Anais do Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 1, agosto de 2009 – ISSN 2175-4128 06 e 07 de agosto de 2009 UFS – São Cristóvão, Brasil 1 LEITURAS TRIANGULARES: RACISMO E ALIENAÇÃO EM LITERATURAS LUSÓFONAS Jesiel Ferreira de Oliveira Filho (UFS) Pensar a diferença. Pensar sobre o que significa diferenciar numa sociedade mestiça. Se “tudo” é misturado, tudo é “igual”? Num mundo em que todos são feitos de muitos pedaços, camadas, faces, o que pode servir de referência para a coerência, para o equilíbrio, para a justiça? Transitando entre cores e aparências, também transitaremos entre éticas? Tais questionamentos sintetizam, em sua dimensão mais generalista e mais empírica, os problemas que têm se destacado para mim no âmbito de um trabalho reflexivo baseado na leitura de sentidos estruturantes da memória cultural brasileira. Uma leitura que tenho desenvolvido sob uma perspectiva triangulada, que conjuga polifonicamente textos culturais brasileiros, portugueses e angolanos. Mais do que a recomposição de uma história “comum”, tenho me dedicado a mapear conexões, paralelismos e divergências entre essas textualidades e entre os cenários que elas narram, buscando montar painéis contrastivos que permitam a revisão crítica das significações imaginárias investidas na produção das contemporaneidades desses espaços identitários lusófonos. De partida, é fundamental discutir o que aqui se entende por “lusofonia”, buscando sobretudo uma demarcação das significações estritamente lingüísticas, ou institucionalmente condicionadas, em geral atribuídas a esse termo. Por vezes concebida como uma espécie de superestrutura espiritual derivada de certas peculiaridades fonéticas e “empáticas”, a língua Anais do Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 1, agosto de 2009 – ISSN 2175-4128 06 e 07 de agosto de 2009 UFS – São Cristóvão, Brasil 2 portuguesa, que foi o principal dos idiomas comerciais do escravagismo, exibe uma versatilidade intercultural que, sem dúvida, precisa ser historicamente equacionada considerando-a como instrumento de verbalização dos hibridismos culturais suscitados pela mestiçagem. Usado para o contato “descobridor” e para a transplantação colonial, para o questionamento e para a imposição de sentidos, o sistema lingüístico do português comporta, tal como o corpo mestiço, níveis múltiplos de significação que, a meu ver, se organizam num sistema correspondente ao que Volochínov, o discípulo-heterônimo de Bakhtin, definiu como um “repertório de formas de discurso [utilizados] na comunicação socioideológica” (BAKHTIN, 2006, p. 44). Interessado em superar as posturas mecanicistas acerca das relações entre infra e superestrutura, para Volochínov os problemas concernentes à análise da “psicologia do corpo social” devem levar em conta a complexidade das formas de interação verbal mobilizadas por indivíduos e coletividades. Nesse aspecto, vale recordar que uma “mesma” língua se encontra estratificada e tensionada por diferentes modos de discurso veiculados através dos significantes comuns. Situando na “luta de classes” a força-motriz dessa diferenciação, Volochínov propõe o conceito de “comunidade semiótica” (idem, p. 47) para definir o agenciamento, no interior de “uma” língua, entre signos normativos e semioses heterogêneas, ou mesmo antagônicas. Posteriormente reconceitualizada pelo próprio Bakhtin, sob uma ótica culturalista e literária, como heteroglossia, a idéia de comunidade semiótica define um campo verbal de cruzamento de signos ideológicos1 carregados de “índices de valor contraditórios” (idem, ibidem). Configurando analiticamente espaços comunicacionais e identitários altamente hibridizados, os aportes teóricos de Volochínov possibilitam uma ampliação conceitual da lusofonia que põe em destaque a pluralidade de apropriações da língua portuguesa como suporte verbal para rituais de permuta simbólica. Ferramenta indispensável na demarcação das fronteiras entre a tradução e Anais do Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 1, agosto de 2009 – ISSN 2175-4128 06 e 07 de agosto de 2009 UFS – São Cristóvão, Brasil 3 a homogeneização, entre o exótico e o mútuo, o repertório de práticas significantes demandado pela mestiçagem estabelece conexões e padrões de integração entrecruzando, também, as distintas projeções identitárias investidas como eixos coesivos nos espaços da diáspora tropical. O modelo da comunidade semiótica permite, portanto, a caracterização das formas ideológicas que operam a mediação das diferenças sócio-culturais, especificando modos de atualização de valores e sentidos concernentes à ordem colonialista nas formas diasporizadas e pósimperiais da língua portuguesa. Se, como diz o ensaísta português Eduardo Lourenço, a lusofonia é um “lugar de memória” (LOURENÇO, 2001, p.176), sobretudo de memória verbal, o que fica em causa então é mapear e discutir a persistência, a dissolução ou a reelaboração de quadros de referência derivados da experiência colonial. Assumindo a linguagem, e em especial as linguagens literárias, como fator de expressão e articulação de diferenças, o método de leitura triangulada que proponho pretende recompor uma “intercultura da diáspora” (GILROY, 2001, p. 17) configurada através das narrativas que traduzem as diversificadas experiências de influência mútua e de apropriação de valores que se desdobram dos intercâmbios e dos encontros sincréticos luso-angolo-brasileiros. Abrindo vias interpretativas que relacionam as clivagens vigentes na sociedade brasileira à dispersa memória do colonialismo português, a triangulação tropical mobiliza um jogo comparativo que reinsere vetores translocais de sentido tendo em vista, como sugere Stuart Hall ao definir os objetivos da crítica pós-colonial, “pensar as questões do poder cultural e da luta política” a partir das “aporias e reduplicações” (HALL, 2003, p. 115) que fissuram saberes e tradições legados pela ordem colonialista. Por vezes encaradas como resultados do subdesenvolvimento imposto à colônia, ou então da coexistência mantida, no âmbito da jovem nação, entre povos e estratos sociais em Anais do Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 1, agosto de 2009 – ISSN 2175-4128 06 e 07 de agosto de 2009 UFS – São Cristóvão, Brasil 4 “estágios” distintos de civilização, as formas complexas de diferenciação e de desigualdade que transpassam a sociedade brasileira, assim como outros espaços identitários marcados pelo colonialismo português, põem em questão pensar a própria constituição do “diferente”, do Outro, se se pretende ultrapassar os impasses legados pelas pedagogias da morenidade. Os diversos cultos nacionais ao encontro “harmônico” entre as “três raças” fundadoras tendem a enfatizar os processos congregativos acionados pelo tipo de leitura multi-acentuada que os significantes mestiços demandam2, postura que subestima as contradições acumuladas na produção histórica da mestiçagem. A meu ver, a aparente superação dos binarismos raciais promovida pela miscigenação deve ser aferida levando em conta as identificações ambíguas que derivaram desses cruzamentos, e de que maneira tais ambiguidades têm servido como instrumentos ideológicos direcionados para a reprodução do que o filósofo Etiénne Balibar chama de estruturas de “exclusão interior” (WALLERSTEIN & BALIBAR, 1991, p. 71), ou as formas psicossociais de construção da infrahumanidade que perpetuam, como um apartheid transparente, graves divisões econômico-culturais nas sociedades pós-coloniais. As condições excessivas de violência e de exploração em que se processou a colonização — e que se mantiveram na construção da nação escravocrata — tornam necessário avaliar até que ponto, nos modos de convívio promovidos pela mestiçagem, bem como nos discursos que buscam interpretá-los, não se acomodam patologias sociais cuja normalização simbólica não pode ser confundida com a sua resolução efetiva. Contrariando o tom das interpretações familialistas, as mestiçagens tropicais também constituíram marcações e compassos mediante os quais esquemas diversos de classificação e de violência racial podiam ser articulados às interações físicas e afetivas mantidas entre os sujeitos da diferença colonial. Anais do Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 1, agosto de 2009 – ISSN 2175-4128 06 e 07 de agosto de 2009 UFS – São Cristóvão, Brasil 5 Conforme ficou consagrado nas análises sócio-antropológicas feitas por Gilberto Freyre, a produtividade da “paz senhorial”, manobrando exploração e simbiose, decorreria do elevado grau de intimidade, ou de dependência mútua, que ela era capaz de instalar entre dominadores e escravos. Tal forma de cumplicidade impositiva seria como que catalisada pelo caráter exacerbadamente emotivo do colonizador português, considerado pelo sociólogo como sujeito a “extremos desencontrados de introversão e extroversão ou alternativas de sintonia e esquizoidia” (FREYRE, 2004, p. 68). Forjados em meio a essas dinâmicas tortuosas, os ideais da mestiçagem oscilam entre noções de mistura que ora ressaltam o valor do intercâmbio, do convívio, ora o da purificação progressiva, da tutelagem paternalista e “civilizadora”, mobilizando assim forças de diferenciação e de apagamento que, com grande facilidade, deslizam para o apassivamento radical dos sujeitos negros. Nesse contexto, para além das ambiguidades fenotípicas que marcam os modelos estéticos branqueados, é necessário atentar para as contradições que se entrecruzam na elaboração psicológica e moral do “ideal de um supernome (super) nacional” (WALLERSTEIN & BALIBAR, 1991, p. 98), segundo a formulação de Balibar, ou das projeções do tipo de sujeito que condensa a “autenticidade” nacional. Encarnado tradicionalmente, no imaginário brasileiro, pelo “moreno”, ou pelo sujeito sincrético e simpático, a esse modelo também se associam as virtudes da adaptabilidade e da sabedoria flexível, ou “malandra”, sempre hábil para burlar as regras comuns em benefício próprio. Individualista e multifacetado, amoroso e despótico, não se pode perder de vista que a moldagem “interpenetrativa”, como também diria Gilberto Freyre, desse modelo derivou, sobretudo, das fraturas que dinamizavam as trocas culturais na sociedade escravagista, dos simbolismos que investiam em tornar cotidiana a experiência das deturpações e das fragmentações aplicadas na remontagem de valores transplantados. Traduzidos como “excesso luxurioso” no Anais do Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 1, agosto de 2009 – ISSN 2175-4128 06 e 07 de agosto de 2009 UFS – São Cristóvão, Brasil 6 Retrato do Brasil de Paulo Prado, ou como “dialética da ordem e da desordem” na análise que Antonio Candido dedicou a Memórias de um sargento de milícias, de Manual Antônio de Almeida, esses agenciamentos estruturantes dos arquétipos identitários brasileiros regem-se de acordo com um princípio de naturalização do contraditório, de aceitação das desproporções, que foi sintetizado ideologicamente como a força civilizadora da “raça superior”, ou como os critérios “realistas” a serem seguidos para transformar a multiplicidade brasileira numa nação. Como definir, portanto, nos ritos da cordialidade configurados a partir do rescaldo do domínio colonial, os limites da aceitação e da tolerância, do compromisso e da imposição, do explícito e do silenciado? Na abordagem dessas questões, já o médico e etnólogo Nina Rodrigues chamava a atenção para um aspecto crucial das dinâmicas de sincretização que estudou: a instabilidade moral dos agentes gerados nesses processos. Mais grave do que as supostas inapetências físicas ou intelectivas costumeiramente sublinhadas pela reflexão racialista, é no campo moral que se concentram as inquietações acerca do “caráter nacional” resultante da mistura mestiçadora. Fundamental, entretanto, para releituras críticas desse diagnóstico da instabilidade é deslocar essa perspectiva dos processos tradicionais de estigmatização do negro e do mestiço africanizado, e reprojetá-la na abordagem das duplicidades comportamentais da população europeizada. As energias caóticas liberadas e cruzadas pela colonização transcontinental reclamaram um tipo de autoridade que se adaptasse a modos de convívio regulados por um “padrão de completa inconstância” (ARAÚJO, 1994, p. 63), segundo afirma um dos principais leitores contemporâneos de Freyre, o antropólogo Ricardo Araújo, tipo cuja matriz mítico-histórica seria a figura do Caramuru, ágil na exibição do poder e na manipulação conciliadora. Essas linguagens e performances que produzem modos de, por assim dizer, “estar sem ser”, desdobram-se do caráter ao mesmo tempo despótico e dissimulado das relações coloni- Anais do Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 1, agosto de 2009 – ISSN 2175-4128 06 e 07 de agosto de 2009 UFS – São Cristóvão, Brasil 7 ais, fundadas em acordos provisórios ou viciados que, traduzindo antes o impasse do que o equilíbrio, suturam antagonismos persistentes. Superando os vieses essencialistas da abordagem freyreana, cabe examinar esses traços da passionalidade e da imprevisibilidade como componentes de dramaturgias sociais que manobram politicamente carências e fragilidades do subalterno. Em seus estudos sobre o preconceito racial no Brasil, Florestan Fernandes resume o jogo de alternâncias e de segredos que tantas vezes perpassa os cotidianos da mestiçagem: Sem nenhuma espécie de farisaísmo consciente, tende-se a uma acomodação contraditória. O “preconceito de cor” é condenado sem reservas, como se constituísse um mal em si mesmo, mais degradante para quem o pratica do que para quem seja sua vítima. A liberdade de preservar os antigos ajustamentos discriminatórios e preconceituosos, porém, é tida como intocável, desde que se mantenha o decoro e suas manifestações possam ser encobertas ou dissimuladas. (...) O branco entrega-se a um comportamento vacilante, dúbio e substancialmente tortuoso. (FERNANDES, 1972, p. 24) Segundo o filósofo Cornelius Castoriadis, o “essencial da heteronomia — ou da alienação, no sentido mais amplo do termo — (...) é o domínio por um imaginário autonomizado que se arrojou a função de definir para o sujeito tanto a realidade quanto seu desejo” (CASTORIADIS, 1982, p. 124). Tensionadas pelas heranças do escravagismo, as significações oblíquas agenciadas nos imaginários das mestiçagens tropicais emparelham simbolismos contraditórios, por vezes traumáticos, referentes a origens, assimilações, qualidades e pertencimentos, estabelecendo correlações entre os processos de subjetivação e, nos termos de Castoriadis, a “massa de condições de privação e de opressão, (...) indução, mistificação, manipulação e violência” (idem, p. 131) mediante a qual o mundo social institucionaliza disparidades, preconceitos míticos e forças alienantes. É importante frisar que esse viés de leitura que articula o processo biocultural da mestiçagem com a naturalização dos comportamentos dúplices não busca sustentar qualquer reivindicação de uma “pureza estabilizadora”, mas abordar o Anais do Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 1, agosto de 2009 – ISSN 2175-4128 06 e 07 de agosto de 2009 UFS – São Cristóvão, Brasil 8 conflito árduo e plurifacetado entre os potenciais liberatórios e opressivos do sincretismo tropical. Vale dizer, seu poder para ressignificar ou para alienar, para estimular a criatividade transmutadora ou a repressão acomodativa no jogo das traduções culturais. Para subsidiar essa discussão, proponho-me a realizar um mapeamento de imagens literárias a partir do qual se possa compor uma genealogia dos efeitos psicossociais das mestiçagens lusófonas, estabelecendo tipologias de valores, agentes e processos simbólicos acionados em representações de conflitos raciais. Pelo cruzamento comparativo dessas imagens, pretende-se pôr em evidência fatores comuns que contribuem para a persistência dos estereótipos coloniais, bem como entrecruzar diferentes respostas histórico-culturais às divisões suscitadas pelo racismo nos cenários luso-angolo-brasileiros. Os objetos dessa pesquisa compõem-se através de uma rede de textos e imagens ficcionais que proporcionem a inscrição e a rearticulação de significações concernentes à experiência colonial e suas heranças, às misturas e às hierarquias culturais, ao valor identitário e sexual do corpo, e às dinâmicas do familialismo lusófono. O corpus com o qual trabalho presentemente desdobra algumas referências que reuni durante minha pesquisa de doutoramento, da qual resultou a tese Raça e poder em textos e contextos luso-angolo-brasileiros: articulações estratégicas (2008). Tendo me centrado na tese em cenários do século XX, desejo agora explorar as possibilidades interpretativas do estudo diacrônico, bem como da diversificação dos olhares ficcionalizantes. No âmbito dos textos brasileiros, analiso três obras nas quais se inscrevem questões básicas relativas aos convívios e conflitos entre brancos e negros: os contos de As vítimasalgozes, de Joaquim Manoel de Macedo (1869); a novela Clara dos Anjos, de Lima Barreto (1922); e o romance Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro (1984). O exame das duas primeiras obras pretende traçar um panorama das reconfigurações do imaginário racial entre Anais do Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 1, agosto de 2009 – ISSN 2175-4128 06 e 07 de agosto de 2009 UFS – São Cristóvão, Brasil 9 dois momentos-chave da história brasileira: a crise final do regime escravocrata e o início da modernização capitalista, cenários captados por Macedo e Barreto, respectivamente, com o foco dirigido para as violências e perversões que os transpassam. A saga-paródia de Ribeiro, por sua vez, além de colocar em destaque as diversas formas de resistência empreendidas pelos afrobrasileiros contra a exploração racial, inscreve uma rica galeria de representações das ambivalências mestiças (tais como os personagens Amleto, Leléu, Maria da Fé e Patrício Macário), estabelecendo também produtivas articulações entre o passado escravagista e o presente. O princípio contrastivo acionado pelo método triangulador que dinamiza esta pesquisa se mostra especialmente útil, a meu ver, para conferir mais nitidez aos mecanismos que transparentizam a vigência dos arcaísmos e a persistência dos preconceitos discriminatórios. Pela confrontação entre as muitas faces do “mundo que o português criou”, torna-se possível caracterizar os processos simbólicos que instituíram as hierarquias coloniais nesses espaços, bem como as estratégias de saber e poder investidas em preservá-las ou superá-las. O corpus da literatura portuguesa selecionado para a pesquisa procura dar conta da variedade de olhares que a cultura colonizadora lança sobre a sua “obra imperial”, destacadamente quando se trata da construção da imagem do Outro africano, ambiguamente marcada pelos estigmas da selvageria e da submissão. As matrizes para esses estereótipos podem ser mapeadas desde o encontro de Vasco da Gama com o estranho de “pele preta” que, logo à primeira vista, lhe pareceu mais selvagem do que o “bruto Polifemo”, confirme registrou Camões no Canto V de Os Lusíadas. Este e outros textos canônicos tendem a ser agregados dialogicamente à leitura de uma segunda tríade de obras que compõem o pólo português da análise triangular: Feitiços, livro de contos de Anais do Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 1, agosto de 2009 – ISSN 2175-4128 06 e 07 de agosto de 2009 UFS – São Cristóvão, Brasil 10 autoria de Guilhermina de Azeredo (1935); Pele, romance de Henrique Galvão (1956/57); e O esplendor de Portugal, romance de António Lobo Antunes (1997). Premiado na edição inaugural do Concurso de Literatura Colonial, o trabalho de Azeredo foi avaliado por José Osório de Oliveira, um dos primeiros entusiastas das teorias lusotropicalistas em Portugal, como “uma verdadeira revelação psicológica do povo negro”. Legitimada pelo tom maternal de contadora de estórias, a autora certamente ajuda, no âmbito do impulso colonizador moderno voltado para Angola, a recompor a cartilha ideológica do Estado Novo para o africano, retratando o nativo angolano principalmente sob os ângulos do primitivismo e da infantilidade, e daí configurando sujeitos sempre dependentes da intervenção do branco para encontrar um caminho viável para si mesmos e para sua comunidade. A análise dessa obra estimula a ampliação da pesquisa para outros exemplares da literatura colonial portuguesa, gênero que começou a merecer maior atenção crítica entre os estudiosos brasileiros. Ressalte-se, nesse aspecto, o mapeamento de saberes coloniais feito pelo antropólogo Omar Thomaz a partir da obra do polêmico escritor Henrique Galvão3. Pele é uma de suas obras, entretanto, menos conhecidas e ainda a requerer um estudo mais detido. Ambientado na Lisboa da primeira metade do século XX, este romance investe numa abordagem direta dos conflitos decorrentes da mestiçagem, conflitos situados no próprio coração do império. A mestiça Olga, filha bastarda criada numa família da elite portuguesa, delineia uma personagem marcada pelo ressentimento, resultante das várias barreiras que lhes são dissimuladamente impostas quando almeja ultrapassar o espaço doméstico e afirmar sua autonomia. As questões derivadas dessa leitura encontram, a meu ver, uma instigante reinscrição e relocalização no enredo de O esplendor de Portugal. Fazendo um balanço amargo da experiência colonial, que enfatiza as cicatrizes e violências com que ela afeta sujeitos de todas as “raças”, nessa obra é Anais do Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 1, agosto de 2009 – ISSN 2175-4128 06 e 07 de agosto de 2009 UFS – São Cristóvão, Brasil 11 ativada uma intensa polifonia, pela qual se articula a inviabilidade da permanência portuguesa em Angola com a falência dos ideais da mestiçagem, seja a nível inter-cultural ou inter-pessoal. Traçando representações paradigmáticas das indefinições e oscilações que (des)estruturam as subjetividades mestiças, pela escrita introspectiva de Antunes tornam-se também legíveis muitas das vozes recalcadas e disruptoras que compõem o contraplano das racializações lusófonas, ou aquela “realidade moral reativa” (FERNANDES, 1972, p. 25), nos termos de Fernandes, a partir da qual são dinamizados os jogos de mascaramento do racismo “cordial”. O esquema de conjugações e intersecções literárias da memória lusófona que aqui proponho completa-se com um corpus de ficções produzidas pela literatura angolana, imbricação que, mobilizando a força tradutória do “significante africano” (HALL, 2003, p. 42), promove um deslocamento estratégico dos parâmetros eurocêntricos de normatização dos sentidos, fazendo emergir elementos-chave para a desconstrução do imaginário luso-tropical. Trata-se da constituição de uma perspectiva reversiva que possa confrontar os impasses e binarismos nos quais tantas vezes recai a crítica da mestiçagem. Uma obra notável na produção de tais efeitos hermenêuticos é A gloriosa família (1997), de Pepetela, narrativa que reconstrói a sociedade colonial angolana do século XVII sob a ótica de um escravo mestiço estrategicamente situado numa posição “não visível e não oculta” (FOUCAULT, 2000, p. 126), que o torna especialmente atento para as duplicidades e os implícitos do poder colonial. Mantendo uma relação “mimética”, segundo a formulação de Homi Bhabha, com seu proprietário, o traficante luso-flamengo Baltazar Van Dum, o narrador-protagonista reencena momentos matriciais dos processos transculturadores pelos quais se sedimentou uma cultura mestiça e discriminatória no espaço luandense. Por sua vez, no pungente romance de António de Assis Júnior, O segredo da morta (1935), é através de olhares e dramas femininos que os conflitos entre Anais do Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 1, agosto de 2009 – ISSN 2175-4128 06 e 07 de agosto de 2009 UFS – São Cristóvão, Brasil 12 valores africanos e europeus são retratados. Intelectual engajado na autonomização cultural e política de Angola, Assis Jr. convoca o percurso sofrido de mulheres africanas para discutir a corrosão dos referentes tradicionais angolanos que se observa na entrada do século XX, em decorrência de uma dinâmica civilizadora que, nas palavras do autor, se impõe “mais por sugestão e medo do que por persuasão e raciocínio” (ASSIS JR., 1979, p.32). Tendo em vista o aprofundamento da reflexão sobre os diversos efeitos dessa dinâmica na construção nacional angolana, torna-se fundamental abordar outro texto de Pepetela que mergulha nas ambivalências das mestiçagens tropicais, o romance Yaka (1985). No âmbito dessa obra, Yaka nomeia uma misteriosa estátua cujas interações miméticas com o “branco de segunda” Alexandre Semedo representam processos ambíguos de assimilação do colono português ao espaço africano, ou os conflitos subjetivos e culturais que agenciam os tipos de duplo pertencimento — ou, nos termos de Paul Gilroy, de “dupla consciência” —, experimentados pelos agentes investidos na construção da “Angola portuguesa”, entre os fins do século XIX e a declaração da independência, em 1975. Do ponto de vista teórico, esta pesquisa destina-se a especificar um cânone, ou uma genealogia literária, transversal às literaturas em língua portuguesa, um conjunto que articule textos configuradores para o imaginário da mestiçagem. Útil para o lastreamento dos estudos comparativos lusófonos, essa demarcação demanda um trabalho descritivo das estratégias narrativas e das representações que inscrevem as tensões e as dualidades dos hibridismos tropicais, designadamente: as performances do dominador “paternal” e do subalterno “dócil”; a construção de posições e hierarquias pelo esquema da epidermalidade; sistemas de vigilância e de relaxamento operantes através de relações parentais, afetivas ou libidinais; aparatos discursivos de legitimação de assimetrias culturais; formas micropolíticas de acomodação, resistência Anais do Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 1, agosto de 2009 – ISSN 2175-4128 06 e 07 de agosto de 2009 UFS – São Cristóvão, Brasil 13 e transgressão. Mediante a análise cruzada dessas dinâmicas de intimidade e calculismo, de composição e discriminação, de conivência e confrontação, tenho construído um painel de elementos diacrônicos e contrastivos que ofereça possibilidades versáteis para a abordagem crítica do tema da alienação, entendida como formas de recalque dos antagonismos sócio-culturais sustentadas, como propõe Homi Bhabha, por “produções não-repressivas de crença múltipla e contraditória” (BHABHA, 1998, p. 135). No âmbito desta pesquisa, pretendo avaliar o peso exercido pela homogeneização cultural “branqueadora”, ou “assimiladora”, resultante dos métodos colonizadores luso-tropicais, na normalização ideológica das instituições culturais herdadas do regime escravagista — em especial, dentre estas, os códigos reificadores do racismo patriarcal. Anais do Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 1, agosto de 2009 – ISSN 2175-4128 06 e 07 de agosto de 2009 UFS – São Cristóvão, Brasil 14 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAÚJO, Ricardo Benzaquem de. Guerra e paz: Casa-grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994. ASSIS JÚNIOR, António de. O segredo da morta (romance de costumes angolenses). Lisboa: Edições 70; União dos Escritores Angolanos, 1979. BAKHTIN (VOLOCHÍNOV), Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Michel Lahud & Yara Vieira. São Paulo: Hucitec, 2006. BALIBAR, Etiénne, WALLERSTEIN, Immanuel. Raza, nacion y clase. Madrid: Iepala, 1991. BHABHA, Homi. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 1998. CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem (caracterização das Memórias de um sargento de milícias). In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. n.8. São Paulo: USP, 1970. p. 67-89. 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Conferir BAKHTIN, 2006, p.122-123; EAGLETON, 1997, p.5354. 2 Um bom exemplo recente desse tipo de olhar pode ser apreciado na letra da canção “Inclassificáveis”, de Arnaldo Antunes: “que preto branco índio o quê? / branco índio preto o quê? / índio preto branco o quê? // aqui somos mestiços mulatos / cafuzos pardos mamelucos sararás / crilouros guaranisseis e judárabes // orientupis orientupis / ameriquítalos luso nipo caboclos / orientupis orientupis / iberibárbaros indociganagôs // somos o que somos / inclassificáveis”. Cabe, entretanto, estar atento às formas de desclassificação econômica e política que acabam por distinguir com muita nitidez, conforme têm mostrado os índices sociais brasileiros, os claros “iberibárbaros” dos escuros “indociganagôs”. Conferir, entre outras, a terceira edição da pesquisa Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), cujos dados podem ser acessados em www.ipea.gov.br; e o Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil, 2007-2008, organizado por Marcelo Paixão e Luiz Marcelo Carvano e publicado pelo Laboratório de Análises Econômicas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (LAESER-UFRJ), material disponível em www.laeser.ie.ufrj.br. 3 Conferir Omar Ribeiro THOMAZ, 2002.