FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS
ESCOLA BRASILEIRA DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
CENTRO DE FORMAÇÃO ACADÊMICA E PESQUISA
CURSO DE MESTRADO EM ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
TÍTULO
O IMPACTO DE REESTRUTURAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO NA GESTÃO
INTEGRADA DO SETOR DE ENERGIA ELÉTRICA: ANÁLISE DO SETOR A
PARTIR DA ABORDAGEM DE REDES
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO APRESENTADA POR
ALKETA PECI
E
APROVADA EM (OUTUBRO DE 2000)
PELA COMISSÃO EXAMINADORA
Prof. ENRIQUE JERÔNIMO SARAVIA
Prof. BIANOR SCELZA CAVALCANTI
Prof. Dr. CARLOS RAUL BORENSTAIN
1
RESUMO
O setor de energia elétrica brasileiro vem passando por profundas transformações. A
restruturação caracteriza-se principalmente pela passagem de um sistema verticalizado e
coordenado centralmente pelo Estado, para um sistema horizontal, com características de uma
rede, na qual organizações como a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) - o novo
órgão regulador - , o Mercado Atacadista de Energia Elétrica (MAE), o Operador Nacional de
Sistema Elétrico (ONS), Eletrobrás e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social (BNDES) são designadas como os principais integradores do sistema. O objetivo do
presente trabalho foi analisar a influência dos processos de reestruturação e privatização na
integração do sistema brasileiro de energia elétrica. Buscou-se construir a análise a partir de
instrumentos oferecidos pela própria abordagem de redes. Os resultados da pesquisa mostram
que o setor brasileiro de energia elétrica ainda não pode ser considerado como uma rede
altamente integrada. Na nova configuração horizontalizada do setor, os atores sociais estão
afirmando seus papéis, funções e objetivos, enquanto as organizações-chave como ANEEL,
ONS, MAE, Eletrobrás, e BNDES estão se estruturando para fortalecer seu papel integrador.
ABSTRACT
The Brazilian energetic sector is passing through deep transformations. The restructure is
mainly characterized by the passage from a vertical and centrally coordinated system, in
hands of the State, to a more horizontal one, with characteristics of a network, in which
organizations, such as the National Agency of Electric Energy (ANEEL), the new regulator
entity, the Wholesaler Market of Electric Energy (MAE), the National Operator of Electric
System (ONS), Eletrobrás and the National Bank of Economic and Social Development
(BNDES) are designated as the principals integrators of the system. The objective of the
present work was to analyze the influence of the privatization and restructuring processes in
the integration of the Brazilian system of electric energy. The analysis was based on the
instruments offered by the network approach. The results of the research show that the
Brazilian sector of electric energy cannot be considered as a highly integrated network. In this
new horizontal configuration, the social actors are affirming its roles, functions and
objectives, while the key-organization like ANEEL, ONS, MAE, Eletrobrás, and BNDES are
being structured to strengthen its integrative role.
2
SUMÁRIO
1. O PROBLEMA............................................................................................................................ 5
1. 1 Introdução ............................................................................................................................. 5
1.2 Objetivos .............................................................................................................................. 10
1.3 Delimitação do estudo......................................................................................................... 11
1.4 Relevância do estudo........................................................................................................... 12
1.5
Metodologia .................................................................................................................... 13
1.5.1 Universo e amostra ...................................................................................................... 14
1.5.2 Seleção dos sujeitos..................................................................................................... 15
1.5.3 Coleta de dados............................................................................................................ 15
1.5.4 Tratamento de dados................................................................................................... 16
1.5.5 Limitações do método ................................................................................................. 17
2. PENSAR E AGIR EM REDE: IMPLICAÇÕES NA GESTÃO DAS POLÍTICAS
PÚBLICAS .................................................................................................................................... 18
2.1. Redes como marcas da era da informação ..................................................................... 18
2.2. Esclarecimento dos conceitos ......................................................................................... 20
2.2.1
Redes enquanto instrumentos de análise .............................................................. 21
2.3. Redes na gestão pública .................................................................................................. 23
2.4. Fatores que influenciam na emergência de redes na gestão de políticas públicas ...... 25
2.4.1.
Mudança de paradigma .......................................................................................... 25
2.4.2.
Crise do Estado de Bem-Estar Social.................................................................... 26
2.4.3
Descentralização e seu impacto nas relações interorganizacionais................... 30
2.5. O setor de energia elétrica brasileiro analisado a partir da abordagem de redes......... 31
3. EVOLUÇÃO DO SETOR DE ENERGIA ELÉTRICA: CARACTERÍSTICAS DA
INTERVENÇÃO ESTATAL ....................................................................................................... 33
3.1. O setor de energia elétrica antes da intervenção estatal................................................ 33
3.2. Começo da intervenção estatal no setor de energia elétrica.......................................... 36
3.2.1 A evolução do setor de energia elétrica durante o Governo Vargas ...................... 38
3.2.2 Duas orientações para o desenvolvimento: a consolidação da corrente
nacionalista ............................................................................................................................ 41
3.3. Principais características do modelo estatal................................................................... 50
3.3.1 Política nacional de energia e o papel da Eletrobrás............................................... 50
3.3.2
Planejamento do setor............................................................................................. 52
3
3.3.3
O setor em nível operacional: formas de cooperação entre as empresas .......... 55
3.4. Crise e mudanças para o setor de energia elétrica ......................................................... 58
4. RESTRUTURAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO DO SETOR DE ENERGIA ELÉTRICA ..... 63
4.1. Neoliberalismo e processo de privatização no Brasil.................................................... 63
4.2. Implicações para o setor de energia elétrica .................................................................. 66
4.3. Coopers & Lybrand: proposta do modelo de reestruturação do setor.......................... 73
5. CRIAÇÃO DO AMBIENTE COMPETITIVO E DO MARCO REGULATÓRIO:
ANÁLISE DAS MUDANÇAS A PARTIR DA PERSPECTIVA DE REDES........................ 78
5.1 O setor de energia elétrica a partir da abordagem de redes .............................................. 78
5.2
Política Nacional de Energia Elétrica............................................................................. 82
5.2.1
O papel dos Governos Estaduais............................................................................ 90
5.3. Agencia Nacional de Energia Elétrica............................................................................ 91
5.3.1
A agência vista sob a perspectiva de redes............................................................ 95
5.3.2 Re-configuração da rede de relações da ANEEL................................................... 107
5.4. Mercado Atacadista de Energia Elétrica – MAE......................................................... 108
5.4.1
Análise do MAE a partir da abordagem de redes .............................................. 112
5.5. Operador Nacional do Sistema ..................................................................................... 113
5.5.1
Análise do ONS a partir da abordagem de redes ............................................... 115
5.6. Planejamento e financiamento no novo modelo: o papel da Eletrobrás e BNDES... 118
6. CONCLUSÕES E SUGESTÕES........................................................................................... 123
7. BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................. 144
4
CAPÍTULO1
1. O PROBLEMA
Neste capítulo será abordado o problema que serviu como base do trabalho da pesquisa
desenvolvida. A introdução seguir-se-á pela formulação do problema e serão destacados os
principais objetivos da pesquisa. Paralelamente, destacar-se-á a delimitação do estudo, assim
como a sua relevância.
1. 1 Introdução
O presente trabalho de pesquisa objetiva analisar as recentes transformações do setor de
energia elétrica brasileiro a partir da abordagem de redes. Tenta-se responder à seguinte
indagação: Qual é o impacto dos processos de privatização e restruturação no grau de
integração do sistema de energia elétrica?
Analisar a partir da abordagem de redes, significa reconhecer a interdependência
organizacional. Entretanto, a análise enfoca não apenas as organizações que compõem um
sistema - tal como sistema de energia elétrico brasileiro - mas também as relações que estas
organizações estabelecem com outros atores sociais, sejam estes organizações, sejam grupos
sociais. Amplamente utilizada nos últimos anos, a teoria de redes abre espaço para a análise
das políticas públicas e das estruturas utilizadas para colocá-las em prática.
Para isto, um dos capítulos do presente trabalho dedica-se a esta abordagem, tentando destacar
o uso das redes na análise das políticas públicas: como instrumentos de análise e como forma
de configuração e explicação da realidade complexa.
São apresentadas, também, as causas que levaram ao surgimento desta forma de análise.
Aponta-se a mudança de paradigma, uma nova visão que, em vez da fragmentação, objetiva a
5
análise da complexidade dos sistemas. A abordagem de redes lida melhor com esta
complexidade - característica principal das políticas públicas contemporâneas - e reconhece
que a racionalidade na qual se baseia a ação dos indivíduos e organizações é limitada para
lidar com essa complexidade. Ressalta-se a crise do Estado de Bem-Estar Social, destacando o
impacto dos processos de democratização e participação, assim como o movimento em favor
do Estado Mínimo e o crescimento da demanda para políticas públicas. E, por fim, a
descentralização e seu impacto nas relações organizacionais se destacam.
O capitulo termina abordando as principais razões que justificam o uso desta abordagem para
a análise do setor de energia elétrica brasileiro.
As transformações pelas quais está passando o setor de energia elétrica brasileiro são bastante
recentes. Por vários anos, o setor caracterizou-se por uma forte intervenção estatal e um
modelo de gestão e controle centralizador nas mãos do Estado. O modelo, conseqüência da
política intervencionista que começou a expandir-se em meados do século XX, objetivava a
superação das falhas do mercado e a promoção da industrialização. O governo começou a
intervir diretamente, através de investimentos em diversos setores estratégicos, e
indiretamente, controlando e interferindo nos impostos, na taxa de câmbio e nas importações e
exportações.
O terceiro capítulo deste trabalho concentra-se na análise da trajetória e das principais
características do setor brasileiro de energia elétrica, durante o período de intervenção estatal,
considerando que, ao lado das razões econômicas, ideológicas e políticas, o desenvolvimento
do setor de energia elétrica foi também influenciado pelas dimensões continentais do Brasil e
seu amplo potencial hidro-energético. As consideráveis economias de escala resultantes da
construção de grandes usinas de energia, levaram à criação de um sistema de transmissão de
energia interligado, no qual as empresas públicas compartilhavam os custos das linhas de
6
transmissão. O considerável custo do capital investido nesse processo fez com que a
cooperação, e não a competição, fosse considerada como a melhor opção para as empresas.
Organizações como o Grupo de Coordenação da Operação Interligada (GCOI), controlador do
sistema centralizado, criado em 1973 e o Grupo de Coordenação para o Planejamento do
Sistema Elétrico (GCPS), órgão planejador do setor, criado em 1982, desempenharam um
papel importante na coordenação do setor. Através desse processo centralizado de controle da
operação e planejamento, tornou-se possível criar um sistema de energia elétrica inteiramente
integrado.
A crise fiscal dos anos oitenta marca o começo de grandes transformações e mudanças
estruturais. A política de privatização no Brasil surge como parte importante do processo de
reformulação e recuperação da capacidade de investimento e gerenciamento do Estado e, por
indução do próprio setor privado. O Estado retira-se das áreas onde a sua participação não se
considera essencial, atuando como regulador e fiscalizador dos serviços públicos, que
deslocam-se às mãos do setor privado.
O setor de energia elétrica, que já contou com mais de 1.500 empresas de capital privado no
final da década de trinta, passa também por grandes transformações e atualmente vive uma
fase de profundas mudanças. O quarto capítulo deste trabalho apresenta estas transformações
e como elas vêm sendo colocadas em prática.
Os processos de reestruturação e privatização tiveram início em 1995, com a decisão de
incluir o setor de energia elétrica no Programa Nacional de Desestatização. Em 1996, foi
contratada a consultora inglesa Coopers & Lybrand, que apresentou, no final de 1998, um
relatório final, resultado de uma intensa colaboração com técnicos brasileiros e com a equipe
do governo. Paralelamente, várias leis foram aprovadas, com o objetivo de criar o arcabouço
legal facilitador desse processo.
7
Para acompanhar a retirada do Estado do setor, criou-se o órgão regulador do sistema de
energia elétrica: Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), destinada a regulamentar e
fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica.
Outras organizações desempenham papéis centrais na coordenação e integração do setor. O
Operador Nacional do Sistema é uma entidade privada, responsável pela coordenação e
controle da operação das instalações de geração e transmissão de energia elétrica nos sistemas
interligados brasileiros. O Mercado Atacadista de Energia é o ambiente em que se processam
a compra e venda de energia elétrica através de contratos bilaterais e de contratos de curto
prazo, regulado por contrato multilateral chamado Acordo de Mercado. Na área de
planejamento e financiamento, a Eletrobrás e o BNDES vêm definindo seus papéis.
Com a privatização, perde-se o controle e a gestão centralizada do sistema – previamente nas
mãos do Estado – que tinha permitido alcançar um grau invejável de integração e interligação.
Os atores sociais que compõem o setor de energia elétrica se multiplicaram e os esforços para
coordenar e integrar este sistema devem ser redobrados. Muda radicalmente o perfil dos
atores participantes da rede, que passam a ser: as concessionárias públicas e privadas, os
representantes do governo e os cidadãos-consumidores dos serviços de energia.
O objetivo do último capítulo deste trabalho é a utilização da abordagem de redes para a
análise da nova configuração do setor. Faz-se uso desta abordagem não apenas como forma de
representação e configuração da complexidade do setor, mas também utilizando os
instrumentos de análise que esta abordagem oferece.
Mostrando um certo esgotamento da capacidade de integração e eficácia das organizações
burocráticas e do sistema de planejamento centralizado, a abordagem de redes aponta para um
outro caminho de formulação e implementação das políticas públicas. Ele se baseia numa
articulação menos hierárquica e estruturada de vários atores, organizações governamentais,
8
privadas e sem fins lucrativos e representantes da sociedade, que, apesar de funcionarem
como organizações separadas e com objetivos próprios, integram os seus esforços em prol de
um objetivo comum.
Sem dúvida, os processos de reestruturação e privatização influenciam o grau de integração
dos agentes no setor brasileiro de energia elétrico, mudam os objetivos das políticas públicas e
as organizações designadas para colocá-las em prática. As concessionárias não são mais
administradas e controladas por um único dono – o Estado – e a racionalidade das empresas
privadas é bastante diferenciada. Paralelamente, a sociedade civil pressiona para melhores e
maiores prestações de serviços públicos.
Para que a nova rede de energia elétrica seja considerada integrada, algumas condições
necessárias – mas não suficientes – devem existir. Os novos agentes do sistema devem
conhecer os objetivos das políticas públicas, as organizações designadas como chave para a
integração do setor, seu papel e objetivos, assim como concordar com estes últimos e avaliar
positivamente as relações estabelecidas entre si.
Deste modo, a abordagem de redes mostra seu potencial como instrumento de análise. Na
tentativa de analisar as redes sociais e os atores que a compõem, vários estudos
desenvolveram uma série de instrumentos para orientar a investigação. Por meio de conceitos
como a densidade da rede, centralidade, formalização, etc., procura-se analisar as redes e o
papel que algumas organizações e atores sociais desempenham dentro dessas redes.
No decorrer da pesquisa de campo, tentou-se estabelecer contatos com representantes de todos
os agentes do setor, visando ter uma visão multilateral, apontar as contradições e as
concordâncias, os pontos de integração e de desintegração da rede. O levantamento
bibliográfico e telematizado permitiu identificar as organizações designadas como chave para
o funcionamento do sistema e criar uma rede teórica da nova configuração do setor.
Para
9
confrontar este modelo teórico com a concepção dos próprios agentes do setor, questionários
foram distribuídos e entrevistas foram realizadas com representantes desses agentes.
Adiantando algumas das conclusões da pesquisa, observou-se que apesar de se conhecer a
existência da maioria das organizações integradoras do sistema, ainda existem discordâncias
com relação aos seus papéis e objetivos, assim como ainda existem conflitos em termos de
políticas públicas no setor. É possível concluir que o grau de integração do setor de energia
elétrica brasileiro ainda é baixo e que ainda não se criaram as condições necessárias para a
existência de uma rede de energia elétrica, ao considerar este conceito no âmbito das relações
interorganizacionais.
1.2 Objetivos
No projeto de pesquisa, a autora apresentou os seguintes objetivos:
O
Obbjjeettiivvoo pprriinncciippaall
F Identificar, com base na abordagem de redes, a influência dos processos de restruturação e
privatização na integração do sistema brasileiro de energia elétrica.
O
meeddiiáárriiooss
Obbjjeettiivvooss iinntteerrm
F Examinar a abordagem de redes sociais e mostrar o seu potencial teórico;
F Apresentar a evolução do sistema interligado de energia elétrica no Brasil;
F Discutir as recentes transformações no setor decorrentes da implementação de medidas de
privatização e reestruturação do setor;
F Apresentar a nova configuração do setor brasileiro de energia elétrica sob a ótica de redes;
Analisar as relações interorganizacionais entre o Operador Nacional do Sistema, a Agência
Nacional de Energia Elétrica, a Eletrobrás e as novas concessionárias do sistema.
Somente o último objetivo sofreu algumas alterações no decorrer do trabalho. Com base na
pesquisa bibliográfica e de campo, chegou-se na conclusão que outras organizações como o
Mercado Atacadista de Energia e o BNDES estão desempenhando um papel integrador no
10
novo modelo do setor. Por isso, incluíram-se no objeto da pesquisa também essas
organizações.
1.3 Delimitação do estudo
Como se reconheceu no decorrer do projeto, seria muito difícil analisar numa pesquisa todos
os aspectos que influenciam o objeto de estudo. A realidade é muito complexa para ser
analisada em sua totalidade, e a abordagem de redes reconhece essa complexidade. A análise
das múltiplas relações que se estabelecem entre os atores sociais que compõem a rede - objeto
de estudo (o setor de energia elétrica) - requereria um tempo mais amplo de que a pesquisa
não dispõe.
Com o auxílio de alguns instrumentos oferecidos pela análise de redes, buscou-se analisar a
nova configuração do setor, destacando os atores sociais que a compõem e o papel de cada um
deles. Embora a pesquisa tenha se concentrado na análise das relações interorganizacionais
que se estabelecem entre as empresas integradoras do sistema (como a Agência Nacional de
Energia Elétrica-ANEEL, o Operador Nacional do Sistema-ONS, o Mercado Atacadista de
Energia-MAE, o BNDES e a Eletrobrás) e as concessionárias do setor de energia elétrica,
reconheceu-se que esses são apenas alguns dos atores que compõem a rede, ao lado de
representantes do governo e dos consumidores (representantes da sociedade). Por meio da
pesquisa bibliográfica e do acompanhamento dos principais eventos do setor (Congressos,
Seminários e outros encontros), em que participaram representantes de todos esses agentes,
tentou-se preencher esta lacuna. Por exemplo, os dados de uma pesquisa recente realizada em
nível nacional pelo Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe) foram
utilizadas para analisar as relações que a ANEEL está estabelecendo com os usuários dos
serviços públicos de energia.
11
1.4 Relevância do método
Os recentes processos de privatização e reestruturação do setor de energia elétrica estão
mudando profundamente o modelo organizacional e gerencial do setor. O Estado perde cada
vez mais o papel central, abrindo espaço para uma maior participação do setor privado e da
sociedade. Ele não consegue continuar a ser o único formulador e executor das políticas
públicas, e os processos em favor de uma maior democratização, descentralização e
privatização fazem com que outros atores sociais participem cada vez mais dessas políticas.
Teoricamente, passa-se de um modelo hierárquico centralizado para um modelo em rede, na
qual coexistem vários atores sociais, integrados por meio de leis e organizações focais
(integradoras). As redes são estruturas de interdependência, que envolvem várias
organizações ou suas partes. Nesta estrutura, a unidade não é simplesmente o subordinado
formal dos outros num arranjo hierárquico mais amplo. A importância dessa nova
configuração vem se reconhecendo cada vez mais, sendo que existem desafios e problemas
que não podem continuar a ser resolvidos através de uma análise das partes que faça perder de
vista os objetivos principais de uma política pública da natureza da estudada, dependente de
complexos arranjos organizacionais e institucionais.
Apesar dos escândalos, problemas e desapontamentos, os processos de privatização em todas
as áreas continuam e as parcerias entre o setor público e privado crescem cada vez mais. O
exemplo do setor de energia elétrica encaixa-se nessa nova visão. Os processos de
privatização e reestruturação do setor estão redefinindo o papel do Estado, do setor privado e
da sociedade. Políticas públicas que tratam de assuntos complexos e desafiadores (como no
caso deste setor) têm maior probabilidade de adotar uma estrutura em rede para serem
executadas, deixando de lado mecanismos de coordenação baseados na hierarquia ou,
simplesmente, a mão invisível do mercado. No entanto, o processo está apenas começando e,
12
na falta de uma cultura adequada e como conseqüência da adoção de modelos aplicados por
outros países, vários erros podem ser identificados.
Paralelamente, a análise está enfocada nas transformações pelas quais vem passando um setor
de grande importância em termos nacionais, como o setor de energia elétrico brasileiro,
considerado chave para o desenvolvimento econômico e social.
Por isso, torna-se necessária a contribuição do pesquisador acadêmico, ao testar e verificar a
validade e a aplicabilidade desse novo modelo organizacional e de gestão baseado em redes,
visando contribuir para a análise dessa nova forma contemporânea organizativa e de gestão
classificada por vários atores como marco principal da era de informação 1.
1.5
Metodologia
Para responder às indagações apresentadas, foi realizada uma ampla pesquisa classificada,
com base na taxonomia apresentada por Vergara (1997), em:
Pesquisa exploratória: abordou o estudo do setor brasileiro de energia elétrica partindo da
abordagem contemporânea de redes, utilizando o potencial oferecido por essa última e,
paralelamente, tentando dar sua própria contribuição no fortalecimento de uma teoria;
Pesquisa descritiva: visou descrever a evolução do setor de energia elétrica e suas
características principais antes e depois dos processos de privatização e reestruturação;
Pesquisa metodológica: o referencial metodológico, oferecido pela abordagem de redes,
utilizou-se para analisar as bases de integração do setor.
Estudo de caso: tentou-se analisar o grau de integração do setor brasileiro de energia elétrica,
sob a nova configuração, decorrente dos processos de privatização e reestruturação, partindo
da abordagem de redes.
1
Ver Castells (1996); Lipnack & Stamps (1994)
13
Pesquisa bibliográfica: para a fundamentação teórico-metodológica da pesquisa realizou-se
uma ampla investigação sobre vários assuntos, como a abordagem de redes, evolução do setor
de energia elétrica e características atuais do setor.
Pesquisa telematizada: considerando que a reestruturação e privatização do setor elétrico
brasileiro está ainda em curso, recorreu-se ao uso de Internet visando a utilização de materiais
e estudos recentes sobre o tema em questão.
Pesquisa de campo: dados primários coletaram-se por meio de questionários fechados e
entrevistas abertas, direcionados aos principais atores sociais participantes do setor de energia
elétrica.
1.5.1 Universo e amostra
Sendo que a pesquisa foi baseada nos instrumentos da análise oferecidos pela abordagem de
redes, uma das primeiras questões consideradas tinha a ver com a delimitação das fronteiras
da rede, determinando assim o universo da pesquisa.
Nessa investigação, as fronteiras da rede foram delimitadas partindo de uma análise cuidadosa
das leis e os processos de privatização e reestruturação aplicados ao setor. Consequentemente,
foi possível destacar esses atores sociais participantes da rede: o governo; as empresas de
energia elétrica nos segmentos de geração, transmissão, distribuição, e comercialização
(destacando aqui as concessionárias privadas); os representantes dos cidadãos – usuários
desses serviços e as empresas focais (integradoras do setor): Agência Nacional de Energia
Elétrica, Operador Nacional do Sistema, Mercado Atacadista de Energia, Eletrobrás e Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. É importante destacar que outras
organizações fazem ou possam vir a ser parte dessa rede, que está ainda em fase de formação.
14
Considerando as limitações da pesquisa, deu-se maior ênfase à análise das relações
interorganizacionais estabelecidas entre as empresas focais (integradoras) do sistema e as
concessionárias privadas.
O tipo de amostragem utilizada foi por acessibilidade. Questionários foram distribuídos via
correio eletrônico para a maioria dos agentes institucionais do setor de energia elétrica
brasileiro. Num total de 40 (quarenta) questionários distribuídos, teve-se um retorno de 13
(treze) questionários, ou 32,5%.
Paralelamente, foram realizadas entrevistas com agentes institucionais do setor de energia
elétrica no Estado do Rio de Janeiro: a concessionária privada de distribuição Light, Furnas,
Eletrobras, Subsecretaria Estadual de Energia, e uma cooperativa rural de eletrificação em
Dourados, MS. A Cerj –prevista no projeto de pesquisa – foi excluída da amostra por não
conseguir-se estabelecer contatos.
1.5.2 Seleção dos sujeitos
Os sujeitos da pesquisa foram os executivos (representantes) de altos escalões destas
organizações, considerando-se que eles são os principais responsáveis pela política da
organização e pelo estabelecimento e a manutenção das relações interorganizacionais. Um
trabalho cuidadoso foi dedicado a identificação dos indivíduos mais adequados para responder
às entrevistas e questionários a serem aplicados.
1.5.3 Coleta de dados
Os dados foram selecionados por meio de:
Pesquisa bibliográfica em livros, revistas especializadas, jornais, teses e dissertações,
publicações especializadas do setor de energia elétrica e outras leituras pertinentes para o
15
assunto, visando verificar: o potencial oferecido pela abordagem de redes, a evolução do setor
de energia elétrica brasileiro, as principais características do setor e os recentes processos de
reestruturação e privatização;
Pesquisa telematizada em Internet, jornais eletrônicos (Ex. Brasil Energia On-line, Newsletter
da Eletrobrás; EFEI News etc.), para acompanhar as contínuas mudanças no setor e
paralelamente, os recentes desenvolvimentos dos estudos sobre redes. É importante destacar
que por meio desta pesquisa foram selecionados dados importantes para analisar o papel dos
usuários dos serviços públicos de energia elétrica;
Pesquisa de campo, com questionários fechados, baseados no modelo oferecido pelo Van de
Ven & Ferry (1980), foram direcionados aos representantes dos agentes institucionais do
setor, selecionadas no número especial da revista Eletricidade Moderna (julho de 1999).
Paralelamente, entrevistas semi-estruturadas foram realizadas com representantes da
Eletrobrás, ONS, LIGHT, ASEP/RJ (Agência reguladora estadual RJ), Subsecretaria de
Energia do Estado do Rio de Janeiro e CERGRAND (Cooperativa de Energização e
Desenvolvimento Rural da Grande Dourados Ltda), Mato Grosso do Sul, com objetivo de
aprofundar os assuntos anteriormente levantados.
1.5.4 Tratamento de dados
Os dados coletados foram tratados qualitativamente e quantitativamente. A análise qualitativa
tentou enfatizar as características estruturais da rede de energia elétrica, enfocando o papel e a
posição de todos os atores sociais participantes da rede. A análise quantitativa se concentrou
na análise dos dados obtidos por meio dos questionários fechados, destacando as principais
características ds relações interorganizacionais. É importante enfatizar que os dados coletados
por meio das pesquisas bibliográfica e telematizada, foram tratados com enfoque na
16
abordagem de redes, visando chegar em conclusões mais gerais sobre as características da
nova configuração do setor de energia elétrica.
1.5.5 Limitações do estudo
No entanto, é importante reconhecer, também, as limitações que a pesquisa apresentou. Como
se destacou no projeto, os sujeitos da pesquisa foram os executivos (representantes) de alto
escalão dessas organizações, partindo da consideração que eles sejam os principais
responsáveis pela política da organização e pelo estabelecimento e manutenção das relações
interorganizacionais. Para realizar a pesquisa de campo, foram distribuídos questionários e
realizadas entrevistas com representantes de vários agentes institucionais, na maioria dos
casos, a par das mudanças que o setor de energia elétrica vem atravessando. Por várias razões
- acessibilidade, falta de informação, pontos de vista econômicos, políticos e ideológicos
diferenciados - devemos reconhecer que nem todos os membros destas organizações têm as
mesmas informações ou compartilham as mesmas opiniões. Para isso, uma amostra de cinco
questionários foi distribuída no âmbito de uma mesma organização - no caso, a Furnas. De
fato, o grau de variabilidade nas respostas foi suficientemente alto, recomendo maior
prudência no uso das mesmas.
Outra limitação da pesquisa foi a sua concentração no Estado do Rio de Janeiro, um Estado
importante em termos nacionais e que reúne empresas importantes do setor de energia e
centrais na transformação do setor. Uma entrevista foi realizada também com representantes
de uma cooperativa de eletrificação rural em Dourados, MS, que mostrou um baixo nível de
conhecimento das mudanças que o setor vem passando.
Tais limitações apontam para a necessidade de estudos mais abrangentes na área.
17
CAPITULO 2
2. PENSAR E AGIR EM REDE: IMPLICAÇÕES NA GESTÃO DAS
POLÍTICAS PÚBLICAS
Neste capítulo apresentar-se-á a abordagem de redes e suas implicações na área de políticas
públicas. Apontar-se-ão os usos desta abordagem como forma de representação da realidade e
como instrumento de análise. Em seguida, serão ressaltadas as razões de surgimento de
interesse nesta área e o porquê de seu uso na análise do setor de energia elétrico brasileiro.
2.1.
Redes como marcas da era da informação
Uma das mais importantes mudanças nas funções administrativas deste fim de século é o
aumento profundo da interdependência organizacional. É por isso que as redes têm sido os
grandes laboratórios da gestão contemporânea.
Na opinião de Lipnack & Stamps (1994), três ondas dividem a humanidade em quatro grandes
épocas: a era nômade, a agrícola, a industrial e a de informação. Cada nova época de
civilização traz em si a sua forma principal de organização, o pequeno grupo caracterizava a
era nômade, a hierarquia cresceu com a agricultura, a burocracia nasceu na era industrial e a
era de informação está trazendo a rede, “(...) uma forma de organização, como a hierarquia e
a burocracia, um dos desenhos básicos que nós usamos para construir o nosso mundo
social” 2 (LIPNACK & STAMPS,1994:38). No entanto, cada forma organizacional constituise sobre as outras, incluindo o passado. Particularmente, as redes são inclusivas pela própria
natureza. Na era das redes, continuarão a existir hierarquias e burocracias, assim como
continuam a existir fazendas e fazendeiros nos dias de hoje.
O crescente recurso à interação em rede surge como uma estratégia para enfrentar as
turbulências e incertezas que caracterizam o ambiente contemporâneo, decorrentes do
18
crescimento da competitividade, crises e movimentos de restruturação, tanto na esfera pública
como na dos negócios (LOYOLA & MOURA, 1996).
De fato, a crise econômica dos anos setenta sinalizou o esgotamento do sistema de produção
em série e constituiu uma Segunda divisão industrial na história de capitalismo. Segundo
Castells (1996), o consumidor começou a demandar produtos com maior qualidade e
quantidade, os mercados se diversificaram, o ritmo das mudanças tecnológicas se acelerou e o
sistema de produção em série se mostrou rígido e custoso para as características da nova
economia. A primeira tendência da evolução organizacional foi a transição da produção em
série para a produção flexível, ou do fordismo para o pós-fordismo. A característica principal
do modelo pós-fordista de organização é a flexibilidade e a capacidade de inovação.
Começa um novo período, o pós-capitalista, no qual o emprego do conhecimento em si supera
em importância o controle do capital. O modelo pós-capitalista, ou a empresa de criação de
valor, funciona como uma rede de recursos muito mais diversificada, com fronteiras menos
perceptíveis do que as estruturas corporativas.
“A concentração de capital nas mãos de um só proprietário cede lugar a parcerias que
alavancam recursos, independentemente de quem tem a custódia deles. (...) a
combinação triangular de pessoas, tecnologia e conhecimento transcende o modelo
tradicional de trabalho-capital-gerenciamento” (ALBRECHT, 1994:48).
Essas mudanças se refletem também na área de gestão pública. Formas de cooperação entre
governo, empresas privadas e sem fim lucrativos e representantes da sociedade civil se
estabelecem para colocar em prática as políticas públicas em várias áreas. As redes, apesar de
serem mais flexíveis do que as empresas ou os governos, têm características estáveis, cujos
contornos são esculpidos pela lei, estruturas de financiamentos, normas e valores
compartilhadas pelos membros da rede.
2
Tradução nossa
19
No decorrer deste trabalho utilizar-se-á a abordagem de redes como instrumento para a análise
das políticas públicas no setor de energia elétrica e das estruturas concebidas para colocá-las
em prática.
2.2.
Esclarecimento dos conceitos
O conceito de redes é amplamente utilizado nos últimos anos3, mas, algumas vezes, em
contextos aparentemente contraditórios.
Segundo os representantes da “teoria de redes”, todas as organizações se situam em redes
sociais e devem ser analisadas como tais. Uma rede social tem a ver com um conjunto de nós
- pessoas, organizações etc. – vinculado a um conjunto de relações sociais de um tipo
específico – p. ex. amizade, transferência de fundos, etc. Como conseqüência, partindo dessa
perspectiva, a estrutura de qualquer organização deve ser entendida e analisada em termos de
redes múltiplas de relações (NOHRIA:1992).
Paralelamente, o ambiente operacional de uma organização pode ser visto também, como uma
rede de organizações, que podem ser fornecedores, distribuidores, agências reguladoras,
consumidores, usuários ou outras organizações e atores sociais. Os representantes da “teoria
da redes” ressaltam a importância das relações estabelecidas nessa rede de organizações,
considerando que as ações, atitudes e comportamentos dos atores de uma organização, podem
ser melhor explicados levando em conta a sua posição nessa rede de relações. Entretanto, as
próprias redes não são imutáveis. Elas encontram-se num processo de contínua mudança e
podem ser construídas, reproduzidas e alteradas como resultado das ações dos atores que a
compõem.
3
São vários os campos de utilização desses conceitos. Para um maior aprofundamento ver LOYOLA &
MOURA (1996).
20
Na verdade, a utilização do termo “organização ou empresa rede” não é adequado, embora
qualquer organização ou ambiente de negócios possa ser considerado como uma rede e,
consequentemente, ser analisado como tal4. No entanto, outros autores5 ressaltam que faz
sentido falar sobre redes, como uma forma distinta da atividade econômica coordenada, que
se opõe (e concorre) aos mercados e às hierarquias. Eles trazem exemplos de novas formas
organizacionais, projetadas para funcionar em rede, que estão proliferando em diversas
indústrias e chamam a atenção para alguns aspectos que, apesar de serem importantes em
qualquer organização, são mais visíveis nas chamadas organizações-rede.
Na opinião de Mandell (1999), uma estrutura em rede consiste numa colaboração ativa e
organizada de organizações públicas, privadas e sem fins lucrativos e/ou individuais,
destinada a alcançar um propósito (ou propósitos) estabelecido. As estruturas em rede6 podem
demandar ações separadas por parte de membros individuais, mas os participantes
transformam-se num novo conjunto, que visa tarefas mais amplas, as quais podem ser
alcançadas por meio de ações simultâneas de organizações que operam independentemente.
2.2.1
Redes enquanto instrumentos de análise
O conceito de redes é também utilizado como um instrumento importante de análise. A teoria
das redes sociais analisa as interações que se estabelecem entre os atores sociais, enfocando a
interdependência. Ela tenta observar como a posição de cada um dos atores na rede influencia
4
Considerando que uma organização-rede pode ser um tipo específico de organização, a simples existência de
uma rede de relações não é uma característica que a distingue. Todas as organizações são redes e a forma
organizacional depende das características particulares da rede. Por exemplo, uma rede caracterizada por uma
subdivisão hierárquica, com deveres e papeis rígidos, relações verticais, e por um aparelho administrativo
separado da produção é geralmente chamada de burocracia. Por outro lado, uma rede caracterizada por
flexibilidade, planificação e controle descentralizado e relações laterais, está mais próxima à imagem de uma
organização-rede.
5
Ver Bahram (1992), Bahram & Evans (1987), Nohria (1992), Powell (1987), Rowly (1997);
6
Os autores dividem suas opiniões sobre os mecanismos de coordenação em que as redes organizacionais se
baseiam. Segundo Miles & Snow (1987) e (1992) a coordenação se alcança através dos mecanismos de mercado.
No entanto, Jones, Hesterly & Borgatti (1997) ressaltam que os mecanismos sociais de coordenação encontramse na base das redes organizacionais e Mandell (1999) argumenta que as redes são baseadas em trocas que se
apoiam em relações interpessoais.
21
– criando oportunidades e limitações – o comportamento dos outros atores. Constitui, assim,
um importante referencial teórico e instrumental a fim de melhor entender a posição dos
atores sociais, com as recentes mudanças decorrentes dos processos em favor de privatização,
participação, democratização e descentralização.
Na tentativa de analisar adequadamente as redes, vários autores utilizam e desenvolvem uma
série de instrumentos que orientam a investigação. Rowley (1997) destaca duas características
das redes: a densidade e a centralidade. A densidade é uma característica da rede e é calculada
como uma proporção do número de relações que existem numa rede, comparadas com o
número total de relações possíveis, se todos os membros da rede se relacionassem com cada
um dos outros.
Este tipo de análise das redes utiliza três tipos de centralidade para definir a posição de uma
organização na rede: de “grau”, de “proximidade” e de “intermediação”7. A centralidade de
“intermediação” – a mais utilizada para medir a habilidade de controlar o fluxo de informação
ao longo das redes – define até que ponto um ator tem controle sobre o acesso de outros atores
em várias regiões da rede.
Van de Ven & Ferry (1980) destacam como dimensões estruturais de uma rede de relações
interorganiazacionais: a formalização, a complexidade, a centralização e a intensidade.
A formalização tem a ver com as regras, políticas e normas que direcionam o papel, o
comportamento e as atividades das organizações de uma rede. A complexidade estrutural da
rede se refere ao número de diferentes elementos que devem ser integrados, para que a rede
atue como uma unidade. Com relação à centralização, se definem dois aspectos de
centralidade: de tomada de decisões e de fluxos de informação e recursos, conceitos esses
7
No original: “degree”, “closeness”, “betwenness” centrality (ROWLEY : 1999).
22
altamente relacionados. A intensidade mostra a força de uma rede e é utilizada como
indicador do investimento que as organizações empregam numa relação interorganizacional.
Alguns desses conceitos serão empregados para a análise da rede de energia elétrica.
Resumindo, o conceito de redes tem um amplo campo de aplicação. Vários fatores, os quais
serão apontados no decorrer do trabalho, influenciaram no ressurgimento do interesse nessa
área.
2.3.
Redes na gestão pública
Loyola & Moura (1996), numa tentativa de esclarecer os vários usos de redes em diversos
campos de conhecimento, destacam que, no âmbito do Estado, as redes representam formas
de articulação entre agências governamentais e/ou destas com redes sociais, organizações
privadas ou grupos que permitem enfrentar problemas sociais e implementar políticas
públicas. Por exemplo, as redes institucionais que, segundo Dubouchet (1991), mencionado
em Loyola & Moura (1996:56), são coordenações ou comissões formais que reagrupam
instituições engajadas nas mesmas políticas, podem ser amplamente utilizadas na análise de
políticas públicas. Sua composição e suas missões são geralmente impostas por uma
regulamentação. Nessas redes, as relações sociais são definidas por normas precisas e por
funções e papéis atribuídos aos indivíduos para a realização de serviços, apresentando assim
um nível avançado de formalização.
A tabela 1, destaca algumas características principais das redes, no campo do Estado e dos
negócios. Seja nas áreas de Estado ou de negócios, faz-se presente a figura do centro
animador, ou da organização focal, que desempenha o papel de integrador da rede e torna
essas últimas mais próximas do modelo unidirecional que do multidirecional. Ressalta-se que
noções
dicotômicas
-
cooperação/competição,
solidariedade/conflito,
racionalidade
instrumental/comunicativa - revelam a complexidade das interações e organizações em rede e,
23
paralelamente, mostram que o foco da análise está não só nos fenômenos, situados em
diferentes campos, mas também nas organizações e nos processos em diferentes estágios de
maturação.
Tabela 1: Noções associadas aos conceitos de rede
A
T
O
R
E
S
C
A
R
A
C
T
E
R
Í
S
T
I
C
A
S
Campo Estado/Políticas públicas
Campo produção/ circulação
Agências governamentais, governos
Agentes econômicos: produtores, fornecedores,
locais e outros níveis
usuários, etc.
Pluralidade/diversidade dos atores
Arranjos dos parceiros
Formalidade/informalidade
Idem
Problemas, ações, projetos concretos e
gestão de processos complexos
Interesses e projetos precisos
Associação de recursos/intercâmbio
Troca, associação de recursos, intercâmbio,
aprendizado
Cooperação/reconhecimento de
competências/ respeito mútuo/conflito
Reciprocidade/cooperação/confiança/competição
Centro animador, operador catalisador
hierarquia/não-hierarquia
Empresa focal, liderança/hierarquia/nãohierarquia
Efêmero/grupo definido
Flexibilidade/longo prazo
Adesão por competência/interesse
Adesão por competência/contingência
Racionalidade/instrumental
comunicativa
Idem
Adaptado de Loyola & Moura (1996:59)
As redes distinguem-se das organizações tradicionais pela inexistência da hierarquia. Apesar
de poder existir uma agência condutora (focal, integradora), isso não significa que a agência
tenha a autoridade necessária para indicar às outras organizações o que fazer. Métodos
tradicionais de coordenação e controle não podem segurar a estrutura unida em rede. O
compromisso com o todo é o que deve prevalecer. As estruturas em rede podem ser
comparadas com uma banda de jazz, na qual permite-se a criatividade individual dos músicos,
24
o que assegura a qualidade da música, do conjunto. Essas estruturas são consideradas mais
adequadas para administrar integralmente as políticas públicas.
2.4.
Fatores que influenciam na emergência de redes na gestão de políticas
públicas
Acredita-se que o recurso à abordagem de redes seja de extrema importância para a análise
das políticas públicas e das estruturas concebidas a fim de colocá-las em prática. As
transformações recentes têm influenciado fortemente a concepção sobre o papel do Estado e
das políticas públicas e a abordagem de redes oferece referências teóricas e instrumentais que
facilitam a análise. Esta abordagem lida melhor com a complexidade - característica principal
das políticas públicas contemporâneas - e reconhece que a racionalidade na qual se baseia a
ação dos indivíduos e organizações é limitada para lidar com essa complexidade.
2.4.1. Mudança de paradigma
“(...) estamos vivendo um momento muito especial na história humana. Um daqueles
momentos de síntese que permitem uma mudança de patamar, uma transformação de
grande amplitude e profundidade. (...)A sensação de perda de referências que acontece
nesses momentos cria um estado de perplexidade em todas as pessoas. (...) Hoje, a
mudança é tão radical que não podemos deixar de vê-la, de senti-la, de pensar nela. Mas
nem por isso sabemos lidar com ela, e nossas decisões são reflexo disso” (PEREIRA &
FONSECA, 1997: 3-4).
O mundo pós-industrial continua a ser dominado pelo paradigma cartesiano, baseado na
compartimentação do conhecimento. Esse paradigma exerce uma grande influência nas nossas
decisões e comportamentos e o “conservantismo dinâmico”8, característica dos sistemas
sociais, conspira para manter o status quo.
8
Schon (1973:32) argumenta que “A resistência à mudança, característica dos sistemas sociais, é muito mais
parecida com uma forma de “conservantismo dinâmico”, ou seja, uma tendência de lutar para manter-se
imutável” (Tradução nossa)
25
No entanto, vários estudos contemporâneos buscam a superação desse paradigma dominante.
Segundo Capra (1982), o novo paradigma é sistêmico e norteia-se por cinco pressupostos
básicos: da fragmentação para a totalidade; da estrutura para o processo; da ciência objetiva
para a epistêmica; da construção metafórica em blocos para o conceito de redes; da verdade
absoluta para a descrição aproximada (PEREIRA & FONSECA, 1997).
Sem dúvida, todas as fases das políticas públicas modificam-se nesse processo de
transformação. O movimento inicia-se a partir da crítica a práticas vigentes, até o ponto em
que modelos alternativos de gestão destas políticas são propostos.
Assim, na análise de Cavalcanti (1998), o positivismo lógico e o racionalismo das tradições
científicas dominantes privilegiaram a concretude da organização como objeto da análise e
enfatizaram a abstração do agente público como um ator unitário que toma decisões a partir
de uma lógica racional-dedutiva.
“Com isso, retardam-se as possibilidades do desenvolvimento de uma noção mais
abrangente, e necessariamente complexa, da estrutura e funcionamento do setor público.
Este “ator composto” caracteriza-se por Ter múltiplas organizações geradoras de
decisões e ações, não raramente, conflitantes entre si” (CAVALCANTI, 1998:75).
Nesse contexto, ele discute o conceito de gestão integrada das políticas públicas, baseada no
reconhecimento da interdependência, da complexidade e do caráter multifacetado dos
problemas que as políticas públicas visam resolver. Só por meio de uma abordagem integrada,
em rede, que os administradores públicos podem enfrentar os desafios decorrentes das
mudanças e transformações contemporâneas.
2.4.2. Crise do Estado de Bem-Estar Social
Uma das razões principais que influenciou o crescimento da complexidade das políticas
públicas é fortemente relacionada com o fim dos regimes autoritários e a crise do Estado de
Bem-Estar Social.
26
2.4.2.1
Democratização e participação
Com o fim das ditaduras militares começam a ser evidenciadas as primeiras mudanças
relativas a gestão das políticas públicas. O estabelecimento do pluralismo democrático - uma
das mais consideráveis vitórias - faz com que cresçam cada vez mais as pressões para uma
participação mais ampla de diversos grupos da sociedade na gestão das políticas.
A multiplicação dos atores sociais, que influenciam em todas as fases das políticas públicas,
torna o processo mais complexo. Crescem os objetivos das políticas, respondendo aos anseios
de diversos grupos de interesse e pressão, assim como a dificuldade de conciliar interesses, às
vezes, divergentes. A sociedade civil, por meio da ação de ONGs, ocupa um espaço cada vez
maior na gestão e implementação de políticas públicas. Apesar de que a participação dos
cidadãos em todas as fases das políticas públicas possa ser vista como favorável, crescem os
problemas de gestão e controle.
A crescente pressão de um número cada vez maior de grupos de interesse, não significa uma
real participação de toda a sociedade na gestão das políticas públicas. Devemos considerar
que existem “os excluídos” ou “os auto-excluídos”, pessoas ou grupos que não podem ou não
desejam pressionar para proteger os próprios interesses. Paralelamente, existem grupos com
maior capacidade de pressão, que controlam a mídia ou outros meios de comunicação, e
consequentemente, com maior possibilidade de incluir os próprios objetivos na agenda das
políticas públicas.
A aproximação da governança com a democracia traz alguns problemas de legitimidade ou
pluralismo e enfatiza a necessidade de gerenciar o setor público de modo transparente,
participativo e responsável.
Essa realidade, fortemente relacionada com a crise do Estado de Bem-Estar e a escassez cada
vez maior de recursos, influencia no fortalecimento da idéia de que os problemas sócio27
econômicos não possam continuar a ser resolvidos pela ação independente do governo. Isso
tem levado a repensar o papel do governo e da gestão pública. A terminologia contemporânea
reflete essas mudanças e começa a conotar conceitos como governança, que enfatiza o papel
dos cidadãos – individualmente ou organizados em formas associativas – no processo político,
partindo da identificação dos problemas, à formulação, implementação e avaliação dos
resultados. A sociedade civil pressiona e, paralelamente, é convocada para participar cada vez
mais em todas as fases das políticas públicas. Abre-se espaço para a emergência de novas
formas de exercício da ação pública, questionando as instituições burocráticas e os
paradigmas homogeneizadores e totalizadores (LOYOLA & MOURA, 1996).
Na opinião do Cavalcanti (1998), a pluralidade política e o fortalecimento da democracia
refletem-se tanto na natureza, objetivos e características das ações sociais quanto na
implementação e, mais especificamente, no papel das diferentes instituições governamentais e
não-governamentais envolvidas no processo das políticas públicas. O autor, referindo-se às
políticas na área social destaca duas perspectivas importantes de análise: a qualitativa, sob a
qual se torna importante focalizar as mudanças quanto à natureza do papel das organizações
governamentais na formulação e implementação de programas sociais; e a perspectiva
quantitativa, sob a qual a descentralização político-administrativa leva necessariamente à
ampliação do número de atores institucionais envolvidos nesses processos.
A gestão integrada, ou em rede, das políticas públicas tenta responder a essas problemáticas.
A operacionalização da governança democrática combina a ação interorganizacional –
reconhecida como um componente integral da implementação de várias políticas – com um
conjunto amplo de relações, fora da área governamental. Essas relações podem ser
estabelecidas entre empresas privadas, ONGs, associações comunitárias, etc. A realidade
administrativa não pode considerar os atores envolvidos numa política pública apenas
28
individualmente ou seqüencialmente, mas como um conjunto conectado e interdependente,
governando, assim, por meio de redes (BRINKERHOFF, 1999: 125).
2.4.2.2
Estado mínimo e crescimento da demanda para políticas públicas
Na opinião de Abranches (1999), o processo de privatização, implementado neste últimos
anos, já teve três conseqüências estruturais: a economia brasileira deixou de ser uma
economia mista, passando a constituir uma economia privada de mercado; o padrão de
acumulação e produção transferiu o seu eixo dinâmico para o setor privado; e, como
conseqüência da privatização, todo o investimento relevante na indústria será privado,
caracterizando assim uma nova lógica que responde a estímulos diferentes.
O modelo hierárquico, integrado centralmente pelo poder público, se modifica. Fischer,
Teixeira & Heber (1998) utilizam o conceito de interorganizações para caracterizar o novo
modelo das organizações que articulam as várias instâncias do poder público, os interesses
privados e a representação da cidadania. Por exemplo, as novas interorganizações dos
serviços de infra-estrutura têm um centro regulador – a agência reguladora, que se ocupa da
gestão da competição e dos conflitos nas ações corporativas. As instituições só poderão
atingir seus objetivos por meio de ações estratégicas, pois não só dependem de parcerias e
alianças, mas também devem administrar inevitáveis conflitos e disputas de interesse.
O papel do Estado nesse processo é de suma importância. Ele passa a ser o regulador e
fiscalizador de importantes setores econômicos – como petróleo – ou de serviços públicos –
energia, telecomunicações, etc. Várias agências reguladoras instituem-se em nível federal e
estadual.
O crescimento da participação do setor privado muda a lógica de atuação e o papel dos atores
sociais envolvidos numa política pública. Antes da privatização, existia um arcabouço político
parecido entre as empresas estatais e o governo. Eles se identificavam em questões como
29
investimentos, estilo de gestão e objetivos da empresa. Com a privatização, elementos
ideológicos, políticos e institucionais aumentam a distância entre ambas as partes. As
empresas privatizadas enfatizam questões como eficiência e ganhos, sem compromisso
específico com os investimentos, qualidade de prestação de serviços ou emprego. Redes são
reconstruídas e, nesta reconstrução, o sistema de dependências de recursos vem sendo
desequilibrado (DUDLEY, 1999).
A privatização em si deve ser considerada como parte da tendência contemporânea perante o
“hollowing out of state”9. No decorrer desse processo, as estruturas tradicionais se modificam,
e agências reguladoras desempenham um papel central na gestão da economia. O estado se
reduz ao papel de “Estado espectador”. As mudanças estruturais trazidas pela privatização
reformam as redes setoriais e constróem relações novas entre os atores estabelecidos. O
Estado “esvaziado”, pressionado pela sociedade civil, cria rede de relações com empresas
privadas ou sem fins lucrativos, para colocar em prática as políticas públicas.
2.4.3
Descentralização e seu impacto nas relações interorganizacionais
Na opinião de Starling (1993), as relações interorganizacionais não significam federalismo. A
maior deficiência do federalismo, como um modelo descritivo, é que ele reconhece
principalmente as relações entre os estados ou estado-união e ignora as relações uniãomunicípio, estado-município, união-estado-município e relações intermunicipais. Na prática,
diversos níveis de governo compartilham autoridade para a implementação de programas na
área de saúde, bem-estar, educação etc. O problema tradicional de controle num sistema
federal é como implementar políticas efetivamente, quando a relação entre os níveis de
governo é baseada na negociação, em vez da hierarquia.
9
O conceito de hollow state tem a ver com o grau de separação do Estado dos setores produtivos. Os favoráveis
à privatização, sempre aconselham que o governo pode oferecer serviços, sem os produzir na realidade. O hollow
30
O fortalecimento de municípios e estados nos últimos anos faz com que vários deles façam
parte de um número considerável de programas estaduais ou federais e tenham uma forte
influência política. Os corpos legislativos estaduais e locais dão mais respostas aos próprios
constituintes do que o próprio Congresso. Eles conhecem melhor as problemáticas e
condições locais, têm mais tempo de discutir sobre esses assuntos e mais flexibilidade de
mudar leis e normas.
O conceito de redes pode ajudar a estudar e entender melhor esse contexto descentralizador.
Por meio da análise das relações interorganizacionais, se incluem no objeto do estudo todas as
relações entre as unidades do governo num sistema de três níveis.
2.5.
O setor de energia elétrica brasileiro analisado a partir da abordagem de
redes
A abordagem de redes oferece os instrumentos e o referencial teórico necessários para
analisar a nova configuração do setor brasileiro de energia elétrica, decorrente dos processos
de reestruturação e privatização. Afinal, passa-se de um modelo de organização e de gestão
hierarquizado e centralizado nas mãos do Estado, para um modelo mais horizontal, onde o
papel de outros atores sociais torna-se importante. Os processos de privatização mudam a rede
de relações estabelecidas entre as empresas estatais e o governo10 e, paralelamente,
impulsionam a construção de uma nova rede. Estabelecem-se parcerias do setor público com
o privado, e o impulso para uma maior democratização faz com que o cidadão participe mais
ativamente nestes processos.
As duas formas tradicionais de coordenação, baseadas na hierarquia ou no mercado perfeito,
estão sendo substituídas pelas redes. O setor de energia elétrica, coordenado com base no
state é uma metáfora que resume o esforço da administração de Reagan e Bush para privatizar os serviços
públicos (MILWARD & PROVAN : 1993).
10
DUDLEY (1999), analisando a privatização de British Steel Corporation, argumenta que existiam
dependências de recursos entre o governo (que contava com a experiência profissional e financeira dos técnicos
da BSC) e a empresa (que contava com financiamentos e subsídios do governo).
31
modelo hierárquico, está se reestruturando. Por suas características peculiares - com
segmentos caracterizados como monopólios naturais - reconhece-se que não pode ser
coordenado simplesmente pela “mão invisível” do mercado. O objetivo básico da reforma – a
universalização dos serviços, por meio de uma ampla e justa competição – só pode ser
alcançado quando o sistema de energia elétrica funcionar de forma integrada, como um só,
substituindo eficazmente o modelo hierárquico organizacional pela gestão em rede.
O processo de reestruturação do setor de energia elétrica está ainda em fase de transição.
Permanecem questões importantes a serem resolvidas sobre os papéis a serem desempenhados
e as empresas encarregadas de exercê-los. Organizações como o Operador Nacional do
Sistema, Eletrobrás e a própria ANEEL fortalecem-se como integradoras do sistema. Por isso,
considera-se relevante analisar as relações interorganizacionais que se estabelecem entre as
novas concessionárias do sistema de energia elétrica, os usuários destes serviços e o governo,
por meio dos instrumentais teóricos oferecidos pela abordagem de redes.
A rigor, o objetivo desse trabalho será verificar se o setor de energia elétrica, com as
mudanças decorrentes da privatização e reestruturação, está sendo operado e coordenado
como uma rede, fazendo com que o objetivos da reforma se alcancem por meio da integração
dos vários atores sociais que compõem o setor.
Em seguida será apresentada uma trajetória histórica do setor de energia elétrico e se
destacarão as principais características do modelo estatal que vigorou por vários anos.
32
CAPITULO 3
3. EVOLUÇÃO DO SETOR DE ENERGIA ELÉTRICA:
CARACTERÍSTICAS DA INTERVENÇÃO ESTATAL
No decorrer deste capítulo apresentar-se-á a trajetória do setor de energia elétrica brasileiro
durante o período de intervenção estatal. Apontar-se-ão as razões que levaram a essa
intervenção, assim como suas principais características, especialmente no decorrer dos
governos Vargas, Kubitchek e militares. Especial atenção dar-se-á à política nacional na área
de energia elétrica, ao planejamento e ao setor no nível operacional, assim como a análise das
principais organizações do setor. Finalmente, a crise e suas determinações na transformação
do setor será analisada.
3.1.
O setor de energia elétrica antes da intervenção estatal
As primeiras experiências práticas com a energia elétrica ocorreram na época imperial, mas a
disseminação do uso da energia elétrica teve início, de fato, nos últimos anos do século XIX,
sob o regime republicano. Em 1883, foi instalada no Ribeirão do Inferno, em Diamantina,
Minas Gerais, uma usina para geração de energia elétrica, e, no mesmo ano, foi inaugurada a
primeira linha de bondes elétricos no país, marcando assim o começo de utilização da energia
elétrica. Além de aplicações experimentais, ocorreram algumas iniciativas de caráter
permanente, devido, basicamente, à necessidade de fornecimento de energia elétrica para
serviços públicos de iluminação e para algumas atividades econômicas como mineração
beneficiamento de produtos agrícolas, fábricas de tecido, etc. O alto custo dessas instalações
fez com que se utilizassem mais as máquinas a vapor e outras aplicações (CMEB, 1988)11.
11
As primeiras experiências com relação à introdução da energia elétrica no Brasil são descritas também na
publicação da Biblioteca do Exército (1977:34-5).
33
A chegada da Light muda completamente esse quadro e marca o início das atividades de
companhias sob o controle de capitais estrangeiros, com grande importância para a evolução
do setor elétrico. A proximidade dos locais aproveitáveis e dos grandes centros consumidores
influenciaram a implementação dessas primeiras companhias (Biblioteca do Exército, 1977).
Em 15 de julho de 1897, Francesco Antonio Gualco (residente no Canadá) e Antônio
Augusto da Sousa obtiveram da Câmara Municipal de São Paulo a concessão do serviço de
transporte urbano de passageiros em bondes elétricos, por um prazo de 40 anos. Em 7 de abril
de 1899 foi constituída em Toronto, Canadá, a São Paulo Railway, Light and Power Company
Limited, por iniciativa de um grupo de capitalistas canadenses, com o objetivo que ia além da
produção, da utilização e da venda de eletricidade, gerada por qualquer tipo de força,
abrangendo também o estabelecimento de linhas férreas, telegráficas e telefônicas. Em julho
de 1899, o decreto de Presidente da República Campos Sales autorizava a Companhia a
funcionar no Brasil. A Light estendeu-se rapidamente, comprando e eliminando todos os seus
concorrentes e, em setembro de 1901, foi possível inaugurar a usina elétrica de Parnaíba, a
primeira da Light no Brasil. Iniciou, em 1905, sua penetração no Rio de Janeiro e, em
seguida, monopolizando os serviços de iluminação elétrica e fornecimento de gás, de bondes e
de telefonia. Apesar de ser nominalmente canadense, a Light, que transformou-se em holding
em 1912, era controlada por americanos, com métodos de gestão e de financiamento
marcadamente americanos. Mas o capital investido na companhia, em pouco tempo, passou a
ser de origem inglesa e a Light deve ser vista como “parte integrante de um vasto
conglomerado financeiro e industrial, cujos investimentos não se limitavam ao nosso país,
estendendo-se também ao México e a Cuba” (CMEB, 1988, 43).
Paralelamente, existia um grande número de unidades isoladas, instaladas em diversos pontos
de território brasileiro, responsáveis para atividades de geração e distribuição de energia
elétrica no Brasil até 1920. Estas últimas concentravam seus investimentos na utilização dos
34
recursos hídricos, abundantes no país, seguindo, assim, o procedimento da Light. O ritmo de
instalação de pequenas centrais elétricas foi bastante veloz. Em São Paulo, as concessionárias
de energia elétrica começaram a se aglutinar, refletindo “(...) o desenvolvimento econômico
observado em grande parte do estado de São Paulo, consubstanciado na contínua expansão
do complexo cafeeiro, na diversificação da produção agrícola e na progressiva
interiorização de alguns ramos industriais (...)” (CMEB, 1988:45). Esses grupos foram
responsáveis por uma primeira tentativa de criação de um sistema interligado de produção,
transmissão e distribuição de energia elétrica no interior de São Paulo.
Os dois elementos principais que caracterizavam a década de vinte foram:
“ (...) a construção de centrais geradoras de maior envergadura, capazes de atender à
constante ampliação do mercado de energia, e a intensificação do processo de
concentração e centralização das empresas concessionárias, que culminou, no final do
decênio, com a quase completa desnacionalização do setor” (CMEB, 1988:55).
Apesar do crescimento contínuo da demanda industrial no consumo da eletricidade, a rápida e
continua difusão dos bondes elétricos e da iluminação pública gerada pela eletricidade fez
desses serviços os principais consumidores de energia elétrica.
Nesse período entra também em cena a American & Foreign Power Company (Amforp),
empresa do grupo americano Eletric Bond & Share, que, mais tarde, em 1905, foi incorporada
pela General Eletric. Constituiram-se a Empresas Elétricas Brasileiras, futura Companhia
Auxiliar de Empresas Elétricas Brasileiras (CAEEB), que concentrou suas atividades em
quase todas as capitais com exceção do Rio de Janeiro e São Paulo, incorporando diversas
concessionárias e apresentando uma real ameaça para o monopólio da Light.
De fato, o movimento em favor da concentração empreendido pela Light e Amforp, na
segunda metade dos anos 20, fez com que todas as áreas mais desenvolvidas do país, ou as
que apresentavam, também, maiores possibilidades de desenvolvimento, caíssem sob o
35
monopólio dessas duas empresas, tornando pouco expressivas aquelas que ficaram de fora,
especialmente em áreas sem nenhuma perspectiva de desenvolvimento.
Pode se concluir que o papel do Estado nesse período foi bastante limitado, mantendo-se
principalmente não intervencionista e preocupando-se com outras prioridades como a
estabilidade cambial, o equilíbrio das finanças públicas e a defesa de atividades produtivas
ligadas ao setor externo. Somente em 1903, é que aparece o primeiro texto de legislação
brasileira sobre energia elétrica, autorizando o Governo Federal a promover, por via
administrativa ou mediante concessão, o aproveitamento da força hidráulica para os serviços
federais. O decreto 5.407 estabeleceu regras para os contratos de concessão de
aproveitamento elétrico e tinha como princípios básicos: o prazo máximo de concessão de 90
anos, a reversão para a União sem indenização do patrimônio constituído pelo concessionário
e a revisão de tarifas a cada cinco anos. Esse decreto teve na prática um efeito muito reduzido,
por se referir apenas às atividades desenvolvidas pelo governo federal, não incluiu os estados
e municípios, sendo esses últimos o principal poder concedente dos serviços de energia
elétrica.
Em 1906, o Presidente Afonso Pena mandou organizar as bases do Código das Águas da
República, tratando questões como a caracterização das águas públicas e particulares, de
domínio da União, dos Estados e dos Municípios etc., mas não tratou da regulamentação dos
serviços de energia elétrica, que previa-se tratar numa lei específica. A atuação estatal nesse
período concentrou-se apenas nas áreas de regulamentação dos serviços de energia elétrica.
3.2.
Começo da intervenção estatal no setor de energia elétrica
A intervenção estatal na economia brasileira começou a expandir-se a partir do início do
século XX. Fiori (1990) ressalta que a política federal de valorização do café e, sobretudo, a
revolução institucional ocorrida com o Estado Novo assinalam um fortalecimento da presença
36
estatal, não só em termos quantitativos, mas também qualitativos. A superação das falhas do
mercado e a promoção da industrialização foram os objetivos principais da intervenção estatal
a partir dos anos trinta. O governo começou a intervir diretamente, através de investimentos
em diversos setores estratégicos, e indiretamente, controlando e interferindo nos impostos, na
taxa de câmbio e nas importações e exportações.
O aumento significativo de exportações nos últimos anos de Império impulsionou a
modernização da infra-estrutura no Brasil, abrangendo o sistema de transportes, de
comunicações e os serviços públicos urbanos (linhas de bondes, iluminação pública, águas e
esgotos, produção e distribuição de energia). A expansão da cafeicultura paulista necessitava
da extensão desses serviços. Paralelamente, utilizando a mão de obra livre (o imigrante
europeu), ela foi responsável pela introdução do trabalho assalariado no campo e por sua
difusão nos centros urbanos, permitindo, assim o crescimento do mercado interno. Ademais, a
inversão dos excedentes gerados no complexo exportador cafeeiro em atividades industriais, a
partir da década de 1880, proporcionou as condições para o surgimento de capital industrial.
No entanto, os principais financiadores dessas atividades eram, em grande parte, as empresas
oligopolistas dos países capitalistas mais desenvolvidos até as vésperas da Primeira Guerra
Mundial. Os capitais de origem inglesa representavam a maior parcela de investimentos no
Brasil, deixando espaço para os capitais de origem norte-americana assumir liderança após o
conflito.
“O avanço da urbanização, com o conseqüente aumento da demanda por serviços
públicos, e o incremento das atividades industriais, observadas no sudeste do país,
abriram boas perspectivas para investimentos no incipiente campo de energia elétrica”
(CMEB, 1988:28).
37
3.2.1 A evolução do setor de energia elétrica durante o Governo Vargas
Durante o período em que Getúlio Vargas permaneceu à frente do poder, o Brasil sofreu
profundas mudanças políticas, econômicas e sociais: pôs-se fim à estrutura descentralizada da
República Velha, transformaram-se as relações entre o poder federal e estadual e iniciou-se a
intervenção estatal na economia. Como conseqüência da longa depressão dos anos 30, o
modelo tradicional, baseado na agroexportação, entrou em crise, estimulando o
desenvolvimento de novas atividades produtivas e definindo um novo modelo de
desenvolvimento econômico baseado na industrialização. Durante o período 1933-1939, a
indústria tornou-se o pólo dinâmico da economia, e, apesar de diminuir-se esse ritmo de
crescimento durante a Segunda Guerra Mundial, o governo Vargas tomou decisões centrais
para dar continuidade ao processo de industrialização. Consequentemente, quando Vargas
deixou o poder em 1945, o Brasil já era um país semi-industrializado, em processo de
urbanização e com uma estrutura social e política bem mais complexa (CMEB, 1988: 77-8).
A evolução do setor de energia elétrica refletiu essas mudanças, passando por importantes
transformações institucionais. A reordenação institucional do setor começou de fato em 15 de
setembro de 1931, quando foram suspensos todos os atos de alienação, oneração, promessa ou
começo de transferência de qualquer curso perene ou queda de água, marcando, assim, o
primeiro passo para a afirmação da União como poder concedente em matéria de energia
elétrica. Em 1933, surgiu o Departamento Nacional da Produção Mineral (DNPM), que
abrangia uma Diretoria de Águas, encarregada de tratar os assuntos relativos à exploração de
energia hidráulica, irrigação, concessões e legislação de águas (CMEB, 1988:80).
Em 10 de julho de 1934, Getúlio Vargas assinou o decreto n.° 26.234, promulgando o Código
de Águas, que introduziu modificações importantes na sistemática dos aproveitamentos
hidroelétricos:
38
“(...) separa a propriedade das quedas d’água das terras em que se encontram,
incorporando-as ao patrimônio da Nação; atribui à União a competência de outorga de
autorização e concessão para o aproveitamento da energia hidraúlica para uso
privativo ou serviço público; institui o princípio do custo histórico e do “serviço pelo
custo”, de lucro limitado e assegurado; e inicia a nacionalização dos serviços,
restringindo sua concessão a brasileiros ou empresas organizados no país. Ressalva, no
entanto, os direitos adquiridos” (Biblioteca do Exército, 1977:62)
Com o golpe se 10 de novembro de 1937, Vargas instituiu um regime plenamente autoritário
e centralizador. A Carta de 1937 consagrou o corporativismo como doutrina oficial do Estado
Novo, confirmou a autoridade suprema do Presidente e atribuiu ao poder público funções
mais complexas e ativas, assegurando ao Estado o direito de intervir diretamente nas
atividades produtivas para suprir as deficiências da iniciativa privada. Durante a Segunda
Guerra Mundial, preocupado com a segurança nacional, o Estado assumiu diretamente alguns
projetos (Companhia Siderúrgica Nacional, Companhia Vale do Rio Doce, Fábrica Nacional
dos Motores e Companhia Hidroelétrica do São Francisco – Chesf), visando diversificar a
estrutura produtiva do país e reduzir a dependência externa.
No entanto, apesar de algumas iniciativas, a intervenção estatal durante o Estado Novo no
campo de energia elétrica voltou-se, basicamente, para a organização das atividades
desenvolvidas pelas concessionárias particulares e seu enquadramento nas orientações
estabelecidas pelo Código de Águas. O Decreto-Lei n.° 852 representou uma tentativa de
adaptar o Código das Águas às normas e objetivos da Carta de 1937. O Decreto-Lei n.° 1285,
de 18 de maio de 1939, criou o Conselho Nacional de Águas e Energia, transformado pelo
Decreto-Lei n.° 1699 em Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica (CNAEE), o
principal responsável pela formulação de políticas públicas durante o Estado Novo e o
primeiro órgão de planejamento econômico do país. Assim, a política de energia elétrica
passou para a esfera de competência de um órgão diretamente subordinado à Presidência da
República. O Conselho “foi encarregado de manter as estatísticas, organizar os planos de
interligação de usinas e sistemas elétricos, regulamentar o Código de Águas, examinar todas
39
as questões tributárias referentes à industria de energia elétrica e resolver, em grau de
recurso, os dissídios entre a administração pública e os concessionários” (CMEB, 1988: 89).
Em 1942, uma missão técnica americana chefiada por Morris Cooke realizou a primeira
tentativa de diagnóstico global da economia com vistas à promoção do desenvolvimento do
país. A deficiência do setor elétrico (decorrente da rígida política tarifária do governo e da
proibição imposta às empresas estrangeiras de instalarem usinas elétricas) foi apontada como
um dos principais pontos de estrangulamento para a expansão industrial. Esse diagnóstico
serviu de base para os trabalhos da Comissão Técnica Especial do Plano Nacional de
Eletrificação, organizado no final de 1943 pelo Conselho Federal de Comércio Exterior, que
refletiu os limites da intervenção do Estado em atividades nas quais o controle das empresas
estrangeiras era predominante.
No entanto, no período do pós-guerra, a produção da energia elétrica não consegue
acompanhar o consumo, que, com os problemas de inversão de recursos no setor e com o
desencadeamento da industrialização, caracteriza-se por uma vigorosa expansão. Apesar do
fato de que períodos de carência de energia viessem caracterizando o país desde a instalação
desses serviços no Brasil, com o crescimento e modernização da economia, o racionamento
tornou-se uma prática comum, trazendo graves conseqüências para a vida econômica e social.
Esses fatos vão se repetir continuamente até na década de cinqüenta e sessenta (Biblioteca do
Exército: 1977).
Paralelamente, é possível encontrar, nesse período, as raízes da formação do setor público
estatal da energia elétrica, iniciativas motivadas principalmente por imperativos de ordem
regional, não obedecendo, de fato, a qualquer planificação centralizada da economia.
Como exemplo pode ser destacado a elaboração do Plano de Eletrificação do Rio Grande do
Sul, o primeiro plano regional concebido no país. Previa a organização de uma empresa
40
estadual, com participação acionária de municípios para administrar e coordenar o plano de
eletrificação.
O Decreto-Lei n.° 8.031, de 3 de outubro de 1945, cria a primeira empresa de eletricidade do
governo federal, a Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf), com o objetivo de
promover a construção de uma grande usina elétrica que explorasse o potencial energético da
cachoeira de Paulo Afonso, possibilitando atender ao nordeste brasileiro, precariamente
servida por usinas termelétricas. A criação da Chesf representou o marco inaugural de um
novo estágio no desenvolvimento do setor elétrico: tendência à participação do Estado, à
construção de usinas de grande porte e à dissociação entre a geração e a distribuição de
energia elétrica, marcando o novo modelo (concentrar a produção em grandes usinas e suprir
de energia os sistemas distribuidores regionais a cargo dos governos estaduais).
No entanto, se consideramos o ritmo de crescimento do setor no período 1930-1945, é
possível observar que apresentou-se uma queda em comparação com os anos anteriores,
principalmente como resultado dos efeitos negativos da Segunda Guerra Mundial.
3.2.2 Duas orientações para o desenvolvimento: a consolidação da corrente nacionalista
Com a redemocratização do país e a conseqüente participação do Congresso Nacional e
sociedade civil, questões como a definição do papel que se reservaria à iniciativa privada,
nacional e estrangeira, e à iniciativa estatal, no quadro de transformações estruturais que
deveriam ser introduzidas no sistema produtivo brasileiro tornaram-se centrais. Duas
correntes principais tentavam definir orientações diferentes para o desenvolvimento: a
corrente desenvolvimentista defendia uma aberta intervenção do Estado na economia, tanto
nos setores de infra-estrutura quanto naqueles em que o capital privado não dispusesse de
condições para atuar (por falta de recursos e/ou tecnologia); a segunda corrente defendia a
41
aplicação dos princípios do liberalismo econômico e era contrária a intervenção estatal,
favorecendo a entrada de capital interessados em investimentos.
“A correlação das forças entre as duas correntes no interior da administração federal
variou ao longo do período 1945-1962. Se, no governo do marechal Eurico Gaspar
Dutra (1946-1951), o papel destinado ao Estado foi, fundamentalmente, o de regulador
das atividades econômicas, no segundo governo Vargas (1951-1954), ampliaram-se as
perspectivas intervencionistas do Estado na economia, acompanhadas de um discurso
nacionalista. Após a curta gestão do presidente João Café Filho (1954-1956), na qual as
posições liberais ganharam terreno, o governo Juscelino Kubitschek (1956-1961)
promoveu profundas transformações no modelo de desenvolvimento do país,
privilegiando o ingresso maciço do capital estrangeiro, reservando porém ao Estado o
papel de mediador entre as empresas públicas, as empresas privadas nacionais e as
empresas estrangeiras, garantindo-lhe assim o exercício de funções produtivas,
financeiras e de planejamento” (CMEB, 1988:115-6).
Também no campo da energia elétrica o debate foi marcado por essas posições. A corrente
privatista protegia a idéia de preservação do campo de energia elétrica como campo de
atividade das empresas privadas; enquanto a corrente desenvolvimentista e nacionalista
atribuía a responsabilidade pela não expansão do setor ao sistema de concessões e propunha
uma intervenção do Estado no setor, mediante a construção de usinas elétricas e até mesmo a
encampação das concessionárias estrangeiras (criticando principalmente a Light).
Nesse período, a indústria passa também por profundas mudanças. Gradualmente, perde-se a
importância do setor tradicional (bens de consumo não duráveis) e, paralelamente, se formam
e crescem os setores de bens de consumo duráveis (aparelhos eletrodomésticos e máquinas de
pequeno porte) e de bens de capital e insumos básicos (aço, cimento, equipamentos elétricos
pesados, etc.) que demandam mais energia elétrica, elevando o nível de consumo.
Essa mudança de consumo, junto com a rápida urbanização, fez com que o balanço
energético, até então superavitário, passasse a apresentar um déficit cada vez maior,
instaurando-se uma crise setorial de grandes proporções.
42
Consequentemente, para normalizar a situação e garantir a continuação do processo de
industrialização, o Estado desenvolveu um amplo programa de investimentos nas atividades
de geração e transmissão.
A Constituição de 1946 confirmou a ação intervencionista do Estado e tratou dos assuntos
relativos ao setor de energia elétrica num item relativo à exploração dos recursos naturais. As
discussões colocaram em evidência as correntes contra e em favor da presença do capital
estrangeiro no setor.
Durante o governo marechal Dutra foi elaborado o Plano Salte (Saúde – Alimentação –
Transporte – Energia), primeira tentativa de planejamento integrado do desenvolvimento
nacional, que se propunha a resolver os principais problemas detectados nessas áreas, através
de uma ação coordenada. A parcela de recursos destinados ao setor de energia elétrica era de
16% do total e, dentro desse montante, 52% couberam ao subsetor de eletricidade. Apesar de
ser aprovado pelo Congresso, por intermédio da Lei n.° 1.102 de 18 de maio de 1950, o plano
enfrentou inúmeras dificuldades para ser implementado e, em 1952, foi praticamente
abandonado.
Paralelamente ao Plano Salte, a Missão Abbink (Comissão Brasileiro-Americana de Estudos
Econômicos), analisando os fatores que retardavam ou promoviam o desenvolvimento
econômico do Brasil, destacou a grave deficiência de suprimento energético enfrentado pelo
país, mas adotou como solução a orientação privatista (presente também no Plano Salte). “Os
empreendimentos de energia elétrica deveriam ser desenvolvidos por empresas privadas
financeiramente auto-suficientes, cabendo ao Estado a tarefa de regular as atividades do
setor” (CMEB, 1988:122). Deixando de lado o fato de ser realizado um amplo diagnóstico
dos problemas estruturais da economia brasileira, os resultados concretos foram praticamente
nulos.
43
Com a volta do governo Vargas ao poder, se conferiu à industrialização papel fundamental na
promoção do desenvolvimento do país e, refletindo a heterogeneidade das forças que o
constituíam, adotou-se uma política econômica bifronte: de um lado nacionalista e
tendencialmente estadista; de outro, devido à carência de recursos internos, receptivo ao
capital estrangeiro (CMEB, 1988:124).
A Assessoria Econômica do Gabinete Civil da Presidência da República, formada em 1951,
foi o principal órgão responsável pela elaboração de projetos para a política nacional de
energia, seguindo as diretrizes da política nacionalista, apontadas na Mensagem encaminhada
ao Congresso Nacional pelo presidente Vargas (março de 1951) onde ele “destacava a
necessidade de incrementar a produção de energia, de modo que a oferta antecedesse e
estimulasse a demanda” (CMEB, 1988:125). A mensagem enfatizava a intervenção do Estado
nos problemas hidroelétricos, a importância do Código de Águas, o princípio da
nacionalização progressiva das fontes hidráulicas e defendia a participação maciça do Estado
na produção de energia elétrica, criticando o desempenho das concessionárias privadas e das
empresas nacionais de pequeno porte e recomendando a criação de empresas públicas, estatais
e federais e, paralelamente, estimulação da cooperação técnica e financeira internacional.
Como a iniciativa privada, seja por impossibilidade financeira, seja por falta de interesse12,
não correspondeu ao ritmo necessário de investimentos, restou ao governo o recurso de uma
capitalização por via fiscal, vinculada ao próprio desenvolvimento do setor de eletricidade. O
primeiro projeto proposto pela Assessoria propunha a criação do Fundo Federal de
Eletrificação (FFE), cujos recursos adviriam, basicamente, da cobrança do Imposto Único
sobre Energia Elétrica (IUEE), objetivando fornecer recursos para as regiões menos
desenvolvidas do país. O projeto representou a primeira fonte de recursos de cunho fiscal, de
44
alcance nacional, diretamente vinculado a investimentos no setor de energia elétrica. Esses
recursos seriam geridos pelo BNDE, órgão federal criado em 1952, sob a égide do Ministério
da Fazenda13.
Em 1954, a Assessoria Econômica apresentou a Memória Justificativa do Plano Nacional de
Eletrificação. O documento analisava o setor de energia elétrica brasileiro e baseava-se na
convicção de que o Estado deveria intervir de forma decisiva nas atividades de geração e
transmissão de energia elétrica, por causa das particularidades do setor no Brasil (necessidade
de elevados investimentos iniciais na geração e complexidade dos empreendimentos).
“Em termos práticos, o plano pressupunha, no espaço de dez anos, um amplo esforço no
sentido de solucionar o problema de suprimento de energia elétrica. Tratava-se de cobrir
o déficit de capacidade geradora acumulada nos anos anteriores, garantir que em 1965 o
parque pudesse contar com a reserva normalmente exigida, interligar os sistemas
existentes e criar novos, unificar a frenquência de corrente e padronizar as tensões de
transmissão e de distribuição. Como pano de fundo desse conjunto de medidas, previase, conforme já foi visto, um profunda reestruturação do setor, para concentrar a
propriedade das usinas nas mãos de empresas controladas pelo governo federal e pelos
governos estaduais, que distribuiriam a energia elétrica para os demais empresas”
(CMEB, 1988:129)
Apesar de esse Plano não ter sido aprovado pelo Legislativo, suas propostas balizaram a
expansão futura do setor da energia elétrica no Brasil. A nova direção, tornava necessária a
criação de novos instrumentos administrativos, sendo que o Conselho Nacional de Águas e
Energia Elétrica não estava aparelhado para executar as novas atribuições do Estado.
Por isso, o projeto de lei n.° 4.280 autorizou o Governo Federal a constituir uma sociedade
por ações denominada Centrais Elétricas Brasileiras S.A (Eletrobrás), concebida como uma
empresa pública de âmbito nacional, cuja tarefa principal seria a execução dos
empreendimentos do Plano Nacional de Eletrificação sob a responsabilidade do governo
12
Sendo que a renda liquida do setor e, portanto, sua capacidade de reinvestir, se estriba, por lei, no valor
histórico dos investimentos que limitam o interesse da iniciativa privada para a solução do impasse (Biblioteca
do Exército,1977:69)
45
federal. No entanto, enfrentando a oposição das concessionárias estrangeiras e outras
resistências do próprio governo, o projeto passaria sete anos em discussão no Congresso
Nacional.
Paralelo a esse trabalho de cunho nacionalista, a atividade da Comissão Mista Brasil-Estados
Unidos para o Desenvolvimento Econômico (instalada em Brasil em junho de 1951)
representava a corrente privatista e antiestatizante, não impondo restrições setoriais à
aplicação do capital estrangeiro e recomendando que a intervenção estatal fosse sobretudo
reguladora e supletiva. O Conselho Nacional de Economia, também de cunho privatista,
apresentou, em 1952, um anteprojeto de lei acerca da organização e do desenvolvimento da
eletrificação no Brasil, que opunha-se fortemente ao Código de Águas, mas, na prática, não
teve nenhum desdobramento prático no segundo governo Vargas.
Apesar das correntes privatistas, durante o segundo governo Vargas foram tomadas medidas
de grande importância, das quais podem-se destacar: a ampliação das bases financeiras do
investimento público (tornada possível pela criação do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e do Imposto Único sobre Energia Elétrica) e a realização de estudos que
estabeleceram o conjunto de obras necessárias à superação da crise da oferta de energia
elétrica que estava afetando a economia nesse período.
3.2.2.1 O plano de Metas do Governo Kubitschek e a criação da Eletrobrás
Depois do trágico desaparecimento do presidente Vargas, o curto mandato de Café Filho foi
marcado de iniciativas que se opunham à orientação seguida no governo Vargas. A Instrução
113, de janeiro de 1955, foi criada com a intenção de atrair investimentos estrangeiros e
possibilitar a abertura da economia brasileira ao exterior.
13
Com o decorrer do tempo, a parte da União no Fundo Federal de Eletrificação vai se tornar insuficiente para
atender os investimentos necessários, consequentemente, a arrecadação se completa com recursos financeiros
46
Essa reorientação da política econômica foi aprofundada na administração de Juscelino
Kubitschek (1956), onde o recurso ao capital externo foi amplamente utilizado como a
principal base de financiamento da industrialização brasileira. O Plano de Metas, elaborado
pelo Conselho do Desenvolvimento (órgão de planejamento da Presidência da República), foi
responsável pelo desenvolvimento em tempo recorde dos setores mais dinâmicos e
importantes da indústria brasileira e tinha por finalidade acelerar o processo de acumulação,
aumentando a produtividade dos investimentos existentes e aplicando novos investimentos em
atividades produtivas.
“Os objetivos mais gerais do Plano de Metas eram abolir os chamados pontos de
estrangulamento da economia do Brasil, mediante inversões na infra-estrutura a cargo
do Estado, visto que elas não interessariam ao capital privado, e expandir a indústria de
base e de bens de consumo duráveis, estimulando investimentos particulares, nacionais
e estrangeiros. Caberia igualmente ao Estado criar condições econômicas, financeiras,
sociais e políticas favoráveis ao pleno desenvolvimento da livre iniciativa” (CMEB,
1988:139).
Assim, o Plano considerou como prioritários os setores de energia e transporte, designado
para o primeiro 43,4% dos investimentos previstos. As metas de números 1 a 5 relacionavamse ao setor e estabeleciam padrões de crescimento para os subsetores de energia elétrica
(55,5% do total previsto para o setor), energia nuclear, carvão e petróleo.
Durante esse governo, continuaram as obras de ampliação de Paulo Affonso e teve início a
construção de duas hidrelétricas de grande porte: Furnas14 e Três Marias, situadas em Minas
Gerais.
Apesar de os conflitos entre as correntes desenvolvimentista e privatista continuarem, a
estratégia adotada pelo governo foi a de colocar em prática a configuração apresentada para o
próprios do BNDE (especialmente do Fundo de Reaparelhamento Econômico).
Criada em 1957, pela necessidade de ingressar o Governo Federal no campo de produção de energia elétrica
da região centro-sul do país, a fim de superar a crise de suprimento de energia. O projeto não só atende as
necessidades de capacidade adicional no momento, mas também estabelece as bases para futuros atendimentos
da demanda na região, e será importante elo na interligação dos três grandes centros consumidores: São Paulo,
Rio de Janeiro e Belo Horizonte (Biblioteca do Exército,1977:75)
14
47
setor no Plano Nacional de Eletrificação de 1954, ou seja, “(...)caberia às empresas públicas,
federais e estaduais, o comando da expansão da capacidade instalada no Brasil, ficando a
cargo de concessionárias particulares, estrangeiras e nacionais o serviços de distribuição de
energia elétrica” (CMEB, 1988:144).
Embora o debate sobre a criação do Eletrobrás se desenrolasse no Congresso, começou a se
conceber a idéia de criação do Ministério de Minas e Energia, instituído em 22 de julho de
1960, através da Lei n.° 3.782, responsável pela política energética do país. Cabia a esse
Ministério a tarefa de planificar a exploração dos recursos energéticos e minerais do país e
definir as orientações básicas ou políticas de ação em diversos setores de sua competência
(Biblioteca do Exército,1977).
A criação da Eletrobrás, só conseguiu ser colocada em prática no governo Jânio Quadros,
quando através da Lei n.° 3.890-A, se autorizava o Governo Federal a proceder à constituição
da empresa Centrais Elétricas Brasileiras S.A.– Eletrobrás.
“Atuando como empresa holding do setor, a Eletrobrás incorporou imediatamente as
aplicações realizadas até então pelo BNDE. Na qualidade de órgão de planejamento
setorial, em escala nacional, a empresa ficou responsável pela definição dos planos de
expansão do sistema de energia elétrica do país. Foi por intermédio da Eletrobrás que a
intervenção do Estado, iniciada nos primeiros anos da década de 1950, no planejamento
e na administração das atividades de energia elétrica no Brasil, assumiu um caráter
irreversível” (CMEB, 1988:146-7).
Durante o período 1945-1962, registrou-se um grande aumento na capacidade instalada da
energia elétrica no Brasil. O total quadriplicou e, em termos percentuais, esse aumento
representou uma taxa de crescimento médio de 8,9% ao ano, marcando também um
significativo aumento da participação das empresas públicas, federias e estaduais na geração e
na transmissão de energia elétrica, responsável pela radical alteração do perfil do setor. Se for
considerado o perfil do setor de energia elétrica durante esse período é possível destacar:
48
maior participação de empresas públicas federais e estaduais 15; permanência no setor de
concessionárias privadas como Light e Amforp que continuaram a crescer com taxas médias
inferiores à taxa de crescimento da economia e indústria, revelando-se assim, incapazes de
entender à demanda; existência de um reduzido número de pequenas empresas de capital
nacional, concentradas no sudeste e sul do país e mostrando claros sinais de esgotamento; e
autoprodutores, públicos e privados, instituídas por indústrias como a Companhia Siderúrgica
Nacional, Petrobrás e outras que necessitavam dispor de usinas geradoras próprias, sobretudo
no Sudeste.
3.2.2.2
O setor de energia elétrica a partir dos anos sessenta
O Brasil, no início dos anos sessenta, caracterizou-se por uma grave crise de cunho
econômico, político e social. A partir de 1961, a taxa de crescimento da economia sofreu uma
reversão, ao esgotarem-se as possibilidades de substituição maciça de importações. Nesse
período, o Estado já apresentava um papel fundamental no processo de desenvolvimento
econômico e o déficit fiscal fez com que o financiamento de investimentos só pudesse ser
realizado mediante emissões do Tesouro Nacional ou aportes financeiros de organizações de
crédito internacional.
“A escolha da primeira alternativa traria sem dúvida, o recrudescimento da espiral
inflacionária e a da segunda levaria à adoção de fórmulas contecionistas. O segundo
agente mais importante do processo de industrialização brasileira, representado pelo
capital estrangeiro, temendo a desestabilização política do governo, passou a evitar
inversões no país” (CMEB, 1988:191-2).
Durante o governo militar, garantiu-se a consolidação do modelo implantado nos anos
cinqüenta e fortaleceu-se o Executivo, o que fez com que se conferissem condições favoráveis
à formulação e à execução das diretrizes econômicas governamentais.
15
Como exemplo podem ser destacados a criação de Centrais Elétricas de Minas Gerais S.A. - CEMIG (a
primeira empresa estadual de economia mista a ser criada no país para realizar um plano global de eletrificação),
a Companhia Energética de São Paulo - CESP (com o agravamento de crise da energia o governo de estado de
São Paulo decide entrar no setor e finalmente reúne as várias empresas estaduais numa única empresa - CESP)
(Biblioteca do Exército, 1977).
49
Um conjunto de medidas na área financeira (a conversão do governo em gerente dos ativos
financeiros, reforma bancária, a lei de mercados capitais etc.) fez com que o crescimento do
setor financeiro nacional passasse a ter como ponto de partida o próprio Estado e não mais os
ativos das empresas. Em seguida, o Estado tornou-se o captador da poupança interna do país
(através de criação de mecanismos de poupança compulsória como o Fundo de Garantia por
Tempo de Serviço – FGTS) e atuou como redistribuidor dos recursos oriundos da poupança
interna, fortalecendo, assim, a sua capacidade financeira, centralizada em nível federal.
“(...) a partir de 1964, a atuação do governo obedeceu a dois imperativos principais:
recriar condições para financiar as inversões necessárias à retomada da expansão da
economia e fornecer as bases institucionais adequadas à instauração da eficácia do
mercado como elemento ordenador da economia.
Quanto a este último aspecto, procurou-se eliminar as empresas de menor porte e
estrutura técnica menos adequada, garantindo-se, simultaneamente, a lucratividade das
grandes. Assim, enfatizando a racionalidade do desenvolvimento, estabeleceu-se uma
nova estratégia de relação entre o Estado e o empresariado, que procurava facilitar a
organização e a gestão da vida econômica, com base na hegemonia de poucas e grandes
empresas em cada setor” (CMEB, 1988:193).
3.3.
Principais características do modelo estatal
3.3.1 Política nacional de energia e o papel da Eletrobrás
Com relação ao setor da energia elétrica, a constituição efetiva da Eletrobrás em 1962,
marcou profundas transformações para o setor, especialmente na área de planejamento. Já no
início das suas atividades, a Eletrobrás tornou-se membro nato da Conesp16. Isso influenciou
diretamente na situação das empresas concessionárias privadas. Em 1959, o governo do Rio
Grande do Sul decretou a encampação da Companhia de Energia Elétrica Riograndense
(subsidiaria da Amforp), abrindo o caminho para outras encampações e, através da Lei n.°
16
Comissão de Nacionalização das Empresas Concessionárias de Serviços Públicos: criada em 30 de maio de
1962, “(...) com o objetivo de indicar ao Poder Executivo os serviços que deveriam passar ao regime de
exploração direta, negociar as condições e a forma de reembolso ou indenização aos acionistas, bem como fixar
as normas a serem seguidas no tratamento do patrimônio e na avaliação dos ativos das empresas a serem
nacionalizadas” (CMEB, 1988:198).
50
4428, de 12 de novembro de 1964, assinou-se o tratado de compra, pelo Brasil, das empresas
do grupo, por 135 milhões de dólares.
Nessa fase, instituiu-se a política nacional de energia elétrica pelo Governo Federal, através
de seus órgãos setoriais: o Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica e a Eletrobrás.
Com a transformação da Divisão de Águas do Departamento Nacional da Produção Mineral
(DNPM) em Departamento Nacional de Águas e Energia (DNAE) 17, a Eletrobrás e o
Ministério de Minas e Energia (MME) identificaram-se como órgãos coordenadores de setor
de energia elétrica. A política de energia elétrica no país começou a ser traçada pela MME e
executada pela Eletrobrás, com a DNAEE que atuava como o órgão normativo e fiscalizador,
sendo responsável pela outorga de concessões de aproveitamentos hidrelétricos e de prestação
de serviços, e as demais empresas integrantes do setor que seguiam as diretrizes federais em
suas tarefas de produzir, transmitir e distribuir energia elétrica 18.
De acordo com essa estrutura de planejamento e coordenação, os outros participantes:
concessionárias, públicas e privadas, empresas estaduais, municipais e até mesmo
autoprodutores, foram se unindo todos na tarefa de produção, transmissão e distribuição de
energia elétrica no país.
A Eletrobrás implantou toda uma estrutura administrativa a fim de orientar e liderar o setor de
energia elétrica. As atividades lideradas pela empresa no setor foram cada vez mais
abrangentes, até atingirem todo o país e todos os níveis. “As diversas tarefas, do estudo à
operação pela ELETROBRÁS e pelos concessionários, foram se articulando e mesmo se
interpenetrando, até formar uma grande orquestra” (Biblioteca do Exército, 1977:106).
17
Esse último adquiriu a denominação Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (DNAEE).
Segundo Ferreira (1999) o DNAEE não tinha independência e, na prática, não desempenhava nenhum papel de
liderança no estabelecimento das tarifas para o setor. A maioria dos seus funcionários vinham das próprias
empresas de energia, acentuando o problema de captura do órgão regulado pelos regulados. O envolvimento do
DNAEE na gerência das tarifas foi reduzido posteriormente, quando o Ministério da Fazenda começou a
controlar reajustamentos de tarifas como parte dos esforços para controlar a inflação.
18
51
Além da estrutura organizacional interna, a Eletrobrás apoiou-se também numa estrutura
colegiada, por meio da qual exerceu a coordenação do setor da energia elétrica. Alguns desses
órgãos assumiram grande importância para a execução das políticas na área, como: o Grupo
Coordenador para Operação Interligada (GCOI), o Comitê Coordenador de Operações NorteNordeste (CCON), O Sistema Nacional de Supervisão e Coordenação de Operações
Interligadas (SINSC), na área de operação, e o Grupo Coordenador de Planejamento dos
Sistemas Elétricos (GCPS), na área de planejamento.
Outras organizações de relevância para o setor cooperam com a Eletrobrás como: Cepel
(Centro de Pesquisas de Energia Elétrica) e órgãos internacionais, como: a International
Eletric Exchange (IERE) que centraliza informações sobre pesquisas na área de energia
elétrica.
3.3.2
Planejamento do setor
Uma das características mais particulares do setor de energia elétrica é a necessidade de
planificar os investimentos necessários com muita antecedência em relação ao início da
produção, condição que veste-se de maior importância considerando o fato de a energia
elétrica ser um dos condicionantes principais do desenvolvimento e deve acompanhar o ritmo
de crescimento da demanda, por mais rápida que ela seja.
A construção de empresas como Furnas e Chefs, a criação do Ministério das Minas e Energia
e o papel da Eletrobrás foram de suma importância para o planejamento do setor de energia
elétrica. É importante destacar o papel pioneiro da Furnas que, em 1959, reuniu todas as
concessionárias do Sudeste com a finalidade de conduzir um estudo de suprimento de energia
para toda a região. Essas recomendações serviram como guia para a política do Ministério e
foram aprovadas em 28 de julho de 1961, por meio do Decreto n.° 51.058.
52
Por outro lado, deve se destacar também o trabalho realizado pelo Consórcio Canabra
(denominado assim para designar a nacionalidade dos agentes envolvidos), criado em junho
de 1962 pelo Banco Mundial em conjunto com as autoridades brasileiras e composto de duas
firmas de consultoria canadenses e uma americana, a fim de estudar os potenciais hidráulicos
e o mercado de energia elétrica na Região Sudeste. Para coordenar esses trabalhos, criou-se,
em abril de 1963, o Comitê Coordenado de Estudos Energéticos da Região Centro-Sul e em
dezembro de 1963 a Canabra apresentou ao Comitê o primeiro relatório, o qual recomendava
um programa de construções até 1966, para atender a demanda prevista até 1970. O próximo
relatório apresentou diretrizes para um programa de construções ao longo prazo e os dois
foram incorporados nos programas do planejamento dos governos. Seguindo esse exemplo, o
Comitê Coordenador de Estudos Energéticos da Região Sul (Enersul) supervisionou os
trabalhos direcionados para a região Sul, e estudos semelhantes foram desenvolvidos nas
demais regiões do país. Os trabalhos da Canabra “representam o maior e mais completo
planejamento elétrico integrado até então realizado no mundo ocidental” (CMEB,
1988:208).
A Eletrobrás consolidou-se como o órgão principal do planejamento do setor, seguindo as
diretrizes da política energética elaboradas pelo Ministério das Minas e Energia e a política
econômico-financeira do governo em geral. Os estudos de planejamento realizados eram
divididos em: estudos de consumo, análise da produção programada, formação de alternativas
e análise técnico – econômica das alternativas com definição do plano de expansão. Esse
último, apesar de ser apresentado sob a forma de programa plurianual, era revisado
continuamente e adaptado a cada ano segundo as mudanças de mercado, demanda, andamento
de projetos, obras, etc. Os planos baseavam-se nas necessidades de consumo de energia
53
elétrica, definidas em estreita colaboração com as empresas do setor19 e, na viabilidade
técnica, análise custo-benefício, e outros fatores sócio-políticos.
Paralelamente, o Orçamento Plurianual de Energia ( OPE), implementado em 1968 como o
“(...) documento que resume de forma consolidada, para um período constante de sete
anos – um ano realizado, o ano em curso e cinco projetados -, as informações mais
relevantes para o setor e que permitem avaliar, com boa margem de precisão, os
investimentos setoriais realizados e as estimativas para cada um dos cinco anos
compreendidos dentro do seu horizonte de planejamento, bem como os recursos”
(Biblioteca do Exército, 1977:168)
se converteu num importante instrumento de planejamento, ao fornecer dados de grande
utilidade para as indústrias de equipamentos e de material elétrico e para as firmas de
engenharia. Mais tarde, o OPE evoluiu para o Programa Plurianual de Investimentos do Setor
Elétrico (PPE), que integrou-se a um documento anual mais abrangente, o Programa de
Recuperação do Setor Elétrico (PRS).
O levantamento da OPE cobria quase todo o mercado de energia elétrica e proporcionava
“o estabelecimento de uma programação financeira global para o setor, identificando as
necessidades de recursos financeiros adicionais, nacionais ou externos; a ordenação
sistemática de informações financeiras para os administradores e técnicos dos
concessionários; o contínuo aperfeiçoamento da política de financiamento da
ELETROBRÁS, considerando os planos de expansão das diversas empresas em face da
esperada evolução dos mercados consumidores” (Biblioteca do Exército, 1977:169).
Em novembro de 1980, começa a funcionar informalmente o Grupo Coordenador de
Planejamento dos Sistemas Elétricos (GCPS), institucionalizado em novembro de 1982 pela
Portaria n.º 1167 do Ministério das Minas e Energia, tendo por base o desenvolvimento de
metodologias e critérios adequados às características peculiares do sistema elétrico brasileiro,
19
“Nos estudos realizados pela Eletrobrás, as projeções são os resultados da aplicação da sua metodologia ao
mercado dos diversos concessionários. Por sua vez, cada empresa elabora suas próprias projeções, adotando
metodologia própria para suas áreas. Essas projeções são, em seguida, discutidas com a ELETROBRÁS, até o
estabelecimento de valores comuns para o consumo e demanda da área de cada concessionário para o primeiro
qüinqüênio do período de projeções. A extensão das projeções para os 10 anos seguintes é ajustada a partir de
novos valores resultantes do consenso ELETROBRÁS – Concessionários, obtendo-se assim a compatibilidade
indispensável entre as projeções de curto prazo, estabelecidas para cada empresa visando o planejamento de suas
instalações de distribuição e subtransmissão e, as projeções de longo prazo utilizadas pela ELETROBRÁS no
planejamento da geração transmissão dos grandes sistemas regionais” (Biblioteca do Exército, 1977:164-5).
54
que, diversamente dos outros países, “se distingue pela abundância de recursos de energia
hidráulica, localizados entretanto em pontos distantes dos centros de consumo, implicando a
construção de grandes redes de transmissão para o seu efetivo aproveitamento” (CMEB,
1988:214). O Grupo criou-se para projetar, por meio de previsões macroeconômicas, a
demanda de energia, e, com base nessa previsão, definir os investimentos necessários para a
expansão das atividades de geração, transmissão e distribuição. Também determinava o
cronograma dos projetos de investimentos e priorizava os mais eficientes.
3.3.3
O setor em nível operacional: formas de cooperação entre as empresas
O desenvolvimento do setor de energia elétrica no Brasil influenciou-se pelas características
continentais do país e pelo amplo potencial hidroelétrico. No final da década de 1950, a
integração das empresas de energia elétrica tornou-se uma questão chave para o setor.
Prevalecia a necessidade permanente de interligação dos sistemas para assegurar um
aproveitamento mais racional da energia. Um dos problemas que teve de ser enfrentado para
conseguir essa interligação tinha a ver com a unificação nacional da freqüência de energia
elétrica, escolhendo entre a 50 e 60 Hz. O problema foi resolvido definitivamente a partir da
instituição no CNAEE de uma Comissão de Uniformização de Freqüência (1961), que
recomendou a adoção da freqüência padrão de 60 Hz (Biblioteca do Exército, 1977).
Com o desenvolvimento do setor de energia elétrica, começaram a se identificar vários
problemas operacionais, tornando assim indispensável a criação de um organismo que
permitisse a coordenação da operação interligada. As economias significantes de escala,
resultantes da construção de grandes usinas de energia, impulsionaram a criação de um
sistema interligado de transmissão, no qual os custos relacionados com as linhas de
transmissão eram compartilhados. O amplo capital envolvido nesse processo determinava que
55
a cooperação, não a competição, era a melhor opção para as empresas de energia elétrica
(Ferreira, 1999)
Na prática, Furnas iniciou a formação do sistema interligado brasileiro, quando, em 1963,
estabeleceu os elos de interligação elétrica de grande porte entre Minas Gerias, São Paulo e
Rio de Janeiro, seguida por outras usinas. Com a ampliação da interligação dos sistemas em
áreas cada vez mais diversas, começaram a se ressaltar alguns problemas de adaptação e
divergências de interesse entre diversas empresas.
Por isso, através da Portaria n.° 65, de 16 de janeiro de 1969, o Ministério de Minas e Energia
estabeleceu os princípios básicos que nortearam a criação do Comitê Coordenador para a
Operação Interligada (CCOI). A ELETROBRÁS participou como a coordenadora técnica do
Comitê, responsável pela coordenação da operação interligada das empresas da região
Sudeste. Em janeiro de 1971, foi criado o Comitê Coordenador para a Operação Interligada da
Região Sul (CCOI-SUL), que integrava as empresas da região sul do país, e, em 1973, foram
criados os Grupos Coordenadores para a Operação Interligada (GCOI), regulamentados pelo
Decreto n.º 73.102, de 7 de novembro de 1963 “com atribuições de coordenar, decidir ou
encaminhar as providências necessárias ao uso racional das instalações geradoras e de
transmissão, existentes e futuras, nos sistemas elétricos interligados das regiões Sudestes e
Sul” (CMEB, 1988:211)20.
“Buscam os grupos basicamente a continuidade do suprimento de energia elétrica aos
sistemas distribuidores, de forma a atender plenamente aos seus requisitos de potência e
energia e sob condições de tensão e freqüência adequada; e a economia dos
combustíveis utilizados nas centrais termelétricas, restringindo o seu consumo ao
mínimo indispensável ao atendimento dos requisitos dos sistemas elétricos, em
20
Em setembro de 1974 a coordenação operacional do sistema interligado foi estendida ao Nordeste, por meio da
criação do Comitê Coordenados de Operação do Nordeste (CCON), organizado à semelhança dos GCOI. Mais
tarde, cria-se também o Comitê de Distribuição da Região Sudeste-Sul, expandindo o modelo para a área de
distribuição de energia elétrica.
56
complementação dos recursos hidrelétricos, considerando, entretanto, as imposições de
interesse nacional21” (Biblioteca do Exército, 1977:175).
Segundo Santos, mencionado em Ferreira (1999), ao estabelecimento de distribuidores
monopolísticos e à criação de Eletrobrás, seguiu-se o desenvolvimento de um “sistema de
despache centralizado”, controlado pelo GCOI, que maximizava a eficiência no sistema de
energia hidroelétrica como um todo. Ainda que diferentes usinas hidroelétricas (muitas vezes
de propriedade de diversas empresas) possam operar na mesma bacia de rio, o fluxo de água
vindo de uma barragem é o “combustível” para outras usinas de rio (correnteza) abaixo.
Determinando quando e quanto cada usina deverá gerar, o sistema de despacho centralizado
assegura que a água disponível é usada de maneira mais eficiente, optimizando assim, o
output total de energia com o custo menor. Se uma empresa gera menor energia que o
estabelecido no contrato, obterá energia de uma outra empresa que gerou energia em excesso
(ultrapassando a sua necessidade), pagando o custo operativo da energia adquirida. A
Eletrobrás estimou que, em 1996, o sistema centralizado de despacho gerou economias totais
de eficiência na ordem de US$ 3.7 bilhões, otimizando o uso dos fluxos de água22.
Essas operações conduziram a uma melhor qualidade de serviço, a uma melhor utilização da
capacidade de geração instalada, ao aproveitamento da diversidade hidrológica existente entre
bacias e regiões e a um crescimento significativo nos dez anos seguintes, passando de 7.243,3
MW para 26.723 MW em 1979. Cumpre destacar, ainda, o Sistema Nacional de Supervisão e
Coordenação de Operação (SINSC), “um sistema computarizado de informações que
permitirá a supervisão e controle, em nível nacional, do sistema de potência interligado
brasileiro, oferecendo maior flexibilidade para adaptação de seus planos operacionais e
21
A atuação do GCOI fez com que se minimizassem algumas divergências entre empresas como Furnas, Cesp e
Light, decorrentes da utilização de combustíveis fósseis na complementação dos sistemas hidráulicos e da
interdependência de seus sistemas. O acordo operativo firmado entre a Chefs, Cemig e Furnas permitiu que, por
meio da ação conjunta dos sistemas elétricos e hidráulicos dessas empresas se atendesse a região Nordeste com o
mínimo de geração térmica (CMEB, 1988:211) e (Biblioteca do Exercito, 1977:175).
22
Como se verá no decorrer do trabalho, a lógica deste sistema serve como base para o Operador Nacional do
Sistema, organização chave na configuração atual do setor.
57
programações diárias às mudanças hidrológicas e outros eventos do sistema potência”
(CMEB, 1988:212).
Esse modelo centralizado do sistema de energia elétrica não era apenas visto como o mais
eficiente, a partir de bases técnicas e econômicas, mas também se adaptava ao modelo
desenvolvimentista, em que o papel do Estado era principal.
É importante salientar que, ao centralizar a planificação, operação e, até em certa medida, os
recursos financeiros para investimentos, o setor de energia elétrica no Brasil cresceu
rapidamente durante as décadas de sessenta e setenta, acompanhando, assim, o crescimento da
economia brasileira em geral e continuando a subsidiar os consumidores industriais. O
sistema centralizado alcançou os seus objetivos estratégicos. Em 1995, o Brasil construiu 55
512 MW de capacidade de geração de energia, 153 406 km de linhas de transmissão e 1.6
milhões km de linhas de distribuição e esses resultados históricos não devem ser esquecidos
apesar dos problemas atuais do setor (Ferreira, 1999).
3.4.
Crise e mudanças para o setor de energia elétrica
As mudanças no sistema de preços relativos ocorridas mundialmente, como resultado das
duas crises de petróleo em 1974 e 1979, da alta das taxas de juros no mercado financeiro
internacional e da valorização do dólar, afetaram a economia nacional, fortemente atrelada ao
sistema financeiro internacional. Visto que, inicialmente, essa conjuntura foi considerada
passageira, o governo continuou com a política de financiamento externo e interno. Com a
crise dos juros, a situação financeira do Estado e de suas empresas agravou-se ainda mais. A
existência de deficiências sistêmicas do Estado, decorrentes da adoção de estratégias
conflitantes com a lógica empresarial, praticando o achatamento dos preços públicos e
utilizando as empresas estatais como instrumento de ajuste financeiro do país, condicionou,
em grande medida, a crise. Paralelamente, a intervenção indireta do Estado na economia,
58
através do controle generalizado dos preços e da interferência nas decisões privadas de
investimento, também influenciou no agravamento da crise23. Durante os anos setenta, o setor
de energia elétrica ficou amplamente endividado à custa de empréstimos externos - prática
cultivada como um instrumento forte de política desenvolvimentista do governo.
“O uso, pelo governo, da política tarifária do setor elétrico como instrumento de
controle inflacionário, somado à centralização das decisões, à equalização tarifária e
ao modelo de remuneração de investimentos, colaborou para a crise financeira do
sistema elétrico, além de favorecer um inadequado e ineficiente desempenho
empresarial e uma crescente interferência política nas gestões das empresas
concessionárias” (FISCHER, TEIXEIRA & HEBER, 1998:19)
O modelo centralizado no setor da energia elétrica começou a apresentar sinais de
enfraquecimento. Segundo Ferreira (1999), a centralização da planificação e a disponibilidade
de financiamentos incidiram em decisões de investimentos errôneas. Considerando que a
economia de escala era a prioridade, as usinas de grande tamanho eram geralmente preferidas
em prejuízo de usinas menores. Isso levou a consideráveis investimentos que demandavam
amplos recursos financeiros e muito tempo para serem conduzidos, fazendo com que muitos
desses investimentos não pudessem ser completados.
Paralelamente, considerando que um retorno confortável sobre os ativos era garantido, não
existia incentivo para aumentar a eficiência e perdeu-se o controle dos custos. O crescimento
da importância das questões ambientais tornou obrigatório conduzir um Estudo de Impactos
Ambientais, que, na maioria dos casos, demandava significativos pagamentos compensativos
para os municípios ou as comunidades influenciados pelos projetos. Com o fortalecimento da
democracia, esses pagamentos tornaram-se cada vez mais freqüentes e também custosos.
A crise energética influenciou fortemente a ação planejadora da Eletrobrás. O planejamento
de médio e longo prazo foi praticamente abandonado e muitas das decisões essenciais da
Eletrobrás foram transferidas para órgãos externos ao setor. Foi prevista uma crise de
23
Sobre o assunto ver, Costa et al : 1993, Pinheiro & Giambiagi : 1992, Tenório : 1997
59
suprimento de energia elétrica por volta de 1990 na região Sudeste. Mesmo que a taxa de
crescimento anual consumo de energia elétrica se situasse sempre acima de 10% entre 1970 e
1980, a extrapolação dessa tendência por prazos mais longos levou à previsão de enormes
requisitos de potência instalada e decorrentes investimentos necessários no setor.
“A despeito do progresso alcançado em métodos e técnicas específicas de
planejamento, houve uma concentração de investimentos em obras de geração e
deficiências na expansão dos sistemas de transmissão e distribuição, criando-se, assim,
um quadro de sérias dificuldades para o setor, agravado no início da década de 1980
pela crise econômica que atingiu o país. Com o descompasso entre a demanda, que se
estabilizou, e a oferta crescente, houve temporariamente excesso de energia elétrica,
vendido a preço quase nulo para a substituição do óleo combustível no parque
industrial, de acordo com o programa de eletrotermia traçado pelo Ministério das Minas
e Energia. Num segundo momento, porém, a redução geral dos investimentos provocou
atrasos em vários troncos importantes de transmissão, contribuindo para a falta de
energia na região Sul, atingida por uma seca de grandes proporções” (CMEB,
1988:214).
Todos estes fatores levaram numa redução drástica dos níveis de investimentos (Gráfico 1).
Gráfico 1
Histórico dos investimentos no setor de
energia elétrica (bilhões de US$)
20
15
10
15.4
15.1
14.2
13.4
12.8
11.6
11.6 11
10.7
10.4
8.7 8.8 8.3
6.8
5
5.5
5.3
4.3 4.7
0
80 81 82 83 84 85 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96 97
O sistema centralizado, aparentemente funcionando de modo adequado, na prática começou a
apresentar disfunções. O modelo, teoricamente, deixava nas mãos dos estados a
responsabilidade para a distribuição da energia por meio de monopólios operantes em nível
60
estadual. No entanto, não se evitou que os governos estaduais mais ricos das zonas sul e
sudeste implementassem programas agressivos de investimentos para criar os próprios ativos
de geração e transmissão, para servir melhor às indústrias da região. Empresas como CESP,
Cemig, Copel e CEEE tiveram uma percentagem considerada dos ativos da geração de
energia elétrica no Brasil, ao lado do controle sobre as atividades de distribuição. A crise foi
mais forte nas empresas de propriedade estatal, sendo que, quando no começo dos oitentas, os
bancos de propriedade estadual tiveram problemas, alguns governos começaram a usar as
empresas de geração para financiar indiretamente seus déficit público, fazendo com que essas
ficassem responsáveis por algumas atividades não relacionadas com o seu negócio central.
Em alguns casos, as empresas estatais não pagavam suas contas de energia ou empregavam
funcionários muito bem pagos que, de fato, não trabalhavam nessas indústrias (Ferreira,
1999).
A propriedade e controle do sistema era dividido entre a área federal e estadual na seguinte
proporção:
Tabela 2: Propriedade e controle do sistema de energia elétrico brasileiro
SEGMENTO:
GERAÇÃO
TRANSMISSÃO
DISTRIBUIÇÃO
FEDERAL %
65
70
19
ESTADUAL %
35
30
79
PRIVADO %
2
Fonte: www.mme.gov.br
Na opinião de Teixeira & Santana, mencionados em Johnson, Saes, Teixeira & Wright (1996)
o processo de estatização se deu pela multiplicação de órgãos e empresas.
“Os processos que envolvem a participação da administração pública, em maior ou
menor grau, estão sujeitos à queda de eficácia por deficiências de vinculação entre
órgãos supostamente responsáveis por determinadas atribuições. Há um grande
número de órgãos envolvidos em diversas funções, inclusive em distintos níveis
governamentais. O fato de vários órgãos atuarem sobre os mesmos problemas de
modo não integrado gera um subaproveitamento de recursos e redução de eficácia
global, facilitando sobreposições e lacunas de atuação que acabam por comprometer o
quadro geral das funções que deveriam ser executadas” (1996:75).
61
Apesar desses problemas, lançou-se um grande programa de energia, o Itaipu, que já era
compromisso binacional e comprou-se a Light. “Começava a derrocada dos serviços de
eletricidade, mas a solidez do sistema que se havia construído evitou, até recentemente, um
colapso físico” (LEITE, 1999:3).
Estes fatores influenciaram no enfraquecimento do modelo estatal implementado por vários
anos. A seguir, será analisado o processo de reestruturação e privatização e as suas principais
características.
62
CAPITULO 4
4.
RESTRUTURAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO DO SETOR DE ENERGIA
ELÉTRICA
Neste capítulo, será apresentado o processo de reestruturação e privatização do setor de
energia elétrico. O processo abordar-se-á a partir de uma perspectiva maior de mudanças
estruturais que caracterizam o Brasil a partir dos anos oitenta. Será analisada a proposta de
reestruturação do setor, apresentada pela consultora Coopers & Lybrand, assim como o
conjunto das leis que tem esculpido o desenho institucional do setor, visando apresentar o
modelo teórico de reestruturação do setor de energia elétrico brasileiro.
4.1.
Neoliberalismo e processo de privatização no Brasil
O modelo do Estado produtor de serviços públicos prevalece até o começo dos anos setenta.
A crise fiscal do setor público, a necessidade de aumentar a eficiência interna frente à
globalização, o descontentamento da população e a exigência de melhores prestações sociais
impulsionaram uma transformação na forma de exercício das atribuições estatais e dos
sistemas de provisão de serviços públicos (SARAVIA,1997).
O processo de privatização do setor de energia elétrico brasileiro insere-se num quadro maior
de mudanças que caracterizam Brasil durante os anos oitenta24. A política de privatização
24
“A “onda longa” das privatizações, como já foi denominada, se associa ao que talvez, por analogia física,
possamos melhor chamar de um pacote de ondas que interferiram entre si. Houve um processo econômico
emoldurado por uma série de fatos políticos:
No aspecto econômico:
§ A crise econômica incluindo os choques do petróleo ocorridos na década de 70;
§ As transformações tecnológicas com seus efeitos globais, acentuados na década de 80.
No aspecto político:
§ O governo conservador inglês de Thatcher em 1979;
§ O governo republicano norte-americano de Reagan em 1980;
§ As dificuldades políticas da social democracia européia a partir dos anos 80;
§ O desmoronamento dos regimes comunistas do Leste Europeu balizado pela queda do muro de
Berlim em 1989.
Em resumo, a crise econômica e as transformações tecnológicas associaram-se a mudanças em uma dinâmica
globalizante, em conflito com algumas formas de intervenção estatal (ROSA & SENRA, 1995:23-4)”.
63
surge como parte importante do processo de reformulação e recuperação da capacidade de
investimento e gerenciamento do Estado e, por indução, do próprio setor privado25.
Reconhecendo a falência do Estado, o desequilíbrio e a deterioração dos serviços públicos,
além da dificuldades de assegurá-los, institui-se o Programa Nacional de Desestatização
(PND), baseado no argumento de que cabe ao Estado concentrar-se nas funções de regulação
e fiscalização e afastar-se de atividades empresarias.
Uma maior participação do setor privado é considerada necessária para obter financiamentos
e aumentar a eficiência dos investimentos26. Visando ampliar o escopo do PND, de modo a
abranger não só a venda de empresas, mas também a transferência do controle de
concessionários ao setor privado, aprova-se a legislação que regulamenta o art. 175 da
Constituição Federal, estabelecendo: “Incumbe ao poder público, na forma da lei,
diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através da licitação, a
prestação dos serviços públicos”.
“Por concessão deve ser entendido o ato através da qual o Poder Público concede a
uma pessoa física ou jurídica, o direito de explorar, em seu nome e por conta própria,
mediante certos encargos e obrigações, determinada atividade econômica, de interesse
ou utilidade pública, durante um certo período do tempo” (WALD, et.al. ,1996:50)
A Lei de Concessões N.° 8.987 de 1995 - nascida do projeto do Senador FH Cardoso - define
as figuras de concessão de serviço público; concessão de serviço público precedida da
execução da obra pública; e, permissão do serviço público, sendo aplicada principalmente aos
setores de energia elétrica e de transportes, representando um importante avanço em matéria
de regulação. O regime jurídico da permissão é semelhante ao da concessão, exceto nos
seguintes aspectos: a permissão é outorgada por prazo indeterminado, por meio de assinatura
25
Sobre uma analise de fatores estruturais e conjunturais que impulsionaram o processo de privatização ver
Pinheiro & Gambiagi (1992) e Saravia (1995).
26
Apesar de que na opinião de Rosa & Senra (1995) a teoria econômica em favor de um Estado mínimo liberal,
caracteriza-se de uma fragilidade empírica, reina a confusão sobre o falso dilema entre a estatização por
princípio e a privatização por princípio.
64
de contrato ou termo de adesão; pode ser revogada pelo poder concedente a qualquer
momento; a permissão não tem, como obrigatoriedade, a licitação na modalidade
concorrência; a pessoa física pode ser apenas permissionária (BRASIL,1995). A lei é
considerada uma inovação, por determinar que o poder concedente seja sempre pessoa
jurídica de direito público - União, Estados, Distrito Federal e Municípios - e que qualquer
consórcio ou pessoa jurídica possa ser concessionário, inclusive empresas estatais. Todas as
concessões passam a ter prazo determinado, não há subsídios governamentais, impondo-se
aos concessionários os riscos empresariais, e o usuário participa oficialmente na fiscalização
da prestação dos serviços.
Juntamente com a figura de concessão, a Lei Geral de Concessões prevê a criação das
autarquias reguladoras, com o objetivo de criar condições favoráveis para o processo de
concessão dos serviços públicos e proteger o consumidor desses serviços. A função das
agências reguladoras é fiscalizar e regular o funcionamento de determinados setores da
economia ou serviços públicos concedidos pelo Estado27.
No entanto, como Saravia (1997) destaca, o serviço público, seja ele prestado diretamente
pelo Estado ou não, deve observar os princípios de igualdade: ser acessível,
indiscriminadamente, a todos; continuidade: estar à disposição do quem precisa dentro das
condições preestabelecidas; e adaptação: o progresso técnico deve se incorporar ao serviço e
este último deve ser prestado com eficácia.
27
Segundo Wald, et.al. (1996), a concessão se insere na política de privatização, ensejando uma simbiose entre
os interesses públicos e privados. As várias teorias que tentam explicar a figura jurídica da concessão se dividem
em suas opiniões. A corrente unilateralista, que vê a concessão como um ato unilateral do poder concedente,
defende a tese de que a concessão não pode ser um contrato, pois o serviço público está fora do comércio e
constitui exteriorização do poder soberano. Outra linha doutrinária vê na concessão a reunião dos elementos
constitutivos de um autêntico contrato, no qual são definidos direitos e deveres do poder concedente e do
concessionário. A Constituição Federal, no parágrafo único do art. 175, inciso I, se refere à concessão como um
contrato especial a ser regulado pela lei.
65
4.2.
Implicações para o setor de energia elétrica
O setor de energia elétrica também entrou numa fase de profunda reestruturação28. Rosa &
Senra (1995:20) destacam os principais argumentos utilizados em defesa da participação
privada no setor:
§ “introduzir alguma competitividade e melhorar a eficiência do setor, principalmente
para reduzir custos das obras contratadas com as empreiteiras;
§ a deficiência da gestão das empresas estatais no quadro político atual do Brasil,
pressionadas por todos os lados, com ingerências dos políticos dos governos e uma
legislação que as impede de atuar eficientemente;
§ a falta de recursos do Estado para investir no setor elétrico, necessitando-se financiálo”
Paralelamente, considera-se que as mudanças tecnológicas ocorridas em muitos setores abrem
mais espaço para a participação da iniciativa privada na provisão desses serviços, eliminando
antigos monopólios naturais 29. Segundo o Banco Mundial (1997), a geração de eletricidade,
mas não a transmissão e distribuição, como conseqüência do desenvolvimento tecnológico,
está sendo encarada como um campo para a concorrência. No entanto, no site da Comissão de
Serviços Públicos de Energia do Estado de São Paulo (CSPE)30, ressalta-se que o
desenvolvimento tecnológico permite, atualmente, que os sistemas de transmissão e
distribuição sejam acessíveis a qualquer produtor de energia. Desta forma, as redes elétricas
passam a ser como “estradas” onde o acesso é facultado a qualquer produtor ou
concessionária.
28
Na opinião de Leite (1999), várias tentativas de modernização da estrutura dos serviços de eletricidade
ocorreram desde que se constatou a necessidade de uma modernização mais profunda do setor. O movimento
começou dentro do próprio setor, sem ser influenciado externamente, através do REVISE (1987), programa que
não se viabilizou principalmente devido à disputas entre os representantes dos Estados com sistemas mais fortes
e os da Eletrobrás. Em seguida, foram realizados estudos ligados a aspectos de abertura de mercado e áreas de
concessão, aperfeiçoamento da estrutura tradicional, partindo do trabalho de consultores nacionais que na prática
não tiveram andamento.
29
A origem dos quais encontra-se nos custos decrescentes (Saravia, 1997).
30
Ver: CSPE. Respostas para as perguntas mais freqüentes. http://www.cspe.sp.gov.br/Pergunt2.htm,
11.05.1999.
66
Segundo Leite (1999), a idéia dominante era a de uma completa privatização. O caminho a ser
seguido contou com três principais componentes: projetos de lei parciais e específicos
elaborados no âmbito do próprio poder executivo federal e enviados ao Congresso Nacional;
definição das empresas e participações da Eletrobrás que seriam privatizadas; formalização do
projeto RESEB (Restruturação do Setor de Energia Elétrica Brasileiro) no âmbito da
Secretaria de Energia, com o objetivo de propor uma reestruturação completa do setor
elétrico.
Os primeiros passos em relação à reforma começam com a Lei N.º 8. 631 de março de 1993
(ver Fig. 1), que trata do Regime Econômico dos Concessionários de Eletricidade e que
eliminou a equalização geográfica das tarifas e o retorno de 10% sobre os ativos. A lei teve
uma tendência de descentralização do processo decisório, até mesmo para fixar as tarifas.
A nova fórmula para estabelecer as tarifas foi baseada na estrutura de custos, e refletindo as
necessidades do fluxo de caixa, em vez de uma meta arbitrária de retorno sobre os ativos. A
lei, que possibilitou a formulação de uma nova política tarifária, criou condições favoráveis
para o saneamento econômico-financeiro das empresas de energia elétrica e para um novo
quadro para o setor. O esforço para estabelecer tarifas reais para o setor não foi imediatamente
posto em prática, apesar de que o programa de privatização já tivesse-se iniciado durante o
Governo Itamar Franco. As novas circunstâncias políticas levaram à ruptura do
encaminhamento do processo31.
Lei 8631/93:
• Atualização da tarifa
• Tarifas por empresa
• Assunção de US$ 26 bilhões
em dívidas pelo Tesouro
Setor melhora mas:
•
Inadimplências ressurgem
Investimentos estagnados
Figura 1: Lei 8631/93
Fonte: Ministério de Minas e Energia (www.mme.gov.br), 14.11.1999
67
Durante o governo Fernando Henrique Cardoso, o processo de privatização fortaleceu-se
ainda mais. Em razão da insuficiência dos investimentos em períodos anteriores, o governo se
viu, em 1995, diante de elevados riscos de déficit de energia e de capacidade de geração, bem
como de crescentes restrições na transmissão. A incapacidade do Estado de prover os recursos
necessários à expansão se manifesta, e é comprovada, pela emergência de um novo ciclo de
inadimplências entre as concessionárias. O quadro era agravado, ainda, pela inexistência de
uma proposta concreta de reformulação do setor e pelas continuadas e expressivas taxas de
crescimento da demanda, em torno de 6% ao ano, impulsionadas pelos efeitos do Plano Real,
que elevou o poder aquisitivo da população de menor renda (www.mme.gov.br ).
Muitos argumentaram 32 que as características únicas do sistema não permitiriam a
privatização, pois o cerne do sistema elétrico não poderia ser desmantelado ou
descentralizado. O risco de desestruturação do sistema interligado, que é operacionalmente
eficiente, seria muito alto. A passagem do monopólio às mãos do setor privado produziria
outros custos monopolísticos, sem gerar benefícios da competição, tendo como exemplo o
caso argentino, em que depois das privatizações, aumentaram-se acentuadamente as tarifas de
energia elétrica, apesar do discurso contrário do governo33. Considerava-se que as empresas
privatizadas dificilmente investiriam nas obras de expansão de energia que dão retorno a
longo prazo.
Entretanto, os defensores de privatização apoiavam um processo rápido que visava aumentar
imediatamente os investimentos e melhorar a gerência. Isso levou ao começo dos primeiros
31
Ver Leite (1999), Ferreira (1999) e Rosa & Senra (1995).
Ver Ferreira (1999) e Rosa & Senra (1995).
33
De fato, aqui no Brasil, as tarifas dos clientes da Light - uma das primeiras empresas a ser privatizada aumentaram 3,01% em 08/11/1998, com a aprovação do ANEEL. Desde que a empresa foi privatizada, em 1996,
foram autorizados quatro aumentos de tarifas e, apesar de os reajustes serem anuais, a Light aumentou, em 1997,
seus preços em 4% em maio e em 5,8% em agosto, repassando o reajuste do custo de energia fornecida por
Furnas e Itaipu. Outros casos de “apagões” e de ameaças de faltas de luz são registradas constantemente nas
páginas dos jornais (COSTA & PECI, 1999).
32
68
processos de privatização, sem consolidar-se o adequado marco regulatório, necessário para
acompanhar o processo antes e depois da privatização.
Segundo o próprio governo (www.mme.gov.br ) quatro principais linhas de ação foram tomadas:
F a criação de um regulador independente e autônomo (ANEEL) e a emissão de
regulamentos iniciais, essenciais para a privatização da distribuição e para a viabilização
de projetos e contratos voltados para a expansão da geração.
F Providências para garantir a expansão do sistema e da oferta envolvendo, entre
outros, a retornada de obra paralisadas, cancelamento de concessões de projetos não
iniciados, a licitação de hidrelétricas, a autorização de termelétricas e interconexões com
países vizinhos. Tais atividades mereceram prioridade para evitar um racionamento e,
também, para garantir o equilíbrio da oferta e da demanda, com o objetivo de que a
liberação do mercado não acontecesse sob pressão da demanda, afastando um impacto
sobre os preços, com a visão de proteger o consumidor e o País de um choque tarifário.
F A privatização da distribuição, que foi iniciada, de imediato, em função das seguintes
razões:
-
era factível, ainda sem se dispor do dito momento do Modelo de Mercado, porquanto
neste segmento o contrato de concessão podia conter todas as regras necessárias para
definir o escopo normativo do serviço concedido;
-
era natural que o Governo Federal, na condição de principal gerador através do grupo
ELETROBRAS, abrisse mão das duas únicas distribuidoras importantes sob seu
controle, a ESCELSA e a LIGHT. Esta opção, foi seguida por praticamente 80% dos
governos estaduais, que optaram por privatizar suas concessionárias elétricas;
69
-
atendimento ao imperativo macroeconômico de ajuste e reforma do Estado, abatendo da
dívida pública os resultados da venda destes ativos;
-
estabelecimento de um impulso às mudanças que, há muito, se faziam necessárias;
-
e, principalmente, a privatização da distribuição eliminava a exigência dos potenciais
investidores, interessados nos projetos de expansão e na privatização da geração, por
garantias do Governo Federal pelo pagamento dos contratos de suprimento, face ao
risco de inadimplências das concessionárias, enquanto sob administração dos governos
estaduais.
F detalhamento do modelo de mercado, desenvolvido por meio da interação de um grupo
de consultores, liderados pelo COOPERS & LYBRAND, com as equipes técnicas do setor
elétrico brasileiro.
Modelo
Estatal
Esgotado
+
Poucos Projetos
e
Atrasos nas
Obras
Conjunto de Medidas Adotadas para:
1. Regulamentação/ANEEL
2. Retomada das Obras
3. Saneamento e Privatização
4. Organização do Novo Mercado
Figura 2. Principais linhas de ação
Fonte: Ministério de Minas e Energia (www.mme.gov.br)
A Lei de Concessões, N.° 9.074 de julho de 1995, estabelece regras relacionadas diretamente
com as concessões no setor de energia elétrica e institui a figura de Produtor Independente de
Energia 34, criando assim, na opinião de Silva (1996), um maior espaço para a
internacionalização da oferta de energia, ou a multinacionalização dos empreendimentos. Em
seguida, o Decreto n.º 2.003 regulamentou o Produtor Independente de Energia e o
70
autoprodutor de energia elétrica. Na opinião de Rosa & Senra (1995), os geradores
independentes não têm a responsabilidade de concessionários de serviço público, e, para
explorar recursos hídricos – responsabilidade da União – exige-se concessão. A mesma crítica
destaca-se no decorrer da pesquisa de campo. Na opinião de Saravia (ASEP/RJ, entrevista,
2000), a possibilidade de tornar as concessionárias em produtores independentes não é
adequada, posto que, assim, não terão as mesmas atribuições. O debate quanto à
constitucionalidade de desapropriação de um bem público para uso privado continua.
Outras leis que serão analisadas no decorrer do trabalho são de suma importância para o setor
de energia elétrica. Paralelamente com os trabalhos no campo legislativo, foi elaborado o
relatório do consórcio de consultores Coopers & Lybrand, que foi apenas divulgado no final
de 1998. Os resultados do processo de privatização do setor de energia elétrica são
apresentados na Tabela 3:
34
Antigamente, os geradores privados de energia poderiam produzir apenas para o próprio consumo. A lei
estabelece que o Produtor Independente de Energia (PIE) pode vender energia para “livres consumidores”
(FERREIRA, 1999:146).
71
Tabela 3.
PRIVATIZAÇÕES DO SETOR ENERGÉTICO BRASILEIRO
EMPRESAS
% Ações
Ordinárias
VALOR DA VENDA
em R$ milhões
ÁGIO
11.07.95
97,27
357,92
11,80%
21.05.96
20.11.96
50,44
70,27
2.697,94
605,33
0%
30,30%
31.07.97
05.09.97
21.10.97
21.10.97
05.11.97
19.11.97
27.11.97
03.12.97
12.12.97
71,14
94,18
90,75
90,91
57,6
84,21
96,27
91,8
80,2
1.730,89
779,76
1.635,00
1.510,00
3.014,91
625,56
391,5
577,1
676,4
77,40%
43,50%
82,60%
93,60%
70,10%
83,80%
21,80%
96,10%
73,60%
02.04.98
15.04.98
09.07.98
16.07.98
15.09.98
17.09.98
84,59
74,88
54,98
90
50,01
74,88
987
2.026,73
450,26
1.479,00
945,7
1.014,52
27,20%
0%
0%
98,90%
0%
0%
38,70
38,66
1.260,22
938,06
90,2%
30%
DATA
Energia Elétrica
1995
ESCELSA
1996
LIGHT
CERJ
1997
COELBA
CACHOEIRA DOURADA
RGE
AES Sul
CPFL
ENERSUL
CEMAT
ENERGIPE
COSERN
1998
COELCE
ELETROPAULO Metropolitana
CELPA
ELEKTRO
GERASUL
EBE- Bandeirante
1999
CESP-PARANAPANEMA
CESP-TIETÊ
28.07.99
27.10.99
Sub Total – Energia Elétrica
23.703,80
Gás
1997
CEG
Rio Gás S/A
14.07.97
14.07.97
56,4
75
464,2
157,9
85,70%
49,40%
14.04.99
67,2
1.652,00
119,35%
1999
COMGÁS
Sub Total – Gás
TOTAL
2.274,1
25.977,90
Última atualização 4/11/99
Por SEM – DNPE – CGIE
Correio eletrônico: [email protected]
72
4.3.
Coopers & Lybrand: proposta do modelo de reestruturação do setor 35
Em dezembro de 1994, o Forum/COPPE elaborou um estudo entregue ao vice-presidente da
República Marco Maciel, baseado na idéia de que “após anos de discussão e desentendimento
setorial, seria possível e necessário a adoção de uma série medidas de consenso que trariam
um novo quadro institucional de maior estabilidade para os agentes setoriais e os
consumidores” (Rosa & Senra, 1995:54).
“Considerando a magnitude e importância do setor, a diversidade de agentes, as
características do sistema elétrico brasileiro (interligação energética e elétrica), o longo
prazo de maturação de seus projetos e o rebatimento das grandes questões políticas
nacionais sobre os agentes setoriais como alguns dos aspectos que tornariam
extremamente complexa qualquer tentativa de ruptura brusca do modelo vigente. A
saída para o impasse seria negociar mudanças que fortalecessem os consensos e que
permitissem progressivamente avanços para a formação de um novo quadro
institucional” (1995:55).
As mudanças deveriam ser baseadas nos seguintes princípios:
F abertura de setor para novos agentes privados, principalmente na expansão do sistema;
F fortalecimento do poder concedente;
F preservação e valorização do patrimônio público, sem significar a manutenção do statusquo das empresas;
F introdução de mudanças estruturais que visem o saneamento das empresas públicas;
F implementação de uma maior participação dos consumidores nas decisões e na
fiscalização do setor e dos serviços;
F implementação de mudanças em forma progressiva, firme e coerente, possibilitando a
adequada adaptação dos agentes a uma re-regulamentação, incluindo a participação
privada e uma participação pública mais eficiente.
Em 1996, a Eletrobrás contratou a empresa de consultoria Coopers & Lybrand (por meio de
licitação), para elaborar um novo modelo para o setor de energia elétrica no Brasil. No
35
Essa parte de trabalho baseia-se nos trabalhos de Ferreira (1999) e Leite (1999).
73
entanto, muitas das privatizações em nível estadual já vinham acontecendo paralelamente aos
trabalhos da consultoria. Duas subsidiárias de distribuição da Eletrobrás foram privatizadas: A
Escelsa (junho de 1995) e a Light (maio de 1996).
O Relatório Final do Projeto RESEB conteve muitas proposições de grande importância para
o setor, respondendo, assim, a uma reforma radical. O objetivo principal do relatório foi o
estabelecimento da possibilidade de competição com a maior amplitude dentro do setor. Entre
os aspectos fundamentais podem ser destacados:
F A dissociação vertical das empresas integradas, nos seus segmentos de geração,
transmissão e distribuição;
F A limitação horizontal da capacidade de geração dos produtores e da extensão do mercado
de distribuidores;
F A introdução do conceito de produtor independente;
F Livre acesso à rede de transmissão;
F Reconhecimento de uma categoria de distribuidores não cativos de qualquer distribuidora;
F A constituição de um órgão regulador;
F A proposta de desdobramento das funções até então exercidas pela Eletrobrás, em várias
entidades: holding de propriedades federais remanescentes, agente financiador setorial,
coordenador de operações do mercado interligado e planejamento indicativo de longo
prazo;
F Proposta de criação do Operador Nacional de Sistemas (ONS), substituindo o Grupo
Coordenador para Operação Interligada (GCOI), que funcionava no âmbito da Eletrobrás;
e a instituição do Mercado de Atacado de Energia (MAE), ambos a serem organizados
como entidades privadas geridas pelos próprios concessionários.
Tendo orientado as ações do MME, quanto à reestruturação, desde os primeiros meses de
1997, o projeto viabiliza o início da privatização dos ativos de geração, a ser iniciada pela
74
GERASUL. Ao mesmo tempo, se transfere à ANEEL, ao Mercado Atacadista de Energia
Elétrica e ao Operador Nacional do Sistema Elétrico, o marco regulatório consistente tantas
vezes reclamado, além de um conjunto expressivo de procedimentos elaborados pelos
próprios técnicos do setor que se incorporaram ao processo de reestruturação
(www.mme.gov.br ).
As figuras 3 e 4 resumem o processo RESEB e a das etapas da reestruturação e desestatização
do setor elétrico:
Ago/96
CONTRATAÇÃO
CONTRATAÇÃO
DOS
DOS
CONSULTORES
CONSULTORES
Out/96
PRIMEIRO
PRIMEIRO
RELATÓRIO
RELATÓRIO
Processo Reseb
DIRETRIZES
DIRETRIZES
BÁSICAS
BÁSICASPARA
PARA
AAAA
NEEL
NEEL
TÉCNICOS
TÉCNICOSDO
DO
SETOR
SETOR
Jun/97
RELATÓRIO
RELATÓRIO
COMPLETO
COMPLETO
TRANSFERÊNCIA
TRANSFERÊNCIA AA
ANEEL
ANEEL
Jul/98
COMPLEMENTAÇÃO
COMPLEMENTAÇÃO
LEI
LEIINSITUINDO
INSITUINDO
MAE
MAEEEONS
ONS
Ago/98
•• ASSINATURA
ASSINATURAACORDO
ACORDOMAE
MAE
•• CONSTITUIÇÃO
CONSTITUIÇÃODO
DOONS
ONS
Figura 3: Processo RESEB
Fonte: Ministério de Minas e Energia (www.mme.gov.br) , 13.11.1999
75
Figura 4. Fluxograma das etapas da reestruturação e desestatização do setor elétrico
Fonte: Ministério de Minas e Energia: www.mme.gov.br
76
A seguir será analisado o novo modelo do setor de energia elétrico brasileiro, a partir da
abordagem de redes.
77
CAPITULO 5
5.
CRIAÇÃO DO AMBIENTE COMPETITIVO E DO MARCO
REGULATÓRIO: ANÁLISE DAS MUDANÇAS A PARTIR DA
PERSPECTIVA DE REDES
Neste capítulo, analisar-se-á a nova configuração do setor de energia elétrico brasileiro com
base na abordagem de redes. Fundamentada na análise dos questionários distribuídos no
decorrer da pesquisa de campo, identificar-se-ão as principais organizações integradoras do
setor. A seguir, estas últimas serão analisadas a partir de ponto de vista dos novos agentes do
setor. Destacar-se-á a política nacional de energia elétrica e o papel do governo federal e
estadual no processo; a Agência Nacional de Energia Elétrica e as relações que esta vem
estabelecendo com empresas, usuários e outros agentes do setor; O Mercado Atacadista de
Energia; o Operador Nacional do Sistema; assim como o papel que Eletrobrás e BNDES
desempenham.
5.1 O setor de energia elétrica a partir da abordagem de redes
A teoria das redes constitui um importante referencial teórico a fim de entender melhor a nova
configuração dos setores de serviços públicos (vistos como redes) depois das privatizações. O
objetivo principal deste trabalho é a analise da nova configuração do setor de energia elétrico
brasileiro a partir desta perspectiva. Como já visto nos capítulos anteriores, é possível destacar
uma mudança significativa decorrente dos processos de privatização e restruturação: passa-se
do controle gerencial e operacional, centralizado nas mãos do Estado, para uma nova
configuração mais parecida com uma rede, sem centros de controle, na qual outras
organizações como ANEEL, ONS, MAE etc. são designadas a desempenhar um papel
integrador. Mas, desempenham elas na realidade esse papel? Qual é a percepção dos agentes
setoriais?
78
A seguir, apresentam-se os principais conceitos da abordagem das redes que serão utilizados
na análise do setor:
Tabela 4: Conceitos utilizados na análise da rede do setor elétrico
Conceito
Definição
Formalização
Regras, políticas e normas que direcionam o papel, o comportamento e
as atividades das organizações de uma rede;
Complexidade
Número de diferentes elementos que devem ser integrados para que a
estrutural
rede atue como uma unidade;
Densidade
Número de relações que existem numa rede, comparadas com o
número total de relações possíveis, se todos os membros da rede se
relacionassem com cada um dos outros;
Centralidade de
O ponto em que um ator – membro da rede – tem controle sobre o
intermediação
acesso de outros atores em várias regiões da rede.
Uma das características principais da rede de energia elétrica é o alto grau de formalização.
Ela é construída com base numa série de leis, normas e regras que regulamentam as relações
estabelecidas entre os vários atores sociais que a compõem e direcionam seus papéis,
comportamentos e atividades.
No entanto, observou-se no decorrer da pesquisa de campo que, apesar das medidas tomadas,
o setor de energia elétrica encontra-se ainda numa fase de transição e que as regras que a
regem não estão bem estabelecidas. Na opinião de um dos entrevistados, o próprio setor
privado exige uma certa segurança para investir e as regras ainda não claras do jogo estão
inviabilizando esses investimentos. Uma crítica geral é que o processo de privatização e
79
restruturação começou antes da criação da própria agência reguladora, sem estabelecer um
aparelho adequado de regulação e fiscalização (ASEP/RJ, entrevista: janeiro, 2000).
O sistema de energia elétrico pode ser considerado como altamente complexo. As
concessionárias e outras empresas de energia elétrica, as organizações como ANEEL, ONS,
MAE e os próprios usuários dos serviços de energia elétrica fazem parte desta rede e
desempenham diversos papéis. A Tabela 5, resume os papéis recomendados pela consultora
Coopers & Lybrand e que, de certa forma, foram incorporadas pelas organizações
integradoras da rede analisadas no decorrer do trabalho:
Tabela 5. Novos Papéis Setoriais Recomendados
Papel de Holding Papel de
Papel do
Papel de
Federal
financiamento de operador
planejamento
setor
independente indicativo
do sistema
Objetivo:
Objetivo:
. participações federais: . empréstimos de
longo prazo para
- Itaipu
empresas públicas e
– Nuclen
privadas de G/T/D;
– Cepel;
. Propriedade federal da . canal para fundos
transmissão (pendente nacionais de serviço
de Itaipu, RGR e
de decisão política
sobre privatização);e produto das taxas de
concessão;
. Outras iniciativas
. obter fundos
governamentais
internacionais de
BID/BIRD e
mercados de capitais;
. canal para recursos
do governo em
projetos hidrelétricos
de interesse público;
. participação em
projetos em troca do
financiamento de
estudos de
viabilidade; e
. garantias políticas e
outras
Objetivo:
. controle central
independente dos
sistemas
interligados;
. livre acesso à
malha básica;
. planejamento
operacional,
inclusive
programação e
despacho; e
. medição e
cálculos de
liquidação em
nome do MAE
Papel de prestação
de serviços ao
setor
Objetivo:
Objetivo:
. coordenação de
. planejamento
indicativo integrado relações técnicas
internacionais em
de geração e
questões não
transmissão;
operacionais e não
. manutenção de
inventários hídricos, comerciais;
. apoio ao “Conselho
estudos de preNacional de P&D”
viabilidade, etc.;
. prestação de serviços
. coleta de dados
contratados pela
hidrológicos em
nome da ANEEL: ANEEL em bases
temporárias;
. apoio ao poder
concedente/ANEEL . prestação de serviços
de treinamento;
na licitação de
. operação do PROCEL;
concessões;
. padrões técnicos,
. Coordenação do
biblioteca, arquivos, etc
COMASE;
. manutenção de um . Centro de memória
eletricidade no Brasil; e
banco de dados
. Trabalhar em conjunto
central
. prestar assistência a com fornecedores de
equipamentos para
PIEs e automelhorar a qualidade de
produtores
produtos e processos.
. suportar na
implementação de
projetos
. Formatar o
desenvolvimento de
pequenas usinas
Fonte: www.mme.gov.br/sem/fig7.htm
80
Na opinião de Cavalcanti (CAVALCANTI, 1998:81),
“A situação descrita como uma rede interorganizacional expressa um padrão total de
interação em um grupo de organizações que se dispõem a atuar conjuntamente, como
um sistema, para alcançar objetivos próprios e coletivos, ou resolver problemas
específicos de um clientela alvo ou setor. As organizações atuantes como rede estariam
orientadas não apenas para seus objetivos próprios, mas também para objetivos
coletivos. Manteriam relações sistemáticas, e até mesmo padronizadas, com suas
congêneres. No que concerne à atuação sobre a região a ser desenvolvida, ou o recurso a
ser gerenciado, demostrariam um grande conhecimento uma das outras sobre funções e
responsabilidades de cada uma, no que se refere ao problema, e manifestariam um
elevado grau de consenso em relação à política em vigor. No contexto ideal de uma
rede, as organizações se caracterizam ainda por evitar disputas em torno de domínios
definidos de maneira ambígua. Em geral, avaliam positivamente as relações de
interdependência existentes” (Grifo nosso).
Um dos objetivos da pesquisa foi observar quais destas organizações eram consideradas chave
para o funcionamento do setor de energia elétrica, a partir da percepção dos próprios agentes.
O modelo teórico construído a partir da pesquisa bibliográfica, foi comparado com as
conclusões decorrentes da pesquisa de campo. Para isso, um das perguntas principais do
questionário distribuído concentrava-se na identificação destas organizações. Os resultados
são apresentados na Tabela 6:
Tabela 6. Conhecimento das organizações chaves do setor de energia elétrica
Organizações chave do setor de energia elétrica brasileiro
Respostas
Agência Nacional de Energia Elétrica
100%
Operador Nacional do Sistema de Energia Elétrica
92%
Mercado Atacadista de Energia
92%
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
92%
Secretaria de Energia/ Ministério de Minas e Energia
84,6%
Eletrobrás
84,6%
As respostas foram dadas por representantes formais das organizações incluídas na amostra,
na maioria dos casos, responsáveis pelas relações institucionais da organização e a par das
81
mudanças e transformações que vêm percorrendo o setor de energia elétrica brasileiro.
Entretanto, outros funcionários destas organizações compartilhariam as mesmas opiniões?
Pensando nisso, uma amostra de cinco questionários foi distribuída numa das organizações, a
Furnas. De fato, evidenciou-se uma grande diversidade nas respostas. Os próprios
funcionários não compartilhavam as mesmas opiniões e, também, as respostas consolidadas
na seguinte tabela diferem dos dados apresentados acima.
Tabela 7. Resultados da amostra Furnas
Organizações chave do setor de energia elétrica brasileiro
Respostas
Operador Nacional do Sistema de Energia Elétrica
100%
Agência Nacional de Energia Elétrica
80%
Mercado Atacadista de Energia
80%
Secretaria de Energia/ Ministério de Minas e Energia
60%
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
20%
Eletrobras
0
A seguir serão analisadas essas organizações, seu papel, seus objetivos e as relações que estão
estabelecendo com outros agentes, a partir dos resultados da pesquisa bibliográfica e de
campo.
5.2 Política Nacional de Energia Elétrica
O Ministério de Minas e Energia é o principal responsável pela política nacional na área de
energia elétrica. O Conselho Nacional de Energia Elétrica é um órgão de assessoramento do
Presidente da República e tem por finalidade:
Formulação de políticas e diretrizes de energia destinadas a:
82
I – promover o aproveitamento racional dos recursos energéticos do País, em conformidade
com o disposto na legislação aplicável e com os seguintes princípios:
a. preservação do interesse nacional;
b. promoção do desenvolvimento sustentado, ampliação do mercado de trabalho e
valorização dos recursos energéticos;
c. proteção dos interesses do consumidor quanto a preço, qualidade e oferta dos
produtos;
d. proteção do meio ambiente e promoção da conservação de energia;
e. garantia do fornecimento de derivados de petróleo em todo o território nacional, nos
termos do § 2º do artigo 177 da Constituição Federal;
f. incremento da utilização do gás natural;
g. identificação das soluções mais adequadas para o suprimento de energia elétrica nas
diversas regiões do País;
h. utilização de fontes renováveis de energia, mediante o aproveitamento dos insumos
disponíveis e das tecnologias aplicáveis;
i. promoção da livre concorrência;
j. atração de investimento na produção de energia;
k. ampliação da competitividade do País no mercado internacional;
II – assegurar, em função das características regionais, o suprimento de insumos energéticos
ás áreas mais remotas ou de difícil acesso do País, submetendo as medidas específicas ao
Congresso Nacional, quando implicarem criação de subsídios, observado o disposto no
parágrafo único do artigo 73 da Lei n.º 9.478, de 1997;
III – rever periodicamente as matrizes energéticas aplicadas às diversas regiões do País,
considerando as fontes convencionais e alternativas e as tecnologias disponíveis;
83
IV – estabelecer diretrizes para programas específicos, como os de uso do gás natural, do
álcool, de outras biomassas, do carvão e da energia termonuclear;
V – estabelecer diretrizes para a importação e exportação, de maneira a atender às
necessidades de consumo interno de petróleo e seu derivados, gás natural e condensado, e
assegurar o adequado funcionamento do Sistema Nacional de Estoques de Combustíveis e o
cumprimento do Plano Anual de Estoques Estratégicos de Combustíveis, de que trata o artigo
4º
da
Lei
nº
8.176,
de
8
de
fevereiro
de
1991
(http://www.mme.gov.br/sem/cnpe/todocnpe.htm).
Figura 4. Composição do Conselho Nacional de Política Energética
Fonte: Ministério de Minas e Energia http://www.mme.gov.br/sem/cnpe/todocnpe.htm).
Segundo ressaltou o representante da secretaria de Energia do MME, Izaltino Camozzato,
durante seu pronunciamento no Seminário Internacional “Mercado futuro de energia” (1999),
para que o novo mercado de energia elétrica funcione é necessário uma regulamentação
clara e de conhecimento de todos, assim como uma grande confiança na entidade que o
84
administra e nos agentes. No entanto, no Brasil, está se tentando colocar em prática uma
legislação clara, mas “não estamos ainda com todos os componentes de regulação, estamos
numa fase de transição, que está se colocando em prática de forma organizada” (Grifo
nosso).
No decorrer da pesquisa de campo, em apenas 84,6% dos questionários, considera-se o
Ministério de Minas e Energia – Secretaria de Energia, como uma organização chave para o
adequado funcionamento do setor.
Dos que responderam, 53.85% destacam a função do MME na área de política energética e
38.46%, na área de planejamento36. Em apenas um dos questionários (7.7%), apontam-se o
apoio à pesquisa e desenvolvimento tecnológico, a eficiência energética e a coordenação das
questões internacionais como funções importantes do Ministério na área energética. Num dos
questionários critica-se o Ministério como inoperante e desconhecedor da complexidade do
setor de energia elétrico brasileiro.
Paralelamente, numa das entrevistas (ASEP/RJ, 2000), critica-se a política energética
nacional, baseada em medidas provisórias que ficam vigorando por vários anos. Como já
destacado, o começo do processo de privatização, antes do fortalecimento do marco
regulatório, é considerado um grave erro.
Parte dos entrevistados na Subsecretaria de Energia, da Indústria Naval e do Petróleo do
Estado do Rio de Janeiro também encara, com olhar crítico, a política nacional de energia
elétrica. Considerando que existem diferentes posições políticas entre o Governo Federal e o
do Estado do Rio de Janeiro, os entrevistados destacam o fato de não ser contra a privatização
em si, mas contra o modo como esta última vem sendo aplicada. Segundo os entrevistados:
36
Ver no decorrer do trabalho 5.6 “Planejamento e Financiamento no novo modelo”
85
“O plano de privatização das empresas públicas aponta para um modelo onde se
desverticaliza a empresa na parte de geração e transmissão. A posição da Secretária de
Energia, portanto a posição oficial do Governo do Rio de Janeiro, é que esta posição
não é adequada para as empresas públicas. Uma das empresas da geração, suponhamos
G1, estaria muito bem sustentada, a outra nem tanto, e a transmissão não se sustentaria.
Hoje o que justifica os investimentos na área de transmissão é apenas a transferência
dos recursos da uma área para a outra, então quando você pulveriza a transmissão isso
torna difícil a situação. Ainda existe a questão do controle das águas, que é uma questão
importante, que não está ainda resolvido. Nos EUA, o exemplo do capitalismo, essas
empresas não foram privatizadas, considerando que temos a ver realmente com uma
questão estratégica, que passa pela soberania”.
Os representantes das empresas de energia elétrica entrevistados no decorrer da pesquisa de
campo divergem na avaliação da política do Ministério de Minas e Energia com relação aos
processos de reestruturação e privatização. Representantes das empresas públicas em fase de
privatização (Furnas, 1999) criticam a política governamental de privatização e
desverticalização; representantes das empresas privadas (Light, 1999) criticam a falta das
regras claras para o setor e a continuidade da fase de transição; os da Eletrobrás (1999) são a
favor de um papel mais forte da empresa como braço operacional do MME; representantes da
cooperativa de energia (2000) criticam a falta de política governamental na área de
eletrificação rural por vários anos, mas têm expectativas com relação ao novo programa do
Governo, “Luz no Campo”, direcionado a esta área.
Para a pesquisa ser mais aprofundada, é importante incluir na análise a avaliação dos
processos de reestruturação e privatização, a partir da percepção dos usuários dos serviços
públicos de energia, baseada nos resultados, divulgados em 09 de Março de 2000, da pesquisa
realizada pela AGERGS37 (Agência Reguladora dos Serviços Públicos Delegados do Rio
Grande do Sul) sobre a qualidade dos serviços públicos, com ênfase para a energia. O
levantamento foi feito com usuários de energia elétrica do Estado do Rio Grande do Sul,
sorteados dentre as relações de consumidores das concessionárias, no período de outubro de
37
Uma análise mais profunda das agências reguladoras estaduais encontra-se no: 5.3.1.3 Relação Agência
reguladora – outros atores sociais.
86
99 a janeiro deste ano. Foram enviados 32 mil questionários, tendo retornado pouco mais de
3.100. A seguir, a autora apresenta alguns destes resultados que contemplam as opiniões, já
tabuladas, de 3.027 entrevistados.
Perguntados sobre os serviços de energia elétrica no 1999 em relação ao ano 1998, 56,9% dos
usuários respondem que não houve modificações, enquanto um número considerável (31,1%)
acham que estão melhorando:
Tabela 8. Questão 10 - Os serviços de energia elétrica neste
ano (99) em relação ao ano passado (98):
Respostas
Freqüência %
31,1%
Estão melhorando 907
Estão iguais
1657
56,9%
257
8,8%
Estão piorando
92
3,2%
Não sabe
2913
100,0%
Total
Não respostas = 114
50,2% dos usuários classificam a qualidade dos serviços prestados pela empresa de energia
como boa, enquanto 31,0% a classificam como regular:
Tabela 9. Questão 11 - De modo geral, classifica a qualidade
dos serviços prestados pela Empresa como:
Respostas
Ótima
Boa
Regular
Ruim
Péssima
Não sabe
Total
Freqüência
371
1488
918
128
48
11
2964
%
12,5%
50,2%
31,0%
4,3%
1,6%
0,4%
100,0%
Não respostas = 63
Os usuários destes serviços dão uma nota média de 7,39 para a qualidade geral da prestação
dos serviços de energia, classificando-os numa posição melhor do que os outros serviços
públicos como transporte interurbano, aeroportos, esgoto, telefonia e estradas pedagiadas
87
(Tab10). O grau de satisfação com a qualidade de prestação dos serviços segue a mesma
classificação (Tab.11):
Tabela 10. Questão 18 - Dê nota de 0 a 10 para a qualidade geral com que são prestados
os seguintes serviços públicos (ordenados de maneira decrescente conforme a média)
Desvio Intervalo de confiança 95%
Serviços públicos
Nº
Média Padrão Limite
Limite
Inferior
Superior
2845 7,56 2,21
7,47
7,64
Água encanada
Energia elétrica
2864 7,39 1,82
7,32
7,45
2629 6,96 2,16
6,87
7,04
Transporte interurbano
(ônibus)
2461 6,93 2,33
6,84
7,03
Aeroportos
2695 6,68 2,96
6,57
6,79
Esgoto sanitário
2791
6,57
2,57
6,47
6,66
Telefonia Convencional
2594 6,52 2,54
6,42
6,62
Telefonia Celular
2668 6,41 2,60
6,31
6,51
Estradas pedagiadas
Tabela 11. Questão 19 - Qual seu grau de satisfação de modo geral com a qualidade dos
seguintes serviços públicos (ordenados de forma decrescente de acordo com a satisfação)
Serviços públicos
Muito
Satisfeito Regular Insatisfeito Muito
Satisfeitos
satisfeito
Insatisfeito *
16,4
52,9
20,5
6,0
4,2
69,2
Água encanada
Energia elétrica
9,5
53,1
28,0
7,4
2,0
62,6
6,8
53,9
29,5
6,6
3,2
60,7
Aeroportos
14,9
43,6
22,5
9,0
9,9
58,5
Esgoto sanitário
45,3
27,4
10,5
6,1
56,1
Telefonia Convencional 10,7
13,2
38,9
31,5
11,8
4,6
52,1
Transporte urbano
(ônibus)
6,1
37,8
40,0
11,4
4,7
43,9
Estações rodoviárias
9,1
34,1
29,4
19,4
8,0
43,2
Estradas pedagiadas
* Percentual de clientes satisfeitos ou muito satisfeitos.
No entanto, 47,4% dos usuários consideram os serviços de energia elétrica caros ou muito
caros, aparecendo na classificação em quinto lugar:
88
Tabela 12. Questão 20 - Qual a sua avaliação quanto à tarifa paga pelos seguintes
serviços públicos, considerando os benefícios
( dos serviços considerados mais caros até os mais baratos)
Serviços públicos
Muito Barata Regular Cara Muito Cara*
barata
cara
1,2
2,0
15,1
42,5 39,2
81,7
Telefonia celular
1,6
4,4
21,5
38,1 34,4
72,6
Estradas pedagiadas
0,8
3,0
40,4
42,5 13,3
55,8
Taxas de aeroportos
4,6
43,6
36,6 13,9
50,5
Transporte interurbano (Ônibus) 1,3
Energia elétrica
1,6
6,2
44,8
33,5 13,9
47,4
1,6
7,5
47,3
32,7 11,0
43,7
Telefonia Convencional
2,4
14,3
42,0
28,3 13,1
41,4
Água encanada
1,2
7,5
57,0
28,2 6,1
34,3
Taxas de estações rodoviárias
3,6
17,0
49,0
19,8 10,6
30,4
Esgoto sanitário
* Percentual de clientes que acham o serviço caro ou muito caro.
Em relação à qualidade dos serviços antes e depois da privatização, 44,0% classificam os
serviços de energia como iguais; enquanto 26,8% como melhores (Tab.13). Enquanto que em
relação às tarifas, 58,8% acham que ficaram acima da inflação (Tab.14):
Tabela 13. Questão 28 - Depois da distribuição de energia ter sido privatizada, o serviço:
Respostas
Freqüência %
709
26,8%
Melhorou
Ficou igual
1164
44,0%
283
10,7%
Piorou
18,5%
Na minha cidade não foi privatizado 490
2646
100,0%
Total
Não respostas = 381
Tabela 14. Questão 31 - Depois que o serviço de distribuição de energia foi privatizado,
o preço da energia elétrica:
Respostas
Freqüência %
Aumentou acima da inflação 1690
58,9%
8,9%
Aumentou abaixo da inflação 254
197
6,9%
Não aumentou
726
25,3%
Não sabe
2867
100,0%
Total
Não respostas = 160
Fonte: Agência Estadual dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul.
http://www.agergs.rs.gov.br/. 08.04.2000.
89
5.2.1
O papel dos Governos Estaduais
Um importante dado destacado no decorrer da pesquisa de campo relaciona-se com o papel
dos governos estaduais na nova reestruturação do setor. Para averiguar esse dado, foram
realizadas entrevistas com representantes da Subsecretaria de Energia, Indústria Naval e
Petróleo do Estado do Rio de Janeiro (inclusive com o atual Subsecretário de Estado, Marco
Antônio Feijó Abreu) .
Na opinião dos entrevistados, a política de energia elétrica sempre foi uma tarefa do governo
federal. No Estado do Rio de Janeiro, o Governo Garotinho é o primeiro que criou uma
secretaria que cobre a área de energia. De fato, essas secretarias não existem ainda em vários
Estados. De forma a articular os interesses dos Estados nessa área, foi instituído um fórum de
secretários de energia que serve para discutir as carências de cada região e as demandas de
cada área. Nessas reuniões é possível observar que os representantes das áreas são os chefes
de gabinete, secretários de infra-estrutura, etc. No entanto, destaca-se que pela primeira vez
está se estabelecendo uma relação com o governo federal, negociando, tentando priorizar
investimentos no Estado do Rio de Janeiro.
“É um relacionamento que exige negociação, mas é também um relacionamento em que
nós, do Governo do Estado, estamos nos fortalecendo como um ator forte, que faz parte
deste novo cenário do setor de energia elétrica. O Governo tem quem o representa (a
Secretaria). Antigamente esse papel era desempenhado pela concessionária. A partir do
momento em que se privatizou nós perdemos até os arquivos. Hoje, se você procura está
tudo da Cerj ou da Light”. Então, o estado perdeu esse controle” (Secretaria de Energia,
Entrevista, 1999).
Ressalta-se que, com a venda das empresas estatais, o estado perdeu a voz: “Como é que o
Estado vai atuar se não tem assento em nenhum fórum? No CNPE/MME tem um
representante para todos os Estados, o que torna impossível uma verdadeira
representação”(Secretaria de Energia, Entrevista, 1999). A crítica continua:
90
“Nós não fomos contra ao modelo de privatização, mas no caso da modelagem da
privatização da CERJ nós temos algumas críticas. Não foram estabelecidas certas
salvaguardas. Quase 80% da parte rural do Rio de Janeiro está na área da concessão da
CERJ. Nós ainda temos regiões onde o núcleo de pobreza é bastante grande e a
necessidade de desenvolvimento alavancado pela energia elétrica seria de uma
importância muito grande. Entretanto, hoje o Estado do Rio de Janeiro ou os municípios
destas áreas não tem a possibilidade de intervir neste processo. A intervenção feita é
paralela, na base de negociações, tentando fomentar estudos ou investimentos através de
muitos recursos, mas não temos ainda instrumentos para interferir no processo de
decisão. A empresa privada está na busca de lucro e, quando uma empresa deste tipo
decide investir numa área, ela impulsiona-se pelo lucro. Nem sempre essas áreas tão
carentes são atrativas. A carência é tão grande em outras áreas, que a parte de
eletrificação rural fica sempre no segundo plano. Considerando que o Governo do atual
governador Garotinho tem uma conotação social muito grande, isso não é bom. O
pensamento neoliberal não é a nossa linha de atuação (Secretaria de Energia, Entrevista,
1999).
Durante o I Seminário Internacional: ”Energia no Brasil: Desafios e Oportunidades” (Abril de
2000), o Subsecretário Marco Antônio Feijó Abreu ressaltou esses pontos críticos. Segundo
ele, sem assento institucional e sem representação nos órgãos de planejamento setorial, o
papel do Estado vai ser sempre na base da articulação e negociação. Considerando que o setor
de energia elétrica caracteriza-se por problemas específicos, os quais não podem ser
resolvidos apenas a partir de uma perspectiva federal, o fortalecimento do papel do Estado é
essencial. O representante da Secretaria de Energia de Minas Gerais também enfatizou o
fortalecimento do papel do Estado como formulador de políticas, mobilizador e articulador.
5.3.
Agencia Nacional de Energia Elétrica
A mudança do papel do Estado no setor de energia, deixando de ser executor para se tornar
regulador e fiscalizador, tornou aguda a necessidade de criação do órgão regulador,
suficientemente aparelhado e capacitado para normatizar e fiscalizar os serviços de energia
elétrica, compatibilizando interesses dos diversos agentes e dos usuários em novo ambiente
institucional.
A lei n.º 9.247, de 26 de dezembro de 1996, criou a Agência Nacional de Energia Elétrica
(ANEEL), autarquia sob regime especial instituída pelo governo federal como órgão
91
regulador do setor de energia elétrica. Ultimamente, foi editada a Resolução 233, de 14.7.98,
da própria ANEEL, que aprova os procedimentos decisórios da agência e os respectivos
recursos. A administração da diretoria será objetivo de contrato de gestão, na tentativa de
aplicar outras medidas previstas no âmbito da Reforma do Aparelho do Estado em busca de
flexibilização. A autonomia financeira se assegura através de recursos oriundos da taxa de
fiscalização dos serviços de energia elétrica. Prevê-se, também, a possibilidade de
descentralização das atividades aos órgãos estaduais mediante convênios de cooperação com
os Estados e o Distrito Federal. De fato, a ANEEL começa a compartilhar as
responsabilidades com outras agências reguladoras em nível estadual, por meio de acordos
formais. O primeiro acordo foi assinado com a Comissão de Serviços Públicos de Energia,
(CSPE), seguido por outros em diversos estados como Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, etc.
A ANEEL, foi criada com base híbrida, combinando os modelos de órgãos reguladores dos
EUA e dos países da Comunidade Européia (FISCHER, TEIXEIRA & HEBER, 1998) e tem
por finalidade regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de
energia elétrica, zelando pela qualidade do serviço prestado, pelo trato isonômico dispensado
aos usuários e pelo controle da razoabilidade das tarifas cobradas aos consumidores,
preservando, sempre, a viabilidade econômica e financeira dos agentes e da indústria.
Compete especialmente à ela implementar as políticas e diretrizes do governo federal para a
exploração da energia elétrica e o aproveitamento dos potenciais hidráulicos, expedindo os
atos regulamentares necessários. “Proporcionar condições favoráveis para que o mercado de
energia elétrica se desenvolva com equilíbrio entre os agentes e em benefício da sociedade” é
a missão da ANEEL (www.aneel.gov.br). Enquanto a geração e comercialização para
consumidores “livres” (com poder e permissão para negociar, o que se pretende reduzir até
2003 ao nível de 0,3 MW, equivalente ao de uma padaria) se dará em um clima de competição
e maior risco; a transmissão, a distribuição, e a comercialização do consumidor cativo serão
92
atividades economicamente regulamentadas, com preços fixados pela agência, visando assim
a proteção do cidadão – consumidor sem poder de negociação.
A agência caracteriza-se por ter ampla autonomia e independência, a fim de manter-se imune
às pressões, influências e interesses, seja da parte das concessionárias privadas, seja da parte
do governo. Conforme destaca GOMES (1998),
“A questão da independência do regulador também é polêmica. Uma vez que as
agências são criadas pelos próprios governos, como e quanto elas poderiam ser
totalmente independentes deles? De fato nenhuma agência reguladora pode ser
totalmente independente. O que se pretende é que as agências tenham certa autonomia
para gerir suas reguladas com base em conhecimento técnico. As ações e decisões das
agências reguladoras devem ser respaldadas por justificativas técnicas e informadas aos
governos. A eles cabe definir estratégias e orientações macro-econômicas, sob as quais
os reguladores nortearão suas ações. Pretende-se, com isso, eliminar a ingerência
política nos órgãos reguladores de acordo com interesses escusos de curto prazo. É
importante que se crie um ambiente seguro e estável, onde os investidores possam sentir
confiança em depositar seu capital”
Nesse novo modelo, espera-se uma maior participação dos usuários, envolvidos diretamente
com a oferta do serviço. A autonomia e a capacidade de interlocução com os diferentes
agentes (concessionários, governo e usuários) torna a agência uns dos novos centros
integradores (empresas focais) do sistema. Como destacou um dos diretores da ANEEL
(Eduardo Henrique Ellery), durante o Congresso de Energia (1999), a ANEEL só tem sentido
de existir se trabalhar em parceria com Estados agências reguladoras em nível federal e
estadual, universidades, etc. Isso decorre da própria missão da agência e do esforço para
trabalhar em benefício da sociedade.
93
Figura 5. Organização a nível macro da ANEEL
Fonte: Ministério de Minas e Energia www.mme.gov.br/sem/fig6.htm
94
5.3.1
A agência vista sob a perspectiva de redes
A teoria das redes constitui um importante referencial teórico a fim de entender melhor a
posição das agências reguladoras, que passam a fazer parte da nova configuração dos setores
de serviços públicos (vistos como redes) depois das privatizações.
U
U
MME
Empresa
U
Empresa
ANEEL
ARE
ARE
Empresa
U
Empresa
U
U
Legenda:
Relações ANEEL – Concessionárias
Relações ANEEL – Governo
Relações ANEEL – usuários dos serviços públicos
Figura 6. ANEEL e a rede de relações
Um dos diretores da ANEEL, Affonso Henrique dos Santos, reconhece que os agentes com os
quais a agência lida, são diferentes. “Os agentes concessionários – que até influenciaram no
contrato da concessão – diferem dos agentes consumidores. A ANEEL deve garantir o
equilíbrio entre estes agentes com poderes desiguais”. (Congresso de Energia, 1999).
5.3.1.1 Relações ANEEL – Empresas atuantes no setor de energia elétrica.
Todas as empresas que responderam ao questionário classificam a ANEEL como uma das
organizações chave na nova configuração do setor de energia elétrica brasileiro, no entanto
não existe consenso sobre as funções da agência. A maioria dos participantes destacam o
papel da agência na área de regulamentação, assim como a atuação na área de fiscalização,
95
mas se reconhece apenas por 30,7% das empresas o papel da agência como Poder
Concedente. Mais: um dos respondentes critica esse papel da agência, destacando que deveria
haver um agente para atuar em nome do Poder Concedente que não fosse a Agência
Reguladora. De fato, na maioria dos países – assim como outras agências constituídas em
outras áreas de serviços públicos – o poder de concessão está nas mãos do governo.
Um dos participantes da pesquisa classifica a agência como inoperante e lobista das empresas
concessionárias. Apenas um dos respondentes não conhece as funções da agência.
Tabela 15. Conhecimento das funções da ANEEL
Funções da ANEEL Conhecimento (Respostas)
Regulamentação
84,6%
Fiscalização
46%
Poder Concedente
30,7%
Os participantes da pesquisa destacam a contribuição da agência na criação da base legal
necessária para o funcionamento adequado do setor de energia elétrica no Brasil. No entanto,
percebe-se um certo desconhecimento do princípio básico da agência – a equidistância das
relações estabelecidas com o governo, as concessionárias e os usuários, incorporado na sua
missão: “Proporcionar condições favoráveis para que o mercado de energia elétrica se
desenvolva com equilíbrio entre os agentes e em benefício da sociedade”. Um dos
respondentes ressalta a contribuição da agência na implementação da política de
desenvolvimento determinada pelo MME. Os representantes da Federação das Cooperativas
de Energia, Telefonia e Desenvolvimento Rural do RGS apontam a regulamentação do setor
energético nacional em benefício do usuário. Algumas das principais contribuições da
ANEEL para o setor de energia elétrica brasileiro, destacadas no decorrer da pesquisa se
resumem a seguir:
96
Tabela 16. Conhecimento das contribuições da ANEEL
Contribuições da ANEEL para o setor de energia elétrica brasileiro
Preservação dos interesses dos consumidores
Legislação necessária ao adequado funcionamento do setor
Relação de forma isenta e equilibrada entre os agentes
Operação em harmonia com a política de desenvolvimento determinada pelo Sem/MME
Na opinião das pessoas entrevistadas na Eletrobras, hoje em dia não podemos ter nenhuma
ação que não seja regulamentada. Por exemplo, para a Eletrobrás desempenhar o papel de
comercializador deve ser autorizada da ANEEL. “Nós dependemos da ANEEL da mesma
forma como qualquer outra empresa do setor de energia elétrica. Até para participar nos
investimentos nós precisamos de ter regras claras de jogo. Sendo que não somos uma
empresa privada, sem regras claras, até podemos quebrar” (Eletrobrás, Entrevista, 1999).
Na empresa privada, a opinião sobre ANEEL difere. Apesar de destacar a importância deste
órgão para o bom funcionamento do setor, critica-se o fato de ANEEL se concentrar muito na
proteção do consumidor. Uma melhor definição do papel da ANEEL nessa área considera-se
necessária, não o confundindo com a função do Procon.
No entanto, a relação da concessionária com a ANEEL vem mudando com o passar do tempo.
Nas palavras dos entrevistados “antigamente eles eram o poder concedente, mas hoje em dia
nós somos mais igualitários. Existia uma postura diferente, os duques com os servos, eles
eram os nobres e nós éramos os trabalhadores, você tinha de suplicar, ate inclusive se dizia “
o poder concedente e o poder suplicante”. Hoje em dia, eles sabem, que embora sejam
independentes, dependem do governo, consumidores e concessionárias (LIGHT, entrevista,
2000).
97
Como já se destacou, uma das características de uma rede é a densidade (Rowley:1997) 38.
Quando a densidade aumenta, a comunicação ao longo da rede torna-se mais eficiente.
Paralelamente, a conseqüência de uma rede densa é a difusão das normas, valores e
informações entre os atores das redes.
Teoricamente, as agências reguladoras – na função de centro regulador – deveriam estabelecer
relações equivalentes com o governo, as concessionárias e os usuários dos serviços públicos.
No entanto, as relações estabelecidas entre o governo, os usuários e as concessionárias são
fracas ou não existem. Nessas redes menos densas, as trocas de informações entre os
stakeholders39 são limitadas. Como resultado, a elaboração das expectativas dos stakeholders
e a habilidade a monitorar as ações da organização focalizada (por exemplo, as ações das
concessionárias) são limitadas. Nessas redes, há a probabilidade de existirem influências
conflituosas entre os atores, muitas vezes sem que existam normas compartilhadas de
comportamento40.
A ANEEL apresenta um considerável grau de centralidade de intermediação. Na medida em
que as concessionárias, os usuários e o governo podem estabelecer contato uns com os outros
através das agências reguladoras, pode-se concluir que, teoricamente, as agências
caracterizam-se por este tipo de centralidade, possuindo, assim, uma maior habilidade para
controlar o fluxo de informações ao longo das redes e facilitar os contatos e trocas entre os
outros atores (governo, concessionárias e usuários).
38
Ver Tabela 4.
Segundo Freeman, citado em Rowley (1997), stakeholder de uma organização é qualquer grupo ou indivíduo
que pode afetar ou é afetado pela realização dos objetivos da organização.
40
Uma análise parecida oferecem Nascimento, Ribeiro Filho & Ishihara (1999), quando destacam a minimização
do risco de captura, ou seja a “captura” da agência regulatora pelos segmentos que deveriam ser regulados.
“Independentemente de problemas éticos, verificou-se elevada propensão dos “regulados capturarem os
reguladores” em virtude da insuficiência de recursos e informação adequada por parte da agência
comparativamente às empresas privadas e pela identidade de interesses e cultura profissionais entre os técnicos
especializados da agência e o segmento isolado”(1999, 339) .
39
98
Com o aumento da centralidade, as agências podem incrementar a sua resistência às pressões
dos vários stakeholders. Mas não se deve deixar de considerar que a rede que está se tentando
construir depois das privatizações ainda está em fase inicial. Existe a possibilidade de que
alguns stakeholders –por exemplo, as concessionárias-, com maior capacidade de articulação,
estabeleçam relações diretas mais fortes com os atores da rede, ganhando assim mais
centralidade do que as próprias agências reguladoras. De fato, Oliveira & Tolmasquim
(1999:351) alertam para a atuação dos chamados “global players”, “que atuam formando
redes de negócios diversificados em vários territórios, cada um atendido por um grupo (cujos
laços estratégicos são crescentes com o tempo)- combinando nichos de consumo e de visão
geopolítica, de modo a formar suas “redes”, independentemente das fronteiras nacionais”.
Esses grupos possuem um grande poder, vasta experiência e competências específicas,
destacando a capacidade de cooperação em cada mercado em que atuam e a capacidade de
pressão e barganha nas questões de interesse comum. Algumas notícias ilustrativas:
“A americana AES arrematou hoje, em leilão realizado na Bovespa, as ações
preferenciais da Eletropaulo Metropolitana, que pertenciam ao BNDES Participações –
administradora da carteira de investimentos do BNDES – e, segundo a assessoria de
imprensa da Eletropaulo, passou a ser a maior controladora das ações da empresa. (...) A
AES já possuía participação na Eletropaulo Metropolitana, por meio do consórcio
Lightgás, que é formado pela Electricité de France e pela Houston Industries Energy. O
Lightgás tinha participação de 34,2% no capital total da companhia. A AES adquiriu em
outubro a Cesp Tietê e também tem participação na Cemig, Light e CEEE (Companhia
Estadual de Energia Elétrica, do Rio Grande do Sul)
Em 25 de janeiro de 2000, a Companhia Força e Luz Cataguazes-Leopoldina (CFLCL),
controladora das empresas Energisa S/A, Companhia de Eletricidade de Nova
Friburgo, Empresa Energética de Sergipe Sía (Energipe), Companhia Energética da
Borborema, e a Alliant Energy Holdings do Brasil Ltda. (Alliant), subsidiária da Alliant
Energy Resources, com sede em Cedar Rapids, Lowa, Estados Unidos, firmaram acordo
que contém as seguintes transações: a CFLCL vendeu à Alliant 5.107.630 ações da sua
controlada Energisa, equivalentes a 24,2% do capital total e votante dessa empresa, pelo
valor de R$ 101.376.332,89” (EFEI Energy News , 28 de Janeiro de 2000).
É possível observar que as empresas de energia elétrica têm uma maior capacidade de
articulação do que o consumidor. Já existem várias associações que unem empresas de vários
segmentos – APINE, representando os produtores independentes; ABGRAGE, representando
99
as grandes geradoras; ABRADEE, representando as distribuidoras; ABCE, representando as
concessionárias de energia elétrica – e que claramente, fazem com que cresça o seu poder de
negociação e articulação. Algumas notícias que mostram esse fato:
As comercializadoras de energia disputam negócios entre si, mas se unem em nível
institucional para defender interesses comuns. Na semana passada, criaram a
Associação Brasileira de Comercializadores de Energia Elétrica (Abracell). A
assembléia que constituiu a entidade reuniu, em Brasília, quatro, das oito empresas do
setor hoje existentes no País. ‘Nossa proposta fundamental é viabilizar a
comercialização. Para isso, vamos atuar junto ao Ministério de Minas e Energia (MME),
aos órgãos reguladores e ao Mercado Atacadista de Energia (MAE) (EFEI Energy
News, 28 de Janeiro de 2000)
Distribuidoras criticam proposta da ANEEL: As distribuidoras de energia elétrica
aproveitaram a realização de uma audiência pública, realizada na Sexta-feira passada,
para reivindicar à Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) que desista de
oficializar a resolução que as obriga a comprovar a compra de eletricidade, já a partir de
julho próximo. (EFEI Energy News , 02 de Março de 2000)
Como Borenstein (1999:51) destaca, é importante considerar que uma regulação “restritiva”
pode impedir a gestão competitiva das empresas, não garantindo a sua sobrevivência no
mercado, assim como a regulação “deficiente” pode levar a manobras predatórias às empresas
concorrentes e a prejuízos dos interesses sociais. O estabelecimento e manutenção de um
equilíbrio dinâmico entre estes dois elementos são necessários.
5.3.1.2 Relações agência reguladora – usuários dos serviços públicos
Dois anos depois de criadas pelo Governo para fiscalizar e regulamentar os serviços de
telefonia e energia elétrica no País, a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) ainda é
uma desconhecida para 88% da população brasileira e a Agência Nacional de
Telecomunicações (Anatel), para 65%. Uma pesquisa nacional inédita feita com duas mil
pessoas entre 25 de setembro e 3 de outubro pelo Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e
Econômicas (Ipespe) mostrou que os consumidores estão pouco familiarizados com estas
autarquias. A pesquisa comprovou que 46% da população definem erradamente estas
agências.
100
O Ipespe fez perguntas com o objetivo de avaliar a ANEEL. Dos entrevistados que ouviram
falar da agência, 81% não sabem corretamente o significado da sigla ANEEL. Além disso,
87% não sabem que a sede da autarquia fica em Brasília e 98% desconhecem quem são os
diretores da agência reguladora. O grau de desconhecimento é tanto que 2% dos entrevistados
afirmaram que a ANEEL é dirigida por uma empresa alemã, o mesmo percentual dos que
identificou corretamente o diretor-geral, José Mario Abdo, e o dobro dos que acreditam que a
agência seja comandada pelo presidente da República. Após conhecer os dados da pesquisa, o
diretor-geral da ANEEL, José Mário Abdo, decidiu realizar uma campanha institucional que
começa a ser divulgada amanhã, em Brasília (EFEI Energy News, 04 de novembro de 1999).
Por outro lado, é importante levar em consideração que existe um conjunto de usuários dos
serviços públicos com maior capacidade de articulação e pressão. Estes são as indústrias da
região, cujo funcionamento é fortemente ligado à oferta e à qualidade de vários serviços
públicos concedidos como energia, telecomunicações, etc. Segundo Brasil Energia Online, N°
217, dezembro de 1998, as indústrias filiadas da FIESP, que receberam bem a privatização do
setor, reconhecem o esforço que está sendo feito por parte da ANEEL, mas pressionam por
mudanças mais rápidas e pedem uma maior garantia do governo para que as novas
concessionárias façam os investimentos necessários.
O novo modelo diferencia as figuras do consumidor cativo - consumidor ao qual só é
permitido comprar energia do concessionário, autorizado ou permissionário, a cuja rede esteja
conectado, e a do consumidor livre - consumidor que está legalmente autorizado a escolher
seu fornecedor de energia elétrica. Apesar do ideal do modelo ser o de tornar todos os
usuários de energia elétrica consumidores livres, na prática, existe a probabilidade de
favorecer os grandes usuários.
101
Nas entrevistas aplicadas no decorrer da pesquisa de campo, destaca-se a importância do
papel do consumidor. Na opinião dos entrevistados o consumidor é cada vez mais exigente.
Às vezes, eles se dirigem diretamente a ANEEL para fazer as queixas, no entanto, a ANEEL
repassa a queixa para a empresa. O nível econômico do consumidor é um importante
determinante: “(...) quando têm interrupções na Zona Sul, aparecem imediatamente as
queixas, quando tem interrupções na parte pobre da cidade quantas queixas aparecem?
Nenhuma, zero.” (LIGHT, Entrevista, 2000).
5.3.1.3 Relação Agência reguladora – outros atores sociais
Como alerta Milward & Briton (1999), um dos riscos que se corre quando se analisa a
realidade a partir de abordagem de redes é o de criar uma rede tão complexa quanto a própria
realidade que ela representa. No entanto, no decorrer da pesquisa de campo, foi observado o
fortalecimento de outros atores sociais que estão influenciando a nova configuração do setor e
as atividades da ANEEL: agências reguladoras estaduais, governos estaduais, assim como
outras entidades de defesa da concorrência.
Agências Reguladoras Estaduais:
As agências reguladoras estaduais estão instituídas em vários estados como Rio de Janeiro,
Rio Grande do Sul, Ceará, Bahia, etc. e são, na maioria dos casos, multisetoriais. Como já se
destacou no decorrer do trabalho, a ANEEL está estabelecendo acordos com estas agências,
descentralizando as suas atividades.
A pesquisa realizada pela Agência Reguladora dos Serviços Públicos Delegados (AGEGS) 41
destaca a importância que esta agência vem estabelecendo em âmbito estadual. Assim, 21,4%
dos usuários pensam que a fiscalização dos serviços de energia no estado do ES é atribuição
da Agergs, enquanto 25,2% da ANEEL e Agergs, e somente 4,3% da ANEEL. Um dado
102
interessante é que 26,4% dos usuários pensam que a fiscalização é atribuição da Secretaria de
Energia, Minas e Comunicações, atribuindo, assim, importância ao papel do Estado (Tab.17).
O nível de conhecimento da agência ainda deixa a desejar. Apenas 52,9% dos usuários
conhecem a agência (Tab.18). No entanto, esse número é significativo se comparado com o
nível de conhecimento da ANEEL que é apenas 30,8% (Tab.19).
Tabela 17. Questão 26 - Fiscalização dos serviços de energia no RS é atribuição da:
Respostas
Freqüência %
598
21,4%
AGERGS
119
4,3%
ANEEL
703
25,2%
ANEEL e AGERGS
64
2,3%
Governo Federal
20,4%
Secretaria de Energia, Minas e Comunicações 568
736
26,4%
Não sabe
2788
100,0%
Total
Não respostas = 239
Tabela 18. Questão 30a - Já ouviu falar na AGERGS?
Respostas Freqüência %
1499
52,9%
Sim
1334
47,1%
Não
2833
100,0%
Total
Não respostas = 194
Tabela 19. Questão 30b - Já ouviu falar na ANEEL?
Respostas Freqüência %
835
30,8%
Sim
1879
69,2%
Não
2714
100,0%
Total
Não respostas = 313
Fonte: Agência Estadual dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul.
http://www.agergs.rs.gov.br/. 08.04.2000.
No decorrer da pesquisa do campo, foram realizadas entrevistas na Agência Reguladora dos
Serviços Concedidos do Estado do Rio de Janeiro, ASEP/RJ42. A agência foi reestruturada
durante o governo Garotinho e está atuando em vários setores. A missão da agência é:
41
Sobre a pesquisa ver: 5.3.1.2 Relações agência reguladora – usuários dos serviços públicos
Outras agências reguladoras estaduais multisetoriais e unisetoriais estão sendo constituídas e vêm
estabelecendo convênios com a ANEEL: Agência Reguladora de Serviços Públicos Delegados do Estado do
Ceará; Agência Estadual de Regulação de Serviços Públicos de Energia, Transportes e Comunicações da Bahia;
42
103
“Exercer o Poder Regulador, acompanhando, controlando e fiscalizando as concessões e
permissões de serviços públicos nas quais o Estado do Rio de Janeiro figure, por
disposição legal ou pactual, como Poder Concedente ou Permitente, nos termos das
normas legais regulamentares e concensuais pertinentes” (www.asep.rj.gov.br).
A estrutura básica da ASEP-RJ compreende:
I – O Conselho-Diretor
II – A Secretaria Executiva
III – As Câmaras Técnicas:
III.1 – Câmara de Energia
III.2 – Câmara de Transportes
III.3 – Câmara de Saneamento
III.4 – Câmara de Ouvidoria
IV – A Assessoria Jurídica
V – A Auditoria Interna
VI – A Assessoria Técnica e Econômica
VII – Os Demais Órgãos Funcionais
Na área de energia elétrica, ela estará atuando em parceria com ANEEL e tem por objetivo a
fiscalização das empresas de energia elétrica quanto à qualidade da prestação de serviços.
Recentemente foi estabelecido um protocolo, ajustando a atuação de cada uma destas
agências.
Os entrevistados destacam casos de cooperação estabelecidas entre a ANEEL, a Secretaria do
Estado e ASEP e classificam o relacionamento como bastante frutífero, sem conflitos,
baseado em parceria 43.
Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul – AGERGS; Agência
Estadual de Regulação e Controle de Serviços Públicos - ARCON; Comissão de Serviços Públicos de Energia do
Estado de São Paulo - CSPE
Por exemplo, a ANEEL delegou à Agência Estadual de Regulação e Controle de Serviços Públicos - ARCON a
execução de atividades complementares de sua competência no Estado do Pará, das quais destacam-se:
fiscalização de serviços e instalações de energia elétrica inclusive autoprodutores; apuração e solução de queixas
dos consumidores e dos agentes setoriais; realização de campanhas educativas e prestação de apoio aos
processos de regulação e outorga de concessões e permissões (www.arcon.pa.gov.br)
43
“Recentemente, um grupo composto por representantes da ANEEL, Asep, e da Secretaria do Estado fez uma
visita a algumas áreas do Estado, a algumas prefeituras para avaliar como está sendo prestado o serviço de
energia elétrica no município. Nós da SE temos um contato permanente com as prefeituras porque a nossa visão
é de desenvolvimento. Então o contato que nós temos em termos de analisar quais são as áreas que mais
104
Nesta fase de ajuste e transição do sistema de energia elétrica, os papéis ainda não estão
totalmente definidas. A ASEP é formada por pessoas que vêm do governo do Estado, então, a
visão que ela tem é do governo. O próprio Presidente da agência é nomeado pelo Governador
e desempenha outras funções no Governo do Estado do Rio de Janeiro. Respondendo à
indagação de como preservar, nestas condições, uma das principais características das
agências – a autonomia – o Presidente responde apontando a dificuldade de colocar isso em
prática. Segundo ele, nesta fase de construção e fortalecimento da agência o apoio do governo
estadual e do governador é necessário. O próprio orçamento da agência é muito pequeno e ela
precisa de auxílio estadual até para pagar alguns tipos de serviços necessários para seu
fortalecimento, como consultorias de universidades e centros acadêmicos, etc44.
Entretanto, o presidente acredita que é possível alcançar a equidistância de relações da
agência com os consumidores, concessionárias e governo. Apesar de reconhecer que a figura
menos representada é o consumidor, ele aponta medidas que vêm sendo tomadas para
fortalecer seu papel. Paralelamente, a capacitação técnica das concessionárias é bem maior do
que a agência reguladora.
Reconhecendo a sua limitação de atuação, A ANEEL passará algumas atribuições para ASEP.
Os entrevistados da ASEP/RJ criticam a ANEEL, como uma agência ainda não preparada
suficientemente para enfrentar os problemas decorrentes da reestruturação do setor de energia
elétrica brasileiro e para atuar com êxito na área de regulação. Destacou-se também, uma
certa preocupação com relação à futura atuação da ANEEL. Criticando o fato de que não
existe uma cultura regulatória no país e de que, na prática, as privatizações aconteceram antes
precisam para investimentos. A parceria que fizemos com estas organizações buscava verificar as necessidades
de intervenção, onde é que o Estado deve intervir para “apagar as manchas de pobreza” e as agências atuando
mais na área de fiscalização da qualidade de serviços” (Secretaria de Energia, Entrevista, 1999).
44
Durante o I Seminário Internacional “Energia no Brasil: desafios e Oportunidades” (abril de 2000), o
representante da Secretaria de Energia de Minas Gerais ressaltou que no entender do Secretário de energia, a
agência reguladora de MG, apesar de ser uma autarquia, deveria ser vinculada à Secretaria do Estado.
105
da criação do marco regulatório para o setor, o entrevistado ressaltou que o relacionamento
estabelecido com a agência vem apresentando certas dificuldades.
Órgãos de Defesa da Concorrência:
Segundo o Secretário do Acompanhamento Econômico, Claúdio Monteiro Considera (1999),
os órgãos de defesa de concorrência, como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica
(CADE), a Secretaria de Acompanhamento Econômico (SAE) e a Secretaria da Defesa
Econômica (SDE) devem estabelecer relações com as agências reguladoras. Essas agências,
com exceção da ANATEL – setor de telecomunicações – prestam contas à Secretaria de
Acompanhamento Econômico. Ultimamente, a secretaria vem estabelecendo um processo de
troca de informações e experiências para a análise dos processos de concentração. Existe uma
comissão mista, que agrega a ANEEL com a SAE e SDE, visando alcançar uma sinergia na
área da defesa da concorrência. No entanto, o Secretário critica a atuação da ANEEL e o
atraso com que esta última apresenta os dados das revisões de tarefas energéticas.
Considerando que a SAE é um órgão de execução da política macroeconômica do Ministério
da Fazenda, é preciso alcançar uma harmonia entre as políticas macroeconômicas e as
políticas na área de energia elétrica.
Também está se estabelecendo uma maior colaboração com o CADE. Segundo a ótica do
presidente da agência, uma agência de regulação, essencialmente técnica, formada por
diretores essencialmente técnicos, envolvidos com o setor que representam, muitas vezes
perde a ótica do global, do “pró-mercado”, tentando defender mais o setor e seus maiores
representantes do que grupos com interesses difusos e sem capacidade organizacional. Sendo
assim, o limite de horizonte para os critérios de regulação adotados – e executados – por esses
órgãos privilegiará a ótica setorialista e tecnicista, item imprescindível em se tratando de um
106
“setor técnico”, mas incompleto em se tratando de um serviço público - que é o caso da
energia elétrica, petróleo e comunicações.
Para acompanhar o trabalho das agências, o CADE está especializando seus técnicos em
assuntos ligados a agências reguladoras, utilizando parte de um financiamento no valor de
US$ 1 milhão, fornecido pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID. Com mais
um órgão regulador agindo conjuntamente, onde também entrariam a participação da SDE e
SAE, os pesos políticos de agentes setoriais mais representativos se restringiriam, se
garantiriam melhor os interesses dos consumidores menores – com mais dificuldades de se
organizar, tornando mais democráticas as regulamentações destes setores (Dinheiro Vivo
agência de Informações S.A., 08.12.97)
O próprio representante da ANEEL, Luciano Pacheco Santos, destacou durante o Seminário
Internacional “Mercado futuro de energia” (1999) que a ANEEL deve fortalecer as relações
com outros órgãos de concorrência como CADE, SDE e SAE. Ele dá como exemplo a
determinação do percentual do mercado de uma empresa geradora, para que não tenha poder
muito grande de mercado.
5.3.2 Re-configuração da rede de relações da ANEEL
Com base na análise feita, podemos re-configurar a rede das relações da ANEEL. Outros
atores sociais como governos estaduais, agências reguladoras estaduais (ARE) e órgãos de
defesa da concorrência devem ser incluídos para que a rede torne-se completa.
Paralelamente, por meio das cores tenta-se visualizar a posição que os atores sociais
desempenham nesta rede de relações. É importante apontar que enquanto existem atores
sociais com mais poder de pressão e negociação – como as concessionárias e os consumidores
livres - , existe o risco de desequilibrar a rede e transformar o papel da ANEEL.
107
MME
Órgãos de Defesa
da Concorrência
Governos
Estaduais
CC
CL
ARE
Empresa
Empresa
ARE
CL
ANEEL
ARE
CC
Empresa
Empresa
CC
CL
Legenda:
CC:
CL:
ARE:
MAE, ONS,
Eletrobrás
BNDES
_______
Consumidores Cativos
Consumidores Livres
Agências Reguladores Estaduais
Relações ANEEL – Concessionárias
Relações ANEEL – Governo
Relações ANEEL – usuários dos serviços públicos
Relações ANEEL – órgãos de defesa da concorrência/ARE
_____
Atores sociais fortes
Atores sociais fracos
Organizações Integradoras da rede
Figura 7. Reconfiguração da rede de relações da ANEEL
5.4.
Mercado Atacadista de Energia Elétrica – MAE
A Lei N.° 9.648 de maio de 1998, institui o Mercado Atacadista de Energia Elétrica e o
Operador Independente e Comercializador.
A criação de um ambiente competitivo por meio de um mercado atacadista de energia
enfrenta um número considerável de desafios. Uma das questões a serem consideradas tem a
ver com a verticalização do setor, sendo que a acomodação ao novo ambiente demanda a
desverticalização “como premissa, como conceito técnico associado à possibilidade de
ganhar eficiência no processo” (SILVA, 1996:25). Paralelamente, a segmentação do setor em
108
geração, transmissão e distribuição precisa ser acompanhada de maiores cuidados, posto que
nem todos esses segmentos são igualmente atrativos45. Os especialistas da Eletrobrás se
opõem ao desmantelamento do sistema centralizado de despacho criado para otimizar
tecnicamente a exploração dos recursos hídricos, argumentando que isso levará ao aumento de
custos e risco de falta de energia 46.
Como resolver a questão do preço de energia fornecida pelas usinas existentes (mais barato,
por representarem projetos eficientes e com custos-capitais amortizados) com relação ao
preço que será oferecido pelos novos projetos, certamente mais caro? A consultoria
apresentou a idéia dos Contratos Iniciais. No caso, as empresas mais eficientes assinam
contratos com preços menores, enquanto as menos eficientes com preços maiores e os
compradores de energia devem comprar o mesmo mix de contratos de alto preço e baixo
preço, a fim de manter o custo médio similar ao anterior dos contratos (FERREIRA, 1999).
A Lei N.º 9.648 autorizava, também, a reestruturação de três subsidiárias da Eletrobrás que
permaneceram. A privatização da sua primeira geradora, Gerasul, foi realizada com sucesso
em Setembro de 1998, começando assim, efetivamente, a privatização da Eletrobrás. A
Furnas será dividida em três empresas, duas geradoras e uma transmissora, a Eletronorte será
dividida em seis empresas (cinco geradoras e uma transmissora), enquanto a Chefs em duas
geradoras e uma transmissora. A privatização dessas geradoras deve continuar durante os anos
1999 e 2000.
Mais especificamente quanto ao MAE, o artigo 12, da Lei N.°9.648, estabelece que: “ As
transações de compra e venda de energia elétrica nos sistemas interligados serão realizadas
45
A geração e a distribuição são consideradas atrativas, enquanto a transmissão não atrai investimentos.
O ministério de Minas e Energia quer acelerar a desverticalização física das estatais brasileiras para vendê-las
fatiadas. Enquanto isso, as estatais estrangeiras, que compraram as antigas estatais distribuidoras já estão
acelerando seus planos de verticalização. Exemplos: EDF, estatal francesa e uma das donas da Light quer
comprar as usinas da Furnas, a CPFL, distribuidora paulista, quer comprar outras empresas de ramo em São
46
109
no âmbito do Mercado Atacadista de Energia – MAE, instituído mediante Acordo de
Mercado a ser firmado entre os interessados”.
O MAE é, portanto, o ambiente onde se processam a compra e venda de energia elétrica
através de contratos bilaterais e de contratos de curto prazo, regulado por contrato multilateral
chamado Acordo de Mercado.
A criação do MAE substituirá o antigo sistema centralizado de determinação das tarefas e os
termos para os contratos existentes do setor de energia. Contratos bilaterais de compra e
venda de energia elétrica serão estabelecidas no âmbito do MAE, entre empresas de geração e
distribuição, visando reduzir a volatilidade dos preços. O MAE estabelecerá também um
preço imediato (spot price) para a energia que refletirá os custos incrementais de curto prazo,
que serão estabelecidos em acordo com o órgão regulador. Gradualmente, prevendo um
período de 15 anos para a duração dos contratos, os contratos serão substituídos por compras
no mercado aberto.
Em 27 agosto de 1998, todos os participantes da MAE 47, incluindo as geradoras, as
distribuidoras e os consumidores, ratificaram a constituição sob a qual a MAE funciona (o
Paulo; a VBC já comprou e quer comprar outras empresas distribuidoras e entrar no ramo do petróleo
(ILUMINA, 1998, 2)
47
O acordo de mercado determina quem deve participar
Título III - Membros do MAE
Cláusula 10 Devem participar do MAE:
-titulares de concessão ou autorização para exploração de serviços de geração que possuam central geradora com
capacidade instalada igual ou superior a 50 MW;
-titulares de concessão, permissão ou autorização para exercício de atividades de comercialização de energia
elétrica com mercado igual ou superior a 300 GWh/ano;
-titulares de autorização para importação ou exportação de energia elétrica em montante igual ou superior a 50
MW;
Podem participar do MAE:
-demais titulares de concessão ou autorização para exploração de serviços de geração;
-demais titulares de concessão, permissão ou autorização para exercício de atividades de comercialização de
energia elétrica;
-demais titulares de autorização para importação ou exportação de energia elétrica;
-consumidores livres.
§ 1¹ Será facultativa a participação no MAE para os titulares de autorização para autoprodução com central
geradora de capacidade instalada igual ou superior a 50 MW, desde que suas instalações de geração estejam
110
Acordo de Mercado). Paralelamente, foram assinados os Contratos Iniciais, marcando assim o
começo de um novo mercado competitivo de energia. Em 15 de outubro de 1998, foi realizada
a primeira Assembléia Geral, quando foram eleitos os conselheiros do COEX – Comitê
Executivo do Mercado Atacadista de Energia. O COEX é o colegiado composto por
representantes eleitos por membros do MAE, com a responsabilidade de administrar,
acompanhar e fiscalizar a execução do Acordo do Mercado.
A principal missão dessa gestão é a implantação do Mercado Atacadista de Energia. Isso
significa:
F estabelecimento de regras transparentes para o funcionamento do Mercado;
F a implantação de um sistema computacional e logístico que permita a aplicação das
regras, com as respectivas condições para as transferências financeiras resultantes das
transações no Mercado;
F estabelecimento de uma estrutura organizacional adequada para a administração da
operação do Mercado. (www.maebrasil.com.br )
Num primeiro momento, as operações de compra e venda, semelhantes a uma bolsa de
valores, serão feitas somente com o excedente de energia elétrica produzida (hoje em torno de
4 a 5% do total). Mas, a partir de 2006, depois de um regime gradual de liberação, todos os
contratos de energia feitos no mercado brasileiro serão feitos no MAE.
A implementação do mercado demandará recursos da ordem de R$ 40 milhões relativos à
implementação dos sistemas de informação, instalações, etc. Mensalmente, o custeio do
diretamente conectadas às suas instalações de consumo e não sejam despachadas centralizadamente pelo ONS,
por não terem influência significativa no processo de otimização energética dos sistemas elétricos interligados.
§ 2¹ Qualquer agente do MAE poderá ser representado por outro agente, integrante da mesma categoria, se assim
o desejar, através de formalização expressa ao MAE.
Cláusula 11 A admissão de novo membro no MAE está condicionada ao cumprimento de requisitos técnicos,
regulamentares e econômicos estabelecidos neste instrumento, inclusive a assinatura de termo de adesão a este
Acordo (Destaco nosso).
111
ASMAE deverá ficar na casa dos R$8 milhões, com possibilidade de redução deste montante
em ate 50%. (PALHANO, 1999)
Figura 8. Estrutura da MAE
Fonte: Mercado Atacadista de Energia (www.maebrasil.com.br), 13.11.1999.
5.4.1
Análise do MAE a partir da abordagem de redes
Como já se destacou no decorrer do trabalho, em 92% dos questionários, o MAE considerase como uma das organizações chaves para o funcionamento do setor de energia elétrica
brasileiro. Todos os respondentes destacam a função do MAE, com relação a comercialização
da energia elétrica. Em alguns casos, classificam-no como a “bolsa de valores” para o setor de
energia elétrica, considerando-o chave para o estabelecimento da competição.
Apesar de justificar a sua existência e reconhecer a sua importância, os entrevistados apontam
que ainda não existe uma idéia clara sobre o funcionamento dessa organização na prática
(ASEP, Entrevista, 2000) (Secretaria de Energia, Entrevista 1999). Nas entrevistas na
Eletrobras, destaca-se que o MAE, apesar de estar ainda em formação, vai ser o ponto
nevrálgico do processo de reestruturação. No entanto, se considera que o estabelecimento do
112
Mercado-Spot é uma meta muito difícil a ser colocada em prática. Os entrevistados apontam o
risco de as empresas fecharem por fora os negócios. Com relação à empresa (Eletrobrás), sua
atuação na área de comercialização vai fazer com que se estabeleçam estreitos contatos com o
MAE (Eletrobras, Entrevista, 1999).
Eduardo Benini, presidente do MAE, destacou durante o Seminário Internacional “Mercado
futuro de energia” (1999) que
as reformas estão transformando as relações Governo-
Sociedade-Agentes no setor. Existem inovações profundas do ponto de vista cultural que
ainda não são assimiladas pela sociedade. O MAE representa um acordo de mercado,
enquanto a noção do mercado ainda está frágil. O desafio atual não é desenvolver e
implementar regras, mas fazer com que as instituições entendam quais são as suas funções
dentro do processo. Para o fortalecimento do mercado, deverão ser desenvolvidos
instrumentos como Bolsa de Valores e Mercantil, assim como estabelecer segurança e
transparência na colocação e formação dos preços.
5.5.
Operador Nacional do Sistema
O decreto n.º2.655, de 02 de julho de 1998, regulamenta o MAE e especifica as regras de
organização do Operador Nacional do Sistema Elétrico 48.
Na prática, o Operador Nacional do Sistema Elétrico criou-se em 26 de agosto de 1998, como
uma entidade privada, responsável pela coordenação e controle da operação das instalações de
geração e transmissão de energia elétrica nos sistemas interligados brasileiros. O ONS é uma
associação civil, cujos integrantes são as empresas de geração, transmissão, distribuição,
48
Seguindo a proposta da Coopers & Lybrand, que recomendou que o Operador Nacional do Sistema (conhecido
também como Operador Independente do Sistema - OIS) deveria ser estruturado como uma empresa
independente, sem fins lucrativos, atuando de modo neutro sob a supervisão do regulador (ANEEL). A
propriedade do ONS deveria compreender cinco grupos de stakeholders: as empresas de geração, de
transmissão, de distribuição, os livres consumidores e o setor público. O ONS deveria ser responsável pelo
gerenciamento do sistema de transmissão (reconhecido como a rede básica), definido para incluir linhas de
transmissão de 230KV ou mais. A autoridade do ONS nessa área é necessária, sendo que a propriedade dos
113
importadores e exportadores de energia elétrica, e consumidores livres, tendo o Ministério de
Minas e Energia como membro participante, com poder de veto em questões conflitantes com
as diretrizes e políticas governamentais para o setor. Também tomam parte nessa associação
os Conselhos de Consumidores.
A missão da ONS é executar as atividades de coordenação e controle da operação, da geração
e da transmissão de energia elétrica nos sistemas interligados, assegurando a qualidade e a
economicidade do suprimento de energia elétrica e garantindo o livre acesso à rede básica. Na
prática, o ONS é projetado para manter os benefícios técnicos do sistema centralizado de
despacho, enquanto se descentraliza a propriedade dos ativos. Estarão sob o seu controle
todos os fluxos de energia negociados no mercado bilateral e imediato, visando otimizar o
output dos ativos de geração de energia hidráulica e térmica. As atribuições do ONS incluem:
F Planejamento e programação da operação e despacho centralizado da geração;
F Supervisão e coordenação dos centros de operação dos sistemas elétricos;
F Supervisão e controle da operação dos sistemas eletroenergéticos nacionais e das
interligações internacionais;
F Contratação e administração dos serviços de transmissão, do acesso à rede e dos serviços
ancilares;
F Proposição à ANEEL das ampliações e reforços da rede básica de transmissão
F Definição de regras para a operação da rede básica de transmissão, a serem aprovadas pela
ANEEL.
Na opinião do Ministro de Minas e Energia, Rodolpho Tourinho, a passagem da supervisão e
do controle da operação para o ONS “é mais um passo firme e decisivo para a revitalização
do setor elétrico”. Exercendo efetivamente a coordenação operacional do sistema, “o ONS
ativos de transmissão será dividida entre os governos federal e estadual, ao menos nas fases iniciais do novo
modelo (FERREIRA, 1999).
114
estará em condições de otimizar a confiabilidade do sistema elétrico interligado brasileiro,
consagrando, assim, uma das mais importantes funções do novo modelo setorial”.
(www.eletrobras.gov.br/n3.htm)
5.5.1
Análise do ONS a partir da abordagem de redes
A configuração estrutural do ONS tem, também, a forma de uma rede. Como se destacou no
decorrer do trabalho, fazem parte desse órgão representantes de vários agentes do setor:
empresas de todos os segmentos (geração, transmissão, distribuição, importadores e
exportadores de energia elétrica), consumidores livres e conselhos de consumidores, assim
como o do Ministério de Minas. A função que o ONS deve desempenhar é muito importante,
considerando as características do setor elétrico brasileiro.
“O Brasil é um dos poucos exemplos no mundo, onde, no jogo das águas, todos jogam e
todos ganham. Através de um sistema interligado, é feita a transferência de energia
entre bacias, gerando o que os especialistas chamam de “a terceira parcela de energia”.
Isto é, como o país possui grandes reservatórios, foi possível criar um condomínio das
águas que trafegam por uma grande extensão de linhas: essa malha de usinas
interligadas proporciona ganhos de 22% na energia produzida” (MEIRELES, 1999:36).
O novo operador é o substituto do antigo Grupo Coordenador de Operações Interligadas
(GCOI), organismo vinculado à Eletrobrás, criado em 1972, juntamente com o Itaipu
Binacional, para viabilizar o sistema. Sem o GCOI seria impossível utilizar, nas regiões
Sudeste e Centro-Oeste, a energia produzida na hidroelétrica de Itaipu.
Em 92% dos questionários, o Operador Nacional do Sistema Elétrico é apontado como uma
organização chave para o funcionamento do setor de energia elétrico brasileiro e seu papel é
ressaltado como órgão responsável pela operação integrada e otimizada do Sistema Elétrico
Nacional.
No decorrer das entrevistas (Eletrobrás, 1999), destacou-se que o ONS é um organismo
privado que vai administrar a competição entre as empresas, enquanto a GCOI sempre
115
administrou a colaboração 49. Para que o ONS coloque em prática o planejamento operacional
deve-se saber tudo em relação às empresas do sistema, a cada instante. O ONS vai ter a
coordenação total do sistema de medição, e o MAE – que faz a contabilização de todas as
energias trocadas no sistema – vai ter acesso a essas medições. Além disso, o ONS busca
otimizar essa coordenação, controlando o sistema e tendo algumas previsões.
Ao contrário das entrevistas na Eletrobrás (1999), outros entrevistados (Furnas, 1999,
ASEP/RJ, 2000) expressam uma certa insegurança e incerteza com relação ao desempenho
com sucesso deste papel de coordenador da operação interligada. O que existe hoje no ONS
ainda não é o modelo perfeito, considerando que o setor passa por um período de transição e o
tempo ainda não teve tempo suficiente para as mudanças.
Outros especialistas50 do setor de energia elétrica acham que é muito complicado privatizar
esse sistema integrado, que hoje “evita que cada um olhe somente para o seu próprio
umbigo”. Um empresário, sozinho, não tem condições de saber quanta energia existe nesse
condomínio, por desconhecer a gestão comunitária da água. A incompetência do ONS ficou
visível durante o apagão de março, quando não conseguiu centralizar as informações para
atuar junto às empresas e impedir a demora na normalização do sistema. Na opinião destes
especialistas, o CGOI não foi substituído à altura e as causas imediatas do apagão devem ser
procuradas no caos gerado por sua inepta desativação, com a transferência das atribuições
para um órgão como o ONS que, mesmo contando com técnicos sérios e qualificados, é
institucionalmente frágil (MEIRELES, 1999:36).
49
“Hoje o sistema é operado como se fosse um único sistema - com alguma restrições. As linhas podem ser
vistas como estradas em que cabem até um certo número limitado de veículos. ONS é uma organização que
busca em primeiro lugar a otimização dos recursos energéticos do pais. Para alcançar essa otimização num
ambiente de competição, hoje existe o chamado MRE, o Mecanismo de Realocação de Energia, onde as
empresas passam a ter créditos, agora bem definidos e contabilizados, dessas operações. Um dado muito
importante, que foi decisivo para os consultores ingleses, é que pelas características do setor, onde cerca de 93%
da capacidade instalada é hidráulica (a geração até passa deste percentual) a operação centralizada leva num
ganho estimado de ordem 23-27%. Então, eles adotaram a idéia que vigorou, e vigorou bem (GCOI) para o novo
modelo” (Eletrobras, Entrevista, 1999).
116
Figura 9. Estrutura Organizacional do ONS
Fonte: http://www.ons.org.br/. 04.09.1999.
50
O autor destaca o engenheiro Joaquim Carvalho, os professores da UFRJ Maurício Tolmasquim e Luis
Pingelli Rosa.
117
5.6.
Planejamento e financiamento no novo modelo: o papel da Eletrobrás e
BNDES
A Eletrobrás desempenhou por vários anos um papel importante para o setor de energia
elétrico brasileiro. Os entrevistados destacaram três importantes funções da Eletrobrás na
antiga configuração do setor (Eletrobrás, entrevista, 1999):
1.
órgão financeiro do setor, diversamente dos outros setores de economia onde este papel
era desempenhado principalmente pelo BNDES.
2.
planejamento e operação do sistema interligado como um todo. Eletrobras coordenava o
GCPS e GCOI, “atuando como o grande juiz, nunca beneficiando as empresas de seu
grupo”.
3.
planejamento da operação dos chamados sistemas isolados brasileiros, regiões que ainda
não fazem parte do sistema integrado.
Como se destacou no decorrer das entrevistas, a Eletrobrás “vem sendo esvaziada”: funções,
antigamente desempenhadas por ela, hoje estão passando nas mãos de outras entidades como
o ONS, CCPE e BNDES.
O modelo proposto pela Coopers & Lybrand recomendava que o planejamento estratégico
centralizado, que vinha sendo desenvolvido pela GCPS, deveria continuar como
“planejamento indicativo”. No entanto, o planejamento deveria se conduzir por uma nova
entidade a ser criada - Instituto para o Desenvolvimento do Setor de Energia Elétrica - com
uma estrutura de propriedade similar à do Operador Nacional do Sistema. O planejamento
indicativo deveria se estabelecer por um período de 25 anos,
incluindo o estudo de
capacidades hídricas, impactos ambientais e outras questões relacionadas.
118
Recentemente, estabeleceu-se a entidade responsável pelo planejamento da expansão do
sistema elétrico brasileiro: o Comitê Coordenador do Planejamento da Expansão dos Sistemas
Elétricos (CCPE), criado pela portaria MME nº 150, de 10 de maio de 1999, cuja a estrutura,
organização e forma de funcionamento foram aprovados pela Portaria MME nº 485, de 16 de
Dezembro de 1999, estando previsto seu funcionamento a partir de janeiro de 2000.
Conforme especificado no http://www.mme.gov.br/sem/ccpe/ccpetodo.htm, deverão ser objetivos
principais dos trabalhos a serem executado pelo CCPE:
• “orientar ações de governo para assegurar o fornecimento de energia nos níveis de
qualidade e quantidade demandados pela sociedade, em consonância com a Política
Energética Nacional, emanada do Conselho Nacional de Política Energética;
• oferecer aos agentes do mercado elétrico um quadro de referência para seus planos de
investimento; e
• estabelecer a expansão mais adequada da rede elétrica de transmissão, em consonância
com os aspectos operacionais do sistema.(...)
Neste novo ambiente institucional o planejamento deverá ser conduzido como função
do governo, exercida pela SEM/MME, deixando de ser realizado de forma colegiada,
conciliando os interesses dos agentes investidores e da sociedade. Contudo, a
representação dos agentes e entidades do setor deverá ser garantida pela composição da
estrutura do CCPE, através da participação de entidades de classe e de processo de
consultas públicas na avaliação e aprovação dos principais produtos, refletindo um
processo decisório participativo e aberto. No sentido de atender aos requisitos acima
mencionados e na qualidade de Agente Planejador do Sistema Elétrico Brasileiro, o
CCPE deverá, entre outras atribuições:
• Elaborar, de forma integrada, o planejamento de longo prazo do setor elétrico;
• Elaborar, e manter atualizado, os Planos Indicativos de Expansão e o Programa
Determinativo da Transmissão;
• Estruturar e manter atualizado o Sistema de Informações Técnicas do planejamento da
expansão do setor de energia elétrica, disponibilizando-o aos agentes que atuam no setor
e à sociedade em geral;
• Estimar os investimentos de capital para expansão da oferta e da transmissão de energia
elétrica, subsidiando as ações de governo na busca de adequação ou viabilização dos
mesmos;
• Acompanhar pró-ativamente as condições de atendimento ao mercado de energiaelétrica,
sugerindo ações para manter este atendimento em níveis de qualidade preestabelecidos;
e
• Propor a ANEEL, os critérios, normas, procedimentos e referências de qualidade para o
desempenho do sistema elétrico na realização da atividade de planejamento; e
• Examinar e emitir parecer sobre assuntos técnicos e estratégicos que lhe forem
encaminhados pelo Conselho Nacional de Política Energética – CNPE ou pelo
Excelentíssimo Senhor Ministro de Minas e Energia”.
119
Como se destaca no decorrer das entrevistas, e também na proposta de estruturação do CCPE,
cabe ainda à Eletrobrás a condução do Comitê Diretor, dos Comitês técnicos e da Secretaria
Executiva do CCPE, assim como o fornecimento dos Dados Básicos.
A Eletrobrás foi considerada uma empresa chave em 84,6% dos questionários aplicados,
considerando que, na amostra distribuída na Furnas, este percentual foi de 0%. Também no
decorrer das entrevistas apontou-se a diminuição da importância da Eletrobrás, em
comparação com o passado. No entanto, algumas das funções que a Eletrobrás ainda
desempenha (ou pode desempenhar), destacadas no decorrer da pesquisa foram:
Tabela 20. Funções da Eletrobras
Funções da Eletrobrás
Alavancador de investimentos estratégicos, principalmente na expansão – braço
operacional do órgão formulador da política energética
Apoio técnico à MME e outros agentes de setor como ONS, MAE e ANEEL
Atuação como agente comercializador
Atuação na área de pesquisa, programas de conservação de energia, análise e
planejamento
Função social: Investimentos em regiões desfavorecidas
Conforme a apresentação da empresa, no VIII° Congresso Brasileiro de Energia elétrica
(1999), a missão da Eletrobrás é “subsidiar a formulação da política pública para o setor
elétrico e atuar na sua execução, articulando e complementando a atuação de entidades
privadas e viabilizando iniciativas que visem melhor atender as necessidades atuais e futuras
do setor”, enquanto o seu negócio é “a execução de programas e projetos para o setor
elétrico de forma complementar às funções exercidas pelos agentes privados e órgão
regulador”.
120
Uma proposta mais controversa de Coopers & Lybrand sugeria manter a Eletrobrás como o
agente financeiro do setor de energia elétrica. A empresa poderia utilizar como recursos os
retornos que receberá dos empréstimos feitas ás empresas de energia, incluindo a Itaipú.
Também poderia tomar emprestado dinheiro de entidades como Banco Mundial e Banco
Inter-americano de Desenvolvimento, que se envolvem em negócios apenas com instituições
de propriedade estatal. No entanto, Ferreira (1999) argumenta que esse papel seria mais
adequadamente desempenhado por uma instituição financeira que tenha mais alternativas de
financiamento e que gerencie melhor os riscos de crédito, propondo, como alternativa, o
BNDES 51.
Em um dos seus discursos, o Ministro de Minas e Energia ressalta que a empresa atuará junto
ao BNDES “onde for necessário atuar, com a visão de política energética que só ela tem, nos
setores onde for preciso estimular a geração de energia, através da sua participação
acionária”52 (www.eletrobras.gov.vr/n3.htm).
Como destacado no decorrer do trabalho, o BNDES foi apontado como uma organização
importante para o funcionamento do setor, por 92% dos respondentes, considerando que, na
amostra aplicada em Furnas, esse percentual caiu para 20 %. A maioria aponta o papel que o
BNDES desempenha (ou deverá a desempenhar) na área de financiamento, substituindo o
papel da Eletrobrás nesta área. Um dos respondentes critica o papel de BNDES que “só existe
para subsidiar o capital internacional”.
51
Na opinião de Leite (1999), na prática, o BNDES está desempenhando esse papel.
Segundo as notícias mais recentes, o BNDES financiará investimento em termelétricas “O ministro de Minas e
Energia (MME), Rodolpho Tourinho, deverá concluir nesta semana o Programa Prioritário de Geração
Termelétrica, que se propõe a garantir o suprimento de energia elétrica no País até 2004. De acordo com esses
estudos, as usinas hidrelétricas com obras em andamento garantirão 15 mil MW dos 26 mil MW necessários
para o suprimento até 2004, mas os 11 mil MW restantes terão que ser supridos por termelétricas. O Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) garantirá o financiamento de até 80% dos
investimentos. A Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) também foi incumbida de modificar diversos
regulamentos do mercado de energia, para facilitar os investimentos”. (EFEI Energy News , 8 de Fevereiro de
2000)
52
121
Conforme as mais recentes notícias, o Governo está estudando a idéia de devolver ao BNDES
o controle da privatização do setor elétrico, para agilizar o processo.
Figura 10. Principais agentes do setor
Fonte: Ministério da Minas e Energia: www.mme.gov.br/sem/fig4.htm
122
CAPÍTULO 6
6. CONCLUSÕES E SUGESTÕES
O objetivo principal deste trabalho foi identificar, com base na abordagem de redes, a
influência dos processos de restruturação e privatização na integração do sistema brasileiro de
energia elétrica.
Para isso, a tese foi estruturada em seis capítulos. No primeiro, apresentou-se a introdução, os
objetivos principais e intermediários, a delimitação e as limitações do estudo, assim como a
sua relevância. O segundo capítulo analisou a abordagem de redes, destacando as razões
principais de surgimento de interesse por essa área e seu uso como modo de configuração da
realidade e como instrumento de análise. O terceiro capítulo apresentou a trajetória do setor
brasileiro de energia elétrica, durante o período de intervenção estatal, e suas principais
características. O processo de reestruturação e privatização do setor abordou-se no quarto
capítulo. No capítulo seguinte, identificaram-se e analisaram-se, a partir da abordagem de
redes, as organizações-chave do setor de energia elétrica. Por fim, apresentaram-se as
principais conclusões do trabalho.
A fragmentação institucional, a sobreposição da clientela e a falta de coordenação
interorganizacional são características da administração pública. Gerentes voltados para os
problemas específicos da própria organização, sem conceber o seu papel num contexto maior
de políticas públicas não são uma exceção. Políticas públicas unisetoriais, pouco
participativas e direcionadas de “alto para baixo” estão sendo ultrapassadas. A complexidade
dos tempos contemporâneos, os movimentos em favor de uma maior democratização e
descentralização, assim como a crise do Estado de Bem-Estar Social influenciam na
concepção de um novo modelo de gestão de políticas públicas, baseado em redes.
123
No decorrer do trabalho destacou-se que a abordagem de redes pode ser utilizada como modo
de configuração da realidade complexa e como instrumento de análise. Na opinião dos
representantes da teoria de redes sociais, qualquer organização e ambiente interorganizacional
pode ser visto e analisado como rede. Desse modo, essa teoria pode servir para a análise do
setor de energia elétrico brasileiro antes e depois de sua reestruturação. No entanto, neste
trabalho, a abordagem de redes foi utilizada principalmente, para analisar a nova configuração
do setor, depois dos processos de privatização e reestruturação.
Como Bressand & Distler (1989) destacam, na era industrial, a técnica parecia segregar o seu
poder através de uma concentração extrema. Baseados na convicção de que quem detém a
rede física controla a comunicação, foi reservado ao Estado o papel de construir e realizar
essas redes. O Welfare State (Estado de Bem-Estar Social, Estado Desenvolvimentista ou
Intervencionista) caracterizou-se pela ampla participação direta e indireta do Estado em vários
setores da economia. Desse modo, a configuração desses setores podia ser vista como uma
rede altamente centralizada, controlada e administrada pelo Estado, através de empresas,
secretarias, organizações e órgãos reguladores estatais.
A evolução do setor de energia elétrica no Brasil está fortemente relacionada com a trajetória
do Estado desenvolvimentista. As empresas, quase totalmente privadas até a década de
quarenta, não conseguiram acompanhar a crescente demanda de energia decorrente dos
processos de industrialização. Consequentemente, muitas delas foram estatizadas e outras
concessionárias federais e estaduais se criaram, restringindo cada vez mais a participação do
setor privado nessa área.
O sistema brasileiro de energia elétrica é fundamentalmente baseado na geração da energia
hidroelétrica, sendo que o país é caracterizado de uma vasta rede de recursos hídricos. O
primeiro passo na implementação do sistema centralizado foi a criação de monopólios
124
regionais para a distribuição que foi seguido pelo desenvolvimento de um sistema de
despacho centralizado que maximizava a eficiência dos serviços de geração hidroelétrica.
Determinando qual das usinas geraria energia, e a quantidade de energia, o sistema
centralizado fazia o possível para que a água disponível fosse utilizada da melhor maneira,
otimizando assim o output total de energia com o menor custo. O Grupo de Coordenação da
Operação Interligada (GCOI), criado em 1973, controlava esse sistema operacional
centralizado. Em 1982, o Grupo de Coordenação para a Planejamento do Sistema Elétrico
(GCPS) foi criado para projetar a demanda por meio de previsão macroeconômica, definindo,
assim, os investimentos necessários para a expansão das atividades de geração, transmissão e
distribuição.
Paralelamente, o Departamento de Águas e Energia Elétrica (DNAEE) desempenhou por
vários anos o papel de órgão regulador do setor de energia elétrica, centralizando, em nível
federal, todas as ações regulamentares. O Código de Águas, que desenhava a política e a
regulação do setor brasileiro de energia elétrica, ocupava-se principalmente com a garantia de
que a expansão da oferta se daria de forma razoável e assegurada. Por meio desse processo
centralizado de controle, operacionalização, planejamento e regulamentação fez-se possível a
criação de um sistema integrado de energia elétrica inteiramente.
A estrutura de propriedade no Brasil era relativamente complicada. Apesar da indústria ser
quase inteiramente de propriedade pública, o Governo Federal possuía os ativos de geração e
transmissão, enquanto os governos estaduais eram donos das empresas de distribuição, assim
como de algumas empresas integradas verticalmente. Isso fez com que os governos estaduais,
especialmente nos Estados mais ricos, tivessem bastante peso na gestão e controle do sistema
brasileiro de energia elétrica.
125
O Brasil passou a década de setenta com o mesmo modelo, seguindo uma inércia das duas ou
três décadas anteriores. O contexto do setor de energia elétrica no Brasil, antes da reforma,
pode ser resumido assim:
F Centralização na esfera federal, com participação estadual relevante em algumas regiões;
F Interseção de papéis e responsabilidades;
F Arcabouço de regulamentos orientado para a expansão da oferta;
F Oferta em níveis razoáveis;
F Qualidade dos serviços satisfatória;
F Baixos níveis tarifários;
F Baixa eficiência econômica e energética;
F Considerável eficiência operacional;
F Eventuais consumos perdulários;
F Pouco empenho na minimização de custos;
F Existência e desempenho satisfatório de órgãos integradores na parte de planejamento e
operação interligada;
F Criação de um sistema com características únicas, concentrado na exploração dos recursos
hídricos.
No entanto, depois de um longo período no qual o Estado desempenhou o papel mais
importante na economia, o tema da redução do tamanho do Estado e da competição das redes
parece prevalecer. Vários fatores econômicos, ideológicos, sociais e tecnológicos53
influenciam esse processo. O controle das infra-estruturas revela-se cada vez mais parcial –
53
“(...) os monopólios públicos travam assim uma guerra de trincheiras contra as hordes telemáticas, cujos
golpes ousados são favorecidos pelas novas teconologias” (Bressand & Distler, 1989: 155) (Grifo nosso).
126
apesar de não perder a importância. “Neste domínio é no poder de regulamentação54 que se
encarnam os poderes duros” (Bressand & Distler, 1989:155).
No caso do setor de energia elétrica, a crise do Estado de Bem-Estar Social juntou-se a um
conjunto de fatores específicos como: desarticulação institucional; desestímulo profissional e
perda de quadros competentes; falta de recursos para investir e tarifas baixas demais; decisões
errôneas de investimentos; e uso inadequado do setor na política de combate à inflação.
Paralelamente, cresceu-se a demanda para amplos investimentos, sendo que uma grande parte
dessa demanda não tinha sido satisfeita com investimentos adequados por falta de
financiamentos. Esses fatores, assim como as inovações tecnológicas e a influência da onda
neoliberal impulsionaram fortemente a decisão para maior participação do setor privado e
marcaram o começo do período de privatização e reestruturação.
Deve se considerar que essas mudanças influenciaram a decisão da autora para utilizar a
abordagem de redes na análise do setor. Como já se destacou o movimento em favor do
Estado mínimo é um dos fatores que influenciam o surgimento de redes na área pública. As
estruturas tradicionais de gestão e controle se modificam e, para colocar em prática as
políticas públicas na área de energia, parcerias se estabelecem com o setor privado e
representantes da sociedade civil. O fortalecimento da democracia e a pressão para melhores
prestações de serviços públicos, assim como para maior participação da sociedade na gestão
da políticas públicas influenciam a configuração do novo modelo setorial, no qual é reservado
um papel importante - pelo menos teoricamente - à participação do cidadão-usuário dos
serviços públicos de energia.
54
“O poder de regulamentação assume a forma de um conjunto de leis, regulamentos ou medidas mais discretas
a que a autoridade submete um dado conjunto de atividades, quer sejam de tipo industrial ou de serviço” (op.cit.
156). Também na opinião de Rosa & Senra (1995), “(...)a regulamentação pressupõe um poder legal que faça
prevalecer as regras. (...)A privatização faz parte do processo de desregulamentação”(1995:43).
127
Assim, o novo modelo de reestruturação e privatização do setor insere-se nesse quadro maior
de mudanças estruturais que caracterizam Brasil a partir dos anos oitenta. O Programa
Nacional de Desestatização, assim como a nova Lei de Concessões N° 8.987 de 1995 abrem
espaço e criam as condições necessárias para a privatização e reestruturação do setor. O
estabelecimento da competição e a universalização dos serviços foram os principais objetivos
da reforma. Um número considerável de leis, a definição das empresas e participações da
Eletrobrás que seriam privatizadas e a formalização do projeto RESEB (Reestruturação do
Setor Elétrico Brasileiro) traçaram o caminho de privatização. Esse projeto, proposto pela
consultora Coopers & Lybrand, continha proposições de grande importância para o setor.
Entre as recomendações destacam-se a dissociação vertical das empresas integradas nos
segmentos de geração, transmissão e distribuição; a introdução do conceito do produtor
independente e a proposta de desdobramento das funções até então exercidas pela Eletrobrás.
A função reguladora do Estado tenta se fortalecer com a criação da Agência Nacional de
Energia Elétrica, enquanto para alcançar um dos objetivos principais da reforma – a
introdução da competição – cria-se o Mercado Atacadista de Energia Elétrica (MAE).
Reconhecendo as características peculiares do setor brasileiro de energia elétrica, baseado
principalmente no uso dos recursos hídricos, instituiu-se o Operador Nacional do Sistema
Elétrico, que tem como objetivo principal exercer as atividades de coordenação e controle de
operação e de transmissão de energia elétrica nos sistemas interligados e que, de certa forma,
é o sucessor do Grupo de Coordenação da Operação Interligada (GCOI).
Desse modo, se transforma a configuração do setor de energia elétrica. O Estado perde seu
papel central na área de gestão e controle e, paralelamente, tenta fortalecer seu papel na área
de regulação. O novo modelo tem características mais parecidas com uma rede, na qual
existem centros ou organizações que desempenham o papel integrador. Os atores sociais que a
128
compõem se multiplicam: ao lado do governo, se encontram as empresas - privadas ou
públicas - e o usuário dos serviços públicos de energia.
É importante destacar que o novo modelo, apesar de apresentar características mais
horizontais, incorpora antigos papéis e funções ao lado dos novos. Se, no modelo antigo, essas
funções eram desempenhadas diretamente pelo Estado, por meio de entidades estatais como a
Eletrobrás, no novo modelo, essas entidades se “esvaziam”. As antigas funções passam a ser
desempenhadas por novas organizações como ONS (operação interligada) e CCPE
(Planejamento Indicativo), BNDES (financiamento) enquanto que novas organizações como
MAE e ANEEL desempenham novos papéis que estão diretamente ligados com o alcance dos
novos objetivos da reforma: introdução da competição e universalização dos serviços. O
processo deve ser considerado como parte da tendência contemporânea diante da “hollowing
out of state”. O Estado “espectador” e “esvaziado” cria rede de relações com as empresas
privadas e a sociedade civil para colocar em prática as políticas públicas.
A nova rede de energia elétrica pode ser classificada como rede institucional, sendo que
reagrupa organizações engajadas nas mesmas políticas e as relações sociais são definidas com
base em leis e normas que especificam funções e papéis organizacionais. Assim, ela apresenta
um alto grau de formalização.
No entanto, na opinião da maioria dos entrevistados, um dos primeiros erros dessa reforma
reside no fato de que o processo de privatização teve início antes do fortalecimento do novo
marco regulatório. Em outras palavras, a antiga rede - o sistema centralizado de energia
elétrica - começa a se descompor antes de fortalecer as organizações integradoras que
desempenham um papel central para seu funcionamento. Isto está influenciando
negativamente o processo de transição e, paralelamente, o fortalecimento do novo modelo do
setor.
129
Outra característica da nova rede é o seu alto grau de complexidade estrutural: diferentes
elementos - organizações e os usuários - devem ser integrados para que a rede funcione como
uma unidade. Concessionárias e outras empresas (cooperativas, associações e outras),
organizações como ANEEL, ONS, MAE, governo e os usuários de energia elétrica fazem
parte desta rede e desempenham diversos papéis.
Nestas condições, seria possível que o setor de energia elétrico brasileiro funcionasse como
uma rede altamente integrada? Para responder a esta indagação, a nossa análise baseou-se nos
instrumentos oferecidos pela abordagem de redes.
Desse modo, partiu-se da definição de Cavalcanti (1998) que considera, referindo-se à rede
interorganizacional, que a sua existência depende de uma série de fatores como: atuação
conjunta e orientação para alcançar objetivos próprios e coletivos; manutenção de relações
sistemáticas e até mesmo padronizadas, grande conhecimento sobre as funções e
responsabilidades de cada uma; elevado grau de consenso com relação à política em vigor e
avaliação positiva dos resultados. Certamente, que estas características poderiam ser
estendidas para a análise de uma rede que inclui não apenas organizações, mas também outros
atores sociais como usuários desses serviços. Como podemos classificar a nova configuração
do setor de energia elétrica como uma rede integrada, se os seus participantes não conhecem o
novo modelo nem as organizações que a compõem e sequer concordam sobre a política em
vigor?
Com base na pesquisa bibliográfica, construiu-se o questionário que lista as organizações
integradoras da rede. Considerando que lidamos com uma rede altamente formal, a primeira
indagação visou a identificação, a partir da percepção dos representantes dos agentes
institucionais, das organizações-chave para o adequado funcionamento do setor. Os
questionários revelaram que apenas a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) é
130
conhecida por todos os respondentes. Apesar de todas as outras organizações serem altamente
conhecidas, sempre menos agentes consideram chave para o funcionamento do setor o
Ministério de Minas e Energia (Secretaria de Energia), assim como a Eletrobras. Esta resposta
pode revelar a percepção da diminuição do papel do Estado no funcionamento do setor.
Formulação da política energética, planejamento indicativo, apoio à pesquisa e
desenvolvimento tecnológico e coordenação das questões internacionais são apontadas como
principais funções do MME na área de energia elétrica.
Com respeito à Política Nacional de Energia Elétrica, podemos destacar que esta é ainda
caracterizada como a função principal do Ministério de Minas e Energia. No entanto, esta
política vem sendo fortemente criticada em vários aspectos. No decorrer da pesquisa de
campo, os representantes dos agentes institucionais do setor destacaram os seguintes fatores
como principais falhas da política governamental concernentes aos processos de
reestruturação e privatização: começo da privatização antes do fortalecimento do marco
regulatório, a desvertizalização do setor em vários segmentos e a não obtenção da meta de
universalização dos serviços de energia como.
Para analisar a avaliação dos usuários dos serviços de energia elétrica relativa a esses
processos, foram utilizados os dados da pesquisa realizada pela agência reguladora do Rio
Grande do Sul (AGERGS). A qualidade dos serviços de energia foi classificada como boa
pela metade da amostra e posicionou-se melhor do que a de outros serviços privatizados como
transporte interurbano e telefonia. No entanto, a maior parcela da amostra considera que os
serviços não mudaram como conseqüência dos processos de privatização, enquanto
classificam as tarifas como caras ou muitos caras e apontam que os preços aumentaram acima
da taxa de inflação depois da privatização.
131
A autora reconhece as limitações do uso desta pesquisa que, apesar de ser significativa para o
Estado do Rio Grande do Sul, não pode representar a avaliação dos usuários em nível
nacional. Existem características específicas estaduais e o fato da existência da agência
estadual – que, na opinião da autora é uma das agências estaduais mais bem estruturadas pode influenciar positivamente a prestação dos serviços públicos.
O órgão criado para formular a política energética - Conselho Nacional de Política Energética
– tem na sua composição representantes do Poder Executivo, dos consumidores e um
representante dos Estados e Distrito Federal, mostrando, assim, a tentativa de criação de um
órgão colegiado que reúna representantes de todos os atores sociais da rede de energia
elétrica. No entanto, a representatividade não é considerada satisfatória por representantes dos
governos estaduais.
De fato, como já destacado no decorrer da trabalho, os movimentos em favor de
descentralização - uma das causas do surgimento de redes - fazem com que se fortaleça o
papel dos estados e municípios na formulação e execução das políticas públicas. No entanto,
estes últimos não foram incluídos de modo adequado na nova configuração do setor.
Com base nas determinações federais, a política energética é de competência federal. Na
prática, os estados - especialmente os mais poderosos - sempre exerceram um papel
importante sendo que controlavam grandes empresas estaduais de sua propriedade. Com a
privatização, a situação modifica-se drasticamente e os estados se encontram perante a
situação de perda total de informação e controle, enquanto convivem com exigências sempre
maiores da sociedade civil. Sem assentos nas organizações integradoras do setor, os
representantes dos governos estaduais revelam que seu papel restringe-se na negociação e
articulação, assim como no estabelecimento de parcerias. A instituição do Fórum dos
132
secretários de energia mostra não só esse esforço de articulação dos governos estaduais, mas
também a pressão para fortalecimento do seu papel.
No decorrer da pesquisa, uma atenção especial foi dedicada à análise da Agência Nacional de
Energia Elétrica (ANEEL). A agência está no cerne do novo modelo e, de certa forma,
incorpora o novo papel do Estado regulador. Criada com base nos modelos americanos e
europeus, ela tem como finalidade regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e
comercialização de energia elétrica, zelando pela qualidade do serviço prestado, pelo trato
isonômico dispensado aos usuários e pelo controle da razoabilidade das tarifas cobradas aos
consumidores, preservando, sempre, a viabilidade econômica e financeira dos agentes e da
indústria.
Conforme o modelo institucional, a agência deveria estabelecer relações equivalentes com o
governo, as concessionárias de energia elétrica e os usuários desses serviços públicos. Isto
incorpora-se na missão da agência: “Proporcionar condições favoráveis para que o mercado
de energia elétrica se desenvolva com equilíbrio entre os agentes e em benefício da
sociedade”. Deste modo, podemos configurar a agência no centro de uma rede horizontal que
visa relacionar, de forma equilibrada, esses três agentes. Os instrumentos da abordagem de
redes foram utilizados para a análise da ANEEL e, de novo, se perguntou se os integrantes
conhecem, no mínimo, a agência, assim como as funções e o papel que esta última
desempenha.
Os agentes institucionais da rede, incluindo aqui empresas concessionárias privadas ou
estatais de energia elétrica, agências reguladoras estaduais e representantes dos governos
estaduais, mostram um alto grau de conhecimento da agência. Eles a consideram
indispensável para o adequado funcionamento do setor de energia elétrica. No entanto, o
conhecimento das funções, do papel e dos objetivos da agência ainda deixa a desejar.
133
Principalmente, o princípio básico da agência - a eqüidistância de relações com outros atores
sociais - não é amplamente conhecido.
Algumas das razões deste desconhecimento podem ser explicadas considerando a fase de
transição em que o novo modelo ainda se encontra. A agência reguladora, instituída após ao
começo do processo de privatização, não se fortaleceu como peça-chave na nova configuração
do setor. A não-existência de uma cultura regulatória - seja por parte dos agentes do setor,
seja dentro da própria agência - dificulta ainda mais este processo.
Paralelamente a rede de relações que se tenta construir apresenta um alto grau de
complexidade e formalização. Diferentemente dos processos similares que vem acontecendo
entre as empresas privadas, a construção da rede não está baseada na troca mútua, na
“cooperação para competição”, nos mecanismos de coordenação baseados no mercado (Miles
& Snow, 1987 & 1992) ou sociais (Jones, Hesterly & Borgatti, 1997). Pelo contrário, leis,
normas e regulamentos – ainda em continuação – estão esculpindo as fronteiras da rede, assim
como a atuação de todos os agentes, o que nos faz pensar que a rede com um alto grau de
formalização e complexidade apresenta maior dificuldade de fortalecer-se na prática.
No entanto, os participantes da pesquisa de campo destacam a importância da agência para o
adequado funcionamento do setor, e reconhecem que com a mudança do papel do Estado na
área de energia elétrica, o fortalecimento do papel regulador torna-se indispensável.
Alguns instrumentos da abordagem de redes, como a densidade e a centralidade, foram
utilizados para analisar as relações da ANEEL com as empresas de energia elétrica. Nas
condições de uma rede pouco densa, como é o caso da rede das relações da ANEEL, a
capacidade de monitorar as ações das empresas concessionárias são limitadas. Embora,
teoricamente, a ANEEL caracterize-se por uma alta centralidade de intermediação, na prática,
os papéis podem ser invertidos.
134
Como se destacou no decorrer do trabalho, existe o risco de que, nesta rede que está sendo
formada, outros atores sociais desempenhem o papel central. As concessionárias, com maior
poder de negociação e articulação, podem fazer com que o modelo institucional se enfraqueça
e se crie um “marco regulatório alternativo” que, de certa forma, “regule as próprias agências
regulatórias”, em prejuízo dos usuários destes serviços públicos.
A pesquisa de Oliveira & Tolmasquim (1999) alerta para a atuação desses “global players”,
enquanto exemplos de notícias correntes, levantadas a partir da pesquisa bibliográfica e
telematizada, tentaram ilustrar o poder que várias empresas estão estabelecendo por meio de
compras e aquisições em vários segmentos do setor.
Paralelamente, as empresas de energia elétrica estão mostrando maior capacidade de
articulação e de pressão. Estas podem disputar negócios entre si, apesar de se unirem em nível
institucional, criando várias associações que visam defender os interesses comuns.
Mesmo assim, o conhecimento da agência e suas funções por parte dos usuários de serviços
públicos de energia ainda é muito baixo. Embora o usuário seja concebido como um dos
agentes-chave da rede, na prática, a sua atuação é pouco expressiva. Fatores como a sociedade
civil não organizada e sem cultura de cobrança para melhores prestações sociais, assim como
a profunda mudança do modelo institucional podem influenciar neste alheamento.
No entanto, existem usuários com maior capacidade de pressão e articulação, que vêm se
organizando e cobrando melhores prestações desses serviços. São as indústrias da região, que
tem representação em vários fóruns de formulação e implementação da política energética e
podem influenciar ANEEL nas suas decisões.
A reforma prevê as figuras do consumidor cativo - consumidor ao qual só é permitido
comprar energia do concessionário, autorizado ou permissionário, a cuja rede esteja conectado
135
- e a do consumidor livre - consumidor que está legalmente autorizado a escolher seu
fornecedor de energia elétrica. Esses últimos que apresentam, na prática, mais capacidade de
articulação e pressão do que os consumidores cativos.
Um dos riscos mais comuns que se corre quando se analisa a realidade a partir da abordagem
de redes é criar uma rede tão complexa quanto a realidade que ela apresenta. No entanto, no
decorrer da pesquisa de campo, observou-se o fortalecimento de outros atores sociais, não
considerados no novo modelo que está se tentando institucionalizar. De fato, a ANEEL vem
estabelecendo relações com as agências reguladoras estaduais multisetoriais que incorporam
melhor as exigências de uma maior aproximação com os operadores privados, uma maior
participação da cidadania e apresentam, conforme Fachin (1998) destaca, vantagens como a
economia de recursos; facilidades de aprendizado e redução do risco de influência da empresa
regulada sobre a agência reguladora.
Essas agências caracterizam-se por relações fortes com os governos estaduais: são formadas
por pessoas que vêm do Governo e, em geral, compartilham a mesma visão. Altamente
dependentes de recursos governamentais estaduais, correm o risco de perder uma das
principais características da agência reguladora - sua autonomia. Ainda, há a insatisfação dos
governos estaduais relativa a não-representação adequada nos novos assentos institucionais do
setor que pode influenciar a maior pressão destes últimos nas agências e o seu uso como
instrumento alternativo de pressão e articulação institucional.
É importante levar em consideração o ponto de vista dos governos estaduais, apesar de
apresentarem, também, diferentes visões políticas sobre o processo de reestruturação do setor
de energia elétrica - perfeitamente aceitável no âmbito do sistema democrático. Sem
considerar estes agentes, o modelo pode ser modificado e apresentar distorções.
136
Outros atores sociais que estão fortalecendo as relações com a ANEEL são os órgãos de
defesa da concorrência. As fronteiras que separam a área de atuação da agência reguladora do
órgão de defesa de concorrência são muito tênues. Abstrações como monopólio natural ou
concorrência perfeita são utilizadas para facilitar a análise teórica, porém são difíceis de
serem encontradas factualmente em sua forma ideal. Nestas condições, torna-se indispensável
o fortalecimento das relações entre estes órgãos, ação que não depende apenas do poder de
argumentação, mas também da harmonização e coerência das políticas governamentais em
várias áreas (macroeconômica, jurídica, energética e outras). Na prática, várias iniciativas
estão sendo tomadas com este propósito.
O Mercado Atacadista de Energia Elétrica pode ser considerado uma das organizações-chave
do setor, sendo que por meio deste último possibilitar-se-á a compra e venda de energia
elétrica. A existência desta organização é importante para alcançar um dos objetivos
principais da reforma: o estabelecimento da competição.
A maioria dos participantes da pesquisa de campo conhecem esta nova organização e apontam
a sua importância para o adequado funcionamento do setor. No entanto, não existem idéias
claras sobre o funcionamento do órgão na prática. O MAE, ao lado da ANEEL, apresenta uma
verdadeira inovação no âmbito do modelo, sendo que nenhum dos órgãos existentes no
modelo centralizado desempenhava um papel parecido. Isto pode justificar a dificuldade de se
entender e absorver, por parte de todos os agentes, o seu papel na prática. E, como o próprio
presidente do MAE reconhece, o desafio atual não é apenas desenvolver e implementar
regras, mas fazer com que as instituições entendam quais são as suas funções dentro do
processo.
A Assembléia Geral do MAE é composta de representantes das categorias de produção e
consumo, e, paralelamente, abre-se espaço para a participação dos representantes dos
137
consumidores livres - é importante observar que os consumidores cativos não têm
representação. A estrutura horizontalizada - em rede - do MAE reforça a tentativa de criação
de órgãos colegiados de decisão, com representantes de todos os stakeholders interessados no
bom funcionamento do mercado.
O Operador Nacional do Sistema Elétrico é uma nova organização criada, mas que, na prática,
incorporou as funções do antigo GCOI (Grupo Coordenador de Operações Interligadas).
Considerando as características peculiares do sistema energético brasileiro, decidiu-se manter
os benefícios técnicos do sistema centralizado de despacho, enquanto se descentraliza a
propriedade dos ativos.
No entanto, em coerência com os objetivos da reforma, o ONS instituiu-se como associação
civil, sem fins lucrativos, que integra representantes das empresas de todos os segmentos
desverticalizados do setor, ao lado dos representantes do setor público e consumidores livres fazem parte desta organização também os Conselhos de Consumidores. Mais uma vez,
apresenta-se uma estrutura horizontalizada – em rede – que agrupa representantes dos todos
os stakeholders da empresa.
Nas entrevistas, manifestou-se um certo anseio com relação ao papel do ONS. Ao contrário
do GCOI, órgão estatal que administrava a colaboração, o ONS, órgão privado, deve
administrar a competição. Os objetivos desta organização consideram-se incompatíveis com o
objetivo da introdução da competição, embora perfeitamente aceitável do ponto de vista das
vantagens operacionais.
Funções importantes para o funcionamento do setor, como planejamento e financiamento, não
foram adequadamente consideradas no novo modelo do setor. Por um longo período
continuaram as controvérsias sobre o papel do BNDES e da Eletrobrás na área de
financiamento. Recentemente, parece que este papel vai ser desempenhado pelo Banco,
138
justificando-se pela sua ampla experiência nesta área. De fato, o papel do BNDES na área de
financiamento reconhece-se pela grande maioria dos participantes da pesquisa de campo.
A Eletrobrás é a típica empresa estatal em processo de “esvaziamento”. Funções como
planejamento de longo prazo e operacional, financiamento e outros estão sendo passadas para
outras empresas integradoras do modelo. De fato, apesar de ser considerada pela maioria dos
participantes da pesquisa de campo como chave para o funcionamento do setor, a empresa
aparece em ultima colocação.
No entanto, por ainda deter grande parte do pessoal mais qualificado do setor de energia
elétrica brasileiro, a empresa apresenta um grande potencial para desempenhar funções
importantes na área de planejamento indicativo, eletrificação rural, comercialização e,
paralelamente, operar como braço operacional do Ministério de Minas e Energia.
As caracteríticas da nova rede de energia elétrica no Brasil podem ser resumidas na seguinte
figura:
139
MME
Política energética nacional
Governos Estaduais
Agências
Reguladoras
Estaduais
C
C
P
E
P
L
N
A
J
E
M
A
N
E
T
O
ANEEL
órgão
regulador
ONS
Agente Operador
Órgãos de Defesa da
Concorrência
G
D/C
T
Consumidores
Cativos
MAE
Mercado
Atacadista
F
I
N
A
N
C
I
A
M
E
N
T
O
Consumidores
Livres
Legenda:
___
Organizações integradoras da nova rede
Atores sociais fracos
Atores sociais fortes
Figura 11. A configuração da rede do setor de energia elétrica brasileiro
Adaptado de Santos (1999)
140
B
N
D
E
S
Resumindo, é possível concluir que o setor de energia elétrica brasileiro ainda não pode ser
considerado como uma rede altamente integrada. Nesta nova configuração horizontalizada –
resultado dos processos de reestruturação e privatização – os atores sociais estão afirmando
seus papéis, funções e objetivos, enquanto as organizações-chave estão se estruturando para
fortalecer seu papel integrador. Devido ao peso diferenciado dos atores sociais, existe o risco
de criação de novos centros de influência e pressão – concessionárias, consumidores livres de
energia – e de desaparecimento de outros – consumidores cativos, governos estaduais. Estas
mudanças podem levar a um desequilíbrio e desconfiguração do modelo idealizado.
Consequentemente, ações imediatas devem ser tomadas para fortalecer o papel dos atores
sociais desfavorecidos, especialmente dos usuários dos serviços públicos de energia. Como
Saravia (1999) destaca, o próprio Estado define, em cada época, quais são as necessidades de
interesse geral que devem ser satisfeitas por um procedimento de serviço público e dita,
consequentemente, o regime jurídico específico da sua prestação. No momento em que o
Estado deixa de intervir diretamente na economia, torna-se indispensável sua atuação na área
social e educacional. O fortalecimento do papel regulador do Estado só pode se dar ao lado do
fortalecimento da sociedade civil e das instituições democráticas.
A rede analisada encontra-se ainda em fase de formação e passa por grandes mudanças.
Melhor definição dos papéis das organizações integradoras, publicidade do novo modelo do
setor, pesquisas de opinião junto aos cidadãos-usuários, divulgação das organizações
integradoras – em especial das agências reguladoras, seu papel e funcionamento – e
ampliação das formas de participação dos usuários desses serviços nos órgãos colegiados de
decisão são algumas medidas que devem ser tomadas para fortalecer o papel dos usuários,
assim como dos outros agentes do setor. A contribuição da mídia, das ONGs, universidades e
academia será indispensável neste processo de consolidação do novo modelo.
141
A própria modelagem organizacional dos agentes integradores deve adaptar-se ao ambiente
flexível de relações interorganizacionais, onde multiplicam-se a presença e a pressão dos
vários stakeholders. Utilizando a terminologia das redes, é possível afirmar que para atuar
com êxito neste ambiente multirelacional, as próprias organizações integradoras devem se
estruturar como redes. Os órgãos colegiados de decisão, presentes na maioria das
organizações integradoras analisadas e compostos por representantes de todos os
stakeholders, sem dúvida, respondem a esta exigência. De novo, resta ver se essa
representatividade é factível e atuante.
Uma outra questão importante a ser considerada nos estudos das redes tem a ver com o grau
de envolvimento ou do investimento que as organizações empregam nas relações
interorganizacionais. No decorrer da pesquisa de campo, observou-se que na maioria das
organizações que participaram da pesquisa, os altos executivos são responsáveis pela área das
relações institucionais. Sem dúvida que este fato mostra que as organizações, para as quais a
participação em redes é uma questão de relevância estratégica, estão investindo cada vez mais
nas relações interorgaizacionais. No entanto, será que este indicador é suficiente para avaliar o
envolvimento da organização na rede? A amostra distribuída dentro de uma única organização
abre espaço para novas indagações.
Uma gerência efetiva num ambiente de relações interorganizacionais requer todas as
habilidades associadas com a gerência dos programas tradicionais: planificação, tomada de
decisões, organização, implementação e avaliação. No entanto, negociação, coordenação,
arranjos cooperativos, regulação, lobby e “orquestração” de programas conjuntos
intergovernamentais fazem parte dos instrumentos que os administradores públicos devem
utilizar no âmbito da gestão em rede de políticas públicas. O uso crescente de contratos e a
demanda para profissionais bem-preparados que possam elaborá-los e monitorá-los torna-se
imprescindível para estabelecer uma saudável parceria com o setor privado (STARLING,
142
1993). Neste ambiente se demandam também habilidades políticas, por uma simples razão:
estas relações são essencialmente políticas.
Estudos profundos devem considerar aspectos como as competências necessárias para o
gerenciamento de redes organizacionais, tendo em vista a eficiência, eficácia e efetividade da
rede. Como BRESSAND & DISTLER (1989) destacam, a era das redes obedece a uma lógica
diferente, a lógica de difusão e de influência e não de concentração. No entanto, a primeira
tentação é generalizar ao mundo das redes os esquemas de poder herdados da era das
máquinas.
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