FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS ESCOLA BRASILEIRA DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA CENTRO DE FORMAÇÃO ACADÊMICA E PESQUISA CURSO DE MESTRADO EM ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA TÍTULO O IMPACTO DE REESTRUTURAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO NA GESTÃO INTEGRADA DO SETOR DE ENERGIA ELÉTRICA: ANÁLISE DO SETOR A PARTIR DA ABORDAGEM DE REDES DISSERTAÇÃO DE MESTRADO APRESENTADA POR ALKETA PECI E APROVADA EM (OUTUBRO DE 2000) PELA COMISSÃO EXAMINADORA Prof. ENRIQUE JERÔNIMO SARAVIA Prof. BIANOR SCELZA CAVALCANTI Prof. Dr. CARLOS RAUL BORENSTAIN 1 RESUMO O setor de energia elétrica brasileiro vem passando por profundas transformações. A restruturação caracteriza-se principalmente pela passagem de um sistema verticalizado e coordenado centralmente pelo Estado, para um sistema horizontal, com características de uma rede, na qual organizações como a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) - o novo órgão regulador - , o Mercado Atacadista de Energia Elétrica (MAE), o Operador Nacional de Sistema Elétrico (ONS), Eletrobrás e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) são designadas como os principais integradores do sistema. O objetivo do presente trabalho foi analisar a influência dos processos de reestruturação e privatização na integração do sistema brasileiro de energia elétrica. Buscou-se construir a análise a partir de instrumentos oferecidos pela própria abordagem de redes. Os resultados da pesquisa mostram que o setor brasileiro de energia elétrica ainda não pode ser considerado como uma rede altamente integrada. Na nova configuração horizontalizada do setor, os atores sociais estão afirmando seus papéis, funções e objetivos, enquanto as organizações-chave como ANEEL, ONS, MAE, Eletrobrás, e BNDES estão se estruturando para fortalecer seu papel integrador. ABSTRACT The Brazilian energetic sector is passing through deep transformations. The restructure is mainly characterized by the passage from a vertical and centrally coordinated system, in hands of the State, to a more horizontal one, with characteristics of a network, in which organizations, such as the National Agency of Electric Energy (ANEEL), the new regulator entity, the Wholesaler Market of Electric Energy (MAE), the National Operator of Electric System (ONS), Eletrobrás and the National Bank of Economic and Social Development (BNDES) are designated as the principals integrators of the system. The objective of the present work was to analyze the influence of the privatization and restructuring processes in the integration of the Brazilian system of electric energy. The analysis was based on the instruments offered by the network approach. The results of the research show that the Brazilian sector of electric energy cannot be considered as a highly integrated network. In this new horizontal configuration, the social actors are affirming its roles, functions and objectives, while the key-organization like ANEEL, ONS, MAE, Eletrobrás, and BNDES are being structured to strengthen its integrative role. 2 SUMÁRIO 1. O PROBLEMA............................................................................................................................ 5 1. 1 Introdução ............................................................................................................................. 5 1.2 Objetivos .............................................................................................................................. 10 1.3 Delimitação do estudo......................................................................................................... 11 1.4 Relevância do estudo........................................................................................................... 12 1.5 Metodologia .................................................................................................................... 13 1.5.1 Universo e amostra ...................................................................................................... 14 1.5.2 Seleção dos sujeitos..................................................................................................... 15 1.5.3 Coleta de dados............................................................................................................ 15 1.5.4 Tratamento de dados................................................................................................... 16 1.5.5 Limitações do método ................................................................................................. 17 2. PENSAR E AGIR EM REDE: IMPLICAÇÕES NA GESTÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS .................................................................................................................................... 18 2.1. Redes como marcas da era da informação ..................................................................... 18 2.2. Esclarecimento dos conceitos ......................................................................................... 20 2.2.1 Redes enquanto instrumentos de análise .............................................................. 21 2.3. Redes na gestão pública .................................................................................................. 23 2.4. Fatores que influenciam na emergência de redes na gestão de políticas públicas ...... 25 2.4.1. Mudança de paradigma .......................................................................................... 25 2.4.2. Crise do Estado de Bem-Estar Social.................................................................... 26 2.4.3 Descentralização e seu impacto nas relações interorganizacionais................... 30 2.5. O setor de energia elétrica brasileiro analisado a partir da abordagem de redes......... 31 3. EVOLUÇÃO DO SETOR DE ENERGIA ELÉTRICA: CARACTERÍSTICAS DA INTERVENÇÃO ESTATAL ....................................................................................................... 33 3.1. O setor de energia elétrica antes da intervenção estatal................................................ 33 3.2. Começo da intervenção estatal no setor de energia elétrica.......................................... 36 3.2.1 A evolução do setor de energia elétrica durante o Governo Vargas ...................... 38 3.2.2 Duas orientações para o desenvolvimento: a consolidação da corrente nacionalista ............................................................................................................................ 41 3.3. Principais características do modelo estatal................................................................... 50 3.3.1 Política nacional de energia e o papel da Eletrobrás............................................... 50 3.3.2 Planejamento do setor............................................................................................. 52 3 3.3.3 O setor em nível operacional: formas de cooperação entre as empresas .......... 55 3.4. Crise e mudanças para o setor de energia elétrica ......................................................... 58 4. RESTRUTURAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO DO SETOR DE ENERGIA ELÉTRICA ..... 63 4.1. Neoliberalismo e processo de privatização no Brasil.................................................... 63 4.2. Implicações para o setor de energia elétrica .................................................................. 66 4.3. Coopers & Lybrand: proposta do modelo de reestruturação do setor.......................... 73 5. CRIAÇÃO DO AMBIENTE COMPETITIVO E DO MARCO REGULATÓRIO: ANÁLISE DAS MUDANÇAS A PARTIR DA PERSPECTIVA DE REDES........................ 78 5.1 O setor de energia elétrica a partir da abordagem de redes .............................................. 78 5.2 Política Nacional de Energia Elétrica............................................................................. 82 5.2.1 O papel dos Governos Estaduais............................................................................ 90 5.3. Agencia Nacional de Energia Elétrica............................................................................ 91 5.3.1 A agência vista sob a perspectiva de redes............................................................ 95 5.3.2 Re-configuração da rede de relações da ANEEL................................................... 107 5.4. Mercado Atacadista de Energia Elétrica – MAE......................................................... 108 5.4.1 Análise do MAE a partir da abordagem de redes .............................................. 112 5.5. Operador Nacional do Sistema ..................................................................................... 113 5.5.1 Análise do ONS a partir da abordagem de redes ............................................... 115 5.6. Planejamento e financiamento no novo modelo: o papel da Eletrobrás e BNDES... 118 6. CONCLUSÕES E SUGESTÕES........................................................................................... 123 7. BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................. 144 4 CAPÍTULO1 1. O PROBLEMA Neste capítulo será abordado o problema que serviu como base do trabalho da pesquisa desenvolvida. A introdução seguir-se-á pela formulação do problema e serão destacados os principais objetivos da pesquisa. Paralelamente, destacar-se-á a delimitação do estudo, assim como a sua relevância. 1. 1 Introdução O presente trabalho de pesquisa objetiva analisar as recentes transformações do setor de energia elétrica brasileiro a partir da abordagem de redes. Tenta-se responder à seguinte indagação: Qual é o impacto dos processos de privatização e restruturação no grau de integração do sistema de energia elétrica? Analisar a partir da abordagem de redes, significa reconhecer a interdependência organizacional. Entretanto, a análise enfoca não apenas as organizações que compõem um sistema - tal como sistema de energia elétrico brasileiro - mas também as relações que estas organizações estabelecem com outros atores sociais, sejam estes organizações, sejam grupos sociais. Amplamente utilizada nos últimos anos, a teoria de redes abre espaço para a análise das políticas públicas e das estruturas utilizadas para colocá-las em prática. Para isto, um dos capítulos do presente trabalho dedica-se a esta abordagem, tentando destacar o uso das redes na análise das políticas públicas: como instrumentos de análise e como forma de configuração e explicação da realidade complexa. São apresentadas, também, as causas que levaram ao surgimento desta forma de análise. Aponta-se a mudança de paradigma, uma nova visão que, em vez da fragmentação, objetiva a 5 análise da complexidade dos sistemas. A abordagem de redes lida melhor com esta complexidade - característica principal das políticas públicas contemporâneas - e reconhece que a racionalidade na qual se baseia a ação dos indivíduos e organizações é limitada para lidar com essa complexidade. Ressalta-se a crise do Estado de Bem-Estar Social, destacando o impacto dos processos de democratização e participação, assim como o movimento em favor do Estado Mínimo e o crescimento da demanda para políticas públicas. E, por fim, a descentralização e seu impacto nas relações organizacionais se destacam. O capitulo termina abordando as principais razões que justificam o uso desta abordagem para a análise do setor de energia elétrica brasileiro. As transformações pelas quais está passando o setor de energia elétrica brasileiro são bastante recentes. Por vários anos, o setor caracterizou-se por uma forte intervenção estatal e um modelo de gestão e controle centralizador nas mãos do Estado. O modelo, conseqüência da política intervencionista que começou a expandir-se em meados do século XX, objetivava a superação das falhas do mercado e a promoção da industrialização. O governo começou a intervir diretamente, através de investimentos em diversos setores estratégicos, e indiretamente, controlando e interferindo nos impostos, na taxa de câmbio e nas importações e exportações. O terceiro capítulo deste trabalho concentra-se na análise da trajetória e das principais características do setor brasileiro de energia elétrica, durante o período de intervenção estatal, considerando que, ao lado das razões econômicas, ideológicas e políticas, o desenvolvimento do setor de energia elétrica foi também influenciado pelas dimensões continentais do Brasil e seu amplo potencial hidro-energético. As consideráveis economias de escala resultantes da construção de grandes usinas de energia, levaram à criação de um sistema de transmissão de energia interligado, no qual as empresas públicas compartilhavam os custos das linhas de 6 transmissão. O considerável custo do capital investido nesse processo fez com que a cooperação, e não a competição, fosse considerada como a melhor opção para as empresas. Organizações como o Grupo de Coordenação da Operação Interligada (GCOI), controlador do sistema centralizado, criado em 1973 e o Grupo de Coordenação para o Planejamento do Sistema Elétrico (GCPS), órgão planejador do setor, criado em 1982, desempenharam um papel importante na coordenação do setor. Através desse processo centralizado de controle da operação e planejamento, tornou-se possível criar um sistema de energia elétrica inteiramente integrado. A crise fiscal dos anos oitenta marca o começo de grandes transformações e mudanças estruturais. A política de privatização no Brasil surge como parte importante do processo de reformulação e recuperação da capacidade de investimento e gerenciamento do Estado e, por indução do próprio setor privado. O Estado retira-se das áreas onde a sua participação não se considera essencial, atuando como regulador e fiscalizador dos serviços públicos, que deslocam-se às mãos do setor privado. O setor de energia elétrica, que já contou com mais de 1.500 empresas de capital privado no final da década de trinta, passa também por grandes transformações e atualmente vive uma fase de profundas mudanças. O quarto capítulo deste trabalho apresenta estas transformações e como elas vêm sendo colocadas em prática. Os processos de reestruturação e privatização tiveram início em 1995, com a decisão de incluir o setor de energia elétrica no Programa Nacional de Desestatização. Em 1996, foi contratada a consultora inglesa Coopers & Lybrand, que apresentou, no final de 1998, um relatório final, resultado de uma intensa colaboração com técnicos brasileiros e com a equipe do governo. Paralelamente, várias leis foram aprovadas, com o objetivo de criar o arcabouço legal facilitador desse processo. 7 Para acompanhar a retirada do Estado do setor, criou-se o órgão regulador do sistema de energia elétrica: Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), destinada a regulamentar e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica. Outras organizações desempenham papéis centrais na coordenação e integração do setor. O Operador Nacional do Sistema é uma entidade privada, responsável pela coordenação e controle da operação das instalações de geração e transmissão de energia elétrica nos sistemas interligados brasileiros. O Mercado Atacadista de Energia é o ambiente em que se processam a compra e venda de energia elétrica através de contratos bilaterais e de contratos de curto prazo, regulado por contrato multilateral chamado Acordo de Mercado. Na área de planejamento e financiamento, a Eletrobrás e o BNDES vêm definindo seus papéis. Com a privatização, perde-se o controle e a gestão centralizada do sistema – previamente nas mãos do Estado – que tinha permitido alcançar um grau invejável de integração e interligação. Os atores sociais que compõem o setor de energia elétrica se multiplicaram e os esforços para coordenar e integrar este sistema devem ser redobrados. Muda radicalmente o perfil dos atores participantes da rede, que passam a ser: as concessionárias públicas e privadas, os representantes do governo e os cidadãos-consumidores dos serviços de energia. O objetivo do último capítulo deste trabalho é a utilização da abordagem de redes para a análise da nova configuração do setor. Faz-se uso desta abordagem não apenas como forma de representação e configuração da complexidade do setor, mas também utilizando os instrumentos de análise que esta abordagem oferece. Mostrando um certo esgotamento da capacidade de integração e eficácia das organizações burocráticas e do sistema de planejamento centralizado, a abordagem de redes aponta para um outro caminho de formulação e implementação das políticas públicas. Ele se baseia numa articulação menos hierárquica e estruturada de vários atores, organizações governamentais, 8 privadas e sem fins lucrativos e representantes da sociedade, que, apesar de funcionarem como organizações separadas e com objetivos próprios, integram os seus esforços em prol de um objetivo comum. Sem dúvida, os processos de reestruturação e privatização influenciam o grau de integração dos agentes no setor brasileiro de energia elétrico, mudam os objetivos das políticas públicas e as organizações designadas para colocá-las em prática. As concessionárias não são mais administradas e controladas por um único dono – o Estado – e a racionalidade das empresas privadas é bastante diferenciada. Paralelamente, a sociedade civil pressiona para melhores e maiores prestações de serviços públicos. Para que a nova rede de energia elétrica seja considerada integrada, algumas condições necessárias – mas não suficientes – devem existir. Os novos agentes do sistema devem conhecer os objetivos das políticas públicas, as organizações designadas como chave para a integração do setor, seu papel e objetivos, assim como concordar com estes últimos e avaliar positivamente as relações estabelecidas entre si. Deste modo, a abordagem de redes mostra seu potencial como instrumento de análise. Na tentativa de analisar as redes sociais e os atores que a compõem, vários estudos desenvolveram uma série de instrumentos para orientar a investigação. Por meio de conceitos como a densidade da rede, centralidade, formalização, etc., procura-se analisar as redes e o papel que algumas organizações e atores sociais desempenham dentro dessas redes. No decorrer da pesquisa de campo, tentou-se estabelecer contatos com representantes de todos os agentes do setor, visando ter uma visão multilateral, apontar as contradições e as concordâncias, os pontos de integração e de desintegração da rede. O levantamento bibliográfico e telematizado permitiu identificar as organizações designadas como chave para o funcionamento do sistema e criar uma rede teórica da nova configuração do setor. Para 9 confrontar este modelo teórico com a concepção dos próprios agentes do setor, questionários foram distribuídos e entrevistas foram realizadas com representantes desses agentes. Adiantando algumas das conclusões da pesquisa, observou-se que apesar de se conhecer a existência da maioria das organizações integradoras do sistema, ainda existem discordâncias com relação aos seus papéis e objetivos, assim como ainda existem conflitos em termos de políticas públicas no setor. É possível concluir que o grau de integração do setor de energia elétrica brasileiro ainda é baixo e que ainda não se criaram as condições necessárias para a existência de uma rede de energia elétrica, ao considerar este conceito no âmbito das relações interorganizacionais. 1.2 Objetivos No projeto de pesquisa, a autora apresentou os seguintes objetivos: O Obbjjeettiivvoo pprriinncciippaall F Identificar, com base na abordagem de redes, a influência dos processos de restruturação e privatização na integração do sistema brasileiro de energia elétrica. O meeddiiáárriiooss Obbjjeettiivvooss iinntteerrm F Examinar a abordagem de redes sociais e mostrar o seu potencial teórico; F Apresentar a evolução do sistema interligado de energia elétrica no Brasil; F Discutir as recentes transformações no setor decorrentes da implementação de medidas de privatização e reestruturação do setor; F Apresentar a nova configuração do setor brasileiro de energia elétrica sob a ótica de redes; Analisar as relações interorganizacionais entre o Operador Nacional do Sistema, a Agência Nacional de Energia Elétrica, a Eletrobrás e as novas concessionárias do sistema. Somente o último objetivo sofreu algumas alterações no decorrer do trabalho. Com base na pesquisa bibliográfica e de campo, chegou-se na conclusão que outras organizações como o Mercado Atacadista de Energia e o BNDES estão desempenhando um papel integrador no 10 novo modelo do setor. Por isso, incluíram-se no objeto da pesquisa também essas organizações. 1.3 Delimitação do estudo Como se reconheceu no decorrer do projeto, seria muito difícil analisar numa pesquisa todos os aspectos que influenciam o objeto de estudo. A realidade é muito complexa para ser analisada em sua totalidade, e a abordagem de redes reconhece essa complexidade. A análise das múltiplas relações que se estabelecem entre os atores sociais que compõem a rede - objeto de estudo (o setor de energia elétrica) - requereria um tempo mais amplo de que a pesquisa não dispõe. Com o auxílio de alguns instrumentos oferecidos pela análise de redes, buscou-se analisar a nova configuração do setor, destacando os atores sociais que a compõem e o papel de cada um deles. Embora a pesquisa tenha se concentrado na análise das relações interorganizacionais que se estabelecem entre as empresas integradoras do sistema (como a Agência Nacional de Energia Elétrica-ANEEL, o Operador Nacional do Sistema-ONS, o Mercado Atacadista de Energia-MAE, o BNDES e a Eletrobrás) e as concessionárias do setor de energia elétrica, reconheceu-se que esses são apenas alguns dos atores que compõem a rede, ao lado de representantes do governo e dos consumidores (representantes da sociedade). Por meio da pesquisa bibliográfica e do acompanhamento dos principais eventos do setor (Congressos, Seminários e outros encontros), em que participaram representantes de todos esses agentes, tentou-se preencher esta lacuna. Por exemplo, os dados de uma pesquisa recente realizada em nível nacional pelo Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe) foram utilizadas para analisar as relações que a ANEEL está estabelecendo com os usuários dos serviços públicos de energia. 11 1.4 Relevância do método Os recentes processos de privatização e reestruturação do setor de energia elétrica estão mudando profundamente o modelo organizacional e gerencial do setor. O Estado perde cada vez mais o papel central, abrindo espaço para uma maior participação do setor privado e da sociedade. Ele não consegue continuar a ser o único formulador e executor das políticas públicas, e os processos em favor de uma maior democratização, descentralização e privatização fazem com que outros atores sociais participem cada vez mais dessas políticas. Teoricamente, passa-se de um modelo hierárquico centralizado para um modelo em rede, na qual coexistem vários atores sociais, integrados por meio de leis e organizações focais (integradoras). As redes são estruturas de interdependência, que envolvem várias organizações ou suas partes. Nesta estrutura, a unidade não é simplesmente o subordinado formal dos outros num arranjo hierárquico mais amplo. A importância dessa nova configuração vem se reconhecendo cada vez mais, sendo que existem desafios e problemas que não podem continuar a ser resolvidos através de uma análise das partes que faça perder de vista os objetivos principais de uma política pública da natureza da estudada, dependente de complexos arranjos organizacionais e institucionais. Apesar dos escândalos, problemas e desapontamentos, os processos de privatização em todas as áreas continuam e as parcerias entre o setor público e privado crescem cada vez mais. O exemplo do setor de energia elétrica encaixa-se nessa nova visão. Os processos de privatização e reestruturação do setor estão redefinindo o papel do Estado, do setor privado e da sociedade. Políticas públicas que tratam de assuntos complexos e desafiadores (como no caso deste setor) têm maior probabilidade de adotar uma estrutura em rede para serem executadas, deixando de lado mecanismos de coordenação baseados na hierarquia ou, simplesmente, a mão invisível do mercado. No entanto, o processo está apenas começando e, 12 na falta de uma cultura adequada e como conseqüência da adoção de modelos aplicados por outros países, vários erros podem ser identificados. Paralelamente, a análise está enfocada nas transformações pelas quais vem passando um setor de grande importância em termos nacionais, como o setor de energia elétrico brasileiro, considerado chave para o desenvolvimento econômico e social. Por isso, torna-se necessária a contribuição do pesquisador acadêmico, ao testar e verificar a validade e a aplicabilidade desse novo modelo organizacional e de gestão baseado em redes, visando contribuir para a análise dessa nova forma contemporânea organizativa e de gestão classificada por vários atores como marco principal da era de informação 1. 1.5 Metodologia Para responder às indagações apresentadas, foi realizada uma ampla pesquisa classificada, com base na taxonomia apresentada por Vergara (1997), em: Pesquisa exploratória: abordou o estudo do setor brasileiro de energia elétrica partindo da abordagem contemporânea de redes, utilizando o potencial oferecido por essa última e, paralelamente, tentando dar sua própria contribuição no fortalecimento de uma teoria; Pesquisa descritiva: visou descrever a evolução do setor de energia elétrica e suas características principais antes e depois dos processos de privatização e reestruturação; Pesquisa metodológica: o referencial metodológico, oferecido pela abordagem de redes, utilizou-se para analisar as bases de integração do setor. Estudo de caso: tentou-se analisar o grau de integração do setor brasileiro de energia elétrica, sob a nova configuração, decorrente dos processos de privatização e reestruturação, partindo da abordagem de redes. 1 Ver Castells (1996); Lipnack & Stamps (1994) 13 Pesquisa bibliográfica: para a fundamentação teórico-metodológica da pesquisa realizou-se uma ampla investigação sobre vários assuntos, como a abordagem de redes, evolução do setor de energia elétrica e características atuais do setor. Pesquisa telematizada: considerando que a reestruturação e privatização do setor elétrico brasileiro está ainda em curso, recorreu-se ao uso de Internet visando a utilização de materiais e estudos recentes sobre o tema em questão. Pesquisa de campo: dados primários coletaram-se por meio de questionários fechados e entrevistas abertas, direcionados aos principais atores sociais participantes do setor de energia elétrica. 1.5.1 Universo e amostra Sendo que a pesquisa foi baseada nos instrumentos da análise oferecidos pela abordagem de redes, uma das primeiras questões consideradas tinha a ver com a delimitação das fronteiras da rede, determinando assim o universo da pesquisa. Nessa investigação, as fronteiras da rede foram delimitadas partindo de uma análise cuidadosa das leis e os processos de privatização e reestruturação aplicados ao setor. Consequentemente, foi possível destacar esses atores sociais participantes da rede: o governo; as empresas de energia elétrica nos segmentos de geração, transmissão, distribuição, e comercialização (destacando aqui as concessionárias privadas); os representantes dos cidadãos – usuários desses serviços e as empresas focais (integradoras do setor): Agência Nacional de Energia Elétrica, Operador Nacional do Sistema, Mercado Atacadista de Energia, Eletrobrás e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. É importante destacar que outras organizações fazem ou possam vir a ser parte dessa rede, que está ainda em fase de formação. 14 Considerando as limitações da pesquisa, deu-se maior ênfase à análise das relações interorganizacionais estabelecidas entre as empresas focais (integradoras) do sistema e as concessionárias privadas. O tipo de amostragem utilizada foi por acessibilidade. Questionários foram distribuídos via correio eletrônico para a maioria dos agentes institucionais do setor de energia elétrica brasileiro. Num total de 40 (quarenta) questionários distribuídos, teve-se um retorno de 13 (treze) questionários, ou 32,5%. Paralelamente, foram realizadas entrevistas com agentes institucionais do setor de energia elétrica no Estado do Rio de Janeiro: a concessionária privada de distribuição Light, Furnas, Eletrobras, Subsecretaria Estadual de Energia, e uma cooperativa rural de eletrificação em Dourados, MS. A Cerj –prevista no projeto de pesquisa – foi excluída da amostra por não conseguir-se estabelecer contatos. 1.5.2 Seleção dos sujeitos Os sujeitos da pesquisa foram os executivos (representantes) de altos escalões destas organizações, considerando-se que eles são os principais responsáveis pela política da organização e pelo estabelecimento e a manutenção das relações interorganizacionais. Um trabalho cuidadoso foi dedicado a identificação dos indivíduos mais adequados para responder às entrevistas e questionários a serem aplicados. 1.5.3 Coleta de dados Os dados foram selecionados por meio de: Pesquisa bibliográfica em livros, revistas especializadas, jornais, teses e dissertações, publicações especializadas do setor de energia elétrica e outras leituras pertinentes para o 15 assunto, visando verificar: o potencial oferecido pela abordagem de redes, a evolução do setor de energia elétrica brasileiro, as principais características do setor e os recentes processos de reestruturação e privatização; Pesquisa telematizada em Internet, jornais eletrônicos (Ex. Brasil Energia On-line, Newsletter da Eletrobrás; EFEI News etc.), para acompanhar as contínuas mudanças no setor e paralelamente, os recentes desenvolvimentos dos estudos sobre redes. É importante destacar que por meio desta pesquisa foram selecionados dados importantes para analisar o papel dos usuários dos serviços públicos de energia elétrica; Pesquisa de campo, com questionários fechados, baseados no modelo oferecido pelo Van de Ven & Ferry (1980), foram direcionados aos representantes dos agentes institucionais do setor, selecionadas no número especial da revista Eletricidade Moderna (julho de 1999). Paralelamente, entrevistas semi-estruturadas foram realizadas com representantes da Eletrobrás, ONS, LIGHT, ASEP/RJ (Agência reguladora estadual RJ), Subsecretaria de Energia do Estado do Rio de Janeiro e CERGRAND (Cooperativa de Energização e Desenvolvimento Rural da Grande Dourados Ltda), Mato Grosso do Sul, com objetivo de aprofundar os assuntos anteriormente levantados. 1.5.4 Tratamento de dados Os dados coletados foram tratados qualitativamente e quantitativamente. A análise qualitativa tentou enfatizar as características estruturais da rede de energia elétrica, enfocando o papel e a posição de todos os atores sociais participantes da rede. A análise quantitativa se concentrou na análise dos dados obtidos por meio dos questionários fechados, destacando as principais características ds relações interorganizacionais. É importante enfatizar que os dados coletados por meio das pesquisas bibliográfica e telematizada, foram tratados com enfoque na 16 abordagem de redes, visando chegar em conclusões mais gerais sobre as características da nova configuração do setor de energia elétrica. 1.5.5 Limitações do estudo No entanto, é importante reconhecer, também, as limitações que a pesquisa apresentou. Como se destacou no projeto, os sujeitos da pesquisa foram os executivos (representantes) de alto escalão dessas organizações, partindo da consideração que eles sejam os principais responsáveis pela política da organização e pelo estabelecimento e manutenção das relações interorganizacionais. Para realizar a pesquisa de campo, foram distribuídos questionários e realizadas entrevistas com representantes de vários agentes institucionais, na maioria dos casos, a par das mudanças que o setor de energia elétrica vem atravessando. Por várias razões - acessibilidade, falta de informação, pontos de vista econômicos, políticos e ideológicos diferenciados - devemos reconhecer que nem todos os membros destas organizações têm as mesmas informações ou compartilham as mesmas opiniões. Para isso, uma amostra de cinco questionários foi distribuída no âmbito de uma mesma organização - no caso, a Furnas. De fato, o grau de variabilidade nas respostas foi suficientemente alto, recomendo maior prudência no uso das mesmas. Outra limitação da pesquisa foi a sua concentração no Estado do Rio de Janeiro, um Estado importante em termos nacionais e que reúne empresas importantes do setor de energia e centrais na transformação do setor. Uma entrevista foi realizada também com representantes de uma cooperativa de eletrificação rural em Dourados, MS, que mostrou um baixo nível de conhecimento das mudanças que o setor vem passando. Tais limitações apontam para a necessidade de estudos mais abrangentes na área. 17 CAPITULO 2 2. PENSAR E AGIR EM REDE: IMPLICAÇÕES NA GESTÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS Neste capítulo apresentar-se-á a abordagem de redes e suas implicações na área de políticas públicas. Apontar-se-ão os usos desta abordagem como forma de representação da realidade e como instrumento de análise. Em seguida, serão ressaltadas as razões de surgimento de interesse nesta área e o porquê de seu uso na análise do setor de energia elétrico brasileiro. 2.1. Redes como marcas da era da informação Uma das mais importantes mudanças nas funções administrativas deste fim de século é o aumento profundo da interdependência organizacional. É por isso que as redes têm sido os grandes laboratórios da gestão contemporânea. Na opinião de Lipnack & Stamps (1994), três ondas dividem a humanidade em quatro grandes épocas: a era nômade, a agrícola, a industrial e a de informação. Cada nova época de civilização traz em si a sua forma principal de organização, o pequeno grupo caracterizava a era nômade, a hierarquia cresceu com a agricultura, a burocracia nasceu na era industrial e a era de informação está trazendo a rede, “(...) uma forma de organização, como a hierarquia e a burocracia, um dos desenhos básicos que nós usamos para construir o nosso mundo social” 2 (LIPNACK & STAMPS,1994:38). No entanto, cada forma organizacional constituise sobre as outras, incluindo o passado. Particularmente, as redes são inclusivas pela própria natureza. Na era das redes, continuarão a existir hierarquias e burocracias, assim como continuam a existir fazendas e fazendeiros nos dias de hoje. O crescente recurso à interação em rede surge como uma estratégia para enfrentar as turbulências e incertezas que caracterizam o ambiente contemporâneo, decorrentes do 18 crescimento da competitividade, crises e movimentos de restruturação, tanto na esfera pública como na dos negócios (LOYOLA & MOURA, 1996). De fato, a crise econômica dos anos setenta sinalizou o esgotamento do sistema de produção em série e constituiu uma Segunda divisão industrial na história de capitalismo. Segundo Castells (1996), o consumidor começou a demandar produtos com maior qualidade e quantidade, os mercados se diversificaram, o ritmo das mudanças tecnológicas se acelerou e o sistema de produção em série se mostrou rígido e custoso para as características da nova economia. A primeira tendência da evolução organizacional foi a transição da produção em série para a produção flexível, ou do fordismo para o pós-fordismo. A característica principal do modelo pós-fordista de organização é a flexibilidade e a capacidade de inovação. Começa um novo período, o pós-capitalista, no qual o emprego do conhecimento em si supera em importância o controle do capital. O modelo pós-capitalista, ou a empresa de criação de valor, funciona como uma rede de recursos muito mais diversificada, com fronteiras menos perceptíveis do que as estruturas corporativas. “A concentração de capital nas mãos de um só proprietário cede lugar a parcerias que alavancam recursos, independentemente de quem tem a custódia deles. (...) a combinação triangular de pessoas, tecnologia e conhecimento transcende o modelo tradicional de trabalho-capital-gerenciamento” (ALBRECHT, 1994:48). Essas mudanças se refletem também na área de gestão pública. Formas de cooperação entre governo, empresas privadas e sem fim lucrativos e representantes da sociedade civil se estabelecem para colocar em prática as políticas públicas em várias áreas. As redes, apesar de serem mais flexíveis do que as empresas ou os governos, têm características estáveis, cujos contornos são esculpidos pela lei, estruturas de financiamentos, normas e valores compartilhadas pelos membros da rede. 2 Tradução nossa 19 No decorrer deste trabalho utilizar-se-á a abordagem de redes como instrumento para a análise das políticas públicas no setor de energia elétrica e das estruturas concebidas para colocá-las em prática. 2.2. Esclarecimento dos conceitos O conceito de redes é amplamente utilizado nos últimos anos3, mas, algumas vezes, em contextos aparentemente contraditórios. Segundo os representantes da “teoria de redes”, todas as organizações se situam em redes sociais e devem ser analisadas como tais. Uma rede social tem a ver com um conjunto de nós - pessoas, organizações etc. – vinculado a um conjunto de relações sociais de um tipo específico – p. ex. amizade, transferência de fundos, etc. Como conseqüência, partindo dessa perspectiva, a estrutura de qualquer organização deve ser entendida e analisada em termos de redes múltiplas de relações (NOHRIA:1992). Paralelamente, o ambiente operacional de uma organização pode ser visto também, como uma rede de organizações, que podem ser fornecedores, distribuidores, agências reguladoras, consumidores, usuários ou outras organizações e atores sociais. Os representantes da “teoria da redes” ressaltam a importância das relações estabelecidas nessa rede de organizações, considerando que as ações, atitudes e comportamentos dos atores de uma organização, podem ser melhor explicados levando em conta a sua posição nessa rede de relações. Entretanto, as próprias redes não são imutáveis. Elas encontram-se num processo de contínua mudança e podem ser construídas, reproduzidas e alteradas como resultado das ações dos atores que a compõem. 3 São vários os campos de utilização desses conceitos. Para um maior aprofundamento ver LOYOLA & MOURA (1996). 20 Na verdade, a utilização do termo “organização ou empresa rede” não é adequado, embora qualquer organização ou ambiente de negócios possa ser considerado como uma rede e, consequentemente, ser analisado como tal4. No entanto, outros autores5 ressaltam que faz sentido falar sobre redes, como uma forma distinta da atividade econômica coordenada, que se opõe (e concorre) aos mercados e às hierarquias. Eles trazem exemplos de novas formas organizacionais, projetadas para funcionar em rede, que estão proliferando em diversas indústrias e chamam a atenção para alguns aspectos que, apesar de serem importantes em qualquer organização, são mais visíveis nas chamadas organizações-rede. Na opinião de Mandell (1999), uma estrutura em rede consiste numa colaboração ativa e organizada de organizações públicas, privadas e sem fins lucrativos e/ou individuais, destinada a alcançar um propósito (ou propósitos) estabelecido. As estruturas em rede6 podem demandar ações separadas por parte de membros individuais, mas os participantes transformam-se num novo conjunto, que visa tarefas mais amplas, as quais podem ser alcançadas por meio de ações simultâneas de organizações que operam independentemente. 2.2.1 Redes enquanto instrumentos de análise O conceito de redes é também utilizado como um instrumento importante de análise. A teoria das redes sociais analisa as interações que se estabelecem entre os atores sociais, enfocando a interdependência. Ela tenta observar como a posição de cada um dos atores na rede influencia 4 Considerando que uma organização-rede pode ser um tipo específico de organização, a simples existência de uma rede de relações não é uma característica que a distingue. Todas as organizações são redes e a forma organizacional depende das características particulares da rede. Por exemplo, uma rede caracterizada por uma subdivisão hierárquica, com deveres e papeis rígidos, relações verticais, e por um aparelho administrativo separado da produção é geralmente chamada de burocracia. Por outro lado, uma rede caracterizada por flexibilidade, planificação e controle descentralizado e relações laterais, está mais próxima à imagem de uma organização-rede. 5 Ver Bahram (1992), Bahram & Evans (1987), Nohria (1992), Powell (1987), Rowly (1997); 6 Os autores dividem suas opiniões sobre os mecanismos de coordenação em que as redes organizacionais se baseiam. Segundo Miles & Snow (1987) e (1992) a coordenação se alcança através dos mecanismos de mercado. No entanto, Jones, Hesterly & Borgatti (1997) ressaltam que os mecanismos sociais de coordenação encontramse na base das redes organizacionais e Mandell (1999) argumenta que as redes são baseadas em trocas que se apoiam em relações interpessoais. 21 – criando oportunidades e limitações – o comportamento dos outros atores. Constitui, assim, um importante referencial teórico e instrumental a fim de melhor entender a posição dos atores sociais, com as recentes mudanças decorrentes dos processos em favor de privatização, participação, democratização e descentralização. Na tentativa de analisar adequadamente as redes, vários autores utilizam e desenvolvem uma série de instrumentos que orientam a investigação. Rowley (1997) destaca duas características das redes: a densidade e a centralidade. A densidade é uma característica da rede e é calculada como uma proporção do número de relações que existem numa rede, comparadas com o número total de relações possíveis, se todos os membros da rede se relacionassem com cada um dos outros. Este tipo de análise das redes utiliza três tipos de centralidade para definir a posição de uma organização na rede: de “grau”, de “proximidade” e de “intermediação”7. A centralidade de “intermediação” – a mais utilizada para medir a habilidade de controlar o fluxo de informação ao longo das redes – define até que ponto um ator tem controle sobre o acesso de outros atores em várias regiões da rede. Van de Ven & Ferry (1980) destacam como dimensões estruturais de uma rede de relações interorganiazacionais: a formalização, a complexidade, a centralização e a intensidade. A formalização tem a ver com as regras, políticas e normas que direcionam o papel, o comportamento e as atividades das organizações de uma rede. A complexidade estrutural da rede se refere ao número de diferentes elementos que devem ser integrados, para que a rede atue como uma unidade. Com relação à centralização, se definem dois aspectos de centralidade: de tomada de decisões e de fluxos de informação e recursos, conceitos esses 7 No original: “degree”, “closeness”, “betwenness” centrality (ROWLEY : 1999). 22 altamente relacionados. A intensidade mostra a força de uma rede e é utilizada como indicador do investimento que as organizações empregam numa relação interorganizacional. Alguns desses conceitos serão empregados para a análise da rede de energia elétrica. Resumindo, o conceito de redes tem um amplo campo de aplicação. Vários fatores, os quais serão apontados no decorrer do trabalho, influenciaram no ressurgimento do interesse nessa área. 2.3. Redes na gestão pública Loyola & Moura (1996), numa tentativa de esclarecer os vários usos de redes em diversos campos de conhecimento, destacam que, no âmbito do Estado, as redes representam formas de articulação entre agências governamentais e/ou destas com redes sociais, organizações privadas ou grupos que permitem enfrentar problemas sociais e implementar políticas públicas. Por exemplo, as redes institucionais que, segundo Dubouchet (1991), mencionado em Loyola & Moura (1996:56), são coordenações ou comissões formais que reagrupam instituições engajadas nas mesmas políticas, podem ser amplamente utilizadas na análise de políticas públicas. Sua composição e suas missões são geralmente impostas por uma regulamentação. Nessas redes, as relações sociais são definidas por normas precisas e por funções e papéis atribuídos aos indivíduos para a realização de serviços, apresentando assim um nível avançado de formalização. A tabela 1, destaca algumas características principais das redes, no campo do Estado e dos negócios. Seja nas áreas de Estado ou de negócios, faz-se presente a figura do centro animador, ou da organização focal, que desempenha o papel de integrador da rede e torna essas últimas mais próximas do modelo unidirecional que do multidirecional. Ressalta-se que noções dicotômicas - cooperação/competição, solidariedade/conflito, racionalidade instrumental/comunicativa - revelam a complexidade das interações e organizações em rede e, 23 paralelamente, mostram que o foco da análise está não só nos fenômenos, situados em diferentes campos, mas também nas organizações e nos processos em diferentes estágios de maturação. Tabela 1: Noções associadas aos conceitos de rede A T O R E S C A R A C T E R Í S T I C A S Campo Estado/Políticas públicas Campo produção/ circulação Agências governamentais, governos Agentes econômicos: produtores, fornecedores, locais e outros níveis usuários, etc. Pluralidade/diversidade dos atores Arranjos dos parceiros Formalidade/informalidade Idem Problemas, ações, projetos concretos e gestão de processos complexos Interesses e projetos precisos Associação de recursos/intercâmbio Troca, associação de recursos, intercâmbio, aprendizado Cooperação/reconhecimento de competências/ respeito mútuo/conflito Reciprocidade/cooperação/confiança/competição Centro animador, operador catalisador hierarquia/não-hierarquia Empresa focal, liderança/hierarquia/nãohierarquia Efêmero/grupo definido Flexibilidade/longo prazo Adesão por competência/interesse Adesão por competência/contingência Racionalidade/instrumental comunicativa Idem Adaptado de Loyola & Moura (1996:59) As redes distinguem-se das organizações tradicionais pela inexistência da hierarquia. Apesar de poder existir uma agência condutora (focal, integradora), isso não significa que a agência tenha a autoridade necessária para indicar às outras organizações o que fazer. Métodos tradicionais de coordenação e controle não podem segurar a estrutura unida em rede. O compromisso com o todo é o que deve prevalecer. As estruturas em rede podem ser comparadas com uma banda de jazz, na qual permite-se a criatividade individual dos músicos, 24 o que assegura a qualidade da música, do conjunto. Essas estruturas são consideradas mais adequadas para administrar integralmente as políticas públicas. 2.4. Fatores que influenciam na emergência de redes na gestão de políticas públicas Acredita-se que o recurso à abordagem de redes seja de extrema importância para a análise das políticas públicas e das estruturas concebidas a fim de colocá-las em prática. As transformações recentes têm influenciado fortemente a concepção sobre o papel do Estado e das políticas públicas e a abordagem de redes oferece referências teóricas e instrumentais que facilitam a análise. Esta abordagem lida melhor com a complexidade - característica principal das políticas públicas contemporâneas - e reconhece que a racionalidade na qual se baseia a ação dos indivíduos e organizações é limitada para lidar com essa complexidade. 2.4.1. Mudança de paradigma “(...) estamos vivendo um momento muito especial na história humana. Um daqueles momentos de síntese que permitem uma mudança de patamar, uma transformação de grande amplitude e profundidade. (...)A sensação de perda de referências que acontece nesses momentos cria um estado de perplexidade em todas as pessoas. (...) Hoje, a mudança é tão radical que não podemos deixar de vê-la, de senti-la, de pensar nela. Mas nem por isso sabemos lidar com ela, e nossas decisões são reflexo disso” (PEREIRA & FONSECA, 1997: 3-4). O mundo pós-industrial continua a ser dominado pelo paradigma cartesiano, baseado na compartimentação do conhecimento. Esse paradigma exerce uma grande influência nas nossas decisões e comportamentos e o “conservantismo dinâmico”8, característica dos sistemas sociais, conspira para manter o status quo. 8 Schon (1973:32) argumenta que “A resistência à mudança, característica dos sistemas sociais, é muito mais parecida com uma forma de “conservantismo dinâmico”, ou seja, uma tendência de lutar para manter-se imutável” (Tradução nossa) 25 No entanto, vários estudos contemporâneos buscam a superação desse paradigma dominante. Segundo Capra (1982), o novo paradigma é sistêmico e norteia-se por cinco pressupostos básicos: da fragmentação para a totalidade; da estrutura para o processo; da ciência objetiva para a epistêmica; da construção metafórica em blocos para o conceito de redes; da verdade absoluta para a descrição aproximada (PEREIRA & FONSECA, 1997). Sem dúvida, todas as fases das políticas públicas modificam-se nesse processo de transformação. O movimento inicia-se a partir da crítica a práticas vigentes, até o ponto em que modelos alternativos de gestão destas políticas são propostos. Assim, na análise de Cavalcanti (1998), o positivismo lógico e o racionalismo das tradições científicas dominantes privilegiaram a concretude da organização como objeto da análise e enfatizaram a abstração do agente público como um ator unitário que toma decisões a partir de uma lógica racional-dedutiva. “Com isso, retardam-se as possibilidades do desenvolvimento de uma noção mais abrangente, e necessariamente complexa, da estrutura e funcionamento do setor público. Este “ator composto” caracteriza-se por Ter múltiplas organizações geradoras de decisões e ações, não raramente, conflitantes entre si” (CAVALCANTI, 1998:75). Nesse contexto, ele discute o conceito de gestão integrada das políticas públicas, baseada no reconhecimento da interdependência, da complexidade e do caráter multifacetado dos problemas que as políticas públicas visam resolver. Só por meio de uma abordagem integrada, em rede, que os administradores públicos podem enfrentar os desafios decorrentes das mudanças e transformações contemporâneas. 2.4.2. Crise do Estado de Bem-Estar Social Uma das razões principais que influenciou o crescimento da complexidade das políticas públicas é fortemente relacionada com o fim dos regimes autoritários e a crise do Estado de Bem-Estar Social. 26 2.4.2.1 Democratização e participação Com o fim das ditaduras militares começam a ser evidenciadas as primeiras mudanças relativas a gestão das políticas públicas. O estabelecimento do pluralismo democrático - uma das mais consideráveis vitórias - faz com que cresçam cada vez mais as pressões para uma participação mais ampla de diversos grupos da sociedade na gestão das políticas. A multiplicação dos atores sociais, que influenciam em todas as fases das políticas públicas, torna o processo mais complexo. Crescem os objetivos das políticas, respondendo aos anseios de diversos grupos de interesse e pressão, assim como a dificuldade de conciliar interesses, às vezes, divergentes. A sociedade civil, por meio da ação de ONGs, ocupa um espaço cada vez maior na gestão e implementação de políticas públicas. Apesar de que a participação dos cidadãos em todas as fases das políticas públicas possa ser vista como favorável, crescem os problemas de gestão e controle. A crescente pressão de um número cada vez maior de grupos de interesse, não significa uma real participação de toda a sociedade na gestão das políticas públicas. Devemos considerar que existem “os excluídos” ou “os auto-excluídos”, pessoas ou grupos que não podem ou não desejam pressionar para proteger os próprios interesses. Paralelamente, existem grupos com maior capacidade de pressão, que controlam a mídia ou outros meios de comunicação, e consequentemente, com maior possibilidade de incluir os próprios objetivos na agenda das políticas públicas. A aproximação da governança com a democracia traz alguns problemas de legitimidade ou pluralismo e enfatiza a necessidade de gerenciar o setor público de modo transparente, participativo e responsável. Essa realidade, fortemente relacionada com a crise do Estado de Bem-Estar e a escassez cada vez maior de recursos, influencia no fortalecimento da idéia de que os problemas sócio27 econômicos não possam continuar a ser resolvidos pela ação independente do governo. Isso tem levado a repensar o papel do governo e da gestão pública. A terminologia contemporânea reflete essas mudanças e começa a conotar conceitos como governança, que enfatiza o papel dos cidadãos – individualmente ou organizados em formas associativas – no processo político, partindo da identificação dos problemas, à formulação, implementação e avaliação dos resultados. A sociedade civil pressiona e, paralelamente, é convocada para participar cada vez mais em todas as fases das políticas públicas. Abre-se espaço para a emergência de novas formas de exercício da ação pública, questionando as instituições burocráticas e os paradigmas homogeneizadores e totalizadores (LOYOLA & MOURA, 1996). Na opinião do Cavalcanti (1998), a pluralidade política e o fortalecimento da democracia refletem-se tanto na natureza, objetivos e características das ações sociais quanto na implementação e, mais especificamente, no papel das diferentes instituições governamentais e não-governamentais envolvidas no processo das políticas públicas. O autor, referindo-se às políticas na área social destaca duas perspectivas importantes de análise: a qualitativa, sob a qual se torna importante focalizar as mudanças quanto à natureza do papel das organizações governamentais na formulação e implementação de programas sociais; e a perspectiva quantitativa, sob a qual a descentralização político-administrativa leva necessariamente à ampliação do número de atores institucionais envolvidos nesses processos. A gestão integrada, ou em rede, das políticas públicas tenta responder a essas problemáticas. A operacionalização da governança democrática combina a ação interorganizacional – reconhecida como um componente integral da implementação de várias políticas – com um conjunto amplo de relações, fora da área governamental. Essas relações podem ser estabelecidas entre empresas privadas, ONGs, associações comunitárias, etc. A realidade administrativa não pode considerar os atores envolvidos numa política pública apenas 28 individualmente ou seqüencialmente, mas como um conjunto conectado e interdependente, governando, assim, por meio de redes (BRINKERHOFF, 1999: 125). 2.4.2.2 Estado mínimo e crescimento da demanda para políticas públicas Na opinião de Abranches (1999), o processo de privatização, implementado neste últimos anos, já teve três conseqüências estruturais: a economia brasileira deixou de ser uma economia mista, passando a constituir uma economia privada de mercado; o padrão de acumulação e produção transferiu o seu eixo dinâmico para o setor privado; e, como conseqüência da privatização, todo o investimento relevante na indústria será privado, caracterizando assim uma nova lógica que responde a estímulos diferentes. O modelo hierárquico, integrado centralmente pelo poder público, se modifica. Fischer, Teixeira & Heber (1998) utilizam o conceito de interorganizações para caracterizar o novo modelo das organizações que articulam as várias instâncias do poder público, os interesses privados e a representação da cidadania. Por exemplo, as novas interorganizações dos serviços de infra-estrutura têm um centro regulador – a agência reguladora, que se ocupa da gestão da competição e dos conflitos nas ações corporativas. As instituições só poderão atingir seus objetivos por meio de ações estratégicas, pois não só dependem de parcerias e alianças, mas também devem administrar inevitáveis conflitos e disputas de interesse. O papel do Estado nesse processo é de suma importância. Ele passa a ser o regulador e fiscalizador de importantes setores econômicos – como petróleo – ou de serviços públicos – energia, telecomunicações, etc. Várias agências reguladoras instituem-se em nível federal e estadual. O crescimento da participação do setor privado muda a lógica de atuação e o papel dos atores sociais envolvidos numa política pública. Antes da privatização, existia um arcabouço político parecido entre as empresas estatais e o governo. Eles se identificavam em questões como 29 investimentos, estilo de gestão e objetivos da empresa. Com a privatização, elementos ideológicos, políticos e institucionais aumentam a distância entre ambas as partes. As empresas privatizadas enfatizam questões como eficiência e ganhos, sem compromisso específico com os investimentos, qualidade de prestação de serviços ou emprego. Redes são reconstruídas e, nesta reconstrução, o sistema de dependências de recursos vem sendo desequilibrado (DUDLEY, 1999). A privatização em si deve ser considerada como parte da tendência contemporânea perante o “hollowing out of state”9. No decorrer desse processo, as estruturas tradicionais se modificam, e agências reguladoras desempenham um papel central na gestão da economia. O estado se reduz ao papel de “Estado espectador”. As mudanças estruturais trazidas pela privatização reformam as redes setoriais e constróem relações novas entre os atores estabelecidos. O Estado “esvaziado”, pressionado pela sociedade civil, cria rede de relações com empresas privadas ou sem fins lucrativos, para colocar em prática as políticas públicas. 2.4.3 Descentralização e seu impacto nas relações interorganizacionais Na opinião de Starling (1993), as relações interorganizacionais não significam federalismo. A maior deficiência do federalismo, como um modelo descritivo, é que ele reconhece principalmente as relações entre os estados ou estado-união e ignora as relações uniãomunicípio, estado-município, união-estado-município e relações intermunicipais. Na prática, diversos níveis de governo compartilham autoridade para a implementação de programas na área de saúde, bem-estar, educação etc. O problema tradicional de controle num sistema federal é como implementar políticas efetivamente, quando a relação entre os níveis de governo é baseada na negociação, em vez da hierarquia. 9 O conceito de hollow state tem a ver com o grau de separação do Estado dos setores produtivos. Os favoráveis à privatização, sempre aconselham que o governo pode oferecer serviços, sem os produzir na realidade. O hollow 30 O fortalecimento de municípios e estados nos últimos anos faz com que vários deles façam parte de um número considerável de programas estaduais ou federais e tenham uma forte influência política. Os corpos legislativos estaduais e locais dão mais respostas aos próprios constituintes do que o próprio Congresso. Eles conhecem melhor as problemáticas e condições locais, têm mais tempo de discutir sobre esses assuntos e mais flexibilidade de mudar leis e normas. O conceito de redes pode ajudar a estudar e entender melhor esse contexto descentralizador. Por meio da análise das relações interorganizacionais, se incluem no objeto do estudo todas as relações entre as unidades do governo num sistema de três níveis. 2.5. O setor de energia elétrica brasileiro analisado a partir da abordagem de redes A abordagem de redes oferece os instrumentos e o referencial teórico necessários para analisar a nova configuração do setor brasileiro de energia elétrica, decorrente dos processos de reestruturação e privatização. Afinal, passa-se de um modelo de organização e de gestão hierarquizado e centralizado nas mãos do Estado, para um modelo mais horizontal, onde o papel de outros atores sociais torna-se importante. Os processos de privatização mudam a rede de relações estabelecidas entre as empresas estatais e o governo10 e, paralelamente, impulsionam a construção de uma nova rede. Estabelecem-se parcerias do setor público com o privado, e o impulso para uma maior democratização faz com que o cidadão participe mais ativamente nestes processos. As duas formas tradicionais de coordenação, baseadas na hierarquia ou no mercado perfeito, estão sendo substituídas pelas redes. O setor de energia elétrica, coordenado com base no state é uma metáfora que resume o esforço da administração de Reagan e Bush para privatizar os serviços públicos (MILWARD & PROVAN : 1993). 10 DUDLEY (1999), analisando a privatização de British Steel Corporation, argumenta que existiam dependências de recursos entre o governo (que contava com a experiência profissional e financeira dos técnicos da BSC) e a empresa (que contava com financiamentos e subsídios do governo). 31 modelo hierárquico, está se reestruturando. Por suas características peculiares - com segmentos caracterizados como monopólios naturais - reconhece-se que não pode ser coordenado simplesmente pela “mão invisível” do mercado. O objetivo básico da reforma – a universalização dos serviços, por meio de uma ampla e justa competição – só pode ser alcançado quando o sistema de energia elétrica funcionar de forma integrada, como um só, substituindo eficazmente o modelo hierárquico organizacional pela gestão em rede. O processo de reestruturação do setor de energia elétrica está ainda em fase de transição. Permanecem questões importantes a serem resolvidas sobre os papéis a serem desempenhados e as empresas encarregadas de exercê-los. Organizações como o Operador Nacional do Sistema, Eletrobrás e a própria ANEEL fortalecem-se como integradoras do sistema. Por isso, considera-se relevante analisar as relações interorganizacionais que se estabelecem entre as novas concessionárias do sistema de energia elétrica, os usuários destes serviços e o governo, por meio dos instrumentais teóricos oferecidos pela abordagem de redes. A rigor, o objetivo desse trabalho será verificar se o setor de energia elétrica, com as mudanças decorrentes da privatização e reestruturação, está sendo operado e coordenado como uma rede, fazendo com que o objetivos da reforma se alcancem por meio da integração dos vários atores sociais que compõem o setor. Em seguida será apresentada uma trajetória histórica do setor de energia elétrico e se destacarão as principais características do modelo estatal que vigorou por vários anos. 32 CAPITULO 3 3. EVOLUÇÃO DO SETOR DE ENERGIA ELÉTRICA: CARACTERÍSTICAS DA INTERVENÇÃO ESTATAL No decorrer deste capítulo apresentar-se-á a trajetória do setor de energia elétrica brasileiro durante o período de intervenção estatal. Apontar-se-ão as razões que levaram a essa intervenção, assim como suas principais características, especialmente no decorrer dos governos Vargas, Kubitchek e militares. Especial atenção dar-se-á à política nacional na área de energia elétrica, ao planejamento e ao setor no nível operacional, assim como a análise das principais organizações do setor. Finalmente, a crise e suas determinações na transformação do setor será analisada. 3.1. O setor de energia elétrica antes da intervenção estatal As primeiras experiências práticas com a energia elétrica ocorreram na época imperial, mas a disseminação do uso da energia elétrica teve início, de fato, nos últimos anos do século XIX, sob o regime republicano. Em 1883, foi instalada no Ribeirão do Inferno, em Diamantina, Minas Gerais, uma usina para geração de energia elétrica, e, no mesmo ano, foi inaugurada a primeira linha de bondes elétricos no país, marcando assim o começo de utilização da energia elétrica. Além de aplicações experimentais, ocorreram algumas iniciativas de caráter permanente, devido, basicamente, à necessidade de fornecimento de energia elétrica para serviços públicos de iluminação e para algumas atividades econômicas como mineração beneficiamento de produtos agrícolas, fábricas de tecido, etc. O alto custo dessas instalações fez com que se utilizassem mais as máquinas a vapor e outras aplicações (CMEB, 1988)11. 11 As primeiras experiências com relação à introdução da energia elétrica no Brasil são descritas também na publicação da Biblioteca do Exército (1977:34-5). 33 A chegada da Light muda completamente esse quadro e marca o início das atividades de companhias sob o controle de capitais estrangeiros, com grande importância para a evolução do setor elétrico. A proximidade dos locais aproveitáveis e dos grandes centros consumidores influenciaram a implementação dessas primeiras companhias (Biblioteca do Exército, 1977). Em 15 de julho de 1897, Francesco Antonio Gualco (residente no Canadá) e Antônio Augusto da Sousa obtiveram da Câmara Municipal de São Paulo a concessão do serviço de transporte urbano de passageiros em bondes elétricos, por um prazo de 40 anos. Em 7 de abril de 1899 foi constituída em Toronto, Canadá, a São Paulo Railway, Light and Power Company Limited, por iniciativa de um grupo de capitalistas canadenses, com o objetivo que ia além da produção, da utilização e da venda de eletricidade, gerada por qualquer tipo de força, abrangendo também o estabelecimento de linhas férreas, telegráficas e telefônicas. Em julho de 1899, o decreto de Presidente da República Campos Sales autorizava a Companhia a funcionar no Brasil. A Light estendeu-se rapidamente, comprando e eliminando todos os seus concorrentes e, em setembro de 1901, foi possível inaugurar a usina elétrica de Parnaíba, a primeira da Light no Brasil. Iniciou, em 1905, sua penetração no Rio de Janeiro e, em seguida, monopolizando os serviços de iluminação elétrica e fornecimento de gás, de bondes e de telefonia. Apesar de ser nominalmente canadense, a Light, que transformou-se em holding em 1912, era controlada por americanos, com métodos de gestão e de financiamento marcadamente americanos. Mas o capital investido na companhia, em pouco tempo, passou a ser de origem inglesa e a Light deve ser vista como “parte integrante de um vasto conglomerado financeiro e industrial, cujos investimentos não se limitavam ao nosso país, estendendo-se também ao México e a Cuba” (CMEB, 1988, 43). Paralelamente, existia um grande número de unidades isoladas, instaladas em diversos pontos de território brasileiro, responsáveis para atividades de geração e distribuição de energia elétrica no Brasil até 1920. Estas últimas concentravam seus investimentos na utilização dos 34 recursos hídricos, abundantes no país, seguindo, assim, o procedimento da Light. O ritmo de instalação de pequenas centrais elétricas foi bastante veloz. Em São Paulo, as concessionárias de energia elétrica começaram a se aglutinar, refletindo “(...) o desenvolvimento econômico observado em grande parte do estado de São Paulo, consubstanciado na contínua expansão do complexo cafeeiro, na diversificação da produção agrícola e na progressiva interiorização de alguns ramos industriais (...)” (CMEB, 1988:45). Esses grupos foram responsáveis por uma primeira tentativa de criação de um sistema interligado de produção, transmissão e distribuição de energia elétrica no interior de São Paulo. Os dois elementos principais que caracterizavam a década de vinte foram: “ (...) a construção de centrais geradoras de maior envergadura, capazes de atender à constante ampliação do mercado de energia, e a intensificação do processo de concentração e centralização das empresas concessionárias, que culminou, no final do decênio, com a quase completa desnacionalização do setor” (CMEB, 1988:55). Apesar do crescimento contínuo da demanda industrial no consumo da eletricidade, a rápida e continua difusão dos bondes elétricos e da iluminação pública gerada pela eletricidade fez desses serviços os principais consumidores de energia elétrica. Nesse período entra também em cena a American & Foreign Power Company (Amforp), empresa do grupo americano Eletric Bond & Share, que, mais tarde, em 1905, foi incorporada pela General Eletric. Constituiram-se a Empresas Elétricas Brasileiras, futura Companhia Auxiliar de Empresas Elétricas Brasileiras (CAEEB), que concentrou suas atividades em quase todas as capitais com exceção do Rio de Janeiro e São Paulo, incorporando diversas concessionárias e apresentando uma real ameaça para o monopólio da Light. De fato, o movimento em favor da concentração empreendido pela Light e Amforp, na segunda metade dos anos 20, fez com que todas as áreas mais desenvolvidas do país, ou as que apresentavam, também, maiores possibilidades de desenvolvimento, caíssem sob o 35 monopólio dessas duas empresas, tornando pouco expressivas aquelas que ficaram de fora, especialmente em áreas sem nenhuma perspectiva de desenvolvimento. Pode se concluir que o papel do Estado nesse período foi bastante limitado, mantendo-se principalmente não intervencionista e preocupando-se com outras prioridades como a estabilidade cambial, o equilíbrio das finanças públicas e a defesa de atividades produtivas ligadas ao setor externo. Somente em 1903, é que aparece o primeiro texto de legislação brasileira sobre energia elétrica, autorizando o Governo Federal a promover, por via administrativa ou mediante concessão, o aproveitamento da força hidráulica para os serviços federais. O decreto 5.407 estabeleceu regras para os contratos de concessão de aproveitamento elétrico e tinha como princípios básicos: o prazo máximo de concessão de 90 anos, a reversão para a União sem indenização do patrimônio constituído pelo concessionário e a revisão de tarifas a cada cinco anos. Esse decreto teve na prática um efeito muito reduzido, por se referir apenas às atividades desenvolvidas pelo governo federal, não incluiu os estados e municípios, sendo esses últimos o principal poder concedente dos serviços de energia elétrica. Em 1906, o Presidente Afonso Pena mandou organizar as bases do Código das Águas da República, tratando questões como a caracterização das águas públicas e particulares, de domínio da União, dos Estados e dos Municípios etc., mas não tratou da regulamentação dos serviços de energia elétrica, que previa-se tratar numa lei específica. A atuação estatal nesse período concentrou-se apenas nas áreas de regulamentação dos serviços de energia elétrica. 3.2. Começo da intervenção estatal no setor de energia elétrica A intervenção estatal na economia brasileira começou a expandir-se a partir do início do século XX. Fiori (1990) ressalta que a política federal de valorização do café e, sobretudo, a revolução institucional ocorrida com o Estado Novo assinalam um fortalecimento da presença 36 estatal, não só em termos quantitativos, mas também qualitativos. A superação das falhas do mercado e a promoção da industrialização foram os objetivos principais da intervenção estatal a partir dos anos trinta. O governo começou a intervir diretamente, através de investimentos em diversos setores estratégicos, e indiretamente, controlando e interferindo nos impostos, na taxa de câmbio e nas importações e exportações. O aumento significativo de exportações nos últimos anos de Império impulsionou a modernização da infra-estrutura no Brasil, abrangendo o sistema de transportes, de comunicações e os serviços públicos urbanos (linhas de bondes, iluminação pública, águas e esgotos, produção e distribuição de energia). A expansão da cafeicultura paulista necessitava da extensão desses serviços. Paralelamente, utilizando a mão de obra livre (o imigrante europeu), ela foi responsável pela introdução do trabalho assalariado no campo e por sua difusão nos centros urbanos, permitindo, assim o crescimento do mercado interno. Ademais, a inversão dos excedentes gerados no complexo exportador cafeeiro em atividades industriais, a partir da década de 1880, proporcionou as condições para o surgimento de capital industrial. No entanto, os principais financiadores dessas atividades eram, em grande parte, as empresas oligopolistas dos países capitalistas mais desenvolvidos até as vésperas da Primeira Guerra Mundial. Os capitais de origem inglesa representavam a maior parcela de investimentos no Brasil, deixando espaço para os capitais de origem norte-americana assumir liderança após o conflito. “O avanço da urbanização, com o conseqüente aumento da demanda por serviços públicos, e o incremento das atividades industriais, observadas no sudeste do país, abriram boas perspectivas para investimentos no incipiente campo de energia elétrica” (CMEB, 1988:28). 37 3.2.1 A evolução do setor de energia elétrica durante o Governo Vargas Durante o período em que Getúlio Vargas permaneceu à frente do poder, o Brasil sofreu profundas mudanças políticas, econômicas e sociais: pôs-se fim à estrutura descentralizada da República Velha, transformaram-se as relações entre o poder federal e estadual e iniciou-se a intervenção estatal na economia. Como conseqüência da longa depressão dos anos 30, o modelo tradicional, baseado na agroexportação, entrou em crise, estimulando o desenvolvimento de novas atividades produtivas e definindo um novo modelo de desenvolvimento econômico baseado na industrialização. Durante o período 1933-1939, a indústria tornou-se o pólo dinâmico da economia, e, apesar de diminuir-se esse ritmo de crescimento durante a Segunda Guerra Mundial, o governo Vargas tomou decisões centrais para dar continuidade ao processo de industrialização. Consequentemente, quando Vargas deixou o poder em 1945, o Brasil já era um país semi-industrializado, em processo de urbanização e com uma estrutura social e política bem mais complexa (CMEB, 1988: 77-8). A evolução do setor de energia elétrica refletiu essas mudanças, passando por importantes transformações institucionais. A reordenação institucional do setor começou de fato em 15 de setembro de 1931, quando foram suspensos todos os atos de alienação, oneração, promessa ou começo de transferência de qualquer curso perene ou queda de água, marcando, assim, o primeiro passo para a afirmação da União como poder concedente em matéria de energia elétrica. Em 1933, surgiu o Departamento Nacional da Produção Mineral (DNPM), que abrangia uma Diretoria de Águas, encarregada de tratar os assuntos relativos à exploração de energia hidráulica, irrigação, concessões e legislação de águas (CMEB, 1988:80). Em 10 de julho de 1934, Getúlio Vargas assinou o decreto n.° 26.234, promulgando o Código de Águas, que introduziu modificações importantes na sistemática dos aproveitamentos hidroelétricos: 38 “(...) separa a propriedade das quedas d’água das terras em que se encontram, incorporando-as ao patrimônio da Nação; atribui à União a competência de outorga de autorização e concessão para o aproveitamento da energia hidraúlica para uso privativo ou serviço público; institui o princípio do custo histórico e do “serviço pelo custo”, de lucro limitado e assegurado; e inicia a nacionalização dos serviços, restringindo sua concessão a brasileiros ou empresas organizados no país. Ressalva, no entanto, os direitos adquiridos” (Biblioteca do Exército, 1977:62) Com o golpe se 10 de novembro de 1937, Vargas instituiu um regime plenamente autoritário e centralizador. A Carta de 1937 consagrou o corporativismo como doutrina oficial do Estado Novo, confirmou a autoridade suprema do Presidente e atribuiu ao poder público funções mais complexas e ativas, assegurando ao Estado o direito de intervir diretamente nas atividades produtivas para suprir as deficiências da iniciativa privada. Durante a Segunda Guerra Mundial, preocupado com a segurança nacional, o Estado assumiu diretamente alguns projetos (Companhia Siderúrgica Nacional, Companhia Vale do Rio Doce, Fábrica Nacional dos Motores e Companhia Hidroelétrica do São Francisco – Chesf), visando diversificar a estrutura produtiva do país e reduzir a dependência externa. No entanto, apesar de algumas iniciativas, a intervenção estatal durante o Estado Novo no campo de energia elétrica voltou-se, basicamente, para a organização das atividades desenvolvidas pelas concessionárias particulares e seu enquadramento nas orientações estabelecidas pelo Código de Águas. O Decreto-Lei n.° 852 representou uma tentativa de adaptar o Código das Águas às normas e objetivos da Carta de 1937. O Decreto-Lei n.° 1285, de 18 de maio de 1939, criou o Conselho Nacional de Águas e Energia, transformado pelo Decreto-Lei n.° 1699 em Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica (CNAEE), o principal responsável pela formulação de políticas públicas durante o Estado Novo e o primeiro órgão de planejamento econômico do país. Assim, a política de energia elétrica passou para a esfera de competência de um órgão diretamente subordinado à Presidência da República. O Conselho “foi encarregado de manter as estatísticas, organizar os planos de interligação de usinas e sistemas elétricos, regulamentar o Código de Águas, examinar todas 39 as questões tributárias referentes à industria de energia elétrica e resolver, em grau de recurso, os dissídios entre a administração pública e os concessionários” (CMEB, 1988: 89). Em 1942, uma missão técnica americana chefiada por Morris Cooke realizou a primeira tentativa de diagnóstico global da economia com vistas à promoção do desenvolvimento do país. A deficiência do setor elétrico (decorrente da rígida política tarifária do governo e da proibição imposta às empresas estrangeiras de instalarem usinas elétricas) foi apontada como um dos principais pontos de estrangulamento para a expansão industrial. Esse diagnóstico serviu de base para os trabalhos da Comissão Técnica Especial do Plano Nacional de Eletrificação, organizado no final de 1943 pelo Conselho Federal de Comércio Exterior, que refletiu os limites da intervenção do Estado em atividades nas quais o controle das empresas estrangeiras era predominante. No entanto, no período do pós-guerra, a produção da energia elétrica não consegue acompanhar o consumo, que, com os problemas de inversão de recursos no setor e com o desencadeamento da industrialização, caracteriza-se por uma vigorosa expansão. Apesar do fato de que períodos de carência de energia viessem caracterizando o país desde a instalação desses serviços no Brasil, com o crescimento e modernização da economia, o racionamento tornou-se uma prática comum, trazendo graves conseqüências para a vida econômica e social. Esses fatos vão se repetir continuamente até na década de cinqüenta e sessenta (Biblioteca do Exército: 1977). Paralelamente, é possível encontrar, nesse período, as raízes da formação do setor público estatal da energia elétrica, iniciativas motivadas principalmente por imperativos de ordem regional, não obedecendo, de fato, a qualquer planificação centralizada da economia. Como exemplo pode ser destacado a elaboração do Plano de Eletrificação do Rio Grande do Sul, o primeiro plano regional concebido no país. Previa a organização de uma empresa 40 estadual, com participação acionária de municípios para administrar e coordenar o plano de eletrificação. O Decreto-Lei n.° 8.031, de 3 de outubro de 1945, cria a primeira empresa de eletricidade do governo federal, a Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf), com o objetivo de promover a construção de uma grande usina elétrica que explorasse o potencial energético da cachoeira de Paulo Afonso, possibilitando atender ao nordeste brasileiro, precariamente servida por usinas termelétricas. A criação da Chesf representou o marco inaugural de um novo estágio no desenvolvimento do setor elétrico: tendência à participação do Estado, à construção de usinas de grande porte e à dissociação entre a geração e a distribuição de energia elétrica, marcando o novo modelo (concentrar a produção em grandes usinas e suprir de energia os sistemas distribuidores regionais a cargo dos governos estaduais). No entanto, se consideramos o ritmo de crescimento do setor no período 1930-1945, é possível observar que apresentou-se uma queda em comparação com os anos anteriores, principalmente como resultado dos efeitos negativos da Segunda Guerra Mundial. 3.2.2 Duas orientações para o desenvolvimento: a consolidação da corrente nacionalista Com a redemocratização do país e a conseqüente participação do Congresso Nacional e sociedade civil, questões como a definição do papel que se reservaria à iniciativa privada, nacional e estrangeira, e à iniciativa estatal, no quadro de transformações estruturais que deveriam ser introduzidas no sistema produtivo brasileiro tornaram-se centrais. Duas correntes principais tentavam definir orientações diferentes para o desenvolvimento: a corrente desenvolvimentista defendia uma aberta intervenção do Estado na economia, tanto nos setores de infra-estrutura quanto naqueles em que o capital privado não dispusesse de condições para atuar (por falta de recursos e/ou tecnologia); a segunda corrente defendia a 41 aplicação dos princípios do liberalismo econômico e era contrária a intervenção estatal, favorecendo a entrada de capital interessados em investimentos. “A correlação das forças entre as duas correntes no interior da administração federal variou ao longo do período 1945-1962. Se, no governo do marechal Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), o papel destinado ao Estado foi, fundamentalmente, o de regulador das atividades econômicas, no segundo governo Vargas (1951-1954), ampliaram-se as perspectivas intervencionistas do Estado na economia, acompanhadas de um discurso nacionalista. Após a curta gestão do presidente João Café Filho (1954-1956), na qual as posições liberais ganharam terreno, o governo Juscelino Kubitschek (1956-1961) promoveu profundas transformações no modelo de desenvolvimento do país, privilegiando o ingresso maciço do capital estrangeiro, reservando porém ao Estado o papel de mediador entre as empresas públicas, as empresas privadas nacionais e as empresas estrangeiras, garantindo-lhe assim o exercício de funções produtivas, financeiras e de planejamento” (CMEB, 1988:115-6). Também no campo da energia elétrica o debate foi marcado por essas posições. A corrente privatista protegia a idéia de preservação do campo de energia elétrica como campo de atividade das empresas privadas; enquanto a corrente desenvolvimentista e nacionalista atribuía a responsabilidade pela não expansão do setor ao sistema de concessões e propunha uma intervenção do Estado no setor, mediante a construção de usinas elétricas e até mesmo a encampação das concessionárias estrangeiras (criticando principalmente a Light). Nesse período, a indústria passa também por profundas mudanças. Gradualmente, perde-se a importância do setor tradicional (bens de consumo não duráveis) e, paralelamente, se formam e crescem os setores de bens de consumo duráveis (aparelhos eletrodomésticos e máquinas de pequeno porte) e de bens de capital e insumos básicos (aço, cimento, equipamentos elétricos pesados, etc.) que demandam mais energia elétrica, elevando o nível de consumo. Essa mudança de consumo, junto com a rápida urbanização, fez com que o balanço energético, até então superavitário, passasse a apresentar um déficit cada vez maior, instaurando-se uma crise setorial de grandes proporções. 42 Consequentemente, para normalizar a situação e garantir a continuação do processo de industrialização, o Estado desenvolveu um amplo programa de investimentos nas atividades de geração e transmissão. A Constituição de 1946 confirmou a ação intervencionista do Estado e tratou dos assuntos relativos ao setor de energia elétrica num item relativo à exploração dos recursos naturais. As discussões colocaram em evidência as correntes contra e em favor da presença do capital estrangeiro no setor. Durante o governo marechal Dutra foi elaborado o Plano Salte (Saúde – Alimentação – Transporte – Energia), primeira tentativa de planejamento integrado do desenvolvimento nacional, que se propunha a resolver os principais problemas detectados nessas áreas, através de uma ação coordenada. A parcela de recursos destinados ao setor de energia elétrica era de 16% do total e, dentro desse montante, 52% couberam ao subsetor de eletricidade. Apesar de ser aprovado pelo Congresso, por intermédio da Lei n.° 1.102 de 18 de maio de 1950, o plano enfrentou inúmeras dificuldades para ser implementado e, em 1952, foi praticamente abandonado. Paralelamente ao Plano Salte, a Missão Abbink (Comissão Brasileiro-Americana de Estudos Econômicos), analisando os fatores que retardavam ou promoviam o desenvolvimento econômico do Brasil, destacou a grave deficiência de suprimento energético enfrentado pelo país, mas adotou como solução a orientação privatista (presente também no Plano Salte). “Os empreendimentos de energia elétrica deveriam ser desenvolvidos por empresas privadas financeiramente auto-suficientes, cabendo ao Estado a tarefa de regular as atividades do setor” (CMEB, 1988:122). Deixando de lado o fato de ser realizado um amplo diagnóstico dos problemas estruturais da economia brasileira, os resultados concretos foram praticamente nulos. 43 Com a volta do governo Vargas ao poder, se conferiu à industrialização papel fundamental na promoção do desenvolvimento do país e, refletindo a heterogeneidade das forças que o constituíam, adotou-se uma política econômica bifronte: de um lado nacionalista e tendencialmente estadista; de outro, devido à carência de recursos internos, receptivo ao capital estrangeiro (CMEB, 1988:124). A Assessoria Econômica do Gabinete Civil da Presidência da República, formada em 1951, foi o principal órgão responsável pela elaboração de projetos para a política nacional de energia, seguindo as diretrizes da política nacionalista, apontadas na Mensagem encaminhada ao Congresso Nacional pelo presidente Vargas (março de 1951) onde ele “destacava a necessidade de incrementar a produção de energia, de modo que a oferta antecedesse e estimulasse a demanda” (CMEB, 1988:125). A mensagem enfatizava a intervenção do Estado nos problemas hidroelétricos, a importância do Código de Águas, o princípio da nacionalização progressiva das fontes hidráulicas e defendia a participação maciça do Estado na produção de energia elétrica, criticando o desempenho das concessionárias privadas e das empresas nacionais de pequeno porte e recomendando a criação de empresas públicas, estatais e federais e, paralelamente, estimulação da cooperação técnica e financeira internacional. Como a iniciativa privada, seja por impossibilidade financeira, seja por falta de interesse12, não correspondeu ao ritmo necessário de investimentos, restou ao governo o recurso de uma capitalização por via fiscal, vinculada ao próprio desenvolvimento do setor de eletricidade. O primeiro projeto proposto pela Assessoria propunha a criação do Fundo Federal de Eletrificação (FFE), cujos recursos adviriam, basicamente, da cobrança do Imposto Único sobre Energia Elétrica (IUEE), objetivando fornecer recursos para as regiões menos desenvolvidas do país. O projeto representou a primeira fonte de recursos de cunho fiscal, de 44 alcance nacional, diretamente vinculado a investimentos no setor de energia elétrica. Esses recursos seriam geridos pelo BNDE, órgão federal criado em 1952, sob a égide do Ministério da Fazenda13. Em 1954, a Assessoria Econômica apresentou a Memória Justificativa do Plano Nacional de Eletrificação. O documento analisava o setor de energia elétrica brasileiro e baseava-se na convicção de que o Estado deveria intervir de forma decisiva nas atividades de geração e transmissão de energia elétrica, por causa das particularidades do setor no Brasil (necessidade de elevados investimentos iniciais na geração e complexidade dos empreendimentos). “Em termos práticos, o plano pressupunha, no espaço de dez anos, um amplo esforço no sentido de solucionar o problema de suprimento de energia elétrica. Tratava-se de cobrir o déficit de capacidade geradora acumulada nos anos anteriores, garantir que em 1965 o parque pudesse contar com a reserva normalmente exigida, interligar os sistemas existentes e criar novos, unificar a frenquência de corrente e padronizar as tensões de transmissão e de distribuição. Como pano de fundo desse conjunto de medidas, previase, conforme já foi visto, um profunda reestruturação do setor, para concentrar a propriedade das usinas nas mãos de empresas controladas pelo governo federal e pelos governos estaduais, que distribuiriam a energia elétrica para os demais empresas” (CMEB, 1988:129) Apesar de esse Plano não ter sido aprovado pelo Legislativo, suas propostas balizaram a expansão futura do setor da energia elétrica no Brasil. A nova direção, tornava necessária a criação de novos instrumentos administrativos, sendo que o Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica não estava aparelhado para executar as novas atribuições do Estado. Por isso, o projeto de lei n.° 4.280 autorizou o Governo Federal a constituir uma sociedade por ações denominada Centrais Elétricas Brasileiras S.A (Eletrobrás), concebida como uma empresa pública de âmbito nacional, cuja tarefa principal seria a execução dos empreendimentos do Plano Nacional de Eletrificação sob a responsabilidade do governo 12 Sendo que a renda liquida do setor e, portanto, sua capacidade de reinvestir, se estriba, por lei, no valor histórico dos investimentos que limitam o interesse da iniciativa privada para a solução do impasse (Biblioteca do Exército,1977:69) 45 federal. No entanto, enfrentando a oposição das concessionárias estrangeiras e outras resistências do próprio governo, o projeto passaria sete anos em discussão no Congresso Nacional. Paralelo a esse trabalho de cunho nacionalista, a atividade da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos para o Desenvolvimento Econômico (instalada em Brasil em junho de 1951) representava a corrente privatista e antiestatizante, não impondo restrições setoriais à aplicação do capital estrangeiro e recomendando que a intervenção estatal fosse sobretudo reguladora e supletiva. O Conselho Nacional de Economia, também de cunho privatista, apresentou, em 1952, um anteprojeto de lei acerca da organização e do desenvolvimento da eletrificação no Brasil, que opunha-se fortemente ao Código de Águas, mas, na prática, não teve nenhum desdobramento prático no segundo governo Vargas. Apesar das correntes privatistas, durante o segundo governo Vargas foram tomadas medidas de grande importância, das quais podem-se destacar: a ampliação das bases financeiras do investimento público (tornada possível pela criação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e do Imposto Único sobre Energia Elétrica) e a realização de estudos que estabeleceram o conjunto de obras necessárias à superação da crise da oferta de energia elétrica que estava afetando a economia nesse período. 3.2.2.1 O plano de Metas do Governo Kubitschek e a criação da Eletrobrás Depois do trágico desaparecimento do presidente Vargas, o curto mandato de Café Filho foi marcado de iniciativas que se opunham à orientação seguida no governo Vargas. A Instrução 113, de janeiro de 1955, foi criada com a intenção de atrair investimentos estrangeiros e possibilitar a abertura da economia brasileira ao exterior. 13 Com o decorrer do tempo, a parte da União no Fundo Federal de Eletrificação vai se tornar insuficiente para atender os investimentos necessários, consequentemente, a arrecadação se completa com recursos financeiros 46 Essa reorientação da política econômica foi aprofundada na administração de Juscelino Kubitschek (1956), onde o recurso ao capital externo foi amplamente utilizado como a principal base de financiamento da industrialização brasileira. O Plano de Metas, elaborado pelo Conselho do Desenvolvimento (órgão de planejamento da Presidência da República), foi responsável pelo desenvolvimento em tempo recorde dos setores mais dinâmicos e importantes da indústria brasileira e tinha por finalidade acelerar o processo de acumulação, aumentando a produtividade dos investimentos existentes e aplicando novos investimentos em atividades produtivas. “Os objetivos mais gerais do Plano de Metas eram abolir os chamados pontos de estrangulamento da economia do Brasil, mediante inversões na infra-estrutura a cargo do Estado, visto que elas não interessariam ao capital privado, e expandir a indústria de base e de bens de consumo duráveis, estimulando investimentos particulares, nacionais e estrangeiros. Caberia igualmente ao Estado criar condições econômicas, financeiras, sociais e políticas favoráveis ao pleno desenvolvimento da livre iniciativa” (CMEB, 1988:139). Assim, o Plano considerou como prioritários os setores de energia e transporte, designado para o primeiro 43,4% dos investimentos previstos. As metas de números 1 a 5 relacionavamse ao setor e estabeleciam padrões de crescimento para os subsetores de energia elétrica (55,5% do total previsto para o setor), energia nuclear, carvão e petróleo. Durante esse governo, continuaram as obras de ampliação de Paulo Affonso e teve início a construção de duas hidrelétricas de grande porte: Furnas14 e Três Marias, situadas em Minas Gerais. Apesar de os conflitos entre as correntes desenvolvimentista e privatista continuarem, a estratégia adotada pelo governo foi a de colocar em prática a configuração apresentada para o próprios do BNDE (especialmente do Fundo de Reaparelhamento Econômico). Criada em 1957, pela necessidade de ingressar o Governo Federal no campo de produção de energia elétrica da região centro-sul do país, a fim de superar a crise de suprimento de energia. O projeto não só atende as necessidades de capacidade adicional no momento, mas também estabelece as bases para futuros atendimentos da demanda na região, e será importante elo na interligação dos três grandes centros consumidores: São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte (Biblioteca do Exército,1977:75) 14 47 setor no Plano Nacional de Eletrificação de 1954, ou seja, “(...)caberia às empresas públicas, federais e estaduais, o comando da expansão da capacidade instalada no Brasil, ficando a cargo de concessionárias particulares, estrangeiras e nacionais o serviços de distribuição de energia elétrica” (CMEB, 1988:144). Embora o debate sobre a criação do Eletrobrás se desenrolasse no Congresso, começou a se conceber a idéia de criação do Ministério de Minas e Energia, instituído em 22 de julho de 1960, através da Lei n.° 3.782, responsável pela política energética do país. Cabia a esse Ministério a tarefa de planificar a exploração dos recursos energéticos e minerais do país e definir as orientações básicas ou políticas de ação em diversos setores de sua competência (Biblioteca do Exército,1977). A criação da Eletrobrás, só conseguiu ser colocada em prática no governo Jânio Quadros, quando através da Lei n.° 3.890-A, se autorizava o Governo Federal a proceder à constituição da empresa Centrais Elétricas Brasileiras S.A.– Eletrobrás. “Atuando como empresa holding do setor, a Eletrobrás incorporou imediatamente as aplicações realizadas até então pelo BNDE. Na qualidade de órgão de planejamento setorial, em escala nacional, a empresa ficou responsável pela definição dos planos de expansão do sistema de energia elétrica do país. Foi por intermédio da Eletrobrás que a intervenção do Estado, iniciada nos primeiros anos da década de 1950, no planejamento e na administração das atividades de energia elétrica no Brasil, assumiu um caráter irreversível” (CMEB, 1988:146-7). Durante o período 1945-1962, registrou-se um grande aumento na capacidade instalada da energia elétrica no Brasil. O total quadriplicou e, em termos percentuais, esse aumento representou uma taxa de crescimento médio de 8,9% ao ano, marcando também um significativo aumento da participação das empresas públicas, federias e estaduais na geração e na transmissão de energia elétrica, responsável pela radical alteração do perfil do setor. Se for considerado o perfil do setor de energia elétrica durante esse período é possível destacar: 48 maior participação de empresas públicas federais e estaduais 15; permanência no setor de concessionárias privadas como Light e Amforp que continuaram a crescer com taxas médias inferiores à taxa de crescimento da economia e indústria, revelando-se assim, incapazes de entender à demanda; existência de um reduzido número de pequenas empresas de capital nacional, concentradas no sudeste e sul do país e mostrando claros sinais de esgotamento; e autoprodutores, públicos e privados, instituídas por indústrias como a Companhia Siderúrgica Nacional, Petrobrás e outras que necessitavam dispor de usinas geradoras próprias, sobretudo no Sudeste. 3.2.2.2 O setor de energia elétrica a partir dos anos sessenta O Brasil, no início dos anos sessenta, caracterizou-se por uma grave crise de cunho econômico, político e social. A partir de 1961, a taxa de crescimento da economia sofreu uma reversão, ao esgotarem-se as possibilidades de substituição maciça de importações. Nesse período, o Estado já apresentava um papel fundamental no processo de desenvolvimento econômico e o déficit fiscal fez com que o financiamento de investimentos só pudesse ser realizado mediante emissões do Tesouro Nacional ou aportes financeiros de organizações de crédito internacional. “A escolha da primeira alternativa traria sem dúvida, o recrudescimento da espiral inflacionária e a da segunda levaria à adoção de fórmulas contecionistas. O segundo agente mais importante do processo de industrialização brasileira, representado pelo capital estrangeiro, temendo a desestabilização política do governo, passou a evitar inversões no país” (CMEB, 1988:191-2). Durante o governo militar, garantiu-se a consolidação do modelo implantado nos anos cinqüenta e fortaleceu-se o Executivo, o que fez com que se conferissem condições favoráveis à formulação e à execução das diretrizes econômicas governamentais. 15 Como exemplo podem ser destacados a criação de Centrais Elétricas de Minas Gerais S.A. - CEMIG (a primeira empresa estadual de economia mista a ser criada no país para realizar um plano global de eletrificação), a Companhia Energética de São Paulo - CESP (com o agravamento de crise da energia o governo de estado de São Paulo decide entrar no setor e finalmente reúne as várias empresas estaduais numa única empresa - CESP) (Biblioteca do Exército, 1977). 49 Um conjunto de medidas na área financeira (a conversão do governo em gerente dos ativos financeiros, reforma bancária, a lei de mercados capitais etc.) fez com que o crescimento do setor financeiro nacional passasse a ter como ponto de partida o próprio Estado e não mais os ativos das empresas. Em seguida, o Estado tornou-se o captador da poupança interna do país (através de criação de mecanismos de poupança compulsória como o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS) e atuou como redistribuidor dos recursos oriundos da poupança interna, fortalecendo, assim, a sua capacidade financeira, centralizada em nível federal. “(...) a partir de 1964, a atuação do governo obedeceu a dois imperativos principais: recriar condições para financiar as inversões necessárias à retomada da expansão da economia e fornecer as bases institucionais adequadas à instauração da eficácia do mercado como elemento ordenador da economia. Quanto a este último aspecto, procurou-se eliminar as empresas de menor porte e estrutura técnica menos adequada, garantindo-se, simultaneamente, a lucratividade das grandes. Assim, enfatizando a racionalidade do desenvolvimento, estabeleceu-se uma nova estratégia de relação entre o Estado e o empresariado, que procurava facilitar a organização e a gestão da vida econômica, com base na hegemonia de poucas e grandes empresas em cada setor” (CMEB, 1988:193). 3.3. Principais características do modelo estatal 3.3.1 Política nacional de energia e o papel da Eletrobrás Com relação ao setor da energia elétrica, a constituição efetiva da Eletrobrás em 1962, marcou profundas transformações para o setor, especialmente na área de planejamento. Já no início das suas atividades, a Eletrobrás tornou-se membro nato da Conesp16. Isso influenciou diretamente na situação das empresas concessionárias privadas. Em 1959, o governo do Rio Grande do Sul decretou a encampação da Companhia de Energia Elétrica Riograndense (subsidiaria da Amforp), abrindo o caminho para outras encampações e, através da Lei n.° 16 Comissão de Nacionalização das Empresas Concessionárias de Serviços Públicos: criada em 30 de maio de 1962, “(...) com o objetivo de indicar ao Poder Executivo os serviços que deveriam passar ao regime de exploração direta, negociar as condições e a forma de reembolso ou indenização aos acionistas, bem como fixar as normas a serem seguidas no tratamento do patrimônio e na avaliação dos ativos das empresas a serem nacionalizadas” (CMEB, 1988:198). 50 4428, de 12 de novembro de 1964, assinou-se o tratado de compra, pelo Brasil, das empresas do grupo, por 135 milhões de dólares. Nessa fase, instituiu-se a política nacional de energia elétrica pelo Governo Federal, através de seus órgãos setoriais: o Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica e a Eletrobrás. Com a transformação da Divisão de Águas do Departamento Nacional da Produção Mineral (DNPM) em Departamento Nacional de Águas e Energia (DNAE) 17, a Eletrobrás e o Ministério de Minas e Energia (MME) identificaram-se como órgãos coordenadores de setor de energia elétrica. A política de energia elétrica no país começou a ser traçada pela MME e executada pela Eletrobrás, com a DNAEE que atuava como o órgão normativo e fiscalizador, sendo responsável pela outorga de concessões de aproveitamentos hidrelétricos e de prestação de serviços, e as demais empresas integrantes do setor que seguiam as diretrizes federais em suas tarefas de produzir, transmitir e distribuir energia elétrica 18. De acordo com essa estrutura de planejamento e coordenação, os outros participantes: concessionárias, públicas e privadas, empresas estaduais, municipais e até mesmo autoprodutores, foram se unindo todos na tarefa de produção, transmissão e distribuição de energia elétrica no país. A Eletrobrás implantou toda uma estrutura administrativa a fim de orientar e liderar o setor de energia elétrica. As atividades lideradas pela empresa no setor foram cada vez mais abrangentes, até atingirem todo o país e todos os níveis. “As diversas tarefas, do estudo à operação pela ELETROBRÁS e pelos concessionários, foram se articulando e mesmo se interpenetrando, até formar uma grande orquestra” (Biblioteca do Exército, 1977:106). 17 Esse último adquiriu a denominação Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (DNAEE). Segundo Ferreira (1999) o DNAEE não tinha independência e, na prática, não desempenhava nenhum papel de liderança no estabelecimento das tarifas para o setor. A maioria dos seus funcionários vinham das próprias empresas de energia, acentuando o problema de captura do órgão regulado pelos regulados. O envolvimento do DNAEE na gerência das tarifas foi reduzido posteriormente, quando o Ministério da Fazenda começou a controlar reajustamentos de tarifas como parte dos esforços para controlar a inflação. 18 51 Além da estrutura organizacional interna, a Eletrobrás apoiou-se também numa estrutura colegiada, por meio da qual exerceu a coordenação do setor da energia elétrica. Alguns desses órgãos assumiram grande importância para a execução das políticas na área, como: o Grupo Coordenador para Operação Interligada (GCOI), o Comitê Coordenador de Operações NorteNordeste (CCON), O Sistema Nacional de Supervisão e Coordenação de Operações Interligadas (SINSC), na área de operação, e o Grupo Coordenador de Planejamento dos Sistemas Elétricos (GCPS), na área de planejamento. Outras organizações de relevância para o setor cooperam com a Eletrobrás como: Cepel (Centro de Pesquisas de Energia Elétrica) e órgãos internacionais, como: a International Eletric Exchange (IERE) que centraliza informações sobre pesquisas na área de energia elétrica. 3.3.2 Planejamento do setor Uma das características mais particulares do setor de energia elétrica é a necessidade de planificar os investimentos necessários com muita antecedência em relação ao início da produção, condição que veste-se de maior importância considerando o fato de a energia elétrica ser um dos condicionantes principais do desenvolvimento e deve acompanhar o ritmo de crescimento da demanda, por mais rápida que ela seja. A construção de empresas como Furnas e Chefs, a criação do Ministério das Minas e Energia e o papel da Eletrobrás foram de suma importância para o planejamento do setor de energia elétrica. É importante destacar o papel pioneiro da Furnas que, em 1959, reuniu todas as concessionárias do Sudeste com a finalidade de conduzir um estudo de suprimento de energia para toda a região. Essas recomendações serviram como guia para a política do Ministério e foram aprovadas em 28 de julho de 1961, por meio do Decreto n.° 51.058. 52 Por outro lado, deve se destacar também o trabalho realizado pelo Consórcio Canabra (denominado assim para designar a nacionalidade dos agentes envolvidos), criado em junho de 1962 pelo Banco Mundial em conjunto com as autoridades brasileiras e composto de duas firmas de consultoria canadenses e uma americana, a fim de estudar os potenciais hidráulicos e o mercado de energia elétrica na Região Sudeste. Para coordenar esses trabalhos, criou-se, em abril de 1963, o Comitê Coordenado de Estudos Energéticos da Região Centro-Sul e em dezembro de 1963 a Canabra apresentou ao Comitê o primeiro relatório, o qual recomendava um programa de construções até 1966, para atender a demanda prevista até 1970. O próximo relatório apresentou diretrizes para um programa de construções ao longo prazo e os dois foram incorporados nos programas do planejamento dos governos. Seguindo esse exemplo, o Comitê Coordenador de Estudos Energéticos da Região Sul (Enersul) supervisionou os trabalhos direcionados para a região Sul, e estudos semelhantes foram desenvolvidos nas demais regiões do país. Os trabalhos da Canabra “representam o maior e mais completo planejamento elétrico integrado até então realizado no mundo ocidental” (CMEB, 1988:208). A Eletrobrás consolidou-se como o órgão principal do planejamento do setor, seguindo as diretrizes da política energética elaboradas pelo Ministério das Minas e Energia e a política econômico-financeira do governo em geral. Os estudos de planejamento realizados eram divididos em: estudos de consumo, análise da produção programada, formação de alternativas e análise técnico – econômica das alternativas com definição do plano de expansão. Esse último, apesar de ser apresentado sob a forma de programa plurianual, era revisado continuamente e adaptado a cada ano segundo as mudanças de mercado, demanda, andamento de projetos, obras, etc. Os planos baseavam-se nas necessidades de consumo de energia 53 elétrica, definidas em estreita colaboração com as empresas do setor19 e, na viabilidade técnica, análise custo-benefício, e outros fatores sócio-políticos. Paralelamente, o Orçamento Plurianual de Energia ( OPE), implementado em 1968 como o “(...) documento que resume de forma consolidada, para um período constante de sete anos – um ano realizado, o ano em curso e cinco projetados -, as informações mais relevantes para o setor e que permitem avaliar, com boa margem de precisão, os investimentos setoriais realizados e as estimativas para cada um dos cinco anos compreendidos dentro do seu horizonte de planejamento, bem como os recursos” (Biblioteca do Exército, 1977:168) se converteu num importante instrumento de planejamento, ao fornecer dados de grande utilidade para as indústrias de equipamentos e de material elétrico e para as firmas de engenharia. Mais tarde, o OPE evoluiu para o Programa Plurianual de Investimentos do Setor Elétrico (PPE), que integrou-se a um documento anual mais abrangente, o Programa de Recuperação do Setor Elétrico (PRS). O levantamento da OPE cobria quase todo o mercado de energia elétrica e proporcionava “o estabelecimento de uma programação financeira global para o setor, identificando as necessidades de recursos financeiros adicionais, nacionais ou externos; a ordenação sistemática de informações financeiras para os administradores e técnicos dos concessionários; o contínuo aperfeiçoamento da política de financiamento da ELETROBRÁS, considerando os planos de expansão das diversas empresas em face da esperada evolução dos mercados consumidores” (Biblioteca do Exército, 1977:169). Em novembro de 1980, começa a funcionar informalmente o Grupo Coordenador de Planejamento dos Sistemas Elétricos (GCPS), institucionalizado em novembro de 1982 pela Portaria n.º 1167 do Ministério das Minas e Energia, tendo por base o desenvolvimento de metodologias e critérios adequados às características peculiares do sistema elétrico brasileiro, 19 “Nos estudos realizados pela Eletrobrás, as projeções são os resultados da aplicação da sua metodologia ao mercado dos diversos concessionários. Por sua vez, cada empresa elabora suas próprias projeções, adotando metodologia própria para suas áreas. Essas projeções são, em seguida, discutidas com a ELETROBRÁS, até o estabelecimento de valores comuns para o consumo e demanda da área de cada concessionário para o primeiro qüinqüênio do período de projeções. A extensão das projeções para os 10 anos seguintes é ajustada a partir de novos valores resultantes do consenso ELETROBRÁS – Concessionários, obtendo-se assim a compatibilidade indispensável entre as projeções de curto prazo, estabelecidas para cada empresa visando o planejamento de suas instalações de distribuição e subtransmissão e, as projeções de longo prazo utilizadas pela ELETROBRÁS no planejamento da geração transmissão dos grandes sistemas regionais” (Biblioteca do Exército, 1977:164-5). 54 que, diversamente dos outros países, “se distingue pela abundância de recursos de energia hidráulica, localizados entretanto em pontos distantes dos centros de consumo, implicando a construção de grandes redes de transmissão para o seu efetivo aproveitamento” (CMEB, 1988:214). O Grupo criou-se para projetar, por meio de previsões macroeconômicas, a demanda de energia, e, com base nessa previsão, definir os investimentos necessários para a expansão das atividades de geração, transmissão e distribuição. Também determinava o cronograma dos projetos de investimentos e priorizava os mais eficientes. 3.3.3 O setor em nível operacional: formas de cooperação entre as empresas O desenvolvimento do setor de energia elétrica no Brasil influenciou-se pelas características continentais do país e pelo amplo potencial hidroelétrico. No final da década de 1950, a integração das empresas de energia elétrica tornou-se uma questão chave para o setor. Prevalecia a necessidade permanente de interligação dos sistemas para assegurar um aproveitamento mais racional da energia. Um dos problemas que teve de ser enfrentado para conseguir essa interligação tinha a ver com a unificação nacional da freqüência de energia elétrica, escolhendo entre a 50 e 60 Hz. O problema foi resolvido definitivamente a partir da instituição no CNAEE de uma Comissão de Uniformização de Freqüência (1961), que recomendou a adoção da freqüência padrão de 60 Hz (Biblioteca do Exército, 1977). Com o desenvolvimento do setor de energia elétrica, começaram a se identificar vários problemas operacionais, tornando assim indispensável a criação de um organismo que permitisse a coordenação da operação interligada. As economias significantes de escala, resultantes da construção de grandes usinas de energia, impulsionaram a criação de um sistema interligado de transmissão, no qual os custos relacionados com as linhas de transmissão eram compartilhados. O amplo capital envolvido nesse processo determinava que 55 a cooperação, não a competição, era a melhor opção para as empresas de energia elétrica (Ferreira, 1999) Na prática, Furnas iniciou a formação do sistema interligado brasileiro, quando, em 1963, estabeleceu os elos de interligação elétrica de grande porte entre Minas Gerias, São Paulo e Rio de Janeiro, seguida por outras usinas. Com a ampliação da interligação dos sistemas em áreas cada vez mais diversas, começaram a se ressaltar alguns problemas de adaptação e divergências de interesse entre diversas empresas. Por isso, através da Portaria n.° 65, de 16 de janeiro de 1969, o Ministério de Minas e Energia estabeleceu os princípios básicos que nortearam a criação do Comitê Coordenador para a Operação Interligada (CCOI). A ELETROBRÁS participou como a coordenadora técnica do Comitê, responsável pela coordenação da operação interligada das empresas da região Sudeste. Em janeiro de 1971, foi criado o Comitê Coordenador para a Operação Interligada da Região Sul (CCOI-SUL), que integrava as empresas da região sul do país, e, em 1973, foram criados os Grupos Coordenadores para a Operação Interligada (GCOI), regulamentados pelo Decreto n.º 73.102, de 7 de novembro de 1963 “com atribuições de coordenar, decidir ou encaminhar as providências necessárias ao uso racional das instalações geradoras e de transmissão, existentes e futuras, nos sistemas elétricos interligados das regiões Sudestes e Sul” (CMEB, 1988:211)20. “Buscam os grupos basicamente a continuidade do suprimento de energia elétrica aos sistemas distribuidores, de forma a atender plenamente aos seus requisitos de potência e energia e sob condições de tensão e freqüência adequada; e a economia dos combustíveis utilizados nas centrais termelétricas, restringindo o seu consumo ao mínimo indispensável ao atendimento dos requisitos dos sistemas elétricos, em 20 Em setembro de 1974 a coordenação operacional do sistema interligado foi estendida ao Nordeste, por meio da criação do Comitê Coordenados de Operação do Nordeste (CCON), organizado à semelhança dos GCOI. Mais tarde, cria-se também o Comitê de Distribuição da Região Sudeste-Sul, expandindo o modelo para a área de distribuição de energia elétrica. 56 complementação dos recursos hidrelétricos, considerando, entretanto, as imposições de interesse nacional21” (Biblioteca do Exército, 1977:175). Segundo Santos, mencionado em Ferreira (1999), ao estabelecimento de distribuidores monopolísticos e à criação de Eletrobrás, seguiu-se o desenvolvimento de um “sistema de despache centralizado”, controlado pelo GCOI, que maximizava a eficiência no sistema de energia hidroelétrica como um todo. Ainda que diferentes usinas hidroelétricas (muitas vezes de propriedade de diversas empresas) possam operar na mesma bacia de rio, o fluxo de água vindo de uma barragem é o “combustível” para outras usinas de rio (correnteza) abaixo. Determinando quando e quanto cada usina deverá gerar, o sistema de despacho centralizado assegura que a água disponível é usada de maneira mais eficiente, optimizando assim, o output total de energia com o custo menor. Se uma empresa gera menor energia que o estabelecido no contrato, obterá energia de uma outra empresa que gerou energia em excesso (ultrapassando a sua necessidade), pagando o custo operativo da energia adquirida. A Eletrobrás estimou que, em 1996, o sistema centralizado de despacho gerou economias totais de eficiência na ordem de US$ 3.7 bilhões, otimizando o uso dos fluxos de água22. Essas operações conduziram a uma melhor qualidade de serviço, a uma melhor utilização da capacidade de geração instalada, ao aproveitamento da diversidade hidrológica existente entre bacias e regiões e a um crescimento significativo nos dez anos seguintes, passando de 7.243,3 MW para 26.723 MW em 1979. Cumpre destacar, ainda, o Sistema Nacional de Supervisão e Coordenação de Operação (SINSC), “um sistema computarizado de informações que permitirá a supervisão e controle, em nível nacional, do sistema de potência interligado brasileiro, oferecendo maior flexibilidade para adaptação de seus planos operacionais e 21 A atuação do GCOI fez com que se minimizassem algumas divergências entre empresas como Furnas, Cesp e Light, decorrentes da utilização de combustíveis fósseis na complementação dos sistemas hidráulicos e da interdependência de seus sistemas. O acordo operativo firmado entre a Chefs, Cemig e Furnas permitiu que, por meio da ação conjunta dos sistemas elétricos e hidráulicos dessas empresas se atendesse a região Nordeste com o mínimo de geração térmica (CMEB, 1988:211) e (Biblioteca do Exercito, 1977:175). 22 Como se verá no decorrer do trabalho, a lógica deste sistema serve como base para o Operador Nacional do Sistema, organização chave na configuração atual do setor. 57 programações diárias às mudanças hidrológicas e outros eventos do sistema potência” (CMEB, 1988:212). Esse modelo centralizado do sistema de energia elétrica não era apenas visto como o mais eficiente, a partir de bases técnicas e econômicas, mas também se adaptava ao modelo desenvolvimentista, em que o papel do Estado era principal. É importante salientar que, ao centralizar a planificação, operação e, até em certa medida, os recursos financeiros para investimentos, o setor de energia elétrica no Brasil cresceu rapidamente durante as décadas de sessenta e setenta, acompanhando, assim, o crescimento da economia brasileira em geral e continuando a subsidiar os consumidores industriais. O sistema centralizado alcançou os seus objetivos estratégicos. Em 1995, o Brasil construiu 55 512 MW de capacidade de geração de energia, 153 406 km de linhas de transmissão e 1.6 milhões km de linhas de distribuição e esses resultados históricos não devem ser esquecidos apesar dos problemas atuais do setor (Ferreira, 1999). 3.4. Crise e mudanças para o setor de energia elétrica As mudanças no sistema de preços relativos ocorridas mundialmente, como resultado das duas crises de petróleo em 1974 e 1979, da alta das taxas de juros no mercado financeiro internacional e da valorização do dólar, afetaram a economia nacional, fortemente atrelada ao sistema financeiro internacional. Visto que, inicialmente, essa conjuntura foi considerada passageira, o governo continuou com a política de financiamento externo e interno. Com a crise dos juros, a situação financeira do Estado e de suas empresas agravou-se ainda mais. A existência de deficiências sistêmicas do Estado, decorrentes da adoção de estratégias conflitantes com a lógica empresarial, praticando o achatamento dos preços públicos e utilizando as empresas estatais como instrumento de ajuste financeiro do país, condicionou, em grande medida, a crise. Paralelamente, a intervenção indireta do Estado na economia, 58 através do controle generalizado dos preços e da interferência nas decisões privadas de investimento, também influenciou no agravamento da crise23. Durante os anos setenta, o setor de energia elétrica ficou amplamente endividado à custa de empréstimos externos - prática cultivada como um instrumento forte de política desenvolvimentista do governo. “O uso, pelo governo, da política tarifária do setor elétrico como instrumento de controle inflacionário, somado à centralização das decisões, à equalização tarifária e ao modelo de remuneração de investimentos, colaborou para a crise financeira do sistema elétrico, além de favorecer um inadequado e ineficiente desempenho empresarial e uma crescente interferência política nas gestões das empresas concessionárias” (FISCHER, TEIXEIRA & HEBER, 1998:19) O modelo centralizado no setor da energia elétrica começou a apresentar sinais de enfraquecimento. Segundo Ferreira (1999), a centralização da planificação e a disponibilidade de financiamentos incidiram em decisões de investimentos errôneas. Considerando que a economia de escala era a prioridade, as usinas de grande tamanho eram geralmente preferidas em prejuízo de usinas menores. Isso levou a consideráveis investimentos que demandavam amplos recursos financeiros e muito tempo para serem conduzidos, fazendo com que muitos desses investimentos não pudessem ser completados. Paralelamente, considerando que um retorno confortável sobre os ativos era garantido, não existia incentivo para aumentar a eficiência e perdeu-se o controle dos custos. O crescimento da importância das questões ambientais tornou obrigatório conduzir um Estudo de Impactos Ambientais, que, na maioria dos casos, demandava significativos pagamentos compensativos para os municípios ou as comunidades influenciados pelos projetos. Com o fortalecimento da democracia, esses pagamentos tornaram-se cada vez mais freqüentes e também custosos. A crise energética influenciou fortemente a ação planejadora da Eletrobrás. O planejamento de médio e longo prazo foi praticamente abandonado e muitas das decisões essenciais da Eletrobrás foram transferidas para órgãos externos ao setor. Foi prevista uma crise de 23 Sobre o assunto ver, Costa et al : 1993, Pinheiro & Giambiagi : 1992, Tenório : 1997 59 suprimento de energia elétrica por volta de 1990 na região Sudeste. Mesmo que a taxa de crescimento anual consumo de energia elétrica se situasse sempre acima de 10% entre 1970 e 1980, a extrapolação dessa tendência por prazos mais longos levou à previsão de enormes requisitos de potência instalada e decorrentes investimentos necessários no setor. “A despeito do progresso alcançado em métodos e técnicas específicas de planejamento, houve uma concentração de investimentos em obras de geração e deficiências na expansão dos sistemas de transmissão e distribuição, criando-se, assim, um quadro de sérias dificuldades para o setor, agravado no início da década de 1980 pela crise econômica que atingiu o país. Com o descompasso entre a demanda, que se estabilizou, e a oferta crescente, houve temporariamente excesso de energia elétrica, vendido a preço quase nulo para a substituição do óleo combustível no parque industrial, de acordo com o programa de eletrotermia traçado pelo Ministério das Minas e Energia. Num segundo momento, porém, a redução geral dos investimentos provocou atrasos em vários troncos importantes de transmissão, contribuindo para a falta de energia na região Sul, atingida por uma seca de grandes proporções” (CMEB, 1988:214). Todos estes fatores levaram numa redução drástica dos níveis de investimentos (Gráfico 1). Gráfico 1 Histórico dos investimentos no setor de energia elétrica (bilhões de US$) 20 15 10 15.4 15.1 14.2 13.4 12.8 11.6 11.6 11 10.7 10.4 8.7 8.8 8.3 6.8 5 5.5 5.3 4.3 4.7 0 80 81 82 83 84 85 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96 97 O sistema centralizado, aparentemente funcionando de modo adequado, na prática começou a apresentar disfunções. O modelo, teoricamente, deixava nas mãos dos estados a responsabilidade para a distribuição da energia por meio de monopólios operantes em nível 60 estadual. No entanto, não se evitou que os governos estaduais mais ricos das zonas sul e sudeste implementassem programas agressivos de investimentos para criar os próprios ativos de geração e transmissão, para servir melhor às indústrias da região. Empresas como CESP, Cemig, Copel e CEEE tiveram uma percentagem considerada dos ativos da geração de energia elétrica no Brasil, ao lado do controle sobre as atividades de distribuição. A crise foi mais forte nas empresas de propriedade estatal, sendo que, quando no começo dos oitentas, os bancos de propriedade estadual tiveram problemas, alguns governos começaram a usar as empresas de geração para financiar indiretamente seus déficit público, fazendo com que essas ficassem responsáveis por algumas atividades não relacionadas com o seu negócio central. Em alguns casos, as empresas estatais não pagavam suas contas de energia ou empregavam funcionários muito bem pagos que, de fato, não trabalhavam nessas indústrias (Ferreira, 1999). A propriedade e controle do sistema era dividido entre a área federal e estadual na seguinte proporção: Tabela 2: Propriedade e controle do sistema de energia elétrico brasileiro SEGMENTO: GERAÇÃO TRANSMISSÃO DISTRIBUIÇÃO FEDERAL % 65 70 19 ESTADUAL % 35 30 79 PRIVADO % 2 Fonte: www.mme.gov.br Na opinião de Teixeira & Santana, mencionados em Johnson, Saes, Teixeira & Wright (1996) o processo de estatização se deu pela multiplicação de órgãos e empresas. “Os processos que envolvem a participação da administração pública, em maior ou menor grau, estão sujeitos à queda de eficácia por deficiências de vinculação entre órgãos supostamente responsáveis por determinadas atribuições. Há um grande número de órgãos envolvidos em diversas funções, inclusive em distintos níveis governamentais. O fato de vários órgãos atuarem sobre os mesmos problemas de modo não integrado gera um subaproveitamento de recursos e redução de eficácia global, facilitando sobreposições e lacunas de atuação que acabam por comprometer o quadro geral das funções que deveriam ser executadas” (1996:75). 61 Apesar desses problemas, lançou-se um grande programa de energia, o Itaipu, que já era compromisso binacional e comprou-se a Light. “Começava a derrocada dos serviços de eletricidade, mas a solidez do sistema que se havia construído evitou, até recentemente, um colapso físico” (LEITE, 1999:3). Estes fatores influenciaram no enfraquecimento do modelo estatal implementado por vários anos. A seguir, será analisado o processo de reestruturação e privatização e as suas principais características. 62 CAPITULO 4 4. RESTRUTURAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO DO SETOR DE ENERGIA ELÉTRICA Neste capítulo, será apresentado o processo de reestruturação e privatização do setor de energia elétrico. O processo abordar-se-á a partir de uma perspectiva maior de mudanças estruturais que caracterizam o Brasil a partir dos anos oitenta. Será analisada a proposta de reestruturação do setor, apresentada pela consultora Coopers & Lybrand, assim como o conjunto das leis que tem esculpido o desenho institucional do setor, visando apresentar o modelo teórico de reestruturação do setor de energia elétrico brasileiro. 4.1. Neoliberalismo e processo de privatização no Brasil O modelo do Estado produtor de serviços públicos prevalece até o começo dos anos setenta. A crise fiscal do setor público, a necessidade de aumentar a eficiência interna frente à globalização, o descontentamento da população e a exigência de melhores prestações sociais impulsionaram uma transformação na forma de exercício das atribuições estatais e dos sistemas de provisão de serviços públicos (SARAVIA,1997). O processo de privatização do setor de energia elétrico brasileiro insere-se num quadro maior de mudanças que caracterizam Brasil durante os anos oitenta24. A política de privatização 24 “A “onda longa” das privatizações, como já foi denominada, se associa ao que talvez, por analogia física, possamos melhor chamar de um pacote de ondas que interferiram entre si. Houve um processo econômico emoldurado por uma série de fatos políticos: No aspecto econômico: § A crise econômica incluindo os choques do petróleo ocorridos na década de 70; § As transformações tecnológicas com seus efeitos globais, acentuados na década de 80. No aspecto político: § O governo conservador inglês de Thatcher em 1979; § O governo republicano norte-americano de Reagan em 1980; § As dificuldades políticas da social democracia européia a partir dos anos 80; § O desmoronamento dos regimes comunistas do Leste Europeu balizado pela queda do muro de Berlim em 1989. Em resumo, a crise econômica e as transformações tecnológicas associaram-se a mudanças em uma dinâmica globalizante, em conflito com algumas formas de intervenção estatal (ROSA & SENRA, 1995:23-4)”. 63 surge como parte importante do processo de reformulação e recuperação da capacidade de investimento e gerenciamento do Estado e, por indução, do próprio setor privado25. Reconhecendo a falência do Estado, o desequilíbrio e a deterioração dos serviços públicos, além da dificuldades de assegurá-los, institui-se o Programa Nacional de Desestatização (PND), baseado no argumento de que cabe ao Estado concentrar-se nas funções de regulação e fiscalização e afastar-se de atividades empresarias. Uma maior participação do setor privado é considerada necessária para obter financiamentos e aumentar a eficiência dos investimentos26. Visando ampliar o escopo do PND, de modo a abranger não só a venda de empresas, mas também a transferência do controle de concessionários ao setor privado, aprova-se a legislação que regulamenta o art. 175 da Constituição Federal, estabelecendo: “Incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através da licitação, a prestação dos serviços públicos”. “Por concessão deve ser entendido o ato através da qual o Poder Público concede a uma pessoa física ou jurídica, o direito de explorar, em seu nome e por conta própria, mediante certos encargos e obrigações, determinada atividade econômica, de interesse ou utilidade pública, durante um certo período do tempo” (WALD, et.al. ,1996:50) A Lei de Concessões N.° 8.987 de 1995 - nascida do projeto do Senador FH Cardoso - define as figuras de concessão de serviço público; concessão de serviço público precedida da execução da obra pública; e, permissão do serviço público, sendo aplicada principalmente aos setores de energia elétrica e de transportes, representando um importante avanço em matéria de regulação. O regime jurídico da permissão é semelhante ao da concessão, exceto nos seguintes aspectos: a permissão é outorgada por prazo indeterminado, por meio de assinatura 25 Sobre uma analise de fatores estruturais e conjunturais que impulsionaram o processo de privatização ver Pinheiro & Gambiagi (1992) e Saravia (1995). 26 Apesar de que na opinião de Rosa & Senra (1995) a teoria econômica em favor de um Estado mínimo liberal, caracteriza-se de uma fragilidade empírica, reina a confusão sobre o falso dilema entre a estatização por princípio e a privatização por princípio. 64 de contrato ou termo de adesão; pode ser revogada pelo poder concedente a qualquer momento; a permissão não tem, como obrigatoriedade, a licitação na modalidade concorrência; a pessoa física pode ser apenas permissionária (BRASIL,1995). A lei é considerada uma inovação, por determinar que o poder concedente seja sempre pessoa jurídica de direito público - União, Estados, Distrito Federal e Municípios - e que qualquer consórcio ou pessoa jurídica possa ser concessionário, inclusive empresas estatais. Todas as concessões passam a ter prazo determinado, não há subsídios governamentais, impondo-se aos concessionários os riscos empresariais, e o usuário participa oficialmente na fiscalização da prestação dos serviços. Juntamente com a figura de concessão, a Lei Geral de Concessões prevê a criação das autarquias reguladoras, com o objetivo de criar condições favoráveis para o processo de concessão dos serviços públicos e proteger o consumidor desses serviços. A função das agências reguladoras é fiscalizar e regular o funcionamento de determinados setores da economia ou serviços públicos concedidos pelo Estado27. No entanto, como Saravia (1997) destaca, o serviço público, seja ele prestado diretamente pelo Estado ou não, deve observar os princípios de igualdade: ser acessível, indiscriminadamente, a todos; continuidade: estar à disposição do quem precisa dentro das condições preestabelecidas; e adaptação: o progresso técnico deve se incorporar ao serviço e este último deve ser prestado com eficácia. 27 Segundo Wald, et.al. (1996), a concessão se insere na política de privatização, ensejando uma simbiose entre os interesses públicos e privados. As várias teorias que tentam explicar a figura jurídica da concessão se dividem em suas opiniões. A corrente unilateralista, que vê a concessão como um ato unilateral do poder concedente, defende a tese de que a concessão não pode ser um contrato, pois o serviço público está fora do comércio e constitui exteriorização do poder soberano. Outra linha doutrinária vê na concessão a reunião dos elementos constitutivos de um autêntico contrato, no qual são definidos direitos e deveres do poder concedente e do concessionário. A Constituição Federal, no parágrafo único do art. 175, inciso I, se refere à concessão como um contrato especial a ser regulado pela lei. 65 4.2. Implicações para o setor de energia elétrica O setor de energia elétrica também entrou numa fase de profunda reestruturação28. Rosa & Senra (1995:20) destacam os principais argumentos utilizados em defesa da participação privada no setor: § “introduzir alguma competitividade e melhorar a eficiência do setor, principalmente para reduzir custos das obras contratadas com as empreiteiras; § a deficiência da gestão das empresas estatais no quadro político atual do Brasil, pressionadas por todos os lados, com ingerências dos políticos dos governos e uma legislação que as impede de atuar eficientemente; § a falta de recursos do Estado para investir no setor elétrico, necessitando-se financiálo” Paralelamente, considera-se que as mudanças tecnológicas ocorridas em muitos setores abrem mais espaço para a participação da iniciativa privada na provisão desses serviços, eliminando antigos monopólios naturais 29. Segundo o Banco Mundial (1997), a geração de eletricidade, mas não a transmissão e distribuição, como conseqüência do desenvolvimento tecnológico, está sendo encarada como um campo para a concorrência. No entanto, no site da Comissão de Serviços Públicos de Energia do Estado de São Paulo (CSPE)30, ressalta-se que o desenvolvimento tecnológico permite, atualmente, que os sistemas de transmissão e distribuição sejam acessíveis a qualquer produtor de energia. Desta forma, as redes elétricas passam a ser como “estradas” onde o acesso é facultado a qualquer produtor ou concessionária. 28 Na opinião de Leite (1999), várias tentativas de modernização da estrutura dos serviços de eletricidade ocorreram desde que se constatou a necessidade de uma modernização mais profunda do setor. O movimento começou dentro do próprio setor, sem ser influenciado externamente, através do REVISE (1987), programa que não se viabilizou principalmente devido à disputas entre os representantes dos Estados com sistemas mais fortes e os da Eletrobrás. Em seguida, foram realizados estudos ligados a aspectos de abertura de mercado e áreas de concessão, aperfeiçoamento da estrutura tradicional, partindo do trabalho de consultores nacionais que na prática não tiveram andamento. 29 A origem dos quais encontra-se nos custos decrescentes (Saravia, 1997). 30 Ver: CSPE. Respostas para as perguntas mais freqüentes. http://www.cspe.sp.gov.br/Pergunt2.htm, 11.05.1999. 66 Segundo Leite (1999), a idéia dominante era a de uma completa privatização. O caminho a ser seguido contou com três principais componentes: projetos de lei parciais e específicos elaborados no âmbito do próprio poder executivo federal e enviados ao Congresso Nacional; definição das empresas e participações da Eletrobrás que seriam privatizadas; formalização do projeto RESEB (Restruturação do Setor de Energia Elétrica Brasileiro) no âmbito da Secretaria de Energia, com o objetivo de propor uma reestruturação completa do setor elétrico. Os primeiros passos em relação à reforma começam com a Lei N.º 8. 631 de março de 1993 (ver Fig. 1), que trata do Regime Econômico dos Concessionários de Eletricidade e que eliminou a equalização geográfica das tarifas e o retorno de 10% sobre os ativos. A lei teve uma tendência de descentralização do processo decisório, até mesmo para fixar as tarifas. A nova fórmula para estabelecer as tarifas foi baseada na estrutura de custos, e refletindo as necessidades do fluxo de caixa, em vez de uma meta arbitrária de retorno sobre os ativos. A lei, que possibilitou a formulação de uma nova política tarifária, criou condições favoráveis para o saneamento econômico-financeiro das empresas de energia elétrica e para um novo quadro para o setor. O esforço para estabelecer tarifas reais para o setor não foi imediatamente posto em prática, apesar de que o programa de privatização já tivesse-se iniciado durante o Governo Itamar Franco. As novas circunstâncias políticas levaram à ruptura do encaminhamento do processo31. Lei 8631/93: • Atualização da tarifa • Tarifas por empresa • Assunção de US$ 26 bilhões em dívidas pelo Tesouro Setor melhora mas: • Inadimplências ressurgem Investimentos estagnados Figura 1: Lei 8631/93 Fonte: Ministério de Minas e Energia (www.mme.gov.br), 14.11.1999 67 Durante o governo Fernando Henrique Cardoso, o processo de privatização fortaleceu-se ainda mais. Em razão da insuficiência dos investimentos em períodos anteriores, o governo se viu, em 1995, diante de elevados riscos de déficit de energia e de capacidade de geração, bem como de crescentes restrições na transmissão. A incapacidade do Estado de prover os recursos necessários à expansão se manifesta, e é comprovada, pela emergência de um novo ciclo de inadimplências entre as concessionárias. O quadro era agravado, ainda, pela inexistência de uma proposta concreta de reformulação do setor e pelas continuadas e expressivas taxas de crescimento da demanda, em torno de 6% ao ano, impulsionadas pelos efeitos do Plano Real, que elevou o poder aquisitivo da população de menor renda (www.mme.gov.br ). Muitos argumentaram 32 que as características únicas do sistema não permitiriam a privatização, pois o cerne do sistema elétrico não poderia ser desmantelado ou descentralizado. O risco de desestruturação do sistema interligado, que é operacionalmente eficiente, seria muito alto. A passagem do monopólio às mãos do setor privado produziria outros custos monopolísticos, sem gerar benefícios da competição, tendo como exemplo o caso argentino, em que depois das privatizações, aumentaram-se acentuadamente as tarifas de energia elétrica, apesar do discurso contrário do governo33. Considerava-se que as empresas privatizadas dificilmente investiriam nas obras de expansão de energia que dão retorno a longo prazo. Entretanto, os defensores de privatização apoiavam um processo rápido que visava aumentar imediatamente os investimentos e melhorar a gerência. Isso levou ao começo dos primeiros 31 Ver Leite (1999), Ferreira (1999) e Rosa & Senra (1995). Ver Ferreira (1999) e Rosa & Senra (1995). 33 De fato, aqui no Brasil, as tarifas dos clientes da Light - uma das primeiras empresas a ser privatizada aumentaram 3,01% em 08/11/1998, com a aprovação do ANEEL. Desde que a empresa foi privatizada, em 1996, foram autorizados quatro aumentos de tarifas e, apesar de os reajustes serem anuais, a Light aumentou, em 1997, seus preços em 4% em maio e em 5,8% em agosto, repassando o reajuste do custo de energia fornecida por Furnas e Itaipu. Outros casos de “apagões” e de ameaças de faltas de luz são registradas constantemente nas páginas dos jornais (COSTA & PECI, 1999). 32 68 processos de privatização, sem consolidar-se o adequado marco regulatório, necessário para acompanhar o processo antes e depois da privatização. Segundo o próprio governo (www.mme.gov.br ) quatro principais linhas de ação foram tomadas: F a criação de um regulador independente e autônomo (ANEEL) e a emissão de regulamentos iniciais, essenciais para a privatização da distribuição e para a viabilização de projetos e contratos voltados para a expansão da geração. F Providências para garantir a expansão do sistema e da oferta envolvendo, entre outros, a retornada de obra paralisadas, cancelamento de concessões de projetos não iniciados, a licitação de hidrelétricas, a autorização de termelétricas e interconexões com países vizinhos. Tais atividades mereceram prioridade para evitar um racionamento e, também, para garantir o equilíbrio da oferta e da demanda, com o objetivo de que a liberação do mercado não acontecesse sob pressão da demanda, afastando um impacto sobre os preços, com a visão de proteger o consumidor e o País de um choque tarifário. F A privatização da distribuição, que foi iniciada, de imediato, em função das seguintes razões: - era factível, ainda sem se dispor do dito momento do Modelo de Mercado, porquanto neste segmento o contrato de concessão podia conter todas as regras necessárias para definir o escopo normativo do serviço concedido; - era natural que o Governo Federal, na condição de principal gerador através do grupo ELETROBRAS, abrisse mão das duas únicas distribuidoras importantes sob seu controle, a ESCELSA e a LIGHT. Esta opção, foi seguida por praticamente 80% dos governos estaduais, que optaram por privatizar suas concessionárias elétricas; 69 - atendimento ao imperativo macroeconômico de ajuste e reforma do Estado, abatendo da dívida pública os resultados da venda destes ativos; - estabelecimento de um impulso às mudanças que, há muito, se faziam necessárias; - e, principalmente, a privatização da distribuição eliminava a exigência dos potenciais investidores, interessados nos projetos de expansão e na privatização da geração, por garantias do Governo Federal pelo pagamento dos contratos de suprimento, face ao risco de inadimplências das concessionárias, enquanto sob administração dos governos estaduais. F detalhamento do modelo de mercado, desenvolvido por meio da interação de um grupo de consultores, liderados pelo COOPERS & LYBRAND, com as equipes técnicas do setor elétrico brasileiro. Modelo Estatal Esgotado + Poucos Projetos e Atrasos nas Obras Conjunto de Medidas Adotadas para: 1. Regulamentação/ANEEL 2. Retomada das Obras 3. Saneamento e Privatização 4. Organização do Novo Mercado Figura 2. Principais linhas de ação Fonte: Ministério de Minas e Energia (www.mme.gov.br) A Lei de Concessões, N.° 9.074 de julho de 1995, estabelece regras relacionadas diretamente com as concessões no setor de energia elétrica e institui a figura de Produtor Independente de Energia 34, criando assim, na opinião de Silva (1996), um maior espaço para a internacionalização da oferta de energia, ou a multinacionalização dos empreendimentos. Em seguida, o Decreto n.º 2.003 regulamentou o Produtor Independente de Energia e o 70 autoprodutor de energia elétrica. Na opinião de Rosa & Senra (1995), os geradores independentes não têm a responsabilidade de concessionários de serviço público, e, para explorar recursos hídricos – responsabilidade da União – exige-se concessão. A mesma crítica destaca-se no decorrer da pesquisa de campo. Na opinião de Saravia (ASEP/RJ, entrevista, 2000), a possibilidade de tornar as concessionárias em produtores independentes não é adequada, posto que, assim, não terão as mesmas atribuições. O debate quanto à constitucionalidade de desapropriação de um bem público para uso privado continua. Outras leis que serão analisadas no decorrer do trabalho são de suma importância para o setor de energia elétrica. Paralelamente com os trabalhos no campo legislativo, foi elaborado o relatório do consórcio de consultores Coopers & Lybrand, que foi apenas divulgado no final de 1998. Os resultados do processo de privatização do setor de energia elétrica são apresentados na Tabela 3: 34 Antigamente, os geradores privados de energia poderiam produzir apenas para o próprio consumo. A lei estabelece que o Produtor Independente de Energia (PIE) pode vender energia para “livres consumidores” (FERREIRA, 1999:146). 71 Tabela 3. PRIVATIZAÇÕES DO SETOR ENERGÉTICO BRASILEIRO EMPRESAS % Ações Ordinárias VALOR DA VENDA em R$ milhões ÁGIO 11.07.95 97,27 357,92 11,80% 21.05.96 20.11.96 50,44 70,27 2.697,94 605,33 0% 30,30% 31.07.97 05.09.97 21.10.97 21.10.97 05.11.97 19.11.97 27.11.97 03.12.97 12.12.97 71,14 94,18 90,75 90,91 57,6 84,21 96,27 91,8 80,2 1.730,89 779,76 1.635,00 1.510,00 3.014,91 625,56 391,5 577,1 676,4 77,40% 43,50% 82,60% 93,60% 70,10% 83,80% 21,80% 96,10% 73,60% 02.04.98 15.04.98 09.07.98 16.07.98 15.09.98 17.09.98 84,59 74,88 54,98 90 50,01 74,88 987 2.026,73 450,26 1.479,00 945,7 1.014,52 27,20% 0% 0% 98,90% 0% 0% 38,70 38,66 1.260,22 938,06 90,2% 30% DATA Energia Elétrica 1995 ESCELSA 1996 LIGHT CERJ 1997 COELBA CACHOEIRA DOURADA RGE AES Sul CPFL ENERSUL CEMAT ENERGIPE COSERN 1998 COELCE ELETROPAULO Metropolitana CELPA ELEKTRO GERASUL EBE- Bandeirante 1999 CESP-PARANAPANEMA CESP-TIETÊ 28.07.99 27.10.99 Sub Total – Energia Elétrica 23.703,80 Gás 1997 CEG Rio Gás S/A 14.07.97 14.07.97 56,4 75 464,2 157,9 85,70% 49,40% 14.04.99 67,2 1.652,00 119,35% 1999 COMGÁS Sub Total – Gás TOTAL 2.274,1 25.977,90 Última atualização 4/11/99 Por SEM – DNPE – CGIE Correio eletrônico: [email protected] 72 4.3. Coopers & Lybrand: proposta do modelo de reestruturação do setor 35 Em dezembro de 1994, o Forum/COPPE elaborou um estudo entregue ao vice-presidente da República Marco Maciel, baseado na idéia de que “após anos de discussão e desentendimento setorial, seria possível e necessário a adoção de uma série medidas de consenso que trariam um novo quadro institucional de maior estabilidade para os agentes setoriais e os consumidores” (Rosa & Senra, 1995:54). “Considerando a magnitude e importância do setor, a diversidade de agentes, as características do sistema elétrico brasileiro (interligação energética e elétrica), o longo prazo de maturação de seus projetos e o rebatimento das grandes questões políticas nacionais sobre os agentes setoriais como alguns dos aspectos que tornariam extremamente complexa qualquer tentativa de ruptura brusca do modelo vigente. A saída para o impasse seria negociar mudanças que fortalecessem os consensos e que permitissem progressivamente avanços para a formação de um novo quadro institucional” (1995:55). As mudanças deveriam ser baseadas nos seguintes princípios: F abertura de setor para novos agentes privados, principalmente na expansão do sistema; F fortalecimento do poder concedente; F preservação e valorização do patrimônio público, sem significar a manutenção do statusquo das empresas; F introdução de mudanças estruturais que visem o saneamento das empresas públicas; F implementação de uma maior participação dos consumidores nas decisões e na fiscalização do setor e dos serviços; F implementação de mudanças em forma progressiva, firme e coerente, possibilitando a adequada adaptação dos agentes a uma re-regulamentação, incluindo a participação privada e uma participação pública mais eficiente. Em 1996, a Eletrobrás contratou a empresa de consultoria Coopers & Lybrand (por meio de licitação), para elaborar um novo modelo para o setor de energia elétrica no Brasil. No 35 Essa parte de trabalho baseia-se nos trabalhos de Ferreira (1999) e Leite (1999). 73 entanto, muitas das privatizações em nível estadual já vinham acontecendo paralelamente aos trabalhos da consultoria. Duas subsidiárias de distribuição da Eletrobrás foram privatizadas: A Escelsa (junho de 1995) e a Light (maio de 1996). O Relatório Final do Projeto RESEB conteve muitas proposições de grande importância para o setor, respondendo, assim, a uma reforma radical. O objetivo principal do relatório foi o estabelecimento da possibilidade de competição com a maior amplitude dentro do setor. Entre os aspectos fundamentais podem ser destacados: F A dissociação vertical das empresas integradas, nos seus segmentos de geração, transmissão e distribuição; F A limitação horizontal da capacidade de geração dos produtores e da extensão do mercado de distribuidores; F A introdução do conceito de produtor independente; F Livre acesso à rede de transmissão; F Reconhecimento de uma categoria de distribuidores não cativos de qualquer distribuidora; F A constituição de um órgão regulador; F A proposta de desdobramento das funções até então exercidas pela Eletrobrás, em várias entidades: holding de propriedades federais remanescentes, agente financiador setorial, coordenador de operações do mercado interligado e planejamento indicativo de longo prazo; F Proposta de criação do Operador Nacional de Sistemas (ONS), substituindo o Grupo Coordenador para Operação Interligada (GCOI), que funcionava no âmbito da Eletrobrás; e a instituição do Mercado de Atacado de Energia (MAE), ambos a serem organizados como entidades privadas geridas pelos próprios concessionários. Tendo orientado as ações do MME, quanto à reestruturação, desde os primeiros meses de 1997, o projeto viabiliza o início da privatização dos ativos de geração, a ser iniciada pela 74 GERASUL. Ao mesmo tempo, se transfere à ANEEL, ao Mercado Atacadista de Energia Elétrica e ao Operador Nacional do Sistema Elétrico, o marco regulatório consistente tantas vezes reclamado, além de um conjunto expressivo de procedimentos elaborados pelos próprios técnicos do setor que se incorporaram ao processo de reestruturação (www.mme.gov.br ). As figuras 3 e 4 resumem o processo RESEB e a das etapas da reestruturação e desestatização do setor elétrico: Ago/96 CONTRATAÇÃO CONTRATAÇÃO DOS DOS CONSULTORES CONSULTORES Out/96 PRIMEIRO PRIMEIRO RELATÓRIO RELATÓRIO Processo Reseb DIRETRIZES DIRETRIZES BÁSICAS BÁSICASPARA PARA AAAA NEEL NEEL TÉCNICOS TÉCNICOSDO DO SETOR SETOR Jun/97 RELATÓRIO RELATÓRIO COMPLETO COMPLETO TRANSFERÊNCIA TRANSFERÊNCIA AA ANEEL ANEEL Jul/98 COMPLEMENTAÇÃO COMPLEMENTAÇÃO LEI LEIINSITUINDO INSITUINDO MAE MAEEEONS ONS Ago/98 •• ASSINATURA ASSINATURAACORDO ACORDOMAE MAE •• CONSTITUIÇÃO CONSTITUIÇÃODO DOONS ONS Figura 3: Processo RESEB Fonte: Ministério de Minas e Energia (www.mme.gov.br) , 13.11.1999 75 Figura 4. Fluxograma das etapas da reestruturação e desestatização do setor elétrico Fonte: Ministério de Minas e Energia: www.mme.gov.br 76 A seguir será analisado o novo modelo do setor de energia elétrico brasileiro, a partir da abordagem de redes. 77 CAPITULO 5 5. CRIAÇÃO DO AMBIENTE COMPETITIVO E DO MARCO REGULATÓRIO: ANÁLISE DAS MUDANÇAS A PARTIR DA PERSPECTIVA DE REDES Neste capítulo, analisar-se-á a nova configuração do setor de energia elétrico brasileiro com base na abordagem de redes. Fundamentada na análise dos questionários distribuídos no decorrer da pesquisa de campo, identificar-se-ão as principais organizações integradoras do setor. A seguir, estas últimas serão analisadas a partir de ponto de vista dos novos agentes do setor. Destacar-se-á a política nacional de energia elétrica e o papel do governo federal e estadual no processo; a Agência Nacional de Energia Elétrica e as relações que esta vem estabelecendo com empresas, usuários e outros agentes do setor; O Mercado Atacadista de Energia; o Operador Nacional do Sistema; assim como o papel que Eletrobrás e BNDES desempenham. 5.1 O setor de energia elétrica a partir da abordagem de redes A teoria das redes constitui um importante referencial teórico a fim de entender melhor a nova configuração dos setores de serviços públicos (vistos como redes) depois das privatizações. O objetivo principal deste trabalho é a analise da nova configuração do setor de energia elétrico brasileiro a partir desta perspectiva. Como já visto nos capítulos anteriores, é possível destacar uma mudança significativa decorrente dos processos de privatização e restruturação: passa-se do controle gerencial e operacional, centralizado nas mãos do Estado, para uma nova configuração mais parecida com uma rede, sem centros de controle, na qual outras organizações como ANEEL, ONS, MAE etc. são designadas a desempenhar um papel integrador. Mas, desempenham elas na realidade esse papel? Qual é a percepção dos agentes setoriais? 78 A seguir, apresentam-se os principais conceitos da abordagem das redes que serão utilizados na análise do setor: Tabela 4: Conceitos utilizados na análise da rede do setor elétrico Conceito Definição Formalização Regras, políticas e normas que direcionam o papel, o comportamento e as atividades das organizações de uma rede; Complexidade Número de diferentes elementos que devem ser integrados para que a estrutural rede atue como uma unidade; Densidade Número de relações que existem numa rede, comparadas com o número total de relações possíveis, se todos os membros da rede se relacionassem com cada um dos outros; Centralidade de O ponto em que um ator – membro da rede – tem controle sobre o intermediação acesso de outros atores em várias regiões da rede. Uma das características principais da rede de energia elétrica é o alto grau de formalização. Ela é construída com base numa série de leis, normas e regras que regulamentam as relações estabelecidas entre os vários atores sociais que a compõem e direcionam seus papéis, comportamentos e atividades. No entanto, observou-se no decorrer da pesquisa de campo que, apesar das medidas tomadas, o setor de energia elétrica encontra-se ainda numa fase de transição e que as regras que a regem não estão bem estabelecidas. Na opinião de um dos entrevistados, o próprio setor privado exige uma certa segurança para investir e as regras ainda não claras do jogo estão inviabilizando esses investimentos. Uma crítica geral é que o processo de privatização e 79 restruturação começou antes da criação da própria agência reguladora, sem estabelecer um aparelho adequado de regulação e fiscalização (ASEP/RJ, entrevista: janeiro, 2000). O sistema de energia elétrico pode ser considerado como altamente complexo. As concessionárias e outras empresas de energia elétrica, as organizações como ANEEL, ONS, MAE e os próprios usuários dos serviços de energia elétrica fazem parte desta rede e desempenham diversos papéis. A Tabela 5, resume os papéis recomendados pela consultora Coopers & Lybrand e que, de certa forma, foram incorporadas pelas organizações integradoras da rede analisadas no decorrer do trabalho: Tabela 5. Novos Papéis Setoriais Recomendados Papel de Holding Papel de Papel do Papel de Federal financiamento de operador planejamento setor independente indicativo do sistema Objetivo: Objetivo: . participações federais: . empréstimos de longo prazo para - Itaipu empresas públicas e – Nuclen privadas de G/T/D; – Cepel; . Propriedade federal da . canal para fundos transmissão (pendente nacionais de serviço de Itaipu, RGR e de decisão política sobre privatização);e produto das taxas de concessão; . Outras iniciativas . obter fundos governamentais internacionais de BID/BIRD e mercados de capitais; . canal para recursos do governo em projetos hidrelétricos de interesse público; . participação em projetos em troca do financiamento de estudos de viabilidade; e . garantias políticas e outras Objetivo: . controle central independente dos sistemas interligados; . livre acesso à malha básica; . planejamento operacional, inclusive programação e despacho; e . medição e cálculos de liquidação em nome do MAE Papel de prestação de serviços ao setor Objetivo: Objetivo: . coordenação de . planejamento indicativo integrado relações técnicas internacionais em de geração e questões não transmissão; operacionais e não . manutenção de inventários hídricos, comerciais; . apoio ao “Conselho estudos de preNacional de P&D” viabilidade, etc.; . prestação de serviços . coleta de dados contratados pela hidrológicos em nome da ANEEL: ANEEL em bases temporárias; . apoio ao poder concedente/ANEEL . prestação de serviços de treinamento; na licitação de . operação do PROCEL; concessões; . padrões técnicos, . Coordenação do biblioteca, arquivos, etc COMASE; . manutenção de um . Centro de memória eletricidade no Brasil; e banco de dados . Trabalhar em conjunto central . prestar assistência a com fornecedores de equipamentos para PIEs e automelhorar a qualidade de produtores produtos e processos. . suportar na implementação de projetos . Formatar o desenvolvimento de pequenas usinas Fonte: www.mme.gov.br/sem/fig7.htm 80 Na opinião de Cavalcanti (CAVALCANTI, 1998:81), “A situação descrita como uma rede interorganizacional expressa um padrão total de interação em um grupo de organizações que se dispõem a atuar conjuntamente, como um sistema, para alcançar objetivos próprios e coletivos, ou resolver problemas específicos de um clientela alvo ou setor. As organizações atuantes como rede estariam orientadas não apenas para seus objetivos próprios, mas também para objetivos coletivos. Manteriam relações sistemáticas, e até mesmo padronizadas, com suas congêneres. No que concerne à atuação sobre a região a ser desenvolvida, ou o recurso a ser gerenciado, demostrariam um grande conhecimento uma das outras sobre funções e responsabilidades de cada uma, no que se refere ao problema, e manifestariam um elevado grau de consenso em relação à política em vigor. No contexto ideal de uma rede, as organizações se caracterizam ainda por evitar disputas em torno de domínios definidos de maneira ambígua. Em geral, avaliam positivamente as relações de interdependência existentes” (Grifo nosso). Um dos objetivos da pesquisa foi observar quais destas organizações eram consideradas chave para o funcionamento do setor de energia elétrica, a partir da percepção dos próprios agentes. O modelo teórico construído a partir da pesquisa bibliográfica, foi comparado com as conclusões decorrentes da pesquisa de campo. Para isso, um das perguntas principais do questionário distribuído concentrava-se na identificação destas organizações. Os resultados são apresentados na Tabela 6: Tabela 6. Conhecimento das organizações chaves do setor de energia elétrica Organizações chave do setor de energia elétrica brasileiro Respostas Agência Nacional de Energia Elétrica 100% Operador Nacional do Sistema de Energia Elétrica 92% Mercado Atacadista de Energia 92% Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social 92% Secretaria de Energia/ Ministério de Minas e Energia 84,6% Eletrobrás 84,6% As respostas foram dadas por representantes formais das organizações incluídas na amostra, na maioria dos casos, responsáveis pelas relações institucionais da organização e a par das 81 mudanças e transformações que vêm percorrendo o setor de energia elétrica brasileiro. Entretanto, outros funcionários destas organizações compartilhariam as mesmas opiniões? Pensando nisso, uma amostra de cinco questionários foi distribuída numa das organizações, a Furnas. De fato, evidenciou-se uma grande diversidade nas respostas. Os próprios funcionários não compartilhavam as mesmas opiniões e, também, as respostas consolidadas na seguinte tabela diferem dos dados apresentados acima. Tabela 7. Resultados da amostra Furnas Organizações chave do setor de energia elétrica brasileiro Respostas Operador Nacional do Sistema de Energia Elétrica 100% Agência Nacional de Energia Elétrica 80% Mercado Atacadista de Energia 80% Secretaria de Energia/ Ministério de Minas e Energia 60% Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social 20% Eletrobras 0 A seguir serão analisadas essas organizações, seu papel, seus objetivos e as relações que estão estabelecendo com outros agentes, a partir dos resultados da pesquisa bibliográfica e de campo. 5.2 Política Nacional de Energia Elétrica O Ministério de Minas e Energia é o principal responsável pela política nacional na área de energia elétrica. O Conselho Nacional de Energia Elétrica é um órgão de assessoramento do Presidente da República e tem por finalidade: Formulação de políticas e diretrizes de energia destinadas a: 82 I – promover o aproveitamento racional dos recursos energéticos do País, em conformidade com o disposto na legislação aplicável e com os seguintes princípios: a. preservação do interesse nacional; b. promoção do desenvolvimento sustentado, ampliação do mercado de trabalho e valorização dos recursos energéticos; c. proteção dos interesses do consumidor quanto a preço, qualidade e oferta dos produtos; d. proteção do meio ambiente e promoção da conservação de energia; e. garantia do fornecimento de derivados de petróleo em todo o território nacional, nos termos do § 2º do artigo 177 da Constituição Federal; f. incremento da utilização do gás natural; g. identificação das soluções mais adequadas para o suprimento de energia elétrica nas diversas regiões do País; h. utilização de fontes renováveis de energia, mediante o aproveitamento dos insumos disponíveis e das tecnologias aplicáveis; i. promoção da livre concorrência; j. atração de investimento na produção de energia; k. ampliação da competitividade do País no mercado internacional; II – assegurar, em função das características regionais, o suprimento de insumos energéticos ás áreas mais remotas ou de difícil acesso do País, submetendo as medidas específicas ao Congresso Nacional, quando implicarem criação de subsídios, observado o disposto no parágrafo único do artigo 73 da Lei n.º 9.478, de 1997; III – rever periodicamente as matrizes energéticas aplicadas às diversas regiões do País, considerando as fontes convencionais e alternativas e as tecnologias disponíveis; 83 IV – estabelecer diretrizes para programas específicos, como os de uso do gás natural, do álcool, de outras biomassas, do carvão e da energia termonuclear; V – estabelecer diretrizes para a importação e exportação, de maneira a atender às necessidades de consumo interno de petróleo e seu derivados, gás natural e condensado, e assegurar o adequado funcionamento do Sistema Nacional de Estoques de Combustíveis e o cumprimento do Plano Anual de Estoques Estratégicos de Combustíveis, de que trata o artigo 4º da Lei nº 8.176, de 8 de fevereiro de 1991 (http://www.mme.gov.br/sem/cnpe/todocnpe.htm). Figura 4. Composição do Conselho Nacional de Política Energética Fonte: Ministério de Minas e Energia http://www.mme.gov.br/sem/cnpe/todocnpe.htm). Segundo ressaltou o representante da secretaria de Energia do MME, Izaltino Camozzato, durante seu pronunciamento no Seminário Internacional “Mercado futuro de energia” (1999), para que o novo mercado de energia elétrica funcione é necessário uma regulamentação clara e de conhecimento de todos, assim como uma grande confiança na entidade que o 84 administra e nos agentes. No entanto, no Brasil, está se tentando colocar em prática uma legislação clara, mas “não estamos ainda com todos os componentes de regulação, estamos numa fase de transição, que está se colocando em prática de forma organizada” (Grifo nosso). No decorrer da pesquisa de campo, em apenas 84,6% dos questionários, considera-se o Ministério de Minas e Energia – Secretaria de Energia, como uma organização chave para o adequado funcionamento do setor. Dos que responderam, 53.85% destacam a função do MME na área de política energética e 38.46%, na área de planejamento36. Em apenas um dos questionários (7.7%), apontam-se o apoio à pesquisa e desenvolvimento tecnológico, a eficiência energética e a coordenação das questões internacionais como funções importantes do Ministério na área energética. Num dos questionários critica-se o Ministério como inoperante e desconhecedor da complexidade do setor de energia elétrico brasileiro. Paralelamente, numa das entrevistas (ASEP/RJ, 2000), critica-se a política energética nacional, baseada em medidas provisórias que ficam vigorando por vários anos. Como já destacado, o começo do processo de privatização, antes do fortalecimento do marco regulatório, é considerado um grave erro. Parte dos entrevistados na Subsecretaria de Energia, da Indústria Naval e do Petróleo do Estado do Rio de Janeiro também encara, com olhar crítico, a política nacional de energia elétrica. Considerando que existem diferentes posições políticas entre o Governo Federal e o do Estado do Rio de Janeiro, os entrevistados destacam o fato de não ser contra a privatização em si, mas contra o modo como esta última vem sendo aplicada. Segundo os entrevistados: 36 Ver no decorrer do trabalho 5.6 “Planejamento e Financiamento no novo modelo” 85 “O plano de privatização das empresas públicas aponta para um modelo onde se desverticaliza a empresa na parte de geração e transmissão. A posição da Secretária de Energia, portanto a posição oficial do Governo do Rio de Janeiro, é que esta posição não é adequada para as empresas públicas. Uma das empresas da geração, suponhamos G1, estaria muito bem sustentada, a outra nem tanto, e a transmissão não se sustentaria. Hoje o que justifica os investimentos na área de transmissão é apenas a transferência dos recursos da uma área para a outra, então quando você pulveriza a transmissão isso torna difícil a situação. Ainda existe a questão do controle das águas, que é uma questão importante, que não está ainda resolvido. Nos EUA, o exemplo do capitalismo, essas empresas não foram privatizadas, considerando que temos a ver realmente com uma questão estratégica, que passa pela soberania”. Os representantes das empresas de energia elétrica entrevistados no decorrer da pesquisa de campo divergem na avaliação da política do Ministério de Minas e Energia com relação aos processos de reestruturação e privatização. Representantes das empresas públicas em fase de privatização (Furnas, 1999) criticam a política governamental de privatização e desverticalização; representantes das empresas privadas (Light, 1999) criticam a falta das regras claras para o setor e a continuidade da fase de transição; os da Eletrobrás (1999) são a favor de um papel mais forte da empresa como braço operacional do MME; representantes da cooperativa de energia (2000) criticam a falta de política governamental na área de eletrificação rural por vários anos, mas têm expectativas com relação ao novo programa do Governo, “Luz no Campo”, direcionado a esta área. Para a pesquisa ser mais aprofundada, é importante incluir na análise a avaliação dos processos de reestruturação e privatização, a partir da percepção dos usuários dos serviços públicos de energia, baseada nos resultados, divulgados em 09 de Março de 2000, da pesquisa realizada pela AGERGS37 (Agência Reguladora dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul) sobre a qualidade dos serviços públicos, com ênfase para a energia. O levantamento foi feito com usuários de energia elétrica do Estado do Rio Grande do Sul, sorteados dentre as relações de consumidores das concessionárias, no período de outubro de 37 Uma análise mais profunda das agências reguladoras estaduais encontra-se no: 5.3.1.3 Relação Agência reguladora – outros atores sociais. 86 99 a janeiro deste ano. Foram enviados 32 mil questionários, tendo retornado pouco mais de 3.100. A seguir, a autora apresenta alguns destes resultados que contemplam as opiniões, já tabuladas, de 3.027 entrevistados. Perguntados sobre os serviços de energia elétrica no 1999 em relação ao ano 1998, 56,9% dos usuários respondem que não houve modificações, enquanto um número considerável (31,1%) acham que estão melhorando: Tabela 8. Questão 10 - Os serviços de energia elétrica neste ano (99) em relação ao ano passado (98): Respostas Freqüência % 31,1% Estão melhorando 907 Estão iguais 1657 56,9% 257 8,8% Estão piorando 92 3,2% Não sabe 2913 100,0% Total Não respostas = 114 50,2% dos usuários classificam a qualidade dos serviços prestados pela empresa de energia como boa, enquanto 31,0% a classificam como regular: Tabela 9. Questão 11 - De modo geral, classifica a qualidade dos serviços prestados pela Empresa como: Respostas Ótima Boa Regular Ruim Péssima Não sabe Total Freqüência 371 1488 918 128 48 11 2964 % 12,5% 50,2% 31,0% 4,3% 1,6% 0,4% 100,0% Não respostas = 63 Os usuários destes serviços dão uma nota média de 7,39 para a qualidade geral da prestação dos serviços de energia, classificando-os numa posição melhor do que os outros serviços públicos como transporte interurbano, aeroportos, esgoto, telefonia e estradas pedagiadas 87 (Tab10). O grau de satisfação com a qualidade de prestação dos serviços segue a mesma classificação (Tab.11): Tabela 10. Questão 18 - Dê nota de 0 a 10 para a qualidade geral com que são prestados os seguintes serviços públicos (ordenados de maneira decrescente conforme a média) Desvio Intervalo de confiança 95% Serviços públicos Nº Média Padrão Limite Limite Inferior Superior 2845 7,56 2,21 7,47 7,64 Água encanada Energia elétrica 2864 7,39 1,82 7,32 7,45 2629 6,96 2,16 6,87 7,04 Transporte interurbano (ônibus) 2461 6,93 2,33 6,84 7,03 Aeroportos 2695 6,68 2,96 6,57 6,79 Esgoto sanitário 2791 6,57 2,57 6,47 6,66 Telefonia Convencional 2594 6,52 2,54 6,42 6,62 Telefonia Celular 2668 6,41 2,60 6,31 6,51 Estradas pedagiadas Tabela 11. Questão 19 - Qual seu grau de satisfação de modo geral com a qualidade dos seguintes serviços públicos (ordenados de forma decrescente de acordo com a satisfação) Serviços públicos Muito Satisfeito Regular Insatisfeito Muito Satisfeitos satisfeito Insatisfeito * 16,4 52,9 20,5 6,0 4,2 69,2 Água encanada Energia elétrica 9,5 53,1 28,0 7,4 2,0 62,6 6,8 53,9 29,5 6,6 3,2 60,7 Aeroportos 14,9 43,6 22,5 9,0 9,9 58,5 Esgoto sanitário 45,3 27,4 10,5 6,1 56,1 Telefonia Convencional 10,7 13,2 38,9 31,5 11,8 4,6 52,1 Transporte urbano (ônibus) 6,1 37,8 40,0 11,4 4,7 43,9 Estações rodoviárias 9,1 34,1 29,4 19,4 8,0 43,2 Estradas pedagiadas * Percentual de clientes satisfeitos ou muito satisfeitos. No entanto, 47,4% dos usuários consideram os serviços de energia elétrica caros ou muito caros, aparecendo na classificação em quinto lugar: 88 Tabela 12. Questão 20 - Qual a sua avaliação quanto à tarifa paga pelos seguintes serviços públicos, considerando os benefícios ( dos serviços considerados mais caros até os mais baratos) Serviços públicos Muito Barata Regular Cara Muito Cara* barata cara 1,2 2,0 15,1 42,5 39,2 81,7 Telefonia celular 1,6 4,4 21,5 38,1 34,4 72,6 Estradas pedagiadas 0,8 3,0 40,4 42,5 13,3 55,8 Taxas de aeroportos 4,6 43,6 36,6 13,9 50,5 Transporte interurbano (Ônibus) 1,3 Energia elétrica 1,6 6,2 44,8 33,5 13,9 47,4 1,6 7,5 47,3 32,7 11,0 43,7 Telefonia Convencional 2,4 14,3 42,0 28,3 13,1 41,4 Água encanada 1,2 7,5 57,0 28,2 6,1 34,3 Taxas de estações rodoviárias 3,6 17,0 49,0 19,8 10,6 30,4 Esgoto sanitário * Percentual de clientes que acham o serviço caro ou muito caro. Em relação à qualidade dos serviços antes e depois da privatização, 44,0% classificam os serviços de energia como iguais; enquanto 26,8% como melhores (Tab.13). Enquanto que em relação às tarifas, 58,8% acham que ficaram acima da inflação (Tab.14): Tabela 13. Questão 28 - Depois da distribuição de energia ter sido privatizada, o serviço: Respostas Freqüência % 709 26,8% Melhorou Ficou igual 1164 44,0% 283 10,7% Piorou 18,5% Na minha cidade não foi privatizado 490 2646 100,0% Total Não respostas = 381 Tabela 14. Questão 31 - Depois que o serviço de distribuição de energia foi privatizado, o preço da energia elétrica: Respostas Freqüência % Aumentou acima da inflação 1690 58,9% 8,9% Aumentou abaixo da inflação 254 197 6,9% Não aumentou 726 25,3% Não sabe 2867 100,0% Total Não respostas = 160 Fonte: Agência Estadual dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul. http://www.agergs.rs.gov.br/. 08.04.2000. 89 5.2.1 O papel dos Governos Estaduais Um importante dado destacado no decorrer da pesquisa de campo relaciona-se com o papel dos governos estaduais na nova reestruturação do setor. Para averiguar esse dado, foram realizadas entrevistas com representantes da Subsecretaria de Energia, Indústria Naval e Petróleo do Estado do Rio de Janeiro (inclusive com o atual Subsecretário de Estado, Marco Antônio Feijó Abreu) . Na opinião dos entrevistados, a política de energia elétrica sempre foi uma tarefa do governo federal. No Estado do Rio de Janeiro, o Governo Garotinho é o primeiro que criou uma secretaria que cobre a área de energia. De fato, essas secretarias não existem ainda em vários Estados. De forma a articular os interesses dos Estados nessa área, foi instituído um fórum de secretários de energia que serve para discutir as carências de cada região e as demandas de cada área. Nessas reuniões é possível observar que os representantes das áreas são os chefes de gabinete, secretários de infra-estrutura, etc. No entanto, destaca-se que pela primeira vez está se estabelecendo uma relação com o governo federal, negociando, tentando priorizar investimentos no Estado do Rio de Janeiro. “É um relacionamento que exige negociação, mas é também um relacionamento em que nós, do Governo do Estado, estamos nos fortalecendo como um ator forte, que faz parte deste novo cenário do setor de energia elétrica. O Governo tem quem o representa (a Secretaria). Antigamente esse papel era desempenhado pela concessionária. A partir do momento em que se privatizou nós perdemos até os arquivos. Hoje, se você procura está tudo da Cerj ou da Light”. Então, o estado perdeu esse controle” (Secretaria de Energia, Entrevista, 1999). Ressalta-se que, com a venda das empresas estatais, o estado perdeu a voz: “Como é que o Estado vai atuar se não tem assento em nenhum fórum? No CNPE/MME tem um representante para todos os Estados, o que torna impossível uma verdadeira representação”(Secretaria de Energia, Entrevista, 1999). A crítica continua: 90 “Nós não fomos contra ao modelo de privatização, mas no caso da modelagem da privatização da CERJ nós temos algumas críticas. Não foram estabelecidas certas salvaguardas. Quase 80% da parte rural do Rio de Janeiro está na área da concessão da CERJ. Nós ainda temos regiões onde o núcleo de pobreza é bastante grande e a necessidade de desenvolvimento alavancado pela energia elétrica seria de uma importância muito grande. Entretanto, hoje o Estado do Rio de Janeiro ou os municípios destas áreas não tem a possibilidade de intervir neste processo. A intervenção feita é paralela, na base de negociações, tentando fomentar estudos ou investimentos através de muitos recursos, mas não temos ainda instrumentos para interferir no processo de decisão. A empresa privada está na busca de lucro e, quando uma empresa deste tipo decide investir numa área, ela impulsiona-se pelo lucro. Nem sempre essas áreas tão carentes são atrativas. A carência é tão grande em outras áreas, que a parte de eletrificação rural fica sempre no segundo plano. Considerando que o Governo do atual governador Garotinho tem uma conotação social muito grande, isso não é bom. O pensamento neoliberal não é a nossa linha de atuação (Secretaria de Energia, Entrevista, 1999). Durante o I Seminário Internacional: ”Energia no Brasil: Desafios e Oportunidades” (Abril de 2000), o Subsecretário Marco Antônio Feijó Abreu ressaltou esses pontos críticos. Segundo ele, sem assento institucional e sem representação nos órgãos de planejamento setorial, o papel do Estado vai ser sempre na base da articulação e negociação. Considerando que o setor de energia elétrica caracteriza-se por problemas específicos, os quais não podem ser resolvidos apenas a partir de uma perspectiva federal, o fortalecimento do papel do Estado é essencial. O representante da Secretaria de Energia de Minas Gerais também enfatizou o fortalecimento do papel do Estado como formulador de políticas, mobilizador e articulador. 5.3. Agencia Nacional de Energia Elétrica A mudança do papel do Estado no setor de energia, deixando de ser executor para se tornar regulador e fiscalizador, tornou aguda a necessidade de criação do órgão regulador, suficientemente aparelhado e capacitado para normatizar e fiscalizar os serviços de energia elétrica, compatibilizando interesses dos diversos agentes e dos usuários em novo ambiente institucional. A lei n.º 9.247, de 26 de dezembro de 1996, criou a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), autarquia sob regime especial instituída pelo governo federal como órgão 91 regulador do setor de energia elétrica. Ultimamente, foi editada a Resolução 233, de 14.7.98, da própria ANEEL, que aprova os procedimentos decisórios da agência e os respectivos recursos. A administração da diretoria será objetivo de contrato de gestão, na tentativa de aplicar outras medidas previstas no âmbito da Reforma do Aparelho do Estado em busca de flexibilização. A autonomia financeira se assegura através de recursos oriundos da taxa de fiscalização dos serviços de energia elétrica. Prevê-se, também, a possibilidade de descentralização das atividades aos órgãos estaduais mediante convênios de cooperação com os Estados e o Distrito Federal. De fato, a ANEEL começa a compartilhar as responsabilidades com outras agências reguladoras em nível estadual, por meio de acordos formais. O primeiro acordo foi assinado com a Comissão de Serviços Públicos de Energia, (CSPE), seguido por outros em diversos estados como Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, etc. A ANEEL, foi criada com base híbrida, combinando os modelos de órgãos reguladores dos EUA e dos países da Comunidade Européia (FISCHER, TEIXEIRA & HEBER, 1998) e tem por finalidade regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica, zelando pela qualidade do serviço prestado, pelo trato isonômico dispensado aos usuários e pelo controle da razoabilidade das tarifas cobradas aos consumidores, preservando, sempre, a viabilidade econômica e financeira dos agentes e da indústria. Compete especialmente à ela implementar as políticas e diretrizes do governo federal para a exploração da energia elétrica e o aproveitamento dos potenciais hidráulicos, expedindo os atos regulamentares necessários. “Proporcionar condições favoráveis para que o mercado de energia elétrica se desenvolva com equilíbrio entre os agentes e em benefício da sociedade” é a missão da ANEEL (www.aneel.gov.br). Enquanto a geração e comercialização para consumidores “livres” (com poder e permissão para negociar, o que se pretende reduzir até 2003 ao nível de 0,3 MW, equivalente ao de uma padaria) se dará em um clima de competição e maior risco; a transmissão, a distribuição, e a comercialização do consumidor cativo serão 92 atividades economicamente regulamentadas, com preços fixados pela agência, visando assim a proteção do cidadão – consumidor sem poder de negociação. A agência caracteriza-se por ter ampla autonomia e independência, a fim de manter-se imune às pressões, influências e interesses, seja da parte das concessionárias privadas, seja da parte do governo. Conforme destaca GOMES (1998), “A questão da independência do regulador também é polêmica. Uma vez que as agências são criadas pelos próprios governos, como e quanto elas poderiam ser totalmente independentes deles? De fato nenhuma agência reguladora pode ser totalmente independente. O que se pretende é que as agências tenham certa autonomia para gerir suas reguladas com base em conhecimento técnico. As ações e decisões das agências reguladoras devem ser respaldadas por justificativas técnicas e informadas aos governos. A eles cabe definir estratégias e orientações macro-econômicas, sob as quais os reguladores nortearão suas ações. Pretende-se, com isso, eliminar a ingerência política nos órgãos reguladores de acordo com interesses escusos de curto prazo. É importante que se crie um ambiente seguro e estável, onde os investidores possam sentir confiança em depositar seu capital” Nesse novo modelo, espera-se uma maior participação dos usuários, envolvidos diretamente com a oferta do serviço. A autonomia e a capacidade de interlocução com os diferentes agentes (concessionários, governo e usuários) torna a agência uns dos novos centros integradores (empresas focais) do sistema. Como destacou um dos diretores da ANEEL (Eduardo Henrique Ellery), durante o Congresso de Energia (1999), a ANEEL só tem sentido de existir se trabalhar em parceria com Estados agências reguladoras em nível federal e estadual, universidades, etc. Isso decorre da própria missão da agência e do esforço para trabalhar em benefício da sociedade. 93 Figura 5. Organização a nível macro da ANEEL Fonte: Ministério de Minas e Energia www.mme.gov.br/sem/fig6.htm 94 5.3.1 A agência vista sob a perspectiva de redes A teoria das redes constitui um importante referencial teórico a fim de entender melhor a posição das agências reguladoras, que passam a fazer parte da nova configuração dos setores de serviços públicos (vistos como redes) depois das privatizações. U U MME Empresa U Empresa ANEEL ARE ARE Empresa U Empresa U U Legenda: Relações ANEEL – Concessionárias Relações ANEEL – Governo Relações ANEEL – usuários dos serviços públicos Figura 6. ANEEL e a rede de relações Um dos diretores da ANEEL, Affonso Henrique dos Santos, reconhece que os agentes com os quais a agência lida, são diferentes. “Os agentes concessionários – que até influenciaram no contrato da concessão – diferem dos agentes consumidores. A ANEEL deve garantir o equilíbrio entre estes agentes com poderes desiguais”. (Congresso de Energia, 1999). 5.3.1.1 Relações ANEEL – Empresas atuantes no setor de energia elétrica. Todas as empresas que responderam ao questionário classificam a ANEEL como uma das organizações chave na nova configuração do setor de energia elétrica brasileiro, no entanto não existe consenso sobre as funções da agência. A maioria dos participantes destacam o papel da agência na área de regulamentação, assim como a atuação na área de fiscalização, 95 mas se reconhece apenas por 30,7% das empresas o papel da agência como Poder Concedente. Mais: um dos respondentes critica esse papel da agência, destacando que deveria haver um agente para atuar em nome do Poder Concedente que não fosse a Agência Reguladora. De fato, na maioria dos países – assim como outras agências constituídas em outras áreas de serviços públicos – o poder de concessão está nas mãos do governo. Um dos participantes da pesquisa classifica a agência como inoperante e lobista das empresas concessionárias. Apenas um dos respondentes não conhece as funções da agência. Tabela 15. Conhecimento das funções da ANEEL Funções da ANEEL Conhecimento (Respostas) Regulamentação 84,6% Fiscalização 46% Poder Concedente 30,7% Os participantes da pesquisa destacam a contribuição da agência na criação da base legal necessária para o funcionamento adequado do setor de energia elétrica no Brasil. No entanto, percebe-se um certo desconhecimento do princípio básico da agência – a equidistância das relações estabelecidas com o governo, as concessionárias e os usuários, incorporado na sua missão: “Proporcionar condições favoráveis para que o mercado de energia elétrica se desenvolva com equilíbrio entre os agentes e em benefício da sociedade”. Um dos respondentes ressalta a contribuição da agência na implementação da política de desenvolvimento determinada pelo MME. Os representantes da Federação das Cooperativas de Energia, Telefonia e Desenvolvimento Rural do RGS apontam a regulamentação do setor energético nacional em benefício do usuário. Algumas das principais contribuições da ANEEL para o setor de energia elétrica brasileiro, destacadas no decorrer da pesquisa se resumem a seguir: 96 Tabela 16. Conhecimento das contribuições da ANEEL Contribuições da ANEEL para o setor de energia elétrica brasileiro Preservação dos interesses dos consumidores Legislação necessária ao adequado funcionamento do setor Relação de forma isenta e equilibrada entre os agentes Operação em harmonia com a política de desenvolvimento determinada pelo Sem/MME Na opinião das pessoas entrevistadas na Eletrobras, hoje em dia não podemos ter nenhuma ação que não seja regulamentada. Por exemplo, para a Eletrobrás desempenhar o papel de comercializador deve ser autorizada da ANEEL. “Nós dependemos da ANEEL da mesma forma como qualquer outra empresa do setor de energia elétrica. Até para participar nos investimentos nós precisamos de ter regras claras de jogo. Sendo que não somos uma empresa privada, sem regras claras, até podemos quebrar” (Eletrobrás, Entrevista, 1999). Na empresa privada, a opinião sobre ANEEL difere. Apesar de destacar a importância deste órgão para o bom funcionamento do setor, critica-se o fato de ANEEL se concentrar muito na proteção do consumidor. Uma melhor definição do papel da ANEEL nessa área considera-se necessária, não o confundindo com a função do Procon. No entanto, a relação da concessionária com a ANEEL vem mudando com o passar do tempo. Nas palavras dos entrevistados “antigamente eles eram o poder concedente, mas hoje em dia nós somos mais igualitários. Existia uma postura diferente, os duques com os servos, eles eram os nobres e nós éramos os trabalhadores, você tinha de suplicar, ate inclusive se dizia “ o poder concedente e o poder suplicante”. Hoje em dia, eles sabem, que embora sejam independentes, dependem do governo, consumidores e concessionárias (LIGHT, entrevista, 2000). 97 Como já se destacou, uma das características de uma rede é a densidade (Rowley:1997) 38. Quando a densidade aumenta, a comunicação ao longo da rede torna-se mais eficiente. Paralelamente, a conseqüência de uma rede densa é a difusão das normas, valores e informações entre os atores das redes. Teoricamente, as agências reguladoras – na função de centro regulador – deveriam estabelecer relações equivalentes com o governo, as concessionárias e os usuários dos serviços públicos. No entanto, as relações estabelecidas entre o governo, os usuários e as concessionárias são fracas ou não existem. Nessas redes menos densas, as trocas de informações entre os stakeholders39 são limitadas. Como resultado, a elaboração das expectativas dos stakeholders e a habilidade a monitorar as ações da organização focalizada (por exemplo, as ações das concessionárias) são limitadas. Nessas redes, há a probabilidade de existirem influências conflituosas entre os atores, muitas vezes sem que existam normas compartilhadas de comportamento40. A ANEEL apresenta um considerável grau de centralidade de intermediação. Na medida em que as concessionárias, os usuários e o governo podem estabelecer contato uns com os outros através das agências reguladoras, pode-se concluir que, teoricamente, as agências caracterizam-se por este tipo de centralidade, possuindo, assim, uma maior habilidade para controlar o fluxo de informações ao longo das redes e facilitar os contatos e trocas entre os outros atores (governo, concessionárias e usuários). 38 Ver Tabela 4. Segundo Freeman, citado em Rowley (1997), stakeholder de uma organização é qualquer grupo ou indivíduo que pode afetar ou é afetado pela realização dos objetivos da organização. 40 Uma análise parecida oferecem Nascimento, Ribeiro Filho & Ishihara (1999), quando destacam a minimização do risco de captura, ou seja a “captura” da agência regulatora pelos segmentos que deveriam ser regulados. “Independentemente de problemas éticos, verificou-se elevada propensão dos “regulados capturarem os reguladores” em virtude da insuficiência de recursos e informação adequada por parte da agência comparativamente às empresas privadas e pela identidade de interesses e cultura profissionais entre os técnicos especializados da agência e o segmento isolado”(1999, 339) . 39 98 Com o aumento da centralidade, as agências podem incrementar a sua resistência às pressões dos vários stakeholders. Mas não se deve deixar de considerar que a rede que está se tentando construir depois das privatizações ainda está em fase inicial. Existe a possibilidade de que alguns stakeholders –por exemplo, as concessionárias-, com maior capacidade de articulação, estabeleçam relações diretas mais fortes com os atores da rede, ganhando assim mais centralidade do que as próprias agências reguladoras. De fato, Oliveira & Tolmasquim (1999:351) alertam para a atuação dos chamados “global players”, “que atuam formando redes de negócios diversificados em vários territórios, cada um atendido por um grupo (cujos laços estratégicos são crescentes com o tempo)- combinando nichos de consumo e de visão geopolítica, de modo a formar suas “redes”, independentemente das fronteiras nacionais”. Esses grupos possuem um grande poder, vasta experiência e competências específicas, destacando a capacidade de cooperação em cada mercado em que atuam e a capacidade de pressão e barganha nas questões de interesse comum. Algumas notícias ilustrativas: “A americana AES arrematou hoje, em leilão realizado na Bovespa, as ações preferenciais da Eletropaulo Metropolitana, que pertenciam ao BNDES Participações – administradora da carteira de investimentos do BNDES – e, segundo a assessoria de imprensa da Eletropaulo, passou a ser a maior controladora das ações da empresa. (...) A AES já possuía participação na Eletropaulo Metropolitana, por meio do consórcio Lightgás, que é formado pela Electricité de France e pela Houston Industries Energy. O Lightgás tinha participação de 34,2% no capital total da companhia. A AES adquiriu em outubro a Cesp Tietê e também tem participação na Cemig, Light e CEEE (Companhia Estadual de Energia Elétrica, do Rio Grande do Sul) Em 25 de janeiro de 2000, a Companhia Força e Luz Cataguazes-Leopoldina (CFLCL), controladora das empresas Energisa S/A, Companhia de Eletricidade de Nova Friburgo, Empresa Energética de Sergipe Sía (Energipe), Companhia Energética da Borborema, e a Alliant Energy Holdings do Brasil Ltda. (Alliant), subsidiária da Alliant Energy Resources, com sede em Cedar Rapids, Lowa, Estados Unidos, firmaram acordo que contém as seguintes transações: a CFLCL vendeu à Alliant 5.107.630 ações da sua controlada Energisa, equivalentes a 24,2% do capital total e votante dessa empresa, pelo valor de R$ 101.376.332,89” (EFEI Energy News , 28 de Janeiro de 2000). É possível observar que as empresas de energia elétrica têm uma maior capacidade de articulação do que o consumidor. Já existem várias associações que unem empresas de vários segmentos – APINE, representando os produtores independentes; ABGRAGE, representando 99 as grandes geradoras; ABRADEE, representando as distribuidoras; ABCE, representando as concessionárias de energia elétrica – e que claramente, fazem com que cresça o seu poder de negociação e articulação. Algumas notícias que mostram esse fato: As comercializadoras de energia disputam negócios entre si, mas se unem em nível institucional para defender interesses comuns. Na semana passada, criaram a Associação Brasileira de Comercializadores de Energia Elétrica (Abracell). A assembléia que constituiu a entidade reuniu, em Brasília, quatro, das oito empresas do setor hoje existentes no País. ‘Nossa proposta fundamental é viabilizar a comercialização. Para isso, vamos atuar junto ao Ministério de Minas e Energia (MME), aos órgãos reguladores e ao Mercado Atacadista de Energia (MAE) (EFEI Energy News, 28 de Janeiro de 2000) Distribuidoras criticam proposta da ANEEL: As distribuidoras de energia elétrica aproveitaram a realização de uma audiência pública, realizada na Sexta-feira passada, para reivindicar à Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) que desista de oficializar a resolução que as obriga a comprovar a compra de eletricidade, já a partir de julho próximo. (EFEI Energy News , 02 de Março de 2000) Como Borenstein (1999:51) destaca, é importante considerar que uma regulação “restritiva” pode impedir a gestão competitiva das empresas, não garantindo a sua sobrevivência no mercado, assim como a regulação “deficiente” pode levar a manobras predatórias às empresas concorrentes e a prejuízos dos interesses sociais. O estabelecimento e manutenção de um equilíbrio dinâmico entre estes dois elementos são necessários. 5.3.1.2 Relações agência reguladora – usuários dos serviços públicos Dois anos depois de criadas pelo Governo para fiscalizar e regulamentar os serviços de telefonia e energia elétrica no País, a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) ainda é uma desconhecida para 88% da população brasileira e a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), para 65%. Uma pesquisa nacional inédita feita com duas mil pessoas entre 25 de setembro e 3 de outubro pelo Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe) mostrou que os consumidores estão pouco familiarizados com estas autarquias. A pesquisa comprovou que 46% da população definem erradamente estas agências. 100 O Ipespe fez perguntas com o objetivo de avaliar a ANEEL. Dos entrevistados que ouviram falar da agência, 81% não sabem corretamente o significado da sigla ANEEL. Além disso, 87% não sabem que a sede da autarquia fica em Brasília e 98% desconhecem quem são os diretores da agência reguladora. O grau de desconhecimento é tanto que 2% dos entrevistados afirmaram que a ANEEL é dirigida por uma empresa alemã, o mesmo percentual dos que identificou corretamente o diretor-geral, José Mario Abdo, e o dobro dos que acreditam que a agência seja comandada pelo presidente da República. Após conhecer os dados da pesquisa, o diretor-geral da ANEEL, José Mário Abdo, decidiu realizar uma campanha institucional que começa a ser divulgada amanhã, em Brasília (EFEI Energy News, 04 de novembro de 1999). Por outro lado, é importante levar em consideração que existe um conjunto de usuários dos serviços públicos com maior capacidade de articulação e pressão. Estes são as indústrias da região, cujo funcionamento é fortemente ligado à oferta e à qualidade de vários serviços públicos concedidos como energia, telecomunicações, etc. Segundo Brasil Energia Online, N° 217, dezembro de 1998, as indústrias filiadas da FIESP, que receberam bem a privatização do setor, reconhecem o esforço que está sendo feito por parte da ANEEL, mas pressionam por mudanças mais rápidas e pedem uma maior garantia do governo para que as novas concessionárias façam os investimentos necessários. O novo modelo diferencia as figuras do consumidor cativo - consumidor ao qual só é permitido comprar energia do concessionário, autorizado ou permissionário, a cuja rede esteja conectado, e a do consumidor livre - consumidor que está legalmente autorizado a escolher seu fornecedor de energia elétrica. Apesar do ideal do modelo ser o de tornar todos os usuários de energia elétrica consumidores livres, na prática, existe a probabilidade de favorecer os grandes usuários. 101 Nas entrevistas aplicadas no decorrer da pesquisa de campo, destaca-se a importância do papel do consumidor. Na opinião dos entrevistados o consumidor é cada vez mais exigente. Às vezes, eles se dirigem diretamente a ANEEL para fazer as queixas, no entanto, a ANEEL repassa a queixa para a empresa. O nível econômico do consumidor é um importante determinante: “(...) quando têm interrupções na Zona Sul, aparecem imediatamente as queixas, quando tem interrupções na parte pobre da cidade quantas queixas aparecem? Nenhuma, zero.” (LIGHT, Entrevista, 2000). 5.3.1.3 Relação Agência reguladora – outros atores sociais Como alerta Milward & Briton (1999), um dos riscos que se corre quando se analisa a realidade a partir de abordagem de redes é o de criar uma rede tão complexa quanto a própria realidade que ela representa. No entanto, no decorrer da pesquisa de campo, foi observado o fortalecimento de outros atores sociais que estão influenciando a nova configuração do setor e as atividades da ANEEL: agências reguladoras estaduais, governos estaduais, assim como outras entidades de defesa da concorrência. Agências Reguladoras Estaduais: As agências reguladoras estaduais estão instituídas em vários estados como Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Ceará, Bahia, etc. e são, na maioria dos casos, multisetoriais. Como já se destacou no decorrer do trabalho, a ANEEL está estabelecendo acordos com estas agências, descentralizando as suas atividades. A pesquisa realizada pela Agência Reguladora dos Serviços Públicos Delegados (AGEGS) 41 destaca a importância que esta agência vem estabelecendo em âmbito estadual. Assim, 21,4% dos usuários pensam que a fiscalização dos serviços de energia no estado do ES é atribuição da Agergs, enquanto 25,2% da ANEEL e Agergs, e somente 4,3% da ANEEL. Um dado 102 interessante é que 26,4% dos usuários pensam que a fiscalização é atribuição da Secretaria de Energia, Minas e Comunicações, atribuindo, assim, importância ao papel do Estado (Tab.17). O nível de conhecimento da agência ainda deixa a desejar. Apenas 52,9% dos usuários conhecem a agência (Tab.18). No entanto, esse número é significativo se comparado com o nível de conhecimento da ANEEL que é apenas 30,8% (Tab.19). Tabela 17. Questão 26 - Fiscalização dos serviços de energia no RS é atribuição da: Respostas Freqüência % 598 21,4% AGERGS 119 4,3% ANEEL 703 25,2% ANEEL e AGERGS 64 2,3% Governo Federal 20,4% Secretaria de Energia, Minas e Comunicações 568 736 26,4% Não sabe 2788 100,0% Total Não respostas = 239 Tabela 18. Questão 30a - Já ouviu falar na AGERGS? Respostas Freqüência % 1499 52,9% Sim 1334 47,1% Não 2833 100,0% Total Não respostas = 194 Tabela 19. Questão 30b - Já ouviu falar na ANEEL? Respostas Freqüência % 835 30,8% Sim 1879 69,2% Não 2714 100,0% Total Não respostas = 313 Fonte: Agência Estadual dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul. http://www.agergs.rs.gov.br/. 08.04.2000. No decorrer da pesquisa do campo, foram realizadas entrevistas na Agência Reguladora dos Serviços Concedidos do Estado do Rio de Janeiro, ASEP/RJ42. A agência foi reestruturada durante o governo Garotinho e está atuando em vários setores. A missão da agência é: 41 Sobre a pesquisa ver: 5.3.1.2 Relações agência reguladora – usuários dos serviços públicos Outras agências reguladoras estaduais multisetoriais e unisetoriais estão sendo constituídas e vêm estabelecendo convênios com a ANEEL: Agência Reguladora de Serviços Públicos Delegados do Estado do Ceará; Agência Estadual de Regulação de Serviços Públicos de Energia, Transportes e Comunicações da Bahia; 42 103 “Exercer o Poder Regulador, acompanhando, controlando e fiscalizando as concessões e permissões de serviços públicos nas quais o Estado do Rio de Janeiro figure, por disposição legal ou pactual, como Poder Concedente ou Permitente, nos termos das normas legais regulamentares e concensuais pertinentes” (www.asep.rj.gov.br). A estrutura básica da ASEP-RJ compreende: I – O Conselho-Diretor II – A Secretaria Executiva III – As Câmaras Técnicas: III.1 – Câmara de Energia III.2 – Câmara de Transportes III.3 – Câmara de Saneamento III.4 – Câmara de Ouvidoria IV – A Assessoria Jurídica V – A Auditoria Interna VI – A Assessoria Técnica e Econômica VII – Os Demais Órgãos Funcionais Na área de energia elétrica, ela estará atuando em parceria com ANEEL e tem por objetivo a fiscalização das empresas de energia elétrica quanto à qualidade da prestação de serviços. Recentemente foi estabelecido um protocolo, ajustando a atuação de cada uma destas agências. Os entrevistados destacam casos de cooperação estabelecidas entre a ANEEL, a Secretaria do Estado e ASEP e classificam o relacionamento como bastante frutífero, sem conflitos, baseado em parceria 43. Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul – AGERGS; Agência Estadual de Regulação e Controle de Serviços Públicos - ARCON; Comissão de Serviços Públicos de Energia do Estado de São Paulo - CSPE Por exemplo, a ANEEL delegou à Agência Estadual de Regulação e Controle de Serviços Públicos - ARCON a execução de atividades complementares de sua competência no Estado do Pará, das quais destacam-se: fiscalização de serviços e instalações de energia elétrica inclusive autoprodutores; apuração e solução de queixas dos consumidores e dos agentes setoriais; realização de campanhas educativas e prestação de apoio aos processos de regulação e outorga de concessões e permissões (www.arcon.pa.gov.br) 43 “Recentemente, um grupo composto por representantes da ANEEL, Asep, e da Secretaria do Estado fez uma visita a algumas áreas do Estado, a algumas prefeituras para avaliar como está sendo prestado o serviço de energia elétrica no município. Nós da SE temos um contato permanente com as prefeituras porque a nossa visão é de desenvolvimento. Então o contato que nós temos em termos de analisar quais são as áreas que mais 104 Nesta fase de ajuste e transição do sistema de energia elétrica, os papéis ainda não estão totalmente definidas. A ASEP é formada por pessoas que vêm do governo do Estado, então, a visão que ela tem é do governo. O próprio Presidente da agência é nomeado pelo Governador e desempenha outras funções no Governo do Estado do Rio de Janeiro. Respondendo à indagação de como preservar, nestas condições, uma das principais características das agências – a autonomia – o Presidente responde apontando a dificuldade de colocar isso em prática. Segundo ele, nesta fase de construção e fortalecimento da agência o apoio do governo estadual e do governador é necessário. O próprio orçamento da agência é muito pequeno e ela precisa de auxílio estadual até para pagar alguns tipos de serviços necessários para seu fortalecimento, como consultorias de universidades e centros acadêmicos, etc44. Entretanto, o presidente acredita que é possível alcançar a equidistância de relações da agência com os consumidores, concessionárias e governo. Apesar de reconhecer que a figura menos representada é o consumidor, ele aponta medidas que vêm sendo tomadas para fortalecer seu papel. Paralelamente, a capacitação técnica das concessionárias é bem maior do que a agência reguladora. Reconhecendo a sua limitação de atuação, A ANEEL passará algumas atribuições para ASEP. Os entrevistados da ASEP/RJ criticam a ANEEL, como uma agência ainda não preparada suficientemente para enfrentar os problemas decorrentes da reestruturação do setor de energia elétrica brasileiro e para atuar com êxito na área de regulação. Destacou-se também, uma certa preocupação com relação à futura atuação da ANEEL. Criticando o fato de que não existe uma cultura regulatória no país e de que, na prática, as privatizações aconteceram antes precisam para investimentos. A parceria que fizemos com estas organizações buscava verificar as necessidades de intervenção, onde é que o Estado deve intervir para “apagar as manchas de pobreza” e as agências atuando mais na área de fiscalização da qualidade de serviços” (Secretaria de Energia, Entrevista, 1999). 44 Durante o I Seminário Internacional “Energia no Brasil: desafios e Oportunidades” (abril de 2000), o representante da Secretaria de Energia de Minas Gerais ressaltou que no entender do Secretário de energia, a agência reguladora de MG, apesar de ser uma autarquia, deveria ser vinculada à Secretaria do Estado. 105 da criação do marco regulatório para o setor, o entrevistado ressaltou que o relacionamento estabelecido com a agência vem apresentando certas dificuldades. Órgãos de Defesa da Concorrência: Segundo o Secretário do Acompanhamento Econômico, Claúdio Monteiro Considera (1999), os órgãos de defesa de concorrência, como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), a Secretaria de Acompanhamento Econômico (SAE) e a Secretaria da Defesa Econômica (SDE) devem estabelecer relações com as agências reguladoras. Essas agências, com exceção da ANATEL – setor de telecomunicações – prestam contas à Secretaria de Acompanhamento Econômico. Ultimamente, a secretaria vem estabelecendo um processo de troca de informações e experiências para a análise dos processos de concentração. Existe uma comissão mista, que agrega a ANEEL com a SAE e SDE, visando alcançar uma sinergia na área da defesa da concorrência. No entanto, o Secretário critica a atuação da ANEEL e o atraso com que esta última apresenta os dados das revisões de tarefas energéticas. Considerando que a SAE é um órgão de execução da política macroeconômica do Ministério da Fazenda, é preciso alcançar uma harmonia entre as políticas macroeconômicas e as políticas na área de energia elétrica. Também está se estabelecendo uma maior colaboração com o CADE. Segundo a ótica do presidente da agência, uma agência de regulação, essencialmente técnica, formada por diretores essencialmente técnicos, envolvidos com o setor que representam, muitas vezes perde a ótica do global, do “pró-mercado”, tentando defender mais o setor e seus maiores representantes do que grupos com interesses difusos e sem capacidade organizacional. Sendo assim, o limite de horizonte para os critérios de regulação adotados – e executados – por esses órgãos privilegiará a ótica setorialista e tecnicista, item imprescindível em se tratando de um 106 “setor técnico”, mas incompleto em se tratando de um serviço público - que é o caso da energia elétrica, petróleo e comunicações. Para acompanhar o trabalho das agências, o CADE está especializando seus técnicos em assuntos ligados a agências reguladoras, utilizando parte de um financiamento no valor de US$ 1 milhão, fornecido pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID. Com mais um órgão regulador agindo conjuntamente, onde também entrariam a participação da SDE e SAE, os pesos políticos de agentes setoriais mais representativos se restringiriam, se garantiriam melhor os interesses dos consumidores menores – com mais dificuldades de se organizar, tornando mais democráticas as regulamentações destes setores (Dinheiro Vivo agência de Informações S.A., 08.12.97) O próprio representante da ANEEL, Luciano Pacheco Santos, destacou durante o Seminário Internacional “Mercado futuro de energia” (1999) que a ANEEL deve fortalecer as relações com outros órgãos de concorrência como CADE, SDE e SAE. Ele dá como exemplo a determinação do percentual do mercado de uma empresa geradora, para que não tenha poder muito grande de mercado. 5.3.2 Re-configuração da rede de relações da ANEEL Com base na análise feita, podemos re-configurar a rede das relações da ANEEL. Outros atores sociais como governos estaduais, agências reguladoras estaduais (ARE) e órgãos de defesa da concorrência devem ser incluídos para que a rede torne-se completa. Paralelamente, por meio das cores tenta-se visualizar a posição que os atores sociais desempenham nesta rede de relações. É importante apontar que enquanto existem atores sociais com mais poder de pressão e negociação – como as concessionárias e os consumidores livres - , existe o risco de desequilibrar a rede e transformar o papel da ANEEL. 107 MME Órgãos de Defesa da Concorrência Governos Estaduais CC CL ARE Empresa Empresa ARE CL ANEEL ARE CC Empresa Empresa CC CL Legenda: CC: CL: ARE: MAE, ONS, Eletrobrás BNDES _______ Consumidores Cativos Consumidores Livres Agências Reguladores Estaduais Relações ANEEL – Concessionárias Relações ANEEL – Governo Relações ANEEL – usuários dos serviços públicos Relações ANEEL – órgãos de defesa da concorrência/ARE _____ Atores sociais fortes Atores sociais fracos Organizações Integradoras da rede Figura 7. Reconfiguração da rede de relações da ANEEL 5.4. Mercado Atacadista de Energia Elétrica – MAE A Lei N.° 9.648 de maio de 1998, institui o Mercado Atacadista de Energia Elétrica e o Operador Independente e Comercializador. A criação de um ambiente competitivo por meio de um mercado atacadista de energia enfrenta um número considerável de desafios. Uma das questões a serem consideradas tem a ver com a verticalização do setor, sendo que a acomodação ao novo ambiente demanda a desverticalização “como premissa, como conceito técnico associado à possibilidade de ganhar eficiência no processo” (SILVA, 1996:25). Paralelamente, a segmentação do setor em 108 geração, transmissão e distribuição precisa ser acompanhada de maiores cuidados, posto que nem todos esses segmentos são igualmente atrativos45. Os especialistas da Eletrobrás se opõem ao desmantelamento do sistema centralizado de despacho criado para otimizar tecnicamente a exploração dos recursos hídricos, argumentando que isso levará ao aumento de custos e risco de falta de energia 46. Como resolver a questão do preço de energia fornecida pelas usinas existentes (mais barato, por representarem projetos eficientes e com custos-capitais amortizados) com relação ao preço que será oferecido pelos novos projetos, certamente mais caro? A consultoria apresentou a idéia dos Contratos Iniciais. No caso, as empresas mais eficientes assinam contratos com preços menores, enquanto as menos eficientes com preços maiores e os compradores de energia devem comprar o mesmo mix de contratos de alto preço e baixo preço, a fim de manter o custo médio similar ao anterior dos contratos (FERREIRA, 1999). A Lei N.º 9.648 autorizava, também, a reestruturação de três subsidiárias da Eletrobrás que permaneceram. A privatização da sua primeira geradora, Gerasul, foi realizada com sucesso em Setembro de 1998, começando assim, efetivamente, a privatização da Eletrobrás. A Furnas será dividida em três empresas, duas geradoras e uma transmissora, a Eletronorte será dividida em seis empresas (cinco geradoras e uma transmissora), enquanto a Chefs em duas geradoras e uma transmissora. A privatização dessas geradoras deve continuar durante os anos 1999 e 2000. Mais especificamente quanto ao MAE, o artigo 12, da Lei N.°9.648, estabelece que: “ As transações de compra e venda de energia elétrica nos sistemas interligados serão realizadas 45 A geração e a distribuição são consideradas atrativas, enquanto a transmissão não atrai investimentos. O ministério de Minas e Energia quer acelerar a desverticalização física das estatais brasileiras para vendê-las fatiadas. Enquanto isso, as estatais estrangeiras, que compraram as antigas estatais distribuidoras já estão acelerando seus planos de verticalização. Exemplos: EDF, estatal francesa e uma das donas da Light quer comprar as usinas da Furnas, a CPFL, distribuidora paulista, quer comprar outras empresas de ramo em São 46 109 no âmbito do Mercado Atacadista de Energia – MAE, instituído mediante Acordo de Mercado a ser firmado entre os interessados”. O MAE é, portanto, o ambiente onde se processam a compra e venda de energia elétrica através de contratos bilaterais e de contratos de curto prazo, regulado por contrato multilateral chamado Acordo de Mercado. A criação do MAE substituirá o antigo sistema centralizado de determinação das tarefas e os termos para os contratos existentes do setor de energia. Contratos bilaterais de compra e venda de energia elétrica serão estabelecidas no âmbito do MAE, entre empresas de geração e distribuição, visando reduzir a volatilidade dos preços. O MAE estabelecerá também um preço imediato (spot price) para a energia que refletirá os custos incrementais de curto prazo, que serão estabelecidos em acordo com o órgão regulador. Gradualmente, prevendo um período de 15 anos para a duração dos contratos, os contratos serão substituídos por compras no mercado aberto. Em 27 agosto de 1998, todos os participantes da MAE 47, incluindo as geradoras, as distribuidoras e os consumidores, ratificaram a constituição sob a qual a MAE funciona (o Paulo; a VBC já comprou e quer comprar outras empresas distribuidoras e entrar no ramo do petróleo (ILUMINA, 1998, 2) 47 O acordo de mercado determina quem deve participar Título III - Membros do MAE Cláusula 10 Devem participar do MAE: -titulares de concessão ou autorização para exploração de serviços de geração que possuam central geradora com capacidade instalada igual ou superior a 50 MW; -titulares de concessão, permissão ou autorização para exercício de atividades de comercialização de energia elétrica com mercado igual ou superior a 300 GWh/ano; -titulares de autorização para importação ou exportação de energia elétrica em montante igual ou superior a 50 MW; Podem participar do MAE: -demais titulares de concessão ou autorização para exploração de serviços de geração; -demais titulares de concessão, permissão ou autorização para exercício de atividades de comercialização de energia elétrica; -demais titulares de autorização para importação ou exportação de energia elétrica; -consumidores livres. § 1¹ Será facultativa a participação no MAE para os titulares de autorização para autoprodução com central geradora de capacidade instalada igual ou superior a 50 MW, desde que suas instalações de geração estejam 110 Acordo de Mercado). Paralelamente, foram assinados os Contratos Iniciais, marcando assim o começo de um novo mercado competitivo de energia. Em 15 de outubro de 1998, foi realizada a primeira Assembléia Geral, quando foram eleitos os conselheiros do COEX – Comitê Executivo do Mercado Atacadista de Energia. O COEX é o colegiado composto por representantes eleitos por membros do MAE, com a responsabilidade de administrar, acompanhar e fiscalizar a execução do Acordo do Mercado. A principal missão dessa gestão é a implantação do Mercado Atacadista de Energia. Isso significa: F estabelecimento de regras transparentes para o funcionamento do Mercado; F a implantação de um sistema computacional e logístico que permita a aplicação das regras, com as respectivas condições para as transferências financeiras resultantes das transações no Mercado; F estabelecimento de uma estrutura organizacional adequada para a administração da operação do Mercado. (www.maebrasil.com.br ) Num primeiro momento, as operações de compra e venda, semelhantes a uma bolsa de valores, serão feitas somente com o excedente de energia elétrica produzida (hoje em torno de 4 a 5% do total). Mas, a partir de 2006, depois de um regime gradual de liberação, todos os contratos de energia feitos no mercado brasileiro serão feitos no MAE. A implementação do mercado demandará recursos da ordem de R$ 40 milhões relativos à implementação dos sistemas de informação, instalações, etc. Mensalmente, o custeio do diretamente conectadas às suas instalações de consumo e não sejam despachadas centralizadamente pelo ONS, por não terem influência significativa no processo de otimização energética dos sistemas elétricos interligados. § 2¹ Qualquer agente do MAE poderá ser representado por outro agente, integrante da mesma categoria, se assim o desejar, através de formalização expressa ao MAE. Cláusula 11 A admissão de novo membro no MAE está condicionada ao cumprimento de requisitos técnicos, regulamentares e econômicos estabelecidos neste instrumento, inclusive a assinatura de termo de adesão a este Acordo (Destaco nosso). 111 ASMAE deverá ficar na casa dos R$8 milhões, com possibilidade de redução deste montante em ate 50%. (PALHANO, 1999) Figura 8. Estrutura da MAE Fonte: Mercado Atacadista de Energia (www.maebrasil.com.br), 13.11.1999. 5.4.1 Análise do MAE a partir da abordagem de redes Como já se destacou no decorrer do trabalho, em 92% dos questionários, o MAE considerase como uma das organizações chaves para o funcionamento do setor de energia elétrica brasileiro. Todos os respondentes destacam a função do MAE, com relação a comercialização da energia elétrica. Em alguns casos, classificam-no como a “bolsa de valores” para o setor de energia elétrica, considerando-o chave para o estabelecimento da competição. Apesar de justificar a sua existência e reconhecer a sua importância, os entrevistados apontam que ainda não existe uma idéia clara sobre o funcionamento dessa organização na prática (ASEP, Entrevista, 2000) (Secretaria de Energia, Entrevista 1999). Nas entrevistas na Eletrobras, destaca-se que o MAE, apesar de estar ainda em formação, vai ser o ponto nevrálgico do processo de reestruturação. No entanto, se considera que o estabelecimento do 112 Mercado-Spot é uma meta muito difícil a ser colocada em prática. Os entrevistados apontam o risco de as empresas fecharem por fora os negócios. Com relação à empresa (Eletrobrás), sua atuação na área de comercialização vai fazer com que se estabeleçam estreitos contatos com o MAE (Eletrobras, Entrevista, 1999). Eduardo Benini, presidente do MAE, destacou durante o Seminário Internacional “Mercado futuro de energia” (1999) que as reformas estão transformando as relações Governo- Sociedade-Agentes no setor. Existem inovações profundas do ponto de vista cultural que ainda não são assimiladas pela sociedade. O MAE representa um acordo de mercado, enquanto a noção do mercado ainda está frágil. O desafio atual não é desenvolver e implementar regras, mas fazer com que as instituições entendam quais são as suas funções dentro do processo. Para o fortalecimento do mercado, deverão ser desenvolvidos instrumentos como Bolsa de Valores e Mercantil, assim como estabelecer segurança e transparência na colocação e formação dos preços. 5.5. Operador Nacional do Sistema O decreto n.º2.655, de 02 de julho de 1998, regulamenta o MAE e especifica as regras de organização do Operador Nacional do Sistema Elétrico 48. Na prática, o Operador Nacional do Sistema Elétrico criou-se em 26 de agosto de 1998, como uma entidade privada, responsável pela coordenação e controle da operação das instalações de geração e transmissão de energia elétrica nos sistemas interligados brasileiros. O ONS é uma associação civil, cujos integrantes são as empresas de geração, transmissão, distribuição, 48 Seguindo a proposta da Coopers & Lybrand, que recomendou que o Operador Nacional do Sistema (conhecido também como Operador Independente do Sistema - OIS) deveria ser estruturado como uma empresa independente, sem fins lucrativos, atuando de modo neutro sob a supervisão do regulador (ANEEL). A propriedade do ONS deveria compreender cinco grupos de stakeholders: as empresas de geração, de transmissão, de distribuição, os livres consumidores e o setor público. O ONS deveria ser responsável pelo gerenciamento do sistema de transmissão (reconhecido como a rede básica), definido para incluir linhas de transmissão de 230KV ou mais. A autoridade do ONS nessa área é necessária, sendo que a propriedade dos 113 importadores e exportadores de energia elétrica, e consumidores livres, tendo o Ministério de Minas e Energia como membro participante, com poder de veto em questões conflitantes com as diretrizes e políticas governamentais para o setor. Também tomam parte nessa associação os Conselhos de Consumidores. A missão da ONS é executar as atividades de coordenação e controle da operação, da geração e da transmissão de energia elétrica nos sistemas interligados, assegurando a qualidade e a economicidade do suprimento de energia elétrica e garantindo o livre acesso à rede básica. Na prática, o ONS é projetado para manter os benefícios técnicos do sistema centralizado de despacho, enquanto se descentraliza a propriedade dos ativos. Estarão sob o seu controle todos os fluxos de energia negociados no mercado bilateral e imediato, visando otimizar o output dos ativos de geração de energia hidráulica e térmica. As atribuições do ONS incluem: F Planejamento e programação da operação e despacho centralizado da geração; F Supervisão e coordenação dos centros de operação dos sistemas elétricos; F Supervisão e controle da operação dos sistemas eletroenergéticos nacionais e das interligações internacionais; F Contratação e administração dos serviços de transmissão, do acesso à rede e dos serviços ancilares; F Proposição à ANEEL das ampliações e reforços da rede básica de transmissão F Definição de regras para a operação da rede básica de transmissão, a serem aprovadas pela ANEEL. Na opinião do Ministro de Minas e Energia, Rodolpho Tourinho, a passagem da supervisão e do controle da operação para o ONS “é mais um passo firme e decisivo para a revitalização do setor elétrico”. Exercendo efetivamente a coordenação operacional do sistema, “o ONS ativos de transmissão será dividida entre os governos federal e estadual, ao menos nas fases iniciais do novo modelo (FERREIRA, 1999). 114 estará em condições de otimizar a confiabilidade do sistema elétrico interligado brasileiro, consagrando, assim, uma das mais importantes funções do novo modelo setorial”. (www.eletrobras.gov.br/n3.htm) 5.5.1 Análise do ONS a partir da abordagem de redes A configuração estrutural do ONS tem, também, a forma de uma rede. Como se destacou no decorrer do trabalho, fazem parte desse órgão representantes de vários agentes do setor: empresas de todos os segmentos (geração, transmissão, distribuição, importadores e exportadores de energia elétrica), consumidores livres e conselhos de consumidores, assim como o do Ministério de Minas. A função que o ONS deve desempenhar é muito importante, considerando as características do setor elétrico brasileiro. “O Brasil é um dos poucos exemplos no mundo, onde, no jogo das águas, todos jogam e todos ganham. Através de um sistema interligado, é feita a transferência de energia entre bacias, gerando o que os especialistas chamam de “a terceira parcela de energia”. Isto é, como o país possui grandes reservatórios, foi possível criar um condomínio das águas que trafegam por uma grande extensão de linhas: essa malha de usinas interligadas proporciona ganhos de 22% na energia produzida” (MEIRELES, 1999:36). O novo operador é o substituto do antigo Grupo Coordenador de Operações Interligadas (GCOI), organismo vinculado à Eletrobrás, criado em 1972, juntamente com o Itaipu Binacional, para viabilizar o sistema. Sem o GCOI seria impossível utilizar, nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, a energia produzida na hidroelétrica de Itaipu. Em 92% dos questionários, o Operador Nacional do Sistema Elétrico é apontado como uma organização chave para o funcionamento do setor de energia elétrico brasileiro e seu papel é ressaltado como órgão responsável pela operação integrada e otimizada do Sistema Elétrico Nacional. No decorrer das entrevistas (Eletrobrás, 1999), destacou-se que o ONS é um organismo privado que vai administrar a competição entre as empresas, enquanto a GCOI sempre 115 administrou a colaboração 49. Para que o ONS coloque em prática o planejamento operacional deve-se saber tudo em relação às empresas do sistema, a cada instante. O ONS vai ter a coordenação total do sistema de medição, e o MAE – que faz a contabilização de todas as energias trocadas no sistema – vai ter acesso a essas medições. Além disso, o ONS busca otimizar essa coordenação, controlando o sistema e tendo algumas previsões. Ao contrário das entrevistas na Eletrobrás (1999), outros entrevistados (Furnas, 1999, ASEP/RJ, 2000) expressam uma certa insegurança e incerteza com relação ao desempenho com sucesso deste papel de coordenador da operação interligada. O que existe hoje no ONS ainda não é o modelo perfeito, considerando que o setor passa por um período de transição e o tempo ainda não teve tempo suficiente para as mudanças. Outros especialistas50 do setor de energia elétrica acham que é muito complicado privatizar esse sistema integrado, que hoje “evita que cada um olhe somente para o seu próprio umbigo”. Um empresário, sozinho, não tem condições de saber quanta energia existe nesse condomínio, por desconhecer a gestão comunitária da água. A incompetência do ONS ficou visível durante o apagão de março, quando não conseguiu centralizar as informações para atuar junto às empresas e impedir a demora na normalização do sistema. Na opinião destes especialistas, o CGOI não foi substituído à altura e as causas imediatas do apagão devem ser procuradas no caos gerado por sua inepta desativação, com a transferência das atribuições para um órgão como o ONS que, mesmo contando com técnicos sérios e qualificados, é institucionalmente frágil (MEIRELES, 1999:36). 49 “Hoje o sistema é operado como se fosse um único sistema - com alguma restrições. As linhas podem ser vistas como estradas em que cabem até um certo número limitado de veículos. ONS é uma organização que busca em primeiro lugar a otimização dos recursos energéticos do pais. Para alcançar essa otimização num ambiente de competição, hoje existe o chamado MRE, o Mecanismo de Realocação de Energia, onde as empresas passam a ter créditos, agora bem definidos e contabilizados, dessas operações. Um dado muito importante, que foi decisivo para os consultores ingleses, é que pelas características do setor, onde cerca de 93% da capacidade instalada é hidráulica (a geração até passa deste percentual) a operação centralizada leva num ganho estimado de ordem 23-27%. Então, eles adotaram a idéia que vigorou, e vigorou bem (GCOI) para o novo modelo” (Eletrobras, Entrevista, 1999). 116 Figura 9. Estrutura Organizacional do ONS Fonte: http://www.ons.org.br/. 04.09.1999. 50 O autor destaca o engenheiro Joaquim Carvalho, os professores da UFRJ Maurício Tolmasquim e Luis Pingelli Rosa. 117 5.6. Planejamento e financiamento no novo modelo: o papel da Eletrobrás e BNDES A Eletrobrás desempenhou por vários anos um papel importante para o setor de energia elétrico brasileiro. Os entrevistados destacaram três importantes funções da Eletrobrás na antiga configuração do setor (Eletrobrás, entrevista, 1999): 1. órgão financeiro do setor, diversamente dos outros setores de economia onde este papel era desempenhado principalmente pelo BNDES. 2. planejamento e operação do sistema interligado como um todo. Eletrobras coordenava o GCPS e GCOI, “atuando como o grande juiz, nunca beneficiando as empresas de seu grupo”. 3. planejamento da operação dos chamados sistemas isolados brasileiros, regiões que ainda não fazem parte do sistema integrado. Como se destacou no decorrer das entrevistas, a Eletrobrás “vem sendo esvaziada”: funções, antigamente desempenhadas por ela, hoje estão passando nas mãos de outras entidades como o ONS, CCPE e BNDES. O modelo proposto pela Coopers & Lybrand recomendava que o planejamento estratégico centralizado, que vinha sendo desenvolvido pela GCPS, deveria continuar como “planejamento indicativo”. No entanto, o planejamento deveria se conduzir por uma nova entidade a ser criada - Instituto para o Desenvolvimento do Setor de Energia Elétrica - com uma estrutura de propriedade similar à do Operador Nacional do Sistema. O planejamento indicativo deveria se estabelecer por um período de 25 anos, incluindo o estudo de capacidades hídricas, impactos ambientais e outras questões relacionadas. 118 Recentemente, estabeleceu-se a entidade responsável pelo planejamento da expansão do sistema elétrico brasileiro: o Comitê Coordenador do Planejamento da Expansão dos Sistemas Elétricos (CCPE), criado pela portaria MME nº 150, de 10 de maio de 1999, cuja a estrutura, organização e forma de funcionamento foram aprovados pela Portaria MME nº 485, de 16 de Dezembro de 1999, estando previsto seu funcionamento a partir de janeiro de 2000. Conforme especificado no http://www.mme.gov.br/sem/ccpe/ccpetodo.htm, deverão ser objetivos principais dos trabalhos a serem executado pelo CCPE: • “orientar ações de governo para assegurar o fornecimento de energia nos níveis de qualidade e quantidade demandados pela sociedade, em consonância com a Política Energética Nacional, emanada do Conselho Nacional de Política Energética; • oferecer aos agentes do mercado elétrico um quadro de referência para seus planos de investimento; e • estabelecer a expansão mais adequada da rede elétrica de transmissão, em consonância com os aspectos operacionais do sistema.(...) Neste novo ambiente institucional o planejamento deverá ser conduzido como função do governo, exercida pela SEM/MME, deixando de ser realizado de forma colegiada, conciliando os interesses dos agentes investidores e da sociedade. Contudo, a representação dos agentes e entidades do setor deverá ser garantida pela composição da estrutura do CCPE, através da participação de entidades de classe e de processo de consultas públicas na avaliação e aprovação dos principais produtos, refletindo um processo decisório participativo e aberto. No sentido de atender aos requisitos acima mencionados e na qualidade de Agente Planejador do Sistema Elétrico Brasileiro, o CCPE deverá, entre outras atribuições: • Elaborar, de forma integrada, o planejamento de longo prazo do setor elétrico; • Elaborar, e manter atualizado, os Planos Indicativos de Expansão e o Programa Determinativo da Transmissão; • Estruturar e manter atualizado o Sistema de Informações Técnicas do planejamento da expansão do setor de energia elétrica, disponibilizando-o aos agentes que atuam no setor e à sociedade em geral; • Estimar os investimentos de capital para expansão da oferta e da transmissão de energia elétrica, subsidiando as ações de governo na busca de adequação ou viabilização dos mesmos; • Acompanhar pró-ativamente as condições de atendimento ao mercado de energiaelétrica, sugerindo ações para manter este atendimento em níveis de qualidade preestabelecidos; e • Propor a ANEEL, os critérios, normas, procedimentos e referências de qualidade para o desempenho do sistema elétrico na realização da atividade de planejamento; e • Examinar e emitir parecer sobre assuntos técnicos e estratégicos que lhe forem encaminhados pelo Conselho Nacional de Política Energética – CNPE ou pelo Excelentíssimo Senhor Ministro de Minas e Energia”. 119 Como se destaca no decorrer das entrevistas, e também na proposta de estruturação do CCPE, cabe ainda à Eletrobrás a condução do Comitê Diretor, dos Comitês técnicos e da Secretaria Executiva do CCPE, assim como o fornecimento dos Dados Básicos. A Eletrobrás foi considerada uma empresa chave em 84,6% dos questionários aplicados, considerando que, na amostra distribuída na Furnas, este percentual foi de 0%. Também no decorrer das entrevistas apontou-se a diminuição da importância da Eletrobrás, em comparação com o passado. No entanto, algumas das funções que a Eletrobrás ainda desempenha (ou pode desempenhar), destacadas no decorrer da pesquisa foram: Tabela 20. Funções da Eletrobras Funções da Eletrobrás Alavancador de investimentos estratégicos, principalmente na expansão – braço operacional do órgão formulador da política energética Apoio técnico à MME e outros agentes de setor como ONS, MAE e ANEEL Atuação como agente comercializador Atuação na área de pesquisa, programas de conservação de energia, análise e planejamento Função social: Investimentos em regiões desfavorecidas Conforme a apresentação da empresa, no VIII° Congresso Brasileiro de Energia elétrica (1999), a missão da Eletrobrás é “subsidiar a formulação da política pública para o setor elétrico e atuar na sua execução, articulando e complementando a atuação de entidades privadas e viabilizando iniciativas que visem melhor atender as necessidades atuais e futuras do setor”, enquanto o seu negócio é “a execução de programas e projetos para o setor elétrico de forma complementar às funções exercidas pelos agentes privados e órgão regulador”. 120 Uma proposta mais controversa de Coopers & Lybrand sugeria manter a Eletrobrás como o agente financeiro do setor de energia elétrica. A empresa poderia utilizar como recursos os retornos que receberá dos empréstimos feitas ás empresas de energia, incluindo a Itaipú. Também poderia tomar emprestado dinheiro de entidades como Banco Mundial e Banco Inter-americano de Desenvolvimento, que se envolvem em negócios apenas com instituições de propriedade estatal. No entanto, Ferreira (1999) argumenta que esse papel seria mais adequadamente desempenhado por uma instituição financeira que tenha mais alternativas de financiamento e que gerencie melhor os riscos de crédito, propondo, como alternativa, o BNDES 51. Em um dos seus discursos, o Ministro de Minas e Energia ressalta que a empresa atuará junto ao BNDES “onde for necessário atuar, com a visão de política energética que só ela tem, nos setores onde for preciso estimular a geração de energia, através da sua participação acionária”52 (www.eletrobras.gov.vr/n3.htm). Como destacado no decorrer do trabalho, o BNDES foi apontado como uma organização importante para o funcionamento do setor, por 92% dos respondentes, considerando que, na amostra aplicada em Furnas, esse percentual caiu para 20 %. A maioria aponta o papel que o BNDES desempenha (ou deverá a desempenhar) na área de financiamento, substituindo o papel da Eletrobrás nesta área. Um dos respondentes critica o papel de BNDES que “só existe para subsidiar o capital internacional”. 51 Na opinião de Leite (1999), na prática, o BNDES está desempenhando esse papel. Segundo as notícias mais recentes, o BNDES financiará investimento em termelétricas “O ministro de Minas e Energia (MME), Rodolpho Tourinho, deverá concluir nesta semana o Programa Prioritário de Geração Termelétrica, que se propõe a garantir o suprimento de energia elétrica no País até 2004. De acordo com esses estudos, as usinas hidrelétricas com obras em andamento garantirão 15 mil MW dos 26 mil MW necessários para o suprimento até 2004, mas os 11 mil MW restantes terão que ser supridos por termelétricas. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) garantirá o financiamento de até 80% dos investimentos. A Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) também foi incumbida de modificar diversos regulamentos do mercado de energia, para facilitar os investimentos”. (EFEI Energy News , 8 de Fevereiro de 2000) 52 121 Conforme as mais recentes notícias, o Governo está estudando a idéia de devolver ao BNDES o controle da privatização do setor elétrico, para agilizar o processo. Figura 10. Principais agentes do setor Fonte: Ministério da Minas e Energia: www.mme.gov.br/sem/fig4.htm 122 CAPÍTULO 6 6. CONCLUSÕES E SUGESTÕES O objetivo principal deste trabalho foi identificar, com base na abordagem de redes, a influência dos processos de restruturação e privatização na integração do sistema brasileiro de energia elétrica. Para isso, a tese foi estruturada em seis capítulos. No primeiro, apresentou-se a introdução, os objetivos principais e intermediários, a delimitação e as limitações do estudo, assim como a sua relevância. O segundo capítulo analisou a abordagem de redes, destacando as razões principais de surgimento de interesse por essa área e seu uso como modo de configuração da realidade e como instrumento de análise. O terceiro capítulo apresentou a trajetória do setor brasileiro de energia elétrica, durante o período de intervenção estatal, e suas principais características. O processo de reestruturação e privatização do setor abordou-se no quarto capítulo. No capítulo seguinte, identificaram-se e analisaram-se, a partir da abordagem de redes, as organizações-chave do setor de energia elétrica. Por fim, apresentaram-se as principais conclusões do trabalho. A fragmentação institucional, a sobreposição da clientela e a falta de coordenação interorganizacional são características da administração pública. Gerentes voltados para os problemas específicos da própria organização, sem conceber o seu papel num contexto maior de políticas públicas não são uma exceção. Políticas públicas unisetoriais, pouco participativas e direcionadas de “alto para baixo” estão sendo ultrapassadas. A complexidade dos tempos contemporâneos, os movimentos em favor de uma maior democratização e descentralização, assim como a crise do Estado de Bem-Estar Social influenciam na concepção de um novo modelo de gestão de políticas públicas, baseado em redes. 123 No decorrer do trabalho destacou-se que a abordagem de redes pode ser utilizada como modo de configuração da realidade complexa e como instrumento de análise. Na opinião dos representantes da teoria de redes sociais, qualquer organização e ambiente interorganizacional pode ser visto e analisado como rede. Desse modo, essa teoria pode servir para a análise do setor de energia elétrico brasileiro antes e depois de sua reestruturação. No entanto, neste trabalho, a abordagem de redes foi utilizada principalmente, para analisar a nova configuração do setor, depois dos processos de privatização e reestruturação. Como Bressand & Distler (1989) destacam, na era industrial, a técnica parecia segregar o seu poder através de uma concentração extrema. Baseados na convicção de que quem detém a rede física controla a comunicação, foi reservado ao Estado o papel de construir e realizar essas redes. O Welfare State (Estado de Bem-Estar Social, Estado Desenvolvimentista ou Intervencionista) caracterizou-se pela ampla participação direta e indireta do Estado em vários setores da economia. Desse modo, a configuração desses setores podia ser vista como uma rede altamente centralizada, controlada e administrada pelo Estado, através de empresas, secretarias, organizações e órgãos reguladores estatais. A evolução do setor de energia elétrica no Brasil está fortemente relacionada com a trajetória do Estado desenvolvimentista. As empresas, quase totalmente privadas até a década de quarenta, não conseguiram acompanhar a crescente demanda de energia decorrente dos processos de industrialização. Consequentemente, muitas delas foram estatizadas e outras concessionárias federais e estaduais se criaram, restringindo cada vez mais a participação do setor privado nessa área. O sistema brasileiro de energia elétrica é fundamentalmente baseado na geração da energia hidroelétrica, sendo que o país é caracterizado de uma vasta rede de recursos hídricos. O primeiro passo na implementação do sistema centralizado foi a criação de monopólios 124 regionais para a distribuição que foi seguido pelo desenvolvimento de um sistema de despacho centralizado que maximizava a eficiência dos serviços de geração hidroelétrica. Determinando qual das usinas geraria energia, e a quantidade de energia, o sistema centralizado fazia o possível para que a água disponível fosse utilizada da melhor maneira, otimizando assim o output total de energia com o menor custo. O Grupo de Coordenação da Operação Interligada (GCOI), criado em 1973, controlava esse sistema operacional centralizado. Em 1982, o Grupo de Coordenação para a Planejamento do Sistema Elétrico (GCPS) foi criado para projetar a demanda por meio de previsão macroeconômica, definindo, assim, os investimentos necessários para a expansão das atividades de geração, transmissão e distribuição. Paralelamente, o Departamento de Águas e Energia Elétrica (DNAEE) desempenhou por vários anos o papel de órgão regulador do setor de energia elétrica, centralizando, em nível federal, todas as ações regulamentares. O Código de Águas, que desenhava a política e a regulação do setor brasileiro de energia elétrica, ocupava-se principalmente com a garantia de que a expansão da oferta se daria de forma razoável e assegurada. Por meio desse processo centralizado de controle, operacionalização, planejamento e regulamentação fez-se possível a criação de um sistema integrado de energia elétrica inteiramente. A estrutura de propriedade no Brasil era relativamente complicada. Apesar da indústria ser quase inteiramente de propriedade pública, o Governo Federal possuía os ativos de geração e transmissão, enquanto os governos estaduais eram donos das empresas de distribuição, assim como de algumas empresas integradas verticalmente. Isso fez com que os governos estaduais, especialmente nos Estados mais ricos, tivessem bastante peso na gestão e controle do sistema brasileiro de energia elétrica. 125 O Brasil passou a década de setenta com o mesmo modelo, seguindo uma inércia das duas ou três décadas anteriores. O contexto do setor de energia elétrica no Brasil, antes da reforma, pode ser resumido assim: F Centralização na esfera federal, com participação estadual relevante em algumas regiões; F Interseção de papéis e responsabilidades; F Arcabouço de regulamentos orientado para a expansão da oferta; F Oferta em níveis razoáveis; F Qualidade dos serviços satisfatória; F Baixos níveis tarifários; F Baixa eficiência econômica e energética; F Considerável eficiência operacional; F Eventuais consumos perdulários; F Pouco empenho na minimização de custos; F Existência e desempenho satisfatório de órgãos integradores na parte de planejamento e operação interligada; F Criação de um sistema com características únicas, concentrado na exploração dos recursos hídricos. No entanto, depois de um longo período no qual o Estado desempenhou o papel mais importante na economia, o tema da redução do tamanho do Estado e da competição das redes parece prevalecer. Vários fatores econômicos, ideológicos, sociais e tecnológicos53 influenciam esse processo. O controle das infra-estruturas revela-se cada vez mais parcial – 53 “(...) os monopólios públicos travam assim uma guerra de trincheiras contra as hordes telemáticas, cujos golpes ousados são favorecidos pelas novas teconologias” (Bressand & Distler, 1989: 155) (Grifo nosso). 126 apesar de não perder a importância. “Neste domínio é no poder de regulamentação54 que se encarnam os poderes duros” (Bressand & Distler, 1989:155). No caso do setor de energia elétrica, a crise do Estado de Bem-Estar Social juntou-se a um conjunto de fatores específicos como: desarticulação institucional; desestímulo profissional e perda de quadros competentes; falta de recursos para investir e tarifas baixas demais; decisões errôneas de investimentos; e uso inadequado do setor na política de combate à inflação. Paralelamente, cresceu-se a demanda para amplos investimentos, sendo que uma grande parte dessa demanda não tinha sido satisfeita com investimentos adequados por falta de financiamentos. Esses fatores, assim como as inovações tecnológicas e a influência da onda neoliberal impulsionaram fortemente a decisão para maior participação do setor privado e marcaram o começo do período de privatização e reestruturação. Deve se considerar que essas mudanças influenciaram a decisão da autora para utilizar a abordagem de redes na análise do setor. Como já se destacou o movimento em favor do Estado mínimo é um dos fatores que influenciam o surgimento de redes na área pública. As estruturas tradicionais de gestão e controle se modificam e, para colocar em prática as políticas públicas na área de energia, parcerias se estabelecem com o setor privado e representantes da sociedade civil. O fortalecimento da democracia e a pressão para melhores prestações de serviços públicos, assim como para maior participação da sociedade na gestão da políticas públicas influenciam a configuração do novo modelo setorial, no qual é reservado um papel importante - pelo menos teoricamente - à participação do cidadão-usuário dos serviços públicos de energia. 54 “O poder de regulamentação assume a forma de um conjunto de leis, regulamentos ou medidas mais discretas a que a autoridade submete um dado conjunto de atividades, quer sejam de tipo industrial ou de serviço” (op.cit. 156). Também na opinião de Rosa & Senra (1995), “(...)a regulamentação pressupõe um poder legal que faça prevalecer as regras. (...)A privatização faz parte do processo de desregulamentação”(1995:43). 127 Assim, o novo modelo de reestruturação e privatização do setor insere-se nesse quadro maior de mudanças estruturais que caracterizam Brasil a partir dos anos oitenta. O Programa Nacional de Desestatização, assim como a nova Lei de Concessões N° 8.987 de 1995 abrem espaço e criam as condições necessárias para a privatização e reestruturação do setor. O estabelecimento da competição e a universalização dos serviços foram os principais objetivos da reforma. Um número considerável de leis, a definição das empresas e participações da Eletrobrás que seriam privatizadas e a formalização do projeto RESEB (Reestruturação do Setor Elétrico Brasileiro) traçaram o caminho de privatização. Esse projeto, proposto pela consultora Coopers & Lybrand, continha proposições de grande importância para o setor. Entre as recomendações destacam-se a dissociação vertical das empresas integradas nos segmentos de geração, transmissão e distribuição; a introdução do conceito do produtor independente e a proposta de desdobramento das funções até então exercidas pela Eletrobrás. A função reguladora do Estado tenta se fortalecer com a criação da Agência Nacional de Energia Elétrica, enquanto para alcançar um dos objetivos principais da reforma – a introdução da competição – cria-se o Mercado Atacadista de Energia Elétrica (MAE). Reconhecendo as características peculiares do setor brasileiro de energia elétrica, baseado principalmente no uso dos recursos hídricos, instituiu-se o Operador Nacional do Sistema Elétrico, que tem como objetivo principal exercer as atividades de coordenação e controle de operação e de transmissão de energia elétrica nos sistemas interligados e que, de certa forma, é o sucessor do Grupo de Coordenação da Operação Interligada (GCOI). Desse modo, se transforma a configuração do setor de energia elétrica. O Estado perde seu papel central na área de gestão e controle e, paralelamente, tenta fortalecer seu papel na área de regulação. O novo modelo tem características mais parecidas com uma rede, na qual existem centros ou organizações que desempenham o papel integrador. Os atores sociais que a 128 compõem se multiplicam: ao lado do governo, se encontram as empresas - privadas ou públicas - e o usuário dos serviços públicos de energia. É importante destacar que o novo modelo, apesar de apresentar características mais horizontais, incorpora antigos papéis e funções ao lado dos novos. Se, no modelo antigo, essas funções eram desempenhadas diretamente pelo Estado, por meio de entidades estatais como a Eletrobrás, no novo modelo, essas entidades se “esvaziam”. As antigas funções passam a ser desempenhadas por novas organizações como ONS (operação interligada) e CCPE (Planejamento Indicativo), BNDES (financiamento) enquanto que novas organizações como MAE e ANEEL desempenham novos papéis que estão diretamente ligados com o alcance dos novos objetivos da reforma: introdução da competição e universalização dos serviços. O processo deve ser considerado como parte da tendência contemporânea diante da “hollowing out of state”. O Estado “espectador” e “esvaziado” cria rede de relações com as empresas privadas e a sociedade civil para colocar em prática as políticas públicas. A nova rede de energia elétrica pode ser classificada como rede institucional, sendo que reagrupa organizações engajadas nas mesmas políticas e as relações sociais são definidas com base em leis e normas que especificam funções e papéis organizacionais. Assim, ela apresenta um alto grau de formalização. No entanto, na opinião da maioria dos entrevistados, um dos primeiros erros dessa reforma reside no fato de que o processo de privatização teve início antes do fortalecimento do novo marco regulatório. Em outras palavras, a antiga rede - o sistema centralizado de energia elétrica - começa a se descompor antes de fortalecer as organizações integradoras que desempenham um papel central para seu funcionamento. Isto está influenciando negativamente o processo de transição e, paralelamente, o fortalecimento do novo modelo do setor. 129 Outra característica da nova rede é o seu alto grau de complexidade estrutural: diferentes elementos - organizações e os usuários - devem ser integrados para que a rede funcione como uma unidade. Concessionárias e outras empresas (cooperativas, associações e outras), organizações como ANEEL, ONS, MAE, governo e os usuários de energia elétrica fazem parte desta rede e desempenham diversos papéis. Nestas condições, seria possível que o setor de energia elétrico brasileiro funcionasse como uma rede altamente integrada? Para responder a esta indagação, a nossa análise baseou-se nos instrumentos oferecidos pela abordagem de redes. Desse modo, partiu-se da definição de Cavalcanti (1998) que considera, referindo-se à rede interorganizacional, que a sua existência depende de uma série de fatores como: atuação conjunta e orientação para alcançar objetivos próprios e coletivos; manutenção de relações sistemáticas e até mesmo padronizadas, grande conhecimento sobre as funções e responsabilidades de cada uma; elevado grau de consenso com relação à política em vigor e avaliação positiva dos resultados. Certamente, que estas características poderiam ser estendidas para a análise de uma rede que inclui não apenas organizações, mas também outros atores sociais como usuários desses serviços. Como podemos classificar a nova configuração do setor de energia elétrica como uma rede integrada, se os seus participantes não conhecem o novo modelo nem as organizações que a compõem e sequer concordam sobre a política em vigor? Com base na pesquisa bibliográfica, construiu-se o questionário que lista as organizações integradoras da rede. Considerando que lidamos com uma rede altamente formal, a primeira indagação visou a identificação, a partir da percepção dos representantes dos agentes institucionais, das organizações-chave para o adequado funcionamento do setor. Os questionários revelaram que apenas a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) é 130 conhecida por todos os respondentes. Apesar de todas as outras organizações serem altamente conhecidas, sempre menos agentes consideram chave para o funcionamento do setor o Ministério de Minas e Energia (Secretaria de Energia), assim como a Eletrobras. Esta resposta pode revelar a percepção da diminuição do papel do Estado no funcionamento do setor. Formulação da política energética, planejamento indicativo, apoio à pesquisa e desenvolvimento tecnológico e coordenação das questões internacionais são apontadas como principais funções do MME na área de energia elétrica. Com respeito à Política Nacional de Energia Elétrica, podemos destacar que esta é ainda caracterizada como a função principal do Ministério de Minas e Energia. No entanto, esta política vem sendo fortemente criticada em vários aspectos. No decorrer da pesquisa de campo, os representantes dos agentes institucionais do setor destacaram os seguintes fatores como principais falhas da política governamental concernentes aos processos de reestruturação e privatização: começo da privatização antes do fortalecimento do marco regulatório, a desvertizalização do setor em vários segmentos e a não obtenção da meta de universalização dos serviços de energia como. Para analisar a avaliação dos usuários dos serviços de energia elétrica relativa a esses processos, foram utilizados os dados da pesquisa realizada pela agência reguladora do Rio Grande do Sul (AGERGS). A qualidade dos serviços de energia foi classificada como boa pela metade da amostra e posicionou-se melhor do que a de outros serviços privatizados como transporte interurbano e telefonia. No entanto, a maior parcela da amostra considera que os serviços não mudaram como conseqüência dos processos de privatização, enquanto classificam as tarifas como caras ou muitos caras e apontam que os preços aumentaram acima da taxa de inflação depois da privatização. 131 A autora reconhece as limitações do uso desta pesquisa que, apesar de ser significativa para o Estado do Rio Grande do Sul, não pode representar a avaliação dos usuários em nível nacional. Existem características específicas estaduais e o fato da existência da agência estadual – que, na opinião da autora é uma das agências estaduais mais bem estruturadas pode influenciar positivamente a prestação dos serviços públicos. O órgão criado para formular a política energética - Conselho Nacional de Política Energética – tem na sua composição representantes do Poder Executivo, dos consumidores e um representante dos Estados e Distrito Federal, mostrando, assim, a tentativa de criação de um órgão colegiado que reúna representantes de todos os atores sociais da rede de energia elétrica. No entanto, a representatividade não é considerada satisfatória por representantes dos governos estaduais. De fato, como já destacado no decorrer da trabalho, os movimentos em favor de descentralização - uma das causas do surgimento de redes - fazem com que se fortaleça o papel dos estados e municípios na formulação e execução das políticas públicas. No entanto, estes últimos não foram incluídos de modo adequado na nova configuração do setor. Com base nas determinações federais, a política energética é de competência federal. Na prática, os estados - especialmente os mais poderosos - sempre exerceram um papel importante sendo que controlavam grandes empresas estaduais de sua propriedade. Com a privatização, a situação modifica-se drasticamente e os estados se encontram perante a situação de perda total de informação e controle, enquanto convivem com exigências sempre maiores da sociedade civil. Sem assentos nas organizações integradoras do setor, os representantes dos governos estaduais revelam que seu papel restringe-se na negociação e articulação, assim como no estabelecimento de parcerias. A instituição do Fórum dos 132 secretários de energia mostra não só esse esforço de articulação dos governos estaduais, mas também a pressão para fortalecimento do seu papel. No decorrer da pesquisa, uma atenção especial foi dedicada à análise da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). A agência está no cerne do novo modelo e, de certa forma, incorpora o novo papel do Estado regulador. Criada com base nos modelos americanos e europeus, ela tem como finalidade regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica, zelando pela qualidade do serviço prestado, pelo trato isonômico dispensado aos usuários e pelo controle da razoabilidade das tarifas cobradas aos consumidores, preservando, sempre, a viabilidade econômica e financeira dos agentes e da indústria. Conforme o modelo institucional, a agência deveria estabelecer relações equivalentes com o governo, as concessionárias de energia elétrica e os usuários desses serviços públicos. Isto incorpora-se na missão da agência: “Proporcionar condições favoráveis para que o mercado de energia elétrica se desenvolva com equilíbrio entre os agentes e em benefício da sociedade”. Deste modo, podemos configurar a agência no centro de uma rede horizontal que visa relacionar, de forma equilibrada, esses três agentes. Os instrumentos da abordagem de redes foram utilizados para a análise da ANEEL e, de novo, se perguntou se os integrantes conhecem, no mínimo, a agência, assim como as funções e o papel que esta última desempenha. Os agentes institucionais da rede, incluindo aqui empresas concessionárias privadas ou estatais de energia elétrica, agências reguladoras estaduais e representantes dos governos estaduais, mostram um alto grau de conhecimento da agência. Eles a consideram indispensável para o adequado funcionamento do setor de energia elétrica. No entanto, o conhecimento das funções, do papel e dos objetivos da agência ainda deixa a desejar. 133 Principalmente, o princípio básico da agência - a eqüidistância de relações com outros atores sociais - não é amplamente conhecido. Algumas das razões deste desconhecimento podem ser explicadas considerando a fase de transição em que o novo modelo ainda se encontra. A agência reguladora, instituída após ao começo do processo de privatização, não se fortaleceu como peça-chave na nova configuração do setor. A não-existência de uma cultura regulatória - seja por parte dos agentes do setor, seja dentro da própria agência - dificulta ainda mais este processo. Paralelamente a rede de relações que se tenta construir apresenta um alto grau de complexidade e formalização. Diferentemente dos processos similares que vem acontecendo entre as empresas privadas, a construção da rede não está baseada na troca mútua, na “cooperação para competição”, nos mecanismos de coordenação baseados no mercado (Miles & Snow, 1987 & 1992) ou sociais (Jones, Hesterly & Borgatti, 1997). Pelo contrário, leis, normas e regulamentos – ainda em continuação – estão esculpindo as fronteiras da rede, assim como a atuação de todos os agentes, o que nos faz pensar que a rede com um alto grau de formalização e complexidade apresenta maior dificuldade de fortalecer-se na prática. No entanto, os participantes da pesquisa de campo destacam a importância da agência para o adequado funcionamento do setor, e reconhecem que com a mudança do papel do Estado na área de energia elétrica, o fortalecimento do papel regulador torna-se indispensável. Alguns instrumentos da abordagem de redes, como a densidade e a centralidade, foram utilizados para analisar as relações da ANEEL com as empresas de energia elétrica. Nas condições de uma rede pouco densa, como é o caso da rede das relações da ANEEL, a capacidade de monitorar as ações das empresas concessionárias são limitadas. Embora, teoricamente, a ANEEL caracterize-se por uma alta centralidade de intermediação, na prática, os papéis podem ser invertidos. 134 Como se destacou no decorrer do trabalho, existe o risco de que, nesta rede que está sendo formada, outros atores sociais desempenhem o papel central. As concessionárias, com maior poder de negociação e articulação, podem fazer com que o modelo institucional se enfraqueça e se crie um “marco regulatório alternativo” que, de certa forma, “regule as próprias agências regulatórias”, em prejuízo dos usuários destes serviços públicos. A pesquisa de Oliveira & Tolmasquim (1999) alerta para a atuação desses “global players”, enquanto exemplos de notícias correntes, levantadas a partir da pesquisa bibliográfica e telematizada, tentaram ilustrar o poder que várias empresas estão estabelecendo por meio de compras e aquisições em vários segmentos do setor. Paralelamente, as empresas de energia elétrica estão mostrando maior capacidade de articulação e de pressão. Estas podem disputar negócios entre si, apesar de se unirem em nível institucional, criando várias associações que visam defender os interesses comuns. Mesmo assim, o conhecimento da agência e suas funções por parte dos usuários de serviços públicos de energia ainda é muito baixo. Embora o usuário seja concebido como um dos agentes-chave da rede, na prática, a sua atuação é pouco expressiva. Fatores como a sociedade civil não organizada e sem cultura de cobrança para melhores prestações sociais, assim como a profunda mudança do modelo institucional podem influenciar neste alheamento. No entanto, existem usuários com maior capacidade de pressão e articulação, que vêm se organizando e cobrando melhores prestações desses serviços. São as indústrias da região, que tem representação em vários fóruns de formulação e implementação da política energética e podem influenciar ANEEL nas suas decisões. A reforma prevê as figuras do consumidor cativo - consumidor ao qual só é permitido comprar energia do concessionário, autorizado ou permissionário, a cuja rede esteja conectado 135 - e a do consumidor livre - consumidor que está legalmente autorizado a escolher seu fornecedor de energia elétrica. Esses últimos que apresentam, na prática, mais capacidade de articulação e pressão do que os consumidores cativos. Um dos riscos mais comuns que se corre quando se analisa a realidade a partir da abordagem de redes é criar uma rede tão complexa quanto a realidade que ela apresenta. No entanto, no decorrer da pesquisa de campo, observou-se o fortalecimento de outros atores sociais, não considerados no novo modelo que está se tentando institucionalizar. De fato, a ANEEL vem estabelecendo relações com as agências reguladoras estaduais multisetoriais que incorporam melhor as exigências de uma maior aproximação com os operadores privados, uma maior participação da cidadania e apresentam, conforme Fachin (1998) destaca, vantagens como a economia de recursos; facilidades de aprendizado e redução do risco de influência da empresa regulada sobre a agência reguladora. Essas agências caracterizam-se por relações fortes com os governos estaduais: são formadas por pessoas que vêm do Governo e, em geral, compartilham a mesma visão. Altamente dependentes de recursos governamentais estaduais, correm o risco de perder uma das principais características da agência reguladora - sua autonomia. Ainda, há a insatisfação dos governos estaduais relativa a não-representação adequada nos novos assentos institucionais do setor que pode influenciar a maior pressão destes últimos nas agências e o seu uso como instrumento alternativo de pressão e articulação institucional. É importante levar em consideração o ponto de vista dos governos estaduais, apesar de apresentarem, também, diferentes visões políticas sobre o processo de reestruturação do setor de energia elétrica - perfeitamente aceitável no âmbito do sistema democrático. Sem considerar estes agentes, o modelo pode ser modificado e apresentar distorções. 136 Outros atores sociais que estão fortalecendo as relações com a ANEEL são os órgãos de defesa da concorrência. As fronteiras que separam a área de atuação da agência reguladora do órgão de defesa de concorrência são muito tênues. Abstrações como monopólio natural ou concorrência perfeita são utilizadas para facilitar a análise teórica, porém são difíceis de serem encontradas factualmente em sua forma ideal. Nestas condições, torna-se indispensável o fortalecimento das relações entre estes órgãos, ação que não depende apenas do poder de argumentação, mas também da harmonização e coerência das políticas governamentais em várias áreas (macroeconômica, jurídica, energética e outras). Na prática, várias iniciativas estão sendo tomadas com este propósito. O Mercado Atacadista de Energia Elétrica pode ser considerado uma das organizações-chave do setor, sendo que por meio deste último possibilitar-se-á a compra e venda de energia elétrica. A existência desta organização é importante para alcançar um dos objetivos principais da reforma: o estabelecimento da competição. A maioria dos participantes da pesquisa de campo conhecem esta nova organização e apontam a sua importância para o adequado funcionamento do setor. No entanto, não existem idéias claras sobre o funcionamento do órgão na prática. O MAE, ao lado da ANEEL, apresenta uma verdadeira inovação no âmbito do modelo, sendo que nenhum dos órgãos existentes no modelo centralizado desempenhava um papel parecido. Isto pode justificar a dificuldade de se entender e absorver, por parte de todos os agentes, o seu papel na prática. E, como o próprio presidente do MAE reconhece, o desafio atual não é apenas desenvolver e implementar regras, mas fazer com que as instituições entendam quais são as suas funções dentro do processo. A Assembléia Geral do MAE é composta de representantes das categorias de produção e consumo, e, paralelamente, abre-se espaço para a participação dos representantes dos 137 consumidores livres - é importante observar que os consumidores cativos não têm representação. A estrutura horizontalizada - em rede - do MAE reforça a tentativa de criação de órgãos colegiados de decisão, com representantes de todos os stakeholders interessados no bom funcionamento do mercado. O Operador Nacional do Sistema Elétrico é uma nova organização criada, mas que, na prática, incorporou as funções do antigo GCOI (Grupo Coordenador de Operações Interligadas). Considerando as características peculiares do sistema energético brasileiro, decidiu-se manter os benefícios técnicos do sistema centralizado de despacho, enquanto se descentraliza a propriedade dos ativos. No entanto, em coerência com os objetivos da reforma, o ONS instituiu-se como associação civil, sem fins lucrativos, que integra representantes das empresas de todos os segmentos desverticalizados do setor, ao lado dos representantes do setor público e consumidores livres fazem parte desta organização também os Conselhos de Consumidores. Mais uma vez, apresenta-se uma estrutura horizontalizada – em rede – que agrupa representantes dos todos os stakeholders da empresa. Nas entrevistas, manifestou-se um certo anseio com relação ao papel do ONS. Ao contrário do GCOI, órgão estatal que administrava a colaboração, o ONS, órgão privado, deve administrar a competição. Os objetivos desta organização consideram-se incompatíveis com o objetivo da introdução da competição, embora perfeitamente aceitável do ponto de vista das vantagens operacionais. Funções importantes para o funcionamento do setor, como planejamento e financiamento, não foram adequadamente consideradas no novo modelo do setor. Por um longo período continuaram as controvérsias sobre o papel do BNDES e da Eletrobrás na área de financiamento. Recentemente, parece que este papel vai ser desempenhado pelo Banco, 138 justificando-se pela sua ampla experiência nesta área. De fato, o papel do BNDES na área de financiamento reconhece-se pela grande maioria dos participantes da pesquisa de campo. A Eletrobrás é a típica empresa estatal em processo de “esvaziamento”. Funções como planejamento de longo prazo e operacional, financiamento e outros estão sendo passadas para outras empresas integradoras do modelo. De fato, apesar de ser considerada pela maioria dos participantes da pesquisa de campo como chave para o funcionamento do setor, a empresa aparece em ultima colocação. No entanto, por ainda deter grande parte do pessoal mais qualificado do setor de energia elétrica brasileiro, a empresa apresenta um grande potencial para desempenhar funções importantes na área de planejamento indicativo, eletrificação rural, comercialização e, paralelamente, operar como braço operacional do Ministério de Minas e Energia. As caracteríticas da nova rede de energia elétrica no Brasil podem ser resumidas na seguinte figura: 139 MME Política energética nacional Governos Estaduais Agências Reguladoras Estaduais C C P E P L N A J E M A N E T O ANEEL órgão regulador ONS Agente Operador Órgãos de Defesa da Concorrência G D/C T Consumidores Cativos MAE Mercado Atacadista F I N A N C I A M E N T O Consumidores Livres Legenda: ___ Organizações integradoras da nova rede Atores sociais fracos Atores sociais fortes Figura 11. A configuração da rede do setor de energia elétrica brasileiro Adaptado de Santos (1999) 140 B N D E S Resumindo, é possível concluir que o setor de energia elétrica brasileiro ainda não pode ser considerado como uma rede altamente integrada. Nesta nova configuração horizontalizada – resultado dos processos de reestruturação e privatização – os atores sociais estão afirmando seus papéis, funções e objetivos, enquanto as organizações-chave estão se estruturando para fortalecer seu papel integrador. Devido ao peso diferenciado dos atores sociais, existe o risco de criação de novos centros de influência e pressão – concessionárias, consumidores livres de energia – e de desaparecimento de outros – consumidores cativos, governos estaduais. Estas mudanças podem levar a um desequilíbrio e desconfiguração do modelo idealizado. Consequentemente, ações imediatas devem ser tomadas para fortalecer o papel dos atores sociais desfavorecidos, especialmente dos usuários dos serviços públicos de energia. Como Saravia (1999) destaca, o próprio Estado define, em cada época, quais são as necessidades de interesse geral que devem ser satisfeitas por um procedimento de serviço público e dita, consequentemente, o regime jurídico específico da sua prestação. No momento em que o Estado deixa de intervir diretamente na economia, torna-se indispensável sua atuação na área social e educacional. O fortalecimento do papel regulador do Estado só pode se dar ao lado do fortalecimento da sociedade civil e das instituições democráticas. A rede analisada encontra-se ainda em fase de formação e passa por grandes mudanças. Melhor definição dos papéis das organizações integradoras, publicidade do novo modelo do setor, pesquisas de opinião junto aos cidadãos-usuários, divulgação das organizações integradoras – em especial das agências reguladoras, seu papel e funcionamento – e ampliação das formas de participação dos usuários desses serviços nos órgãos colegiados de decisão são algumas medidas que devem ser tomadas para fortalecer o papel dos usuários, assim como dos outros agentes do setor. A contribuição da mídia, das ONGs, universidades e academia será indispensável neste processo de consolidação do novo modelo. 141 A própria modelagem organizacional dos agentes integradores deve adaptar-se ao ambiente flexível de relações interorganizacionais, onde multiplicam-se a presença e a pressão dos vários stakeholders. Utilizando a terminologia das redes, é possível afirmar que para atuar com êxito neste ambiente multirelacional, as próprias organizações integradoras devem se estruturar como redes. Os órgãos colegiados de decisão, presentes na maioria das organizações integradoras analisadas e compostos por representantes de todos os stakeholders, sem dúvida, respondem a esta exigência. De novo, resta ver se essa representatividade é factível e atuante. Uma outra questão importante a ser considerada nos estudos das redes tem a ver com o grau de envolvimento ou do investimento que as organizações empregam nas relações interorganizacionais. No decorrer da pesquisa de campo, observou-se que na maioria das organizações que participaram da pesquisa, os altos executivos são responsáveis pela área das relações institucionais. Sem dúvida que este fato mostra que as organizações, para as quais a participação em redes é uma questão de relevância estratégica, estão investindo cada vez mais nas relações interorgaizacionais. No entanto, será que este indicador é suficiente para avaliar o envolvimento da organização na rede? A amostra distribuída dentro de uma única organização abre espaço para novas indagações. Uma gerência efetiva num ambiente de relações interorganizacionais requer todas as habilidades associadas com a gerência dos programas tradicionais: planificação, tomada de decisões, organização, implementação e avaliação. No entanto, negociação, coordenação, arranjos cooperativos, regulação, lobby e “orquestração” de programas conjuntos intergovernamentais fazem parte dos instrumentos que os administradores públicos devem utilizar no âmbito da gestão em rede de políticas públicas. O uso crescente de contratos e a demanda para profissionais bem-preparados que possam elaborá-los e monitorá-los torna-se imprescindível para estabelecer uma saudável parceria com o setor privado (STARLING, 142 1993). Neste ambiente se demandam também habilidades políticas, por uma simples razão: estas relações são essencialmente políticas. Estudos profundos devem considerar aspectos como as competências necessárias para o gerenciamento de redes organizacionais, tendo em vista a eficiência, eficácia e efetividade da rede. Como BRESSAND & DISTLER (1989) destacam, a era das redes obedece a uma lógica diferente, a lógica de difusão e de influência e não de concentração. No entanto, a primeira tentação é generalizar ao mundo das redes os esquemas de poder herdados da era das máquinas. 143 7. BIBLIOGRAFIA ABRANCHES, Sérgio. Privatização, mudança estrutural e regulação. Trabalho apresentado no XI Fórum Nacional, Painel IV: O day after da privatização da infra-estrutura, 19 de maio, 1999. ABREU, Marco Antonio Feijó. Subsecretário de Estado de Energia,da Indústria Naval e do Petróleo do Rio de Janeiro. Pronunciamento. I Seminário Internacional “Energia no Brasil: desafios e Oportunidades”. Rio de Janeiro: FGV. Abril de 2000. AGERGS. 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