciplinar. Esse tipo de avaliação dá condições de um acompanhamento mais efetivo das dificuldades após o diagnóstico, direcionando-o às particularidades de cada indivíduo, levando a resultados mais concretos (http://www.dislexia.org.br/, acesso em 2/05/07) Dislexia traz em sua grafia a sua definição. O prefixo “dis”, que tem origem no termo grego “dys”, significa “estado imperfeito ou disfunção”. O radical “lexia”, também originado do grego “léxikos”, representa o termo “palavra, léxico, linguagem” em sua expressão mais ampla. Dislexia, portanto, é um estado imperfeito da linguagem, 48 Compreensão das Dificuldades de Aprendizagem | UNIDADE III uma disfunção no funcionamento do sistema léxico e que atinge a linguagem escrita como a linguagem falada. Essa dificuldade de aprendizagem prejudica o funcionamento da leitura, soletração, escrita, linguagem expressiva, linguagem receptiva e também o raciocínio matemático. Fatores endógenos e exógenos estão na origem da dislexia e por se tratar de uma disfunção complexa, ela também necessita de abordagem multidisciplinar, tanto no diagnóstico como no tratamento. A identificação de uma criança disléxica consiste em um processo minucioso que demanda avaliação cuidadosa. É muito comum encontrar em crianças com dislexia uma nítida dificuldade na linguagem falada, na linguagem escrita, na ortografia, além da evidência de lentidão na aprendizagem da leitura. Também são notados episódios de disgrafia, discalculia, déficits de memória, dificuldade em aprender uma segunda língua, percepção espacial comprometida e confusão na orientação espacial. Em decorrência desses sintomas, a criança costuma apresentar dispersão, baixa atenção, dificuldades motoras e falta de interesse generalizado. Entretanto, para a finalização de um diagnóstico preciso é importante uma avaliação completa e composta por vários profissionais. Transtorno do déficit de atenção com hiperatividade De Acordo a Associação Brasileira de Déficit de Atenção o TDAH é: [...] um transtorno neurobiológico, de causas genéticas, que aparece na infância e frequentemente acompanha o indivíduo por toda a sua vida. Ele se caracteriza por sintomas de desatenção, inquietude e impulsividade. (http://www.tdah.org.br/oque01. php, acesso em 02/05/07) Uma criança que apresenta quadro de TDAH tem enorme dificuldade em selecionar estímulos e manter o seu foco de atenção. A desatenção, inquietude e impulsividade demandam auxílio constante de outra pessoa, pois o TDAH impede a criança de agir sozinha para controlar o próprio comportamento. Em várias situações, essa criança é vista como mal-educada ou sem limites, quando na verdade ela não tem condições de impedir o fluxo de hiperatividade que a acomete. São várias as causas do Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade. Entre o elenco de aspectos que podem gerar esse problema destacamos: (a) a dimensão biológica, que inclui a predisposição genética; (b) a dimensão psicológica, que compreende o desenvolvimento das funções psicológicas e do repertório comportamental e (c) a dimensão social, expressa nos problemas de ensino e aprendizagem assim como nas crenças e valores que permeiam a educação. O TDAH surge do entrelaçamento desses fatores e a eles está condicionado. Qualquer tentativa de identificação do TDAH e de possíveis intervenções deve considerar sua natureza biopsicossocial. A escola e seus profissionais, especialmente o psicopedagogo, devem conhecer com propriedade esse transtorno para não consolidarem a prática de rotular a criança ativa e bagunceira ou mesmo a criança 49 UNIDADE III | Compreensão das Dificuldades de Aprendizagem dispersa e pouco interessada nas aulas como hiperativa ou portadora de déficit de atenção. Na atualidade, essa disfunção caiu no gosto popular e, junto com a dislexia, tem sido vítima de diagnósticos equivocados, o que maximiza o problema enfrentado pelo aluno e, mais uma vez, medicaliza a dificuldade de aprendizagem, eximindo a escola por sua parcela de responsabilidade no processo de ensinar corretamente para que o aluno aprenda adequadamente. O TDAH é caracterizado pela presença marcante de duas disfunções, que são: a desatenção e a hiperatividade/impulsividade. Esses dois fatores se combinam e atuam de modo a potencializar um ao outro, formando um sistema disfuncional complexo e comprometedor das funções psicológicas e sociais do sujeito. Essa composição de sintomas resulta em uma criança “avoada”, “ligada em um motor”, “que não para nunca”, “estabanada”, “inquieta”, entre tantos outros adjetivos pouco interessantes. Os meninos apresentam sintomas de hiperatividade em maior grau quando comparados às meninas. Estas costumam expressar a falta de atenção com maior vigor. Apesar das diferenças de gênero ainda é comum encontrar, tanto em meninos como em meninas, uma composição desses dois fatores. A literatura destaca que há uma tendência de manutenção do TDAH na adolescência e na idade adulta. Se a criança que possui essa disfunção recebe tratamento adequado na infância, a possibilidade de minimizar os efeitos da hiperatividade e do déficit de atenção na vida adulta é bem menor. Caso não haja intervenção na infância, a probabilidade de manutenção do transtorno na vida adulta aumenta, gerando dificuldades no trabalho, impulsividade, excesso de energia e tendência ao uso de drogas e álcool, assim como predisposição a quadros de ansiedade e depressão. Irregularidades perceptivas »» Discriminação auditiva: caracteriza-se pela dificuldade ou mesmo incapacidade de discriminação de sons, fonemas, sílabas e palavras acusticamente parecidas. Desenvolver um processamento auditivo eficiente é de extrema relevância para a criança, uma vez que as deficiências que podem ocorrer no desenvolvimento do processamento frequentemente levam a problemas na aprendizagem da leitura. »» Discriminação visual: diz respeito à habilidade em utilizar o sentido da visão para perceber e comparar as características de itens diferentes e para distinguir um do outro. A criança com dificuldade em discriminar visualmente objetos, figuras ou coisas pode ter seu processo de aprendizagem prejudicado. »» Figura-fundo: este tipo de discriminação relaciona-se à habilidade em separar uma forma impressa no seu fundo. Todos os cenários visuais contêm objetos que compõe o fundo e outros que constituem elementos sobrepostos ao fundo. Essa percepção, quando prejudicada, impede o andamento regular do processo de aprendizagem. Existe também a discriminação auditiva de figura-fundo, que representa a habilidade em distinguir sons relevantes em um contexto de ruídos de fundo. Exemplo: uma criança pode apresentar dificuldade para perceber figuras definidas sob um fundo indefinido e ambíguo, confundindo-se do ponto de vista perceptivo. Essa não 50 Compreensão das Dificuldades de Aprendizagem | UNIDADE III discriminação pode gerar dificuldades na aquisição da linguagem, pois tudo o que está escrito sobrepõe-se a um fundo. »» Constância da forma: os objetos mudam de forma conforme o ângulo de observação. Entretanto, permanecemos percebendo o objeto como regularmente posto no espaço, apesar de visualmente sua forma ser alterada. Nosso sistema perceptivo é o estruturador desse fenômeno. Um exemplo ilustra bem o conceito de constância de forma: ao olhar para qualquer batente de porta, uma pessoa notará que ele é retangular. Mas, ao fazer um esboço do contorno do batente do ângulo em observação é possível verificar uma forma trapezóide. A percepção ajusta a forma da porta para que ela seja percebida como um retângulo de qualquer ângulo observado. »» Posição e relação espacial: diz respeito à posição que os objetos ocupam no espaço e as relações existentes entre eles: quem está à direita, quem está à esquerda, quem está acima, quem está abaixo etc. A criança precisa construir sólidas percepções de posição e relação espacial. Seu aprendizado depende muito desta competência. Até para escrever é necessário discriminar a ordem da escrita, das palavras e das letras. Irregularidades psicomotoras, controle vestibular e proprioceptivo »» Lateralidade: diz respeito à percepção das relações espaciais que orientam as distintas direções, como esquerda/direita, frente/atrás, em cima/embaixo, entre outras. O domínio da lateralidade muda quando consideramos o ponto de vista de quem observa e também a existência de determinada referência. O domínio da lateralidade marca o início da construção das relações espaciais. A criança começa a construir noções de lateralidade usando como ponto de partida o próprio corpo. Mais tarde, em um processo gradativo de descentralização, considera a posição do corpo das pessoas à sua frente (a esquerda e a direita do outro) para, finalmente, considerar o posicionamento dos objetos em relação uns aos outros, a ela própria ou a outras pessoas. A definição da lateralidade também depende da dominância dos distintos hemisférios cerebrais. O hemisfério direito do cérebro comanda o lado esquerdo do corpo e o hemisfério esquerdo do cérebro comanda o lado direito. Em geral, verifica-se a dominância lateral do olho, mão e pé. »» Estruturação espaço-temporal: é uma conservação que permite à criança construir a sua realidade em uma dimensão espacial e temporal. Ocorre depois dos 7 anos, quando a criança começa a operar mentalmente e domina os conceitos de tempo e espaço. »» Praxia fina (visuomotricidade): é a habilidade em usar de forma eficiente os pequenos músculos, produzindo movimentos delicados e específicos. Este tipo de coordenação permite dominar o ambiente, pois especializa o movimento da 51 UNIDADE III | Compreensão das Dificuldades de Aprendizagem pinça (ato de pegar com os dedos) propiciando o manuseio de diferentes objetos, a saber: recortar, rasgar, escrever, acertar em um alvo, costurar, incluindo todos os movimentos que necessitam de precisão. . As dificuldades de aprendizagem consideradas secundárias, em geral, resultam de condições atípicas, desordens ou limitações passíveis de diagnóstico nos campos visual, auditivo, mental, motor, emocional ou de privação sociocultural. Elas são consideradas secundárias porque derivam de múltiplas deficiências que surgem, a posteriori, como transtornos nervosos, sensoriais, psíquicos ou mesmo socioculturais. Observa-se que as competências sensórias, intelectuais, motoras, sociais e emocionais da criança que apresenta uma DA secundária têm caráter desviante, ou seja, distanciam-se dos padrões desenvolvimentais regulares. Ao surgirem, as DAs secundárias costumam comprometer as aquisição da linguagem falada, escrita e quantitativa. As dificuldades de aprendizagem de ordem secundária apresentam alterações biológicas e orgânicas específicas, assim como transtornos comportamentais e emocionais evidentes. No rol das alterações biológicas e orgânicas podem surgir lesões cerebrais, paralisia cerebral, epilepsia e deficiência mental em distintos graus. O sistema sensorial também pode ser afetado gerando deficiência auditiva, hipoacusia, deficiência visual e ambliopia. Como consequência das causas biológicas, há também as DAs que afetam a habilidade de discriminação, a síntese mental e verbal e as competências de memória. Com relação às alterações de comportamento, há evidências de comportamentos disruptivos ou transtornos de conduta em parte da população com dificuldades de aprendizagem de ordem secundária, especialmente após os 13 anos, ou seja, no início da adolescência. Esse quadro caracteriza-se por padrões de comportamento que se repetem e pelos quais são violados os direitos de terceiros, as normas e regras sociais importantes e apropriadas à idade do sujeito. Evidenciam-se (a) conduta agressiva, que pode ocasionar ameaça ou dano físico a terceiros; (b) conduta não agressiva, porém geradora de danos a propriedades ou bens; (c) roubo, acompanhado ou não de sérias violações de regras; (d) comportamento provocativo, de ameaça ou intimidação, podendo incluir intimidação, luta ou uso de armas; (e) atos fisicamente cruéis com pessoas ou animais e (f) violência física e sexual. Os padrões emocionais das crianças com DAs secundárias também sofrem alterações e refletem condições intrínsecas que originam os impedimentos à aprendizagem, como, por exemplo, os quadros ansiosos da personalidade, transtornos obsessivo-compulsivos, neuroses e psicoses, como a esquizofrenia, o autismo infantil, entre outras. Pode ocorrer, também, a depressão infantil ou da adolescência, patologias que demandam um diagnóstico preciso e intervenção terapêutica. As crianças estão sujeitas a disfunções emocionais tanto quanto os adultos, mas em geral alimenta-se a crença de que na infância não existe “quadro nervoso” e os comportamentos atípicos que surgem tendem a ser compreendidos muito mais como falhas no sistema educacional parental do que um possível distúrbio emocional. A falta de informação, tanto da família quanto da escola, acerca dos problemas 52 Compreensão das Dificuldades de Aprendizagem | UNIDADE III emocionais que podem acometer uma criança termina por favorecer uma situação de diagnóstico pobre e baixa incidência de intervenção terapêutica e médica. Em decorrência desse tipo de conduta, abre-se campo fértil para a proliferação das dificuldades de aprendizagem de ordem secundária e também para o surgimento de problemas de relacionamento e interação escolar e social de um grande número de crianças. A sala de aula é um espaço de interações sociais bastante propício ao surgimento de situações psíquicas significativas que podem ser trabalhadas adequadamente, ou não, pelo professor. Se houver preparo docente de qualidade há chances de o professor minimizar conflitos e buscar ajuda especializada para auxiliar seus alunos que emitem comportamentos desviantes. Se não há preparo docente para lidar com situações do gênero, certamente haverá agravamento significativo das condições emocionais problemáticas dos indivíduos. Esse cenário pode potencializar o quadro de dificuldades emocionais, intrínsecas ou extrínsecas, ocasionando consequências que podem perdurar na vivência familiar e social do aluno. O psicopedagogo tem grandes contribuições a prestar em contextos desse tipo, mas também necessita estar apto e deter conhecimento consistente sobre o desenvolvimento emocional da criança para poder auxiliar. Quando falamos de dificuldades de aprendizagem secundárias, é interessante trocar o termo irregularidades de condutas por padrões de comportamentos desviantes. Esse cuidado é importante, pois os quadros que evidenciamos nas DAs secundárias é, em geral, bem mais comprometedor da saúde emocional e mental da criança do que nas DAs primárias. Sendo assim, as principais categorias de comportamentos desviantes que caracterizam as DAs secundárias são: 1. Condutas desviantes causadas por afecções biológicas: incluem patologias do sistema nervoso central, como as lesões cerebrais, a paralisia cerebral e a epilepsia. Também incluem deficiências sensoriais, como a auditiva, visual, hipoacusia etc. Esses padrões de comportamentos desviantes são originados por danos biológicos de natureza difusa e que comprometem gravemente o desempenho do sujeito nos processos de ensino e aprendizagem. 2. Problemas de comportamento: caracterizam-se por uma série de transtornos de conduta que têm sua origem em conflitos relacionais e interativos, além da presença de componentes genéticos e biológicos. Com relação aos problemas de comportamento, destacamos: »» Comportamento Reativo: corresponde a padrões de comportamentos atípico e desviante que surgem como reação a situações diversas, como stress, vivência de um trauma, quadro médico, forte impacto emocional, entre outros. O sujeito desenvolve comportamento reativo como forma de se proteger ou mesmo de lidar com a carga emocional vivenciada, podendo retornar ao estado anterior ou não. »» Neuroses: consiste em um distúrbio psicológico em que os sintomas expressam, simbolicamente, um conflito psíquico, comprometendo a relação entre o desejo e a defesa psíquica. Os quadros neuróticos não caracterizam dissociação da realidade por parte do sujeito. Entre as neuroses mais comuns, encontramos: (a) histerias e afins; (b) ansiedades; (c) fobias; (d) obsessões; (e) depressão; (f) transtorno obsessivocompulsivo (TOC); (g) síndrome do pânico e (h) transtornos alimentares (bulimia, anorexia). 53 UNIDADE III | Compreensão das Dificuldades de Aprendizagem »» Psicoses: transtorno psicológico cujo aspecto central é a perda do contato com a realidade, dependendo da intensidade da psicose. Quando não estão em crise, os psicóticos conseguem estabelecer padrões de interações regulares com o mundo real. Quando essa característica é alterada, o sujeito começa a relacionar-se com objetos e coisas inexistentes no “mundo real”, criando sua realidade paralela. Em geral, surgem os quadros de delírio, considerado pelos especialistas como um dos principais sintomas das psicoses. Um delírio psicótico consiste em uma convicção inabalável, incompreensível e absurda da realidade que o sujeito adota para si. Também estão presentes em quadros psicóticos as alucinações, o discurso desorganizado e comportamento catatônico. Entre as psicoses encontramos quadros de: (a) paranoia; (b) esquizofrenia; (c) autismo e (d) psicoses reativas. O CID-10 – Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde – Décima Revisão – Volume I, 2000 (http://www.datasus.gov.br/cid10/webhelp/cid10.htm acesso em 05/05/07) apresenta uma classificação mais complexa para os transtornos de aprendizagem e considera que suas etiologias não são exclusivamente psiconeurológicas e sim fruto de dimensões multifatoriais. No capítulo V – Transtornos Mentais e Comportamentais há um tópico (F 81, p. 365) que classifica e descreve os “Transtornos Específicos do Desenvolvimento das Habilidades Escolares”. Esse documento considera que: [...] os transtornos (específicos do desenvolvimento das habilidades escolares) são aqueles nos quais as modalidades habituais de aprendizado estão alteradas desde as primeiras etapas do desenvolvimento. O comprometimento não é somente a consequência da falta de oportunidade de aprendizagem ou de um retardo mental, e ele não é devido a um traumatismo ou doença cerebral. Fazem parte da categoria “Transtornos Específicos do Desenvolvimento das Habilidades Escolares (F81, pp. 365-6)”, de acordo com o CID, as seguintes subcategorias: F81.0 – Transtorno específico da leitura: comprometimento específico e significativo do desenvolvimento das habilidades de leitura, não atribuível à idade mental, a transtornos de acuidade visual ou escolarização inadequada. F81.1 – Transtorno específico da soletração: alteração específica e significativa do desenvolvimento da habilidade para soletrar, na ausência de antecedentes de um transtorno específico de leitura, e não atribuível à baixa idade mental, transtornos de acuidade visual ou escolarização inadequada. F81.2. – Transtorno específico de habilidades em aritmética: alteração específica da habilidade em aritmética, não atribuível a retardo mental global ou a escolarização inadequada. O déficit concerne mais ao domínio de habilidades computacionais básicas de adição, subtração, multiplicação e divisão. F81.3 – Transtorno misto das habilidades escolares: alteração significativa tanto do cálculo quando da leitura ou da ortografia, não atribuíveis a retardo mental global ou a escolarização inadequada. F81.8 – Outros transtornos do desenvolvimento das habilidades escolares: são incapacidades que surgem na aquisição da linguagem escrita e falada. 54 Compreensão das Dificuldades de Aprendizagem | UNIDADE III F81.9 – Transtornos não especificados do desenvolvimento das habilidades escolares não especificado: incapacidades de aprendizagem sem origem específica, aquisição de conhecimentos sem origem específica e transtorno de aprendizagem sem origem específica (p.366). Já o DSM.IV (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) define a dificuldade de aprendizagem como “transtornos da aprendizagem que são diagnosticados quando os resultados do indivíduo em testes padronizados e individualmente administrados de leitura, matemática ou expressão escrita estão substancialmente abaixo do esperado para sua idade, escolarização e nível de inteligência” (http://virtualpsy.locaweb.com.br/dsm.php, acesso em 05/05/07). . Os Transtornos da Aprendizagem podem persistir até a idade adulta quando não são tratados adequadamente. Eles incluem componentes como: baixa autoestima e déficits nas habilidades sociais. De acordo com o DSM IV, há evidência de que as taxas de evasão escolar de crianças e adolescentes com Transtornos da Aprendizagem são de, aproximadamente, 40%. Já os adultos com Transtornos da Aprendizagem podem ter dificuldades significativas no emprego ou no ajustamento social. Os Transtornos de Aprendizagem não podem ser considerados como variações normais na vida acadêmica do sujeito, em que encontramos quadros transitórios de dificuldades escolares. Fatores exógenos, como a baixa qualidade de ensino, situação de privação social e econômica, ausência de oportunidades de ensino e trabalho podem gerar dificuldades no processo de aprendizagem; entretanto, esses impedimentos não são considerados “transtornos de aprendizagem”, segundo o DSM IV. Estes últimos são sempre originários de déficits sensoriais, funcionamento intelectual comprometido e patologias diversas. De acordo com o DSM IV, os Transtornos de Aprendizagem (F81) incluem as seguintes subcategorias: F81.0-315.00 – Transtorno de Leitura: A característica essencial do Transtorno de Leitura consiste em um rendimento da leitura (correção, velocidade ou compreensão da leitura, medidas por testes padronizados administrados individualmente) substancialmente inferior ao esperado para a idade cronológica, a inteligência medida e a escolaridade do indivíduo (Critério A). A perturbação da leitura interfere significativamente no rendimento escolar ou em atividades da vida cotidiana que exigem habilidades de leitura (Critério B). Na presença de um déficit sensorial, as dificuldades de leitura excedem aquelas habitualmente associadas (Critério C). Caso esteja presente uma condição neurológica, outra condição médica geral ou outro déficit sensorial, estes devem ser codificados. Em indivíduos com Transtorno da Leitura (também chamado dislexia), a leitura oral caracteriza-se por distorções, substituições ou omissões. [...] F81.2 – 315.1 Transtorno da Matemática: A característica essencial do Transtorno da Matemática consiste em uma capacidade para a realização de operações aritméticas (medida por testes padronizados, individualmente administrados, de cálculo e raciocínio matemático) acentuadamente abaixo da esperada para a idade cronológica, a inteligência medida e a escolaridade do indivíduo (Critério A). A perturbação na matemática interfere significativamente no rendimento escolar ou em atividades da vida diária que exigem habilidades matemáticas (Critério B). Em presença de um déficit sensorial, as dificuldades na 55 UNIDADE III | Compreensão das Dificuldades de Aprendizagem capacidade matemática excedem aquelas geralmente a este associadas (Critério C). Caso esteja presente uma condição neurológica, outra condição médica geral ou déficit sensorial, isto deve ser codificado. Diferentes habilidades podem estar prejudicadas no Transtorno da Matemática, incluindo habilidades “linguísticas” (por ex., compreender ou nomear termos, operações ou conceitos matemáticos e transpor problemas escritos em símbolos matemáticos), habilidades “perceptuais” (por ex,. reconhecer ou ler símbolos numéricos ou aritméticos e agrupar objetos em conjuntos), habilidades de “atenção” (por ex., copiar corretamente números ou cifras, lembrar de somar os números “levados” e observar sinais de operações) e habilidades “matemáticas” (por ex., seguir sequências de etapas matemáticas, contar objetos e aprender tabuadas de multiplicação). [...] F81.8 – 315.2 – Transtorno da Expressão Escrita: A característica diagnóstica essencial do Transtorno da Expressão Escrita consiste de habilidades de escrita (medidas por um teste padronizado individualmente administrado ou avaliação funcional das habilidades de escrita) acentuadamente abaixo do nível esperado, considerando a idade cronológica, a inteligência medida e a escolaridade apropriada à idade do indivíduo (Critério A). A perturbação na expressão escrita interfere significativamente no rendimento escolar ou nas atividades da vida diária que exigem habilidades de escrita (Critério B). Em presença de um déficit sensorial, as dificuldades nas habilidades de escrita excedem aquelas geralmente a este associadas (Critério C). Caso esteja presente uma condição neurológica, outra condição médica geral ou déficit sensorial, isto deve ser codificado. Geralmente existe uma combinação de dificuldades na capacidade do indivíduo de compor textos escritos, evidenciada por erros de gramática e pontuação dentro das frases, má organização dos parágrafos, múltiplos erros ortográficos e caligrafia excessivamente ruim. Este diagnóstico em geral não é dado quando existem apenas erros ortográficos ou fraca caligrafia, na ausência de outros prejuízos na expressão escrita. Em comparação com outros Transtornos da Aprendizagem, sabe-se relativamente menos acerca dos Transtornos da Expressão Escrita e sobre seu tratamento, particularmente quando ocorrem na ausência de Transtorno da Leitura. À exceção da ortografia, os testes padronizados nesta área são menos acuradamente desenvolvidos do que os testes de leitura ou capacidade matemática, podendo a avaliação do prejuízo nas habilidades escritas exigir uma comparação entre amostras amplas do trabalho escolar escrito do indivíduo e o desempenho esperado para sua idade e QI. Este é especialmente o caso de crianças pequenas, das séries escolares iniciais. Tarefas nas quais a criança é solicitada a copiar, escrever um ditado e escrever espontaneamente podem ser necessárias para o estabelecimento da presença e extensão deste transtorno. [...] F81.9 – 315.9 – Transtorno da Aprendizagem Sem Outra Especificação: Esta categoria envolve os transtornos da aprendizagem que não satisfazem os critérios para qualquer Transtorno da Aprendizagem específico, podendo incluir problemas em todas as três áreas (leitura, matemática, expressão escrita) que, juntos, interferem significativamente no rendimento escolar, embora o desempenho nos testes que medem cada habilidade isoladamente não esteja acentuadamente abaixo do nível esperado, considerando a idade cronológica, a inteligência medida e a escolaridade apropriada à idade do indivíduo (http://virtualpsy. locaweb.com.br/dsm.php, acesso em 05/05/07). 56 Compreensão das Dificuldades de Aprendizagem | UNIDADE III Para finalizar este capítulo é importante sinalizar a opção aqui feita por compreender as dificuldades de aprendizagem sob a ótica psicopedagógica, ou seja, enfatizando os aspectos escolares como eixos de entendimento dos impedimentos à aprendizagem. Entretanto, o psicopedagogo que pretende atuar em instituições escolares, além de uma forte e consistente visão psicopedagógica das DAs, deve possuir também conhecimentos abrangentes sobre esse tema, o que inclui a perspectiva psicológica e médica destacada pelas classificações do CID e do DSM IV. 57 referências ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE DISLEXIA, <http://www.dislexia.org.br/>, acesso em 2/5/2007. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DO TRANSTORNO DE DÉFICIT DE HIPERATIVIDADE, <http://www.tdah.org.br/oque01.php>, acesso em 2/5/2007. ATENÇÃO COM Catarino, Maria Cristina. Ferramentas estatísticas básicas para o gerenciamento de processos. Belo Horizonte: Fundação Cristiano Otoni, Escola de Engenharia da UFMG, 1995. (série Ferramentas da qualidade) CID-10 – Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde. Décima Revisão – Volume I, 2000, <http://www.datasus.gov.br/cid10/webhelp/cid10.htm>, acesso em 5/5/2007. DROUET, R. C. R. Distúrbios da aprendizagem. São Paulo: Ática, 1995. DSM. IV, DIAGNOSTIC AND STATISTICAL MANUAL OF MENTAL DISORDERS, <http://virtualpsy. locaweb.com.br/dsm.php>, acesso em 5/5/2007. FICHTNER, N. Distúrbios de aprendizagem – aspectos psicodinâmicos e familiares. Em B. J. L. Scoz, E. Rubinstein, E. M. M. Rossa & L. M. C. Barone (Orgs.). Psipedagogia. O caráter interdisciplinar na formação e atuação profissional (pp.56-65). Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. FONSECA, V. Dificuldades de aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. GARCÍA, J. N. Manual de Dificuldades de Aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 1998. PARENTE, S. M. B. A; RANNÃ, W. Dificuldades de aprendizagem: Discussão crítica de um modelo de atendimento. Em B. J. L. Scoz, E. Rubinstein, E. M. M. Rossa & L. M. C. Barone (Orgs.). Psicopedagogia. O caráter interdisciplinar na formação e atuação profissional (pp.48-55). Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. PERRENOUD, P. Sucesso na escola: só o currículo, nada mais que o currículo! Cadernos de Pesquisa, 2003, n.119, pp. 9-27. ZORZI, J. L. Dificuldades na leitura e escrita. Contribuições da fonoaudiologia. Psicopedagogia, 13 (29), 15-23, 1994. 58 | REFERÊNCIAS WERNECK, Hamilton. Como encantar alunos da matrícula ao diploma. 3.ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. XAVIER, Antonio C. da R.; AMARAL SOBRINHO, José. Como elaborar o Plano de Desenvolvimento da Escola: aumentando o desempenho da escola por meio do planejamento eficaz. 2.ed. Brasília: Programa FUNDESCOLA, 2006. XAVIER, Antônio Carlos Ressurreição et al. Gestão escolar: desafios e tendências. Brasília: IPEA, 1994. <http://www.eps.ufsc.br/disserta98/lessa/cap2.htm>, acesso em: 8/2/2007. 59 GLOSSÁRIO Aprendente – Neologismo derivado de uma expressão argentina que significa “aquele que aprende”. Biopsicossocial – Expressão que significa a interação das dimensões biológicas, psicológicas e sociais de um dado fenômeno. Coparticipativo – Pressupõe a participação coletiva e/ou de mais de um sujeito. O prefixo “co” significa contigüidade, companhia. Concepções Socioconstrutivistas – abordagens teóricas que compreendem os processos de desenvolvimento humano a partir de determinantes sociais, históricos e culturais, considerando a ação do sujeito na construção das rotas desenvolvimentais. Conduta Desviante – Comportamento que se afasta de um padrão de regularidade esperado para a idade, etapa desenvolvimental e estado emocional. Desejos inconscientes – Expressão oriunda da Psicanálise e que diz respeito aos desejos não manifestos do sujeito, por estarem em uma dimensão inconsciente. Disfunção Cerebral Mínima – Funcionamento irregular cerebral que gera um quadro caracterizado por crianças com inteligência próxima ou superior à média, com problemas de aprendizado e/ou certos distúrbios de comportamento de grau leve à severo, associados a discretos desvios de funcionamento do Sistema Nervoso Central, SNC. Não há como evidenciar esta disfunção em exames neurológicos. Discalculia – É uma desordem neurológica específica que afeta a habilidade de uma pessoa de compreender e manipular números. A discalculia pode ser causada por um déficit de percepção visual. O termo Discalculia é usado com relação à inabilidade de executar operações matemáticas ou aritméticas, mas é definido por alguns profissionais educacionais como uma inabilidade mais fundamental para conceitualizar números como um conceito abstrato de quantidades comparativas. Disgrafia – A disgrafia é uma dificuldade que se expressa por meio da famosa “letra feia”. Acontece devido a uma incapacidade do sujeito em recordar a grafia da letra. Ao tentar recordar este grafismo, o indivíduo escreve lentamente, o que acaba unindo inadequadamente as letras, tornando a letra ilegível. Algumas crianças com disgrafia possuem, também, uma disortografia amontoando letras para esconder os erros ortográficos. Esta disfunção não está associada a nenhum tipo de comprometimento intelectual. 60 Dislalia – Transtorno articulatório, que se caracteriza por acréscimos, distorções, inversões, omissões e ainda troca de fonemas causados por desordens funcionais dos órgão periféricos da fala. As Dislalias classificam-se em Dislalia Fisiológica, Funcional, Social ou Cultura, Audiógena e, ainda, Dislalia Orgânica | glossário Dislexia – É uma disfunção neurológica que apresenta como consequência dificuldades na leitura e escrita. Consiste, também, em uma dificuldade específica que afeta a aprendizagem da decodificação do sistema verbal escrito, classificada entre as disfunções da linguagem, mais especificamente da linguagem escrita. Disortografia – É uma disfunção na linguagem escrita. A característica principal de um sujeito com disortografia consiste na confusão de letras, sílabas, palavras e trocas ortográficas já conhecidas e trabalhadas no processo de educação formal. Distúrbios Psiconeurológicos – Consistem no mau funcionamento de funções psicológicas e neurológicas que mantêm relações de interdependência. EEG – Exame neurológico denominado “eletroencefalograma”, em que o paciente (sedado ou não) fica com uma série de fios ligados à sensores que são colados na região da cabeça e, através de aparelho, um gráfico mostra o ritmo das ondas cerebrais, impresso num papel. O resultado impresso é então interpretado pelo neurologista e/ou psiquiatra e determina se há algum tipo de disfunção no sistema neurológico. Ensinante – Neologismo derivado de uma expressão argentina que significa “aquele que ensina”. Extrínseca – Que é exterior; não pertencente à essência de uma coisa. Gênese das DAs – Gênese, neste sentido, diz respeito à origem, surgimento das DAs. Hiperatividade – O Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) é um transtorno neurobiológico, de causas genéticas, que aparece na infância e frequentemente acompanha o indivíduo por toda a sua vida. Ele se caracteriza por sintomas de desatenção, inquietude e impulsividade. Insight – Em inglês, significa “olhar para dentro” Compreensão repentina, em geral intuitiva, de suas próprias atitudes e comportamentos, de um problema, de uma situação. Interpsíquica – Expressão que significa “entres psiques”, ou seja, função psicológica que se desenvolve na relação com outras psiques, ou estados psicológicos. Intrapsíquica – Expressão que significa “dentro da psique”, ou seja, diz respeito aos processos psicológicos que ocorrem no interior da psique do sujeito. Intrínseca – Que está dentro de uma coisa ou pessoa e lhe é próprio; interior, íntimo. Lateralidade – Que é lateral. Diz respeito à dominância que os hemisférios cerebrais exercem em cada lado do organismo. Mediação – Conceito da psicologia sócio-histórica que representa o elemento que se interpõe entre o sujeito e o objeto da experiência. O homem tem uma relação mediada com o mundo, ou seja, sua experiência não se dá de forma direta com os objetos e coisas da natureza, como acontece com os animais, mas mediante a intervenção de um outro que dá sentido e significado a esta experiência. Molar – Relativo a mol, molécula, um, único. 61 glossário | Paradigma – Modelo, padrão que representa um corpo de ideias, crenças, valores, saberes, habilidades e competências. Pensamento Causal – Modelo de pensamento em que se estabelece uma relação de causa e efeito entre as partes. Pensamento dialético – Modelo de pensamento em que se estabelecem relações antagônicas entre as partes, tendo como resultado sínteses elaboradas a partir de teses e antíteses. Ponto Nodal – Nodal diz respeito a nó. Ponto nodal significa o ponto central. Ponto Nevrálgico – Nevrálgico diz respeito a nervo. Ponto nevrálgico significa o ponto mais sensível. Praxia – Expressão que significa “ação” e diz respeito às ações motoras, em geral. Psicogeno – Fenômeno que tem origem psicológica e/ou emocional. Psicopedagogia Clínica – Campo de intervenção curativa psicopedagógica em que o foco é o sujeito com problemas de aprendizagem. A Psicopedagogia Clínica deve ser realizada por profissionais com especialização clínica, de preferência, no âmbito do atendimento individualizado. Psicopedagogia Institucional – Campo de intervenção preventiva psicopedagógica em que o foco é o contexto escolar onde surgem dificuldades de aprendizagem. A Psicopedagogia Institucional é realizada por especialistas formados em cursos de pós-graduação em Psicopedagogia. Sintoma – Qualquer fenômeno de caráter subjetivo provocado no organismo por uma disfunção ou doença, e que, descritos pelo paciente, auxiliam, em grau maior ou menor, a estabelecer um diagnóstico. Sinal, indício. Taxonomia – Sistema de classificação. Vicariante – Que faz às vezes de outrem ou de outra coisa. Diz-se do poder exercido por delegação de outrem. No sentido empregado no texto, vicariante diz respeito ao reforço ou desejo de imitação a partir da experiência de outrem. Visão Interacionista – Compreensão de um processo a partir da interação de dois ou mais fatores. Unívoco – Diz-se de palavra, conceito ou atributo que se aplica a sujeitos diversos de maneira absolutamente idêntica. Que só comporta uma forma de interpretação. Que é homogêneo, uníssono ou homônimo. 62