A SOCIEDADE DESARMADA. PROJEÇÕES E PERSPECTIVAS 1. A norma como agente de transformação da sociedade A aprovação do Estatuto do Desarmamento, em dezembro de 2003, foi apresentada à nação pelo Presidente Lula como “um presente de Natal”, com a ressalva de que a sanção do projeto às vésperas dessa data referencial da comunhão humana não seria apenas uma feliz coincidência. As declarações do Presidente quanto aos resultados que se pretende alcançar com a inovação legislativa não foram nada tímidas, vislumbrando na aprovação do Estatuto uma verdadeira mudança de rumos para os trágicos números que refletem a violência armada: “Esse simbolismo expressa a vontade unânime da sociedade brasileira de cortar a espiral de violência que nos inquieta e nos constrange perante a humanidade e a civilização”, ou “Nada é mais urgente do que construir a paz, como ponto de partida e de chegada, como a linha democrática que baliza a trajetória e o destino de qualquer sociedade”, e ainda ao afirmar que “Sem o direito à vida, todos os outros direitos humanos se dissipam, perdem o sentido”1. A primeira questão que se põe, entretanto, diz respeito a qual o poder de transformação da sociedade que se pode atribuir ou esperar de uma modificação normativa. Vale dizer, qual a real eficácia de uma norma em sua pretensão de restringir condutas indesejadas que ocorrem em larga escala? Ora, de uma forma nada acadêmica, o que se diz é que algumas leis “pegam”, outras não. BOBBIO apresenta-nos três critérios distintos de valoração da norma jurídica, autônomos e independentes entre si. 1 “Estatuto do Desarmamento deixa restrita posse de armas no país”, Gazeta do Povo, 23.12.2003, www.bufalo-bufalo.com 2 O primeiro deles é o da justiça. Perguntar se uma norma é justa equivale a verificar se é ou não apta a realizar os valores históricos que inspiram certo ordenamento jurídico concreto e historicamente determinado. No caso em exame, caberia indagar se os dispositivos do Estatuto do Desarmamento têm, ao menos em tese, o condão de atingir o objetivo declarado de desarmar a sociedade brasileira - ainda que não em sua totalidade, mas limitando o direito de possuir armas de fogo a situações de exceção. O segundo critério é o da validade: saber se a norma tem validade enquanto regra jurídica, se foi emanada por autoridade legítima, se está em consonância com as outras normas integrantes do ordenamento que lhe são superiores e, finalmente, se está em vigor ou se já foi derrogada por lei posterior. Por fim, o jurista italiano conceitua o critério da eficácia, talvez o mais útil para a discussão de quais são as perspectivas e projeções que se abrem, neste primeiro momento, quanto aos efeitos de médio e longo prazo do recente Estatuto do Desarmamento: “O problema da eficácia de uma norma é o problema de ser ou não seguida pelas pessoas a quem é dirigida (os chamados destinatários da norma jurídica) e, no caso de violação, ser imposta através de meios coercitivos pela autoridade que a evocou. Que uma norma exista como norma jurídica não implica que seja também constantemente seguida.” E complementa, versando sobre as gradações de uma norma no tocante a eficácia: “há normas que são seguidas universalmente de modo espontâneo (e são as mais eficazes), outras que são seguidas na generalidade dos casos somente quando estão providas de coação, e outras, enfim, que são violadas sem que nem sequer seja aplicada a coação (e são as mais ineficazes). A investigação para averiguar a eficácia ou ineficácia de uma norma é de caráter histórico-sociológico, se volta para um estudo do comportamento de membros de um determinado grupo social e se 3 diferencia, seja da investigação tipicamente filosófica em torno da justiça, seja da tipicamente jurídica em torno da validade.”2 Submetendo-se o Estatuto do Desarmamento a um simulacro de teste prematuro, o que se poderia concluir? Em termos de justiça da norma, parece razoável afirmar que os artigos da nova Lei contemplam de modo satisfatório a determinação histórica de desarmar a sociedade, salvo situações excepcionais. A maior falha no ajuste “mundo ideal mundo real” que se apontava em detrimento da Lei das Armas de Fogo recaía sobre a ausência de uma sanção específica habilitada a conter a derrama de armas brasileiras que regressam ilegalmente para nosso país. Com vistas a contornar tal distorção dois novos tipos penais foram criados no Estatuto, exatamente voltados a obstar o comércio ilegal e o tráfico internacional de armas de fogo (Arts. 17 e 18, respectivamente). Outras inovações estabelecidas a fim de aperfeiçoar os mecanismos coercitivos da Lei nº 9.437/97 serão abordadas mais adiante. Já no que diz respeito à validade do Estatuto, não se tem notícia de restrições sérias quanto à adequação da norma ao ordenamento jurídico vigente, se bem que alguma confusão pode surgir na interpretação do artigo que trata da anistia. A reabertura do prazo de anistia para a entrega de armas não registradas enseja a possibilidade de se invocar o mesmo benefício para os casos em que já há processo criminal em andamento, com fulcro na retroatividade benéfica da norma penal. Ainda nesse quesito, seria preferível que o novel diploma não dependesse em tantos aspectos de posterior regulamentação. Finalmente, no eixo da eficácia, nada ou quase nada se pode dizer de um diploma legal promulgado há menos de três meses. Resta, portanto, supor e imaginar o que 2 BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. 1ª ed.: Edipro, 2001, p.48 4 se pode esperar do Estatuto do Desarmamento em termos de adesão às suas normas, em termos de seu potencial como agente transformador da realidade. Simplificando ao extremo a doutrina de BOBBIO, diríamos que o objetivo a perseguir no campo da eficácia consiste em maximizar a adesão espontânea à norma por parte dos destinatários a quem está dirigida, convencendo-lhes de que seguí-la representa a melhor alternativa, com o “incentivo” adicional das medidas coercitivas nela estipuladas. Para isso é necessário insistir na promoção da mudança cultural já em curso em relação ao controle das armas de fogo. E o Estatuto inova ao instituir a realização do referendo popular em 2005, a partir do qual – se confirmada a vedação total – estaríamos falando verdadeiramente em um ideal de sociedade desarmada. 2. Argumentos contra o desarmamento civil Sob o enfoque das políticas públicas, o controle de armas de fogo consiste em política regulatória, que incide diretamente sobre o comportamento individual das pessoas, empresas e outras organizações, buscando moldar um padrão moral. E, como tal, insere-se na categoria de políticas públicas com maior tendência a gerar polêmica e controvérsia. “Spitzer usa a definição de política de regulação social de dois cientistas socias (Raymond Tatalovich e Byron Daynes) como sendo: „o exercício da autoridade legal para modificar ou trocar valores comunitários, práticas morais e normas de condução interpessoal, dentro de um novo padrão de comportamento’, sendo os melhores exemplos dessas políticas o aborto, os direitos da mulher, o controle do crime, a pornografia, o direito do gay, os direitos civis e o controle de armas’.”3 3 BUENO, Luciano. “Controle de Armas: um estudo comparativo de políticas públicas entre GrãBretanha, EUA, Canadá, Austrália e Brasil.?”. dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Administração Pública e Governo da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo: 2001, p. 23 5 A postura pró-armas encontra respaldo, ou melhor, busca justificar-se em quatro eixos centrais de argumentação: - a arma de fogo é essencial para autodefesa; - a opção por possuir e portar arma de fogo é de índole pessoal, caracterizando exercício de liberdade individual; - quando em mãos de “cidadãos de bem” as armas de fogo não oferecem riscos, e ainda - a proibição não reduz mas sim estimula a criminalidade. 3. Do fim para o começo O Deputado Federal LUIZ ANTONIO FLEURY FILHO, um dos principais críticos ao esforço legislativo em prol do desarmamento, assim expressou sua opinião acerca do Estatuto: “É uma proposta que tem grande apelo cosmético. É fácil fazer um bom marketing para ela. Mas, infelizmente, seria uma medida inócua, que acabaria agravando ainda mais a criminalidade que pretende combater. O grande equívoco da proposta é estabelecer uma relação direta entre o comércio e o porte de armas e o aumento da violência. Se isso fosse verdade, claro, a solução seria bem simples. Bastaria proibir a venda de armas, porque assim elas deixariam de ser utilizadas e os crimes violentos não poderiam mais ser cometidos. Estudos preliminares afirmam que circulam no Brasil vinte milhões de armas ilegais e apenas dois milhões de armas registradas. Ou seja, a proibição ao comércio afetaria menos de 10% do total. E o que é pior: justamente a parte que corresponde aos cidadãos comuns, que as utilizam apenas como meio de defesa contra os bandidos.”4 No intuito de comprovar por números essa suposta ineficácia quase perversa das crescentes restrições à circulação das armas de fogo, valeu-se o ex-Governador de São Paulo de dados preliminares sobre os impactos da Lei nº 9.437/97: “É uma medida totalmente ineficaz, como comprova a experiência. Em São Paulo, por exemplo, no ano de 1994, foram registradas 42.090 armas e emitidos 69.136 portes. 6 Nos anos seguintes, com a modificação da lei e a introdução do Sinarm, tornando mais difícil a aquisição de armas, houve uma queda progressiva, até que em 1998 tivemos 6.714 registros de armas e 2.115 portes de armas emitidos na capital. Evidentemente, se fosse verdade que com a proibição de venda e restrições aos portes de armas teríamos a diminuição da violência, teria ocorrido uma diminuição no número de crimes de roubo cometidos com armas de fogo, bem assim no número de homicídios. Todavia, o que aconteceu foi justamente o contrário. De acordo com os dados publicados pela revista ISTOÉ, edição de 04/06/03, o número de mortes violentas ocorridas na cidade de São Paulo no ano de 2002 foi de 56,9 para cada mil habitantes, um crescimento de 1.300% comparado a 1994. E o crime de roubo registra o altíssimo índice de 1.560,9 casos por cem mil habitantes.”5 Como se vê, para aqueles que se filiam à corrente de que é inútil e contraproducente buscar o desarmamento da sociedade por meio de alterações legislativas, o resultado pretendido não se consuma porquanto é o mercado ilegal de armas de fogo que alimenta o círculo da violência, não havendo sentido algum em criar mais e mais limitações à posse legal das mesmas. Todavia, invocar o comércio clandestino de armas como obstáculo intransponível ao sucesso de qualquer sistema de controle não representa solução razoável. Ao Estado, incumbido da obrigação intransferível de perseguir a pacificação dos conflitos sociais, não é dado simplesmente desistir, deixando de tentar soluções mais ousadas para fazer frente à calamidade da segurança pública. Mesmo porque o argumento pró-armas que atribui ao contrabando de armas mecânica própria alheia aos efeitos do Estatuto passa ao largo de constatação hoje 4 Discurso proferido pelo Deputado Federal Fleury Filho (PTB/SP) em 16.07.2003, fonte APADDI, in www.vivabr.com 5 idem 7 irretorquível: o comércio legal de armas de fogo de fabricação brasileira é um dos principais elos da cadeia que alimenta o mercado ilegal de armamentos. Nessa direção, consignou LUCIANO BUENO: “O „lobby das armas‟ defende que a proibição do comércio de armas é ineficaz para diminuir a violência, pois o problema estaria no contrabando, entretanto, recente pesquisa do Instituto Superior de Estudos de Religião (ISER) constatou que 72,9% das 44.437 armas acauteladas (apreendidas) pela Polícia do Estado do Rio de Janeiro no período de novembro de 1996 a março de 1999 foram fabricadas no Brasil. O levantamento, divulgado em 29/09/99 na conferência sobre Controle do Comércio Internacional de Armas Leves, derruba um mito da segurança pública de que o armamento dos bandidos brasileiros seria, em sua maioria, estrangeiro. Constata-se tratar de um problema interno.”6 Na mesma linha, o Instituto SOU DA PAZ vem alertando em suas sucessivas campanhas de mobilização que a imensa maioria das armas usadas na prática de delitos “são brasileiras e de calibre permitido. Estas armas entram legalmente no mercado e são transferidas para criminosos por meio de roubos, desvios, contrabando ou são usadas por pessoas sem histórico criminal que acabam matando e morrendo em situações cotidianas.”7 Ou seja, armas legalmente inseridas no mercado migram para a clandestinidade, seja através do roubo de armas registradas – a Divisão de Produtos Controlados da Polícia Civil de São Paulo informa que, em média, 11.000 armas em todo o Estado são roubadas anualmente de pessoas sem histórico criminal ou de agentes de segurança privada –, seja através do tráfico internacional de armas brasileiras para o próprio Brasil, isto é, armas legalmente vendidas para países fronteiriços que retornam contrabandeadas e abastecem o mercado negro. Ainda de acordo com BUENO, “Roubos de armas de empregados de empresas de segurança tornaram-se a principal fonte de armas leves a quadrilhas e assaltantes nos últimos anos. Todos 6 BUENO, op. cit., p. 176 8 os bancos necessitam ter seguranças armados em suas agências para receberem o seguro por roubo, no entanto, os seguranças têm ordem para entregarem suas armas sem resistência para não por em risco a vida dos clientes.”8 Em resumo, uma redução significativa das armas de fogo legalmente em circulação acabaria por reduzir também o contingente daquelas comercializadas clandestinamente. Outros ousam sustentar que o desarmamento, enquanto objetivo, não é louvável porque traria como decorrência efeito reverso: na medida em que o dito “cidadão de bem” é forçado a se desarmar, aumenta a segurança do “bandido” em praticar o delito sem ter sequer o receio de enfrentar resistência, o que – segundo tal lógica enviesada – culminaria em desastroso recrudescimento do problema da segurança pública. Vozes que se ergueram no Congresso Nacional com semelhante discurso, dentre muitas outras, foram as dos Deputados Nelson Marquezelli e Pompeo de Mattos: “A criminalidade aumentou gravemente no Brasil, coincidentemente, nos últimos seis anos. Este fenômeno não pode ser entendido a partir de um diagnóstico que elege, sem nenhuma comprovação, a arma de fogo como a causa determinante dos homicídios. Ora, a arma de fogo em mãos de cidadão tem sido vista pela moderna criminologia norte-americana como um importante instrumento de discussão e, portanto, de defesa, através do qual o cidadão de bem inibe a ação dos criminosos. A tese do armamento sob controle, já está amplamente comprovada pela queda dos crimes violentos em todos os 32 estados norte-americanos que estimularam seus habitantes aptos a portarem armas. Ao contrário, o cidadão desarmado sempre se 7 8 Sou da Paz no Legislativo, Boletim nº 1: propostas, soudapaz.org BUENO, op. cit., p. 160 9 insere num contexto de maior exposição ao crime pois os bandidos passam a ter certeza que suas vítimas estão desarmadas e indefesas.”9 “A proibição da venda e do porte de armas, somente servirá para tirar do cidadão de bem, o direito de se defender, pois os marginais continuarão armados, e o pior, essa proibição contribuirá com o crescimento da ilegalidade e conseqüentemente, com a corrupção. Não é proibindo radicalmente a venda e o porte de armas, que iremos mudar a situação atual da violência. Jamais devemos incentivar ou motivar a população ao uso de armas, mas seria injusto impedir que o cidadão de bem, tenha o direito de defesa.”10 Esta visão maniqueísta está ancorada em premissas equivocadas e revela profundo desconhecimento das peculiaridades da violência armada no Brasil. A não ser por critérios estranhos ao ordenamento legal (de casta), a divisão da população em “cidadãos de bem” e “bandidos” somente pode ser feita a partir da verificação dos antecedentes criminais de cada um, aplicando-se a denominação pejorativa àqueles que apresentem condenação criminal transitada em julgado. E mais. Na linguagem coloquial utilizada na Cartilha pelo Desarmamento distribuída aos parlamentares no ano de 2000, o SOU DA PAZ rebateu com veemência a falsa máxima “Quem mata no Brasil é bandido”, por meio das seguintes informações: “Cerca da metade dos assassinatos são cometidos por pessoas sem antecedentes criminais! Ao contrário do que muitos pensam, cerca de metade dos homicídios não são cometidos por bandidos em assaltos ou chacinas. Centenas de pessoas morrem todas as semanas assassinadas por indivíduos sem antecedentes criminais e que se conhecem. São aquelas que perdem a vida em situações banais: brigas de trânsito, em bares ou ainda assassinadas dentro de casa pelos familiares. É muito difícil 9 Discurso proferido pelo Deputado Federal Nelson Marquezelli (PTB/SP), em 31.07.03, in www.vivabr.com, seção atualizada em 16.12.03 10 evitar que estes conflitos ocorram, mas, se conseguirmos reduzir o número de armas, o que poderia ser agressão não se tornará mais um assassinato.” As tendências opostas que já se verificam no interior e na Capital do Estado de São Paulo constituem um forte indicativo de como a arma de fogo funciona como um facilitador da letalidade dos conflitos mesmo quando em mãos de cidadão até então “de bem”: “É o que comprova a pesquisa realizada em São Paulo que alerta para a queda das lesões corporais e o aumento dos homicídios na capital e situação inversa no interior. Percebe-se que a maior facilidade na obtenção e no uso de armas nas grandes cidades tem transformado brigas em assassinatos, feridos em mortos, discussões em tragédias, todos os dias. Já no interior, onde a presença de armas de fogo é menor, o aumento da violência se reflete em um crescimento das lesões corporais, ou seja, agressões que são graves, mas não causam a morte. Mesmo que a lei só consiga reduzir estes homicídios, já terá prestado um grande serviço à nação, podendo salvar milhares de vidas anualmente. Poucos atos do Congresso Nacional podem ter tanto efeito prático em tão pouco tempo.”11 Os dois primeiros argumentos costumeiramente sustentados pelo grupo pró-armas tratar-se o porte de arma de direito individual inalienável, e o de ser imprescindível à autodefesa – estão intimamente ligados, e serão analisados no tópico seguinte. 4. Argumentos pró-desarmamento: a falácia da autofesa A arma de fogo não pode mais ser encarada como instrumento eficaz e razoável de auto-defesa, mas sim como uma perigosa ilusão de proteção e segurança. Na minha infância, vivida em um bairro classe média alta de São Paulo, fazia sentido – ou ao 10 discurso proferido pelo Deputado Federal Pompeo de Mattos (PDT/RS), in www.vivabr.com, seção atualizada em 16.12.03 11 Sou da Paz pelo desarmamento, in soudapaz.org 11 menos assim se pensava – que o pater familias tivesse em casa um revólver para qualquer eventualidade: um ladrão em cima do muro, arruaça na vizinhança, um bêbado mais insolente perambulando na porta, ou, no limite, como meio de enfrentar uma dupla de assaltantes que pretendesse subjugar mulheres e crianças. Ora, no cenário atual, em que trombadinhas e batedores de carteira foram substituídos pelo invariável roubo a mão armada, esta possibilidade romântica de resistência armada encontra-se de todo superada. Como tal, e ainda nos limites de um universo em linhas gerais estranho ao verdadeiro drama da morte violenta por arma de fogo, é lícito constatar que pessoas com mais de 30 anos já não consideram imprescindível ou mesmo razoável possuir uma arma em casa como medida de segurança. Em todas as campanhas de mobilização que promove, o Instituto SOU DA PAZ registra que, segundo pesquisa realizada no ano de 1999 pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, “um cidadão armado tem 57% mais chance de ser assassinado do que os que andam desarmados”. E mais, de acordo com um estudo americano também invocado pelo instituto, “Quem tem arma em casa tem quase 3 vezes mais chances de morrer em um assalto do que os que estão desarmados.”12 “O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) realizou em 1999 um estudo sobre o risco na cidade de São Paulo de um pessoa armada, ao reagir a um assalto, tornar-se uma vítima fatal. Para o cálculo os pesquisadores consideraram e estimaram uma série de variáveis populacionais e de estoque de armas, chegando a uma média de 1,8 armas para cada 10 habitantes. Um número abaixo dessa média indicaria a expectativa da eficácia do uso de armas em situações defensivas. Porém, a média calculada de vítimas armas que reagiram dentre as vítimas de roubo seguido de morte foi de 2,84 em cada 10 pessoas, indicando a ineficácia da reação 12 “Porque defender o desarmamento”, in Sou da Paz pelo desarmamento, soudapaz.org 12 e representando um risco superior de fatalidade de 57% para pessoas que andam armadas e que reajam, do que entre aquelas que não andam armadas.”13 O mesmo estudo, elaborado pelos pesquisadores LIMA, SINHORETTO e PIETROCOLLA (2000), registrou uma maior incidência de múltiplas vítimas nos casos de reação armada, o que indica que a opção por andar armado amplifica os riscos não só da própria pessoa, como também de quem se encontra em sua companhia. Associado a essa discussão, encontra-se o conceito de efeito rede enfocado por LUCIANO BUENO, que consistiria no pretenso “benefício que as pessoas que não possuem armas usufruem pelo fato de outras pessoas as possuírem, fazendo com que os criminosos evitem cometer crimes aos perceberem ser alta a probabilidade da potencial vítima ter uma arma, embora ela não as tenha.”14 Os pró-arma, à moda dos deputados que enxergam no direito de possuir arma de fogo um direito natural à autodefesa, alegam que ladrões americanos evitam roubar casas ocupadas pois esperam resistência armada, enquanto na Grã-Bretanha esse crime é mais comum dada a baixa probabilidade de haver uma arma em casa. O comentário seguinte tecido pelo mesmo autor parece-me extremamente adequado à realidade brasileira: “O efeito rede por sua vez, traz um perverso contrário, o efeito radicalização. Argumenta-se que os criminosos quando decididos a cometer um crime, caso suspeitem que suas potenciais vítimas tenham uma arma, normalmente optam pela radicalização da violência, usando do elemento surpresa sempre a seu favor para imobilizar as vítimas por ferimento ou morte antes que estas tenham qualquer chance de reação. Assim a percepção pelos criminosos de um aumento da população armada levaria a um aumento nos casos de radicalização da violência e 13 14 BUENO, op. cit., p. 166 BUENO, op. cit., p. 39 13 na visão pró-controle, tais casos suplantam em muito as ocasiões em que as vítimas conseguem satisfatoriamente se defenderem com o uso de armas.”15 Exemplo invocado na seqüência reforça o ponto de vista pró-controle: “Ele cita o exemplo da cidade de Boston onde a disponibilidade de armas é muito menor que na maioria das outras cidades. Lá, existem altas taxas de roubos, o que pode indicar o efeito rede negativo, porém, poucas mortes ou ferimentos acontecem em Boston, o que, por sua vez, pode significar que os criminosos não usam de extrema violência por temerem uma reação menos armada.”16 Depreende-se do cenário geral que, muito embora os pleitos favoráveis ao total desarmamento civil sejam alvo de críticas, nada existe de sólido a justificar o antigo modelo, eis que a conduta de portar armas – mesmo quando exercida com autorização legal – constitui inegável fator criminógeno, tanto pela radicalização quanto pelo aquecimento do mercado ilegal de armas. Bem por isso, nas considerações finais que teceu em sua extensa e muito esclarecedora dissertação de mestrado, asseverou BUENO: “... em termos técnicos, o banimento do direito do uso de armas para autodefesa é um passo necessário a um rígido controle, ou mesmo a proibição do uso de pistolas, armas mais usadas dentre os casos de violência com armas, sendo que tal questão é a mais espinhosa em termos morais e políticos, cabendo à sociedade uma definição legal sobre os limites do uso de armas e sobre o nível de controle que deseja. Nesta questão cabe bem a reflexão sobre o tipo de sociedade em que se deseja viver, se em uma relativamente livre das armas ou em uma em que as pessoas tenham que sair de casa em carros blindados ou armadas com pistolas, usando coletes e capacetes a prova de balas e outros dispositivos de segurança que seriam necessários à defesa 15 16 idem BUENO, op. cit., p. 40 14 contra um poder de violência cada vez maior e oferecido „institucionalmente‟ também a criminosos e desequilibrados.”17 Para concluir: “O estabelecimento do controle por meio de uma consistente regulação, práticas administrativas e ação policial, deve-se a uma percepção social, em variados graus, de que armas são instrumentos perigosos e um grave fator de risco a segurança pública. Tal controle é evidentemente controverso por incidir sobre a esfera das liberdades individuais e em uma área tão sensível como a do direito a autodefesa, o que situa a discussão na difícil questão dos valores e da moral dos indivíduos e de suas sociedades, tornando-se, via de regra, um assunto polêmico e passional onde argumentos lógicos e mesmo provas científicas tem peso relativo. (...) Os que assumem uma correlação positiva podem usar de uma metáfora na qual associam „armas e violência‟ à reação presente na química de certas substâncias (...) Sob essa ótica e entendimento, o fácil acesso a armas de fogo torna-se gasolina que se joga na fogueira das relações e conflitos humanos, tornando o controle de armas a opção imediata e necessária ao esforço de controle da violência por parte dos governos, principalmente em países que passam por fortes pressões e diferenças sociais como é o caso dos EUA e, em maior grau, do Brasil.”18 5. O Brasil e a experiência de outros países que implantaram o desarmamento A fim de situar o Brasil no cenário mundial no que diz respeito ao controle das armas de fogo, busquei respaldo nos dados coletados e analisados por LUCIANO BUENO em dissertação de mestrado apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Administração Pública e Governo da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, no ano de 2001, sob o título Controle de Armas: um estudo comparativo de políticas públicas entre Grã-Bretanha, EUA, Canadá, Austrália e Brasil. 17 ibid, p. 199 15 Reporta-se LUCIANO BUENO a uma classificação geral da elegibilidade à posse de armas por civis (controle da pessoa), escalonada em três grupos: o da elegibilidade geral, no qual todo cidadão tem direito à posse de armas, desde que atendam a requisitos mínimos; o da permissividade restrita, “no qual se permite a posse ou o uso de armas apenas a pessoas que apresentem uma convincente razão, geralmente por pertencerem a um clube de tiro esportivo ou por comprovadamente necessitarem de uma arma para sobrevivência ou autodefesa em situações em que o Estado não possa fazê-lo, exige-se treinamento e a comprovação de destreza e preparo para o uso de armas”19, e, por fim, o da proibição quase total a posse de armas, integrado quase que isoladamente pelo Japão e – dependendo do resultado do referendo popular previsto para 2005 – eventualmente também pelo Brasil. Os seis países classificados pelo autor foram ordenados da seguinte maneira: Estados Unidos e Brasil na categoria de elegibilidade geral, Canadá no marco divisório para o grupo de permissão restrita, no qual foram enquadrados Austrália e Grã-Bretanha, e finalmente o Japão, situado na de proibição quase total. Observa o autor que “No Japão as vendas de armas foram proibidas e o baixíssimo estoque de armas remanescente, na maioria armas de caça, está sendo recolhido pelo governo na medida que os proprietários falecem. Há menos de 50 pessoas autorizadas a possuírem pistolas no Japão (equipe olímpica) e os índices de violência com armas são desprezíveis, em geral, casos ligados à ação da máfia japonesa”.20 Ainda segundo os dados disponibilizados por LUCIANO BUENO, as alterações legislativas implementadas pela Austrália em 1997 é que propiciaram o salto daquele país de um regime de elegibilidade geral para o grupo de permissão restrita: 18 ibid, p. 188 ibid, p. 193 20 idem 19 16 aboliu-se o argumento da autodefesa, aumentou-se o rigor para a emissão de licenças e estipulou-se a obrigatoriedade dos proprietários se filiarem a um clube. Demais disso, foram banidas as armas de assalto, e fixadas a exigência de licenciamento e registro universais, somadas ao treinamento obrigatório de novos proprietários. Por sua vez, na “Grã-Bretanha, onde as pistolas foram banidas e as poucas de competição que restaram estão confinadas aos clubes, o acesso às demais armas depende da aprovação e cumprimento de rígidos controles como: necessidade de referências pessoais, checagem de antecedentes, visita da polícia à residência, justificativa de boa razão para a posse de arma e outros, critérios que situam a legislação britânica no extremo da permissão restritiva, sendo que a adição de novos controles a levaria para o campo da não elegibilidade ou proibição quase total.”21 E, abordando os resultados obtidos com a adoção da política de permissão restrita na Austrália, destaca ainda o mesmo autor: “Com relação ao impacto na violência, a GCA pontua que a freqüência absoluta de massacres na Austrália até 1996 só ficava atrás da americana, mas como a Austrália tem uma população 13 vezes menor que a americana e uma quantidade de armas 50 vezes menor, em termos relativos mostrava-se como o país de maior incidência e probabilidade de ocorrência de crimes múltiplos no mundo, com uma média entre 1987 e 1996 de três eventos com cinco mortes por ano. Após o banimento esta taxa caiu pela metade.”22 Os argumentos utilizados na classificação do Brasil no segmento de menor controle tiveram em vista a Lei nº 9.437/97, vigente à época em que o trabalho foi apresentado: “Mesmo com a legislação de 1997 o Brasil continua com uma ampla elegibilidade onde qualquer civil acima de 21 anos pode legalmente adquirir até seis 21 BUENO, op. cit., p. 195 17 armas (duas para defesa pessoal, duas para caça e duas para coleção) e tê-las em casa, a única restrição que também é comum aos outros países é a da checagem de antecedentes. Os critérios de elegibilidade tornam-se mais severos apenas para a aquisição de armas esportivas de calibre e modelos controlados pelo Ministério do Exército e para a emissão da licença de porte de armas que exige comprovação de comportamento social produtivo (trabalho, endereço fixo, integração com a comunidade, etc.), avaliação psicológica e destreza com armas.”23 Agora, com a entrada em vigor da Lei nº 10.826, de 23 de dezembro de 2003, é certo que nosso país caminhou muitos passos nessa escala, passando a situar-se, creio eu, no segmento intermediário da permissão restrita. Alguns exemplos representativos deste aperto significativo no sistema de controle brasileiro introduzido pelo Estatuto do Desarmamento merecem especial destaque. Na esteira do controle central exercido pelo Home Office britânico, o SINARM – Sistema Nacional de Armas, já previsto na Lei nº 9.437/97, foi definitivamente implementado, congregando o cadastro de todas as armas de fogo em circulação no país, com exceção das pertencentes às forças armadas. Passou a centralizar também os dados referentes às autorizações de porte e renovações e às “transferências de propriedade, extravio, furto, roubo e outras ocorrências suscetíveis de alterar os dados cadastrais, inclusive as decorrentes de fechamento de empresas de segurança privada e de transporte de valores” (Art. 2º, IV). O Certificado de Registro de Arma de Fogo será expedido pela Polícia Federal e necessariamente precedido de autorização do SINARM (Art. 5º, § 1º), “autorizando o seu proprietário a manter a arma de fogo exclusivamente no interior de sua residência ou domicílio, ou dependência desses, desde que seja ele o titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa” (Art. 5º, caput). 22 ibid, p. 149 18 Tal vedação reflete uma mudança por parte do ordenamento jurídico brasileiro em direção ao repúdio ao argumento da autodefesa já verificado nas legislações da GrãBretanha e do Canadá, eis que passa a aceitá-lo exclusivamente para efeito de proteção da casa – embora no conceito mais amplo do termo. Assim, a idéia de que andar armado é justificável como medida de segurança pessoal está definitivamente banida de nosso sistema legal. A lei passou também a exigir a idade mínima de 25 anos para a aquisição de arma de fogo (Art. 28), sendo que a comercialização de armas de fogo, acessórios e munições entre pessoas físicas somente será efetivada mediante autorização do SINARM (Art. 4º, § 5º). Dentre os requisitos a serem preenchidos por parte do comprador de uma arma de fogo destaca-se o inserido no artigo 4º, inciso III: “comprovação da capacidade técnica e de aptidão psicológica para o manuseio de arma de fogo, atestados na forma disposta no regulamento desta lei.” Ora, a obrigatoriedade de treinamento é apontada no trabalho de Luciano Bueno como uma providência elementar dos sistemas de controle, presente em quase todas as legislações. Nessa perspectiva, e tendo em vista que o Estatuto ainda não foi regulamentado, seria prudente que a exigência de capacidade técnica não ficasse reduzida a mera formalidade, mormente em virtude da notória falta de condições materiais do Estado em promover – em tempo razoável – avaliações psicológicas idôneas, o que levou inclusive à recente supressão do requisito do exame criminológico para a concessão de progressão de regime aos presos. Por outro lado, com vistas a maximizar os efeitos da anistia – já concedida anteriormente pela Lei das Armas de Fogo de 97 – o Estatuto prevê indenizações aos possuidores e proprietários que fizeram a entrega de suas armas, a serem 23 ibid, p. 194 19 concedidas nos termos de regulamento a ser ainda editado, o que foi feito na Austrália com um ônus para o Estado equivalente a 300 milhões de dólares australianos (em 1999, equivalentes a uma média de 0,8 do dólar americano)24. Contudo, a principal inovação consiste na vedação total ao porte de arma de fogo a não ser pelas pessoas relacionadas no artigo 6º 25, bem como para os casos previstos em legislação própria. Sem dúvida, porém, o realinhamento do Brasil no grupo de maior controle – o da proibição quase total – dependerá de uma resposta positiva ao referendo popular a ser realizado em outubro de 2005 (Art. 35 e §§). 6. Exercício de democracia: o referendo popular de 2005 Muito embora não tenha proibido definitivamente a venda de armas de fogo para civis, apenas tornando ainda mais rigorosas as restrições para a compra de uma arma de fogo, e vedando o porte como regra geral, a nova lei prevê a realização de 24 25 ibid, p. 148 Integrantes das Forças Armadas, da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, da Polícia Ferroviária Federal, policiais militares, policiais civis e Corpo de Bombeiros, agentes e guardas penitenciários em serviço, guardas municipais das capitais dos Estados e das cidades com mais de 500.000 habitantes, guardas municipais dos municípios com mais de 250.000 habitantes quando em serviço, agentes operacionais da ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) e do Departamento de Segurança da Secretaria de Segurança Institucional da Presidência da República e integrantes das policias legislativas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Também foram contempladas empresas de segurança privada e de transporte de valores legalmente constituídas, integrantes de entidades de desporto cujas atividades esportivas demandem o uso de armas de fogo e cidadãos residentes em áreas rurais que comprovem depender do emprego de arma de fogo para prover a subsistência alimentar de sua família – os quais poderão obter porte na categoria de caçador. 20 um referendo popular em 2005 para que os brasileiros decidam – pelo voto – se querem ou não uma proibição absoluta. Tem-se, portanto, o espaço de um ano para que as entidades da sociedade civil promovam debates e campanhas verdadeiramente democráticos sobre a questão do desarmamento, destrinchando os argumentos pró e contra sua implementação integral para civis. Até outubro de 2005, não só poderão ser avaliados os primeiros impactos do Estatuto, se é que alcançará alguma eficácia, mas sobretudo haverá um intervalo temporal determinado ao longo do qual a relação da população com armas de fogo deverá ser repensada e discutida, com possibilidade concreta de criar-se um novo caldo de cultura a respeito de tema tão delicado. No último boletim de 2003, o SOU DA PAZ publicou o resultado de duas pesquisas realizadas no final do ano com dados preliminares sobre a opinião popular a respeito do tema: em levantamento realizado pelo IBOPE no final de setembro de 2003, em 145 municípios, 82% dos entrevistados disseram-se favoráveis às medidas contidas no Estatuto de Desarmamento, enquanto pesquisa feita pelo Instituto Sensus, a pedido da CNT (Confederação Nacional dos Transportes), revelou que 74,1% dos brasileiros são favoráveis à proibição da venda de armas de fogo no país, e 23% contrários. Entre os entrevistados, 62,5% consideram que portar uma arma não ajuda a se proteger contra a violência e 31,1% acham que sim, mas apenas se a pessoa souber utilizá-la26. Certamente, as inúmeras mobilizações organizadas pelo Instituto SOU DA PAZ nos últimos anos foram fundamentais à conscientização da opinião pública quanto aos riscos inerentes ao manuseio descontrolado de armas de fogo: em 04.05.2003 foram depositados mais de 500 pares de sapatos de vítimas de armas de fogo no gramado 26 “Estatuto do Desarmamento volta ao Senado”, matéria publicada em 26.10.03, notícias.terra.com.br 21 do Congresso Nacional, em 14.09.03, empreendeu-se a Caminhada Brasil sem Armas, no Rio de Janeiro, com a participação de mais de 40.000 pessoas – aí incluídos políticos e personalidades – que teve sua repercussão amplificada por ter sido exibida em capítulos da novela das 8 da Rede Globo. Outras caminhadas foram realizadas em Recife e Brasília. No dia 24 de outubro, logo após a aprovação do Estatuto pela Câmara dos Deputados, 9.969 velas foram acesas em homenagem às 9.969 pessoas que morreram por armas de fogo nos três meses em que o projeto tramitou na Câmara27. E, como se sabe, a opinião pública funciona como principal fonte de pressão sobre as votações do legislativo. Em verdade, com a introdução da sistemática do referendo popular, a opção pela proibição quase total foi outorgada diretamente ao cidadão, diretamente à opinião pública. Ao abordar as novas formas e funções do direito, identificando nove tendências, refere-se o professor JOSÉ EDUARDO FARIA à primeira delas como “de alargamento e desformalização nos tradicionais procedimentos de elaboração legislativa, especialmente nas questões mais técnicas, de caráter interdisciplinar e situadas nas fronteiras do conhecimento.”28 Mais adiante, discorrendo sobre as vantagens e riscos dessa mesma tendência, assevera: “A negociação decorrente dessa desformalização dos procedimentos de elaboração legislativa também pode otimizar o tratamento de temas jurídicos em contínua evolução e levar até mesmo ao advento de „leis experimentais‟. Ou seja, aquelas que, no próprio curso de sua votação e aprovação, estabelecem cláusulas de abrogação e pressupõem mudanças periódicas e regulares com base numa avaliação técnica ex post de suas conseqüências, abrindo caminho para um 27 Jornal Sou da Paz, nº 7, Outubro 2003, p. 7 FARIA, José Eduardo; KUNTZ, Rolf. Qual o Futuro dos Direitos? Estado, mercado e justiça na reestruturação capitalista: São Paulo, Ed. Max Limonad, 2002, p. 89 28 22 movimento contínuo de ajustamento das leis à realidade, o que termina fazendo da eficácia a principal condição de sua legitimidade.”29 E prossegue, “Contudo, na medida em que propicia reações ad hoc a fatos e evoluções imprevistas, esse processo de aprendizagem permite converter experimentação em improvisação. Além disso, ele ainda pode ser objeto de manipulação demagógica por parte de dirigentes, parlamentares e os chamados „formadores de opinião pública‟, que teriam nos períodos de revisão o pretexto e o caminho aberto para poder deformar a imagem do direito em vigor perante a sociedade ou forjar determinadas expectativas com relação às mudanças pretendidas.” Enfim, o esclarecimento da população quanto aos mitos que circundam a questão do desarmamento, assim como a divulgação de dados oficiais confiáveis quanto aos primeiros impactos do Estatuto – que oferecem imenso risco de manipulação, não tanto em sua formatação mas principalmente em sua interpretação – tornam-se providências indispensáveis à obtenção da aprovação popular ao desarmamento civil. 7. Perspectiva feminina – enfrentar a violência sem recorrer às armas Sem nenhum compromisso técnico, mas exclusivamente de modo a emprestar um elemento a mais à reflexão em torno do tema do desarmamento, vejo-me impelida a formular a seguinte questão: como as mulheres enfrentam a violência urbana sem recorrer às armas de fogo? As mulheres estão tanto ou mais sujeitas à violência urbana quanto os homens. Hoje, não há como negar que meninas e mulheres de todas as idades trabalham, estudam, saem à noite, circulando pela cidade invariavelmente desarmadas. 29 ibid, pp. 90/91 23 Entretanto, segundo se extrai de forma inconteste de todas as estatísticas invocadas neste apanhado, os homens são as principais vítimas – assim como os agentes – dos crimes praticados com armas de fogo. No universo feminino, a perspectiva de uma sociedade desarmada já é realidade. Se amanhã dividíssemos a cidade de São Paulo por gênero, traçando um muro divisor, o estoque legal e ilegal de armas estaria quase que isolado no hemisfério masculino. Dificilmente uma mulher imagina reagir com uma arma de fogo a qualquer forma de violência – roubos, seqüestros ou mesmo ao trauma maior dos estupros. Em termos banais: a mulher mata menos e morre menos. É alvejada por balas perdidas, é vítima fatal de um ladrão mais afoito, mas jamais perde a vida em uma discussão na esquina com uma vizinha ou uma colega de escola. Tais considerações seriam de todo irrelevante não fosse o retrato bastante peculiar das mortes por arma de fogo na sociedade brasileira. Como relata Luciano Bueno em seu trabalho acadêmico, “Os dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo junto com estimativas feitas pela polícia sobre o número de mortos em chacinas mostram que em 1998, dos 12.500 homicídios no estado, 2,4% foram devido a chacinas, 1,25 foram por latrocínio e 3,8% foram de criminosos (diria eu, cidadãos) mortos pela polícia, os restantes 92,6% tiveram causas relacionadas a conflitos interpessoais. Como bem aponta o coordenador do ILANUD, Túlio Kahn, chama a atenção a altíssima proporção da última categoria (...) sendo tal proporção um dos mais fortes pontos levantados a favor da redução drástica da disponibilidade de armas no país por estarem presentes na grande maioria desses eventos.”30 Com efeito, esse caráter sui generis dos homicídios com arma de fogo no cenário paulistano, consubstanciado na proximidade ou, quando menos, no conhecimento prévio entre vítima e ofensor, agregado à futilidade do motivo que conduz ao evento 30 ibid., p. 163 24 morte na enorme maioria dos casos, torna mais interessante o critério de gênero na investigação das causas desse fenômeno e dos mecanismos aptos a combatê-las. A formação feminina não inclui, desde a infância, o preparo para a guerra. No mais das vezes, as meninas não brincam com espadas, armas fictícias ou de luta. Nessa linha, talvez seja lícito afirmar que sequer ocorre à mulher conceber a arma de fogo como instrumento de autodefesa, mas antes como uma ameaça à sua integridade física. Ainda no mesmo passo, vale ponderar que a mulher, sentindo-se ameaçada e sem condições de enfrentar situações de perigo, procura evitá-las o mais possível, dificilmente permanecendo em um bar até o apagar das luzes. Os elementos lançados parecem simplistas. Entretanto, as brutais diferenças que ainda distinguem o comportamento de homens e mulheres, no caso das armas de fogo, revelam-se infinitamente mais sábias e vantajosas para o “segundo sexo” (ao menos em termos de sobrevivência, não obstante o sofrimento decorrente das mortes causadas por armas de fogo não poupar mães, irmãs, companheiras). Daí porque a conscientização dos pais quanto às falácias embutidas na associação entre armas e autodefesa, assim como em relação ao perigo inerente ao estímulo das atitudes de macho/machistas, que enfrentam o conflito ao invés de deles fugir, pode representar uma alternativa simples e barata no combate ao desperdício de tantas vidas. Jovens de ambos os sexos devem ser fortemente desencorajados a manusear armas de fogo, desde a primeira idade. Por outro lado, devem ser indistintamente ensinados a resolver seus conflitos pela palavra, pelo distanciamento, aprendendo a identificar ambientes de risco. 8. Desarmamento civil – a necessária mudança cultural Inúmeros aspectos que circundam a questão do desarmamento alinham-se em prol do Estatuto, e encorajam uma defesa de sua eficaz implementação. 25 Em primeiro lugar é induvidoso que o drama do homicídio por arma de fogo, embora assombre a todos, possui um eleitorado cativo. A vítima, e muitas vezes também o autor desta modalidade delitiva é extremamente jovem e reside na periferia de um grande centro urbano: “Só em 1998, 6.876 jovens, entre 10 e 19 anos, foram assassinados no Brasil. Apenas no Rio de Janeiro, 8 pessoas entre 15 e 24 anos perdem a vida todos os dias, vitimadas por armas de fogo. Nesta faixa etária, a chance de uma pessoa ser morta com arma de fogo é 4,5 vezes maior do que o restante da população.”31 Dados publicados no Boletim nº 1 do Instituto SOU DA PAZ revelam que “Entre os anos de 1995 e 2002, mais de 400.000 pessoas foram mortas, 90% delas vítimas de armas de fogo. Se é verdade que a criminalidade preocupa a todos, não é verdade que ela afeta a todos da mesma maneira. Por exemplo, na Grande São Paulo e na Grande Rio ocorrem cerca de 40% dos homicídios de todo o país. Mesmo nestas cidades, o crime violento escolhe um público definido: jovens, pobres, moradores das periferias e favelas. Na faixa etária de 15 a 24 anos, o homicídio já responde por 75% das mortes, aí incluídas todas as causas.”32 As estatísticas sobre a faixa etária em que situado o problema da violência armada não deixam margem à dúvida, e confirmam a situação que se presencia com a militância no Tribunal do Júri de São Paulo: “Uma característica alarmante é a alta taxa de homicídios com armas entre jovens, principalmente entre adolescentes do sexo masculino. Um levantamento do Programa de Aprimoramento das Informações da Mortalidade (PRO-AIM) da Prefeitura de São Paulo feito em 1995 aponta que 53,6% de todos os jovens entre 10 e 19 anos que morreram em São Paulo em 1995 foram assassinados com armas de fogo. De acordo com o Departamento de Homicídio e Proteção à Pessoa (DHPP) da Polícia Civil da cidade de São Paulo, um exame em 4.000 inquéritos policiais do DHPP mostrou uma taxa de 93% de 31 “O problema da armas de fogo no Brasil”, in Sou da Paz pelo Desarmamento, soudapaz.org 26 assassinatos por armas na cidade de São Paulo em 1996, sendo que em 63% dos casos as vítimas tinham entre 16 e 24 anos (Lozano, 1997).” 33 Exatamente por isso, e correndo o risco de resvalar em inocente e inútil prognóstico otimista, poder-se-ia dizer que o público-alvo a quem se dirige o Estatuto do Desarmamento estaria ainda bastante permeável e suscetível a uma radical mudança cultural. Vale dizer: na atualidade, o infrator que acaba de se tornar penalmente imputável cresceu em um ambiente social em que a posse de uma arma de fogo se justificaria sobre múltiplos argumentos, sendo o mais recorrente deles o engodo da autodefesa. Em texto publicado em agosto de 1999, o ex- Comandante Geral da Polícia Militar de São Paulo, Carlos Alberto de Camargo, referiu-se ao desarmamento como um “processo cultural”, salientando: “Para desarmar a cabeça precisamos de uma mensagem que seja eficaz, ou seja, para convencermos as pessoas que ingenuamente portam armas, mesmo sem habilitação técnica para uma eventual defesa, é preciso alertá-las de que correm assim maior risco de vida, ou mesmo de que correm maior risco de cometer um crime durante a violenta emoção de uma briga, e que sua arma poderá sempre passar para as mãos dos bandidos. O melhor argumento, entretanto, seria a notícia de que elas já não precisassem mais de armas para autodefesa contra delinqüentes. Mas a arma, desgraçadamente, para grande quantidade de jovens da periferia é muito mais a âncora para uma série de valores absolutamente vitais e ligados à auto-estima, como ser alguém, ser importante, respeitado, temido. Tirar a arma de dentro de sua cabeça é como apertar o botão delete do computador, apaga-se um programa. Neste caso, portanto, a mensagem deve ter em vista a técnica da substituição, ou seja, a imagem da arma, que está lá por uma necessidade de auto-estima, deve ser substituída por outra que também sirva de âncora, mas estimulando valores éticos. E o jovem deve acreditar, gostar, ter orgulho desse novo valor, e deve também sentir-se agente ativo e respeitado 32 Sou da Paz no Legislativo, Boletim número 1: fim do mais do mesmo, 2002, soudapaz.org 27 dessa mudança, que implica na visão de oportunidades de crescimento pessoal geradas por políticas públicas sociais adequadas.”34 Afinados com essa linha de pensamento, diversos estudiosos vêm, há algum tempo, apontando causas eminentemente culturais para o problema da violência urbana. Assim é que, “Como aponta Adorno ao investigar a crise da violência urbana: „Bares parecem ser espaço privilegiado onde os homens se confrontam. Um olhar atravessado, um desafio lançado, uma opinião mal escolhida, tudo serve de pretexto para o desencadeamento de uma luta que pode – como de fato ocorre – convergir para um homicídio, ainda mais se apenas um dos contendores estiver armado e encorajado por bebida alcoólica‟. Observa-se, no geral, um profundo processo de banalização da violência e de desprezo à vida, matar ou morrer vem se tornando coisas do dia a dia, assaltos e outras violências viraram rotina na vida de milhões, ossos do ofício de ser brasileiro (Adorno, 1998, p. 229)” 35 Talvez a distinção mais significativa entre o Estatuto do Desarmamento e a Lei nº 9.437/97 resida justamente na pretensão desta última de promover o efetivo desarmamento da sociedade, excluindo a possibilidade do cidadão portar ou mesmo possuir armas de fogo, mesmo que comprovadamente “de bem”. A nova lei parece carregar, com vigor ainda não sentido, um conteúdo de auspiciosa transformação histórica da sociedade brasileira, que, espera-se, será confirmado quando do referendo popular em 2005. Certo é, porém, que não se pretendeu aqui elevar o Estatuto do Desarmamento ao patamar das (inexistentes) soluções para todos os males. Fará muito se conseguir transmitir à sociedade aquilo que existe de mais trágico no espírito da Lei de Talião: 33 BUENO, op. cit., p.164 CAMARGO, Carlos Alberto de. “O que é o desarmamento?”. Presidente do Instituto de Pesquisa de Segurança Pública, Diretor do International Police Executive Symposium 35 BUENO, op. cit., p. 157 34 28 “Aquele que com fogo fere, com fogo será ferido”36 – não a sua dimensão de ameaça, mas a lamentável constatação de sua validade prática. 36 ibid, referência extraída da epígrafe da obra 29 Referências Bibliográficas BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. 1ª ed.: Edipro, 2001 BUENO, Luciano. “Controle de Armas: um estudo comparativo de políticas públicas entre Grã-Bretanha, EUA, Canadá, Austrália e Brasil”. Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Administração Pública e Governo da FGV/SP: 2001, p. 23 CAMPILONGO, Celso F.. O Direito na Sociedade Complexa. 1ª ed.: São Paulo, Ed. Max Limonad, 2000 FARIA, José Eduardo; KUNTZ, Rolf. Qual o Futuro dos Direitos? Estado, mercado e justiça na reestruturação capitalista: São Paulo, Ed. Max Limonad, 2002, p. 89 KAHN, Tulio. “Armas de Fogo: argumentos para o debate”. In Revista do ILANUD nº 16 – Armas de Fogo II: São Paulo, Imprensa Oficial, 2001 , p. 45-69 LIMA, Renato S. de; SINHORETTO, Jaqueline; PIETROCOLLA, Luci Gati. “Armas de Fogo, Medo e Insegurança em São Paulo: Risco de Uma Pessoa que Possui Arma de Fogo Ser Vítima Fatal de um Roubo”. In Revista do ILANUD nº 16 – Armas de Fogo II: São Paulo, Imprensa Oficial, 2001, p. 33-40