In: DINIZ, Dilma C. B.; BARROS, Maria Lúcia J. D. de; ALMEIDA, Sandra R. G.; DINIZ, Thaïs F. N. (Orgs.). Brasil-Canadá: Olhares Diversos. Belo Horizonte:
ABECAN/FALE/UFMG, 2006. p.191-207. Disponível em http://www.letras.ufmg.br/poslit
Os percursos diaspóricos de Dionne Brand
Sandra Regina Goulart Almeida
Universidade Federal de Minas Gerais, CNPq
But I had no destination in mind. I am without destination; that is one of
the inherited traits of the Diaspora. I am simply where I am; the next
thought leads me to the next place.
Dionne Brand,
A Map to the Door of No Return
I – Cartografias de uma nova diáspora
No mundo transnacional em que vivemos, no qual as fronteiras regionais e nacionais se tornam cada vez mais
fluidas e permeáveis, a análise da experiência dos sujeitos em trânsito nos leva a questionamentos relevantes quanto
às noções de autenticidade cultural, hegemonia nacional e, sobretudo, ao papel dos movimentos migratórios na
contemporaneidade. Como um fenômeno complexo e multi-axial (Brah 1996), a mobilidade cultural na modernidade
informa não apenas o fluxo transnacional de capital, mas também o de pessoas em espaços sociais e zonas de contato
nas quais diferentes perspectivas culturais se encontram e, inevitavelmente, colidem entre si. Como a escritora
canadense Eva Hoffman nos lembra, “o que acontece hoje é que os movimentos através de culturas se tornaram a
norma em vez de exceção” (42). Torna-se importante, no entanto, indagar em quais circunstâncias ou condições esses
movimentos ocorrem na sociedade contemporânea. O conceito de estado-nação como uma entidade unificada e
homogênea é hoje percebida como o de uma comunidade imaginada (Anderson, 1983). Nesse contexto, o fluxo
transnacional de sujeitos e povos além de fronteiras demarcadas fisicamente favorece o questionamento na crença de
um conceito unificado de nação, bem como na construção de identidades fixas e em noções essencialistas de
autenticidade cultural e origem.
A noção de desterritorialização, compreendida como “o desligamento do conhecimento, ação, informação e
identidade de um lugar específico ou origem física”, segundo a definição de Hoffman, tem dominado a produção literária
e artística dos chamados sujeitos em trânsito ou “novos nômades – termo utilizado por Hoffman (44). Essa experiência
dos sujeitos em trânsito é frequentemente descrita em termos de pluralidade, fragmentação, multiplicidade e, sobretudo,
da condição de entre-lugar do sujeito migrante, seja essa uma experiência de alienação (um sentimento de não
pertencimento) ou mesmo de liberação (de conceitos e noções culturais arraigadas e preestabelecidas). Uma
conseqüência relevante do processo de desterritorialização reside no fato de que a lógica bi-polar que tem dominado o
pensamento ocidental e a geopolítica contemporânea não mais pode ser sustentada diante do movimento de
deslocamento humano presenciado nos dias atuais (Hoffman, 1999, p.55). Entretanto, se, por um lado, esse mundo
contemporâneo se caracteriza pela confluência de locais geopolíticos, pela eliminação de fronteiras e compartilhamento
de espaços sociais; por outro, mostra-se cada vez mais sectário e excludente nas práticas cotidianas.
Nesse contexto, identidade e espaço se tornam conceitos imbricados na ambivalente experiência dos sujeitos
em trânsito. Como afirma James Clifford, “em uma perspectiva cosmopolita, a identidade nunca se refere apenas a um
local […] A identidade é também, inescapavelmente, relacionada a desplaçamento e relocação, à experiência de
sustentação e mediação de afiliações complexas e ligações múltiplas” (1998, p. 369). As identidades móveis afetam e
são afetadas pelos movimentos além-fronteiras e, por sua vez, modificam os sujeitos que se encontram enraizados,
criando, como lembra Marc Auge (1994), “não-lugares” da supermodernidade – espaços de caráter transitório e
movente. Torna-se possível, então, falar não de uma identidade nacional ou subjetividade individual, mas sim de
identidades híbridas e afiliações múltiplas que definam os sujeitos em um movimento errante, um processo de estar no
mundo. Sujeitos esses detentores de uma cidadania transitória que reflete um “posicionamento”, quer seja político,
social ou ético, segundo a teorização de Rey Chow (1993), que situa os sujeitos com relação a um contexto espacial
específico, mas, contudo, movediço, efêmero e mutante. A experiência da mobilidade cultural é não apenas uma
condição histórica, mas, sobretudo, uma realidade intelectual, como observa Rey Chow – a realidade de ser um
intelectual da contemporaneidade (1993, p. 15). No caso das escrituras migrantes, a mobilidade cultural muitas vezes
não se limita ao mundo ficcional descrito, mas faz parte essencial do papel ativo que autores/narradores assumem
como intelectuais da contemporaneidade.
Como conseqüência da ação, – sobre a qual nos fala Hannah Arendt (2005) – uma das atividades humanas
fundamentais, exercida por meio do discurso e da palavra, o papel de artistas, escritores e críticos literários torna-se
crucial ao projetarem, através da escrita, uma experiência do devir em trânsito e mesmo uma forma de resistência aos
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efeitos perversos dessa nova ordem global. Para Brydon, o meio acadêmico tem sido mais receptivo e aberto para
discutir a globalização contemporânea e aventar novas possibilidades e rumos nos movimentos transnacionais. A seu
ver, a globalização e a teoria da diáspora acabam por questionar um posicionamento por vezes simplista da conexão
que necessariamente existiria, como formula Bhabha, entre a escrita e a nacionalidade (Brydon, 2001, p. 62). Como nos
lembra Rosemary George, o processo migratório “reescreve a nação e o projeto nacional porque mostra, de forma
flagrante, uma rejeição de um espaço nacional por outro local, por vezes, mais desejado, porém levando junto alguma
bagagem” (1999, p. 200). É relevante observar como os movimentos migratórios e diaspóricos da contemporaneidade
definem o atual cenário transnacional ao mesmo tempo em que reescrevem o projeto da nação.
A produção literária que aborda, por meio da escritura, a mobilidade contemporânea é definida como uma
literatura migrante ou diaspórica. O conceito de diáspora, aqui discutido, remete a seu caráter especificamente político
por denotar o movimento de dispersão de povos, quer seja voluntário ou forçado, geralmente com forte impacto político,
social e cultural (Anderson, 1998, p. 4-6), originando um grupo migratório no país anfitrião com forte conexão com a
terra natal – uma comunidade, às vezes imaginária, como discute Benedict Anderson em Imagined Communities
(1983). Em A Map to the Door of No Return, a escritora Dionne Brand, cuja obra será discutida a seguir, opta,
igualmente, pelo termo diáspora, mas pelo fato de esse conter uma ambigüidade inerente ao processo – um sentimento
dúbio de pertencimento e desplaçamento, memória e esquecimento e, sobretudo, a impossibilidade de retorno a um
ponto original que não pode mais ser vislumbrado. Para ela, ao contrário do termo diáspora, a migração implica em um
sentido de continuidade, lembranças e a possibilidade de um retorno (2001, p. 24-25).
Ao analisar a experiência dos sujeitos migrantes e a relação estabelecida através da escrita, torna-se
fundamental discutir como essa movência histórica se concretiza intelectualmente através das obras de escritoras
contemporâneas que desvendam sua contundente experiência diaspórica por meio de narrativas polifônicas, com um
forte teor autobiográfico. Faz-nos questionar o papel de escritores que, como intelectuais, devem pensar e reescrever
as culturas em trânsito da contemporaneidade e as experiências migratórias de deslocamentos humanos. Um interesse
central pelas metáforas espaciais – entremeadas pelo conceito de identidades subjetivas e nacionais – nos faz refletir
sobre a literatura contemporânea em um contexto transnacional e nos permite indagar, entre outras questões, como
textos literários são veículos significativos para discutir os espaços de enunciação e mesmo a negação desse espaço
por meio de um não-lugar, do desplaçamento, da desterritorialização, dos vários e possíveis “entre-lugares”. Permitenos, principalmente, ponderar como a experiência da mobilidade, do devir em trânsito pode ser pensada como uma
experiência intelectual, de uma ética que é permanentemente questionada pela relativização cultural e pelo estar com o
outro.
II – Escrituras diaspóricas
A escritora caribenha-canadense Dionne Brand explora, tanto em sua obra ficcional quanto em seus ensaios
semi-autobiográficos, diversas imagens de movimentos e deslocamentos de sujeitos, marcadamente femininos, que
transitam nesse entre-lugar diaspórico da movência. As obras aqui analisadas retratam personagens em constantes
deslocamentos geográficos e culturais e que, portanto, necessitam lidar com a experiência da diáspora de forma
variada, em contextos distintos, em espaços múltiplos, bem como em temporalidades diversificadas.
A incursão ficcional de Brand pelos caminhos dessa nova diáspora cujo elemento diferenciador, nas palavras de
Spivak (1996), são as mulheres, inicia-se com a publicação de In Another Place Not Here (1996), seguido por At the Full
and Change of the Moon (1999) e, mais recentemente, What We All Long For (2005). Pela temática abordada e pelo
aspecto temporal das diásporas vislumbradas, pode-se afirmar que At the Full and Change of the Moon inaugura um
momento crucial na história das diásporas humanas, ou seja, fala da origem da diáspora caribenha por meio da saga de
uma família de descendência pela linha maternal, desde a matriarca Maria Ursule e sua filha Bola, ambas nascidas
ainda no século 19, respectivamente 1814 e 1821, até o nascimento da nova Bola, já em 1982. Nesse sentido, apesar
de ter sido publicado após In Another Place, Not Here, At the Full and Change of the Moon precede, em termos
históricos e cronológicos, o movimento das diásporas contemporâneas.
Paralelamente a esse ciclo de narrativas ficcionais da diáspora, Brand publica, em 2001, A Map to the Door of
No Return, com o sugestivo subtítulo de “Notes to Belonging”, no qual traça, na forma de relatos, memórias,
autobiografia e ensaio, uma cartografia singular dos movimentos diaspóricos da humanidade. Nesse trabalho, Brand
constrói, em termos teóricos, seu próprio conceito de diáspora – um conceito que, como a epígrafe que abre este texto
anuncia, aponta para o deslocamento e o desplaçamento como características “herdadas” da diáspora (2001, p.150).
Utilizando a metáfora da “door of no return”, que sinaliza a dispersão da comunidade africana pelo Atlântico por meio do
tráfico de escravos, Brand transita pela diáspora negra africana, bem como pelo território canadense, dissertando sobre
cartografias históricas e culturais. A “door of no return” se torna um espaço metafórico por meio do qual se pode teorizar
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o sentimento da diáspora como uma ambigüidade conceitual, como Brand afirma: “I am interested in exploring this
creation place – the Door of No Return, a place emptied of beginnings – as a site of belonging or unbelonging” (2001, p.
6). O texto de abertura do livro define o caráter diaspórico evocado por meio dessa metáfora contundente:
There are maps to the Door of No Return. The physical door. They are well worn, gone over by
cartographer after cartographer, refined from Ptolemy’s Geographia to orbital photographs and
magnetic field imaging satellites. But to the Door of No Return which is illuminated in the
consciousness of Blacks in the Diaspora there are no maps. This door is not mere physicality. It is a
spiritual location. It is also perhaps a psychic destination. Since leaving was never voluntary, return
was, and still may be, an intention, however deeply buried. There is as it says no way in, no return
(2001, p. 1).
Essa porta emblemática, não apenas de um marco histórico, mas também de um lugar no imaginário coletivo,
torna-se, na teorização de Brand, uma metáfora significativa para revelar a estratégia dúbia da memória como uma
recusa ao esquecimento, mas aponta simultaneamente para a impossibilidade de resgate da origem pela memória.
Brand se interessa, sobretudo, pela análise dessa metáfora como uma forma de consciência, de percepção
histórica, mas também como experiência subjetiva dos sujeitos diaspóricos. De maneira similar, Avtar Brah utiliza-se do
termo “consciência diaspórica” para nomear a conseqüência lógica dos movimentos transnacionais e também para
designar um espaço relevante para questionamentos de conceitos de identidades nacionais face a um contexto de
multiplicidade de contatos e movências. A consciência diaspórica representa o espaço no qual as múltiplas posições do
sujeito são justapostas, contestadas, aclamadas ou desautorizadas. (Brah, 1996, p. 208). Essa multiplicidade de áxis
relacionada aos movimentos migratórios da contemporaneidade é central para uma compreensão da consciência
diaspórica, tanto na perspectiva de Brah, quanto na de Brand.
III – Nas entrelinhas da memória
Em At the Full and Change of the Moon, essa consciência diaspórica se encontra dispersa entre os inúmeros
descentes de Bola, a filha que Marie Ursule poupa da morte. Ao contrário de Beloved de Toni Morrison que relata o
infanticídio perpetrado pela mãe como forma de salvar a filha da escravidão, aqui Maria Ursule, salva a filha da morte
no suicídio coletivo por ela arquitetado como forma de revolta contra a escravidão. Bola, em meio aos fantasmas das
freiras Ursulinas que lhe foram transmitidos pela memória materna, sobrevive sozinha em Culebra Bay para dar origem
a uma geração de sujeitos diaspóricos: “men and women who could make borders invisible” (2001, p. 167). A memória é
a teia que une as diversas narrativas, como uma das personagens conclui: “Everything depends on memory” (1999, p.
115). Aqui a memória funciona como o receptáculo da herança materna na diáspora dos vários filhos de Bola. Ao longo
da narrativa, estórias são aos poucos relatadas, recontadas por diversos personagens, sob óticas distintas. São estórias
de deslocamentos, exílios, errâncias e retornos. Cada filho ou filha reserva uma parte dessa estória, que também é uma
história às avessas, que aos poucos é recomposta pela tessitura da narrativa – uma estória que é narrada por aqueles
que sobreviveram o processo de escravatura e a dispersão dos negros pelo Atlântico (Gilroy 1994):
This place is imagined over and over again. Each fragment belonging to a certain mind—a reverie, a
version—each fragmented held carelessly or closely. Which is why it still exists. Nothing happened
here. Nothing extraordinary for its time. Two nuns held slaves like any priest or explorer or settler in
the New World. It is the others, the ones they held, who keep the memory, who imagine over and
over again where they might be. It is they who keep these details alive and raw like yesterday. They
twist and turn in all imaginations to come, in plain sight or in disguise (1999, p. 43).
Aqui a memória tem ainda uma função histórica primordial ao recolher os relatos daqueles que estiveram sempre
às margens da “história oficial”. Por meio de uma narrativa que atravessa espaços temporais e perspectivas variadas,
Brand nos oferece um relato da memória cujos fios são unidos pela imagem transgressora da matriarca, Maria Ursule –
um relato que tenta recuperar as estórias passadas ao mesmo tempo que fala dessa impossibilidade.
Nesse romance, os mapas, assim como a memória, são fluidos e não conseguem demarcar os espaços
atravessados pelos descendentes de Bola ou aqueles lugares que Bola e Kamema devem percorrer para chegar a
salvo à legendária Terre Bouillante – terra dos negros libertos (maroonage): “Maps are such subjective things, borders
move all the time. A map, like the one on Hill’s desk, can only describe the will of estate owners and governors. Or
perhaps their hopes. This map cannot note the great fluidity of maps, which is like the fluidity of air” (1999, p. 53). Essa
impossibilidade de representação espacial da experiência diaspórica por meio de mapas é reiterada constantemente em
A Map to the Door of No Return. Para Brand, “A map, then, is only a life of conversations about a forgotten list of
irretrievable selves” (2001, p. 224). Nesse sentido, os percursos diaspóricos de Brand nos levam a mapeamentos que
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vão muito além da metáfora espacial, passando principalmente por espaços imaginários, não-lugares e entre-lugares na
experiência da mobilidade que permeia as vivências de suas personagens.
IV – A feminização da nova diáspora
Se em At the Full Change of the Moon o foco central recai sobre a memória e a cartografia, em In Another Place,
Not Here, Brand nos fala de uma consciência diaspórica contemporânea por meio de um lugar hifenizado e gendrado
ao descrever as experiências dos sujeitos femininos na diáspora. Suas personagens femininas, como parte da nova
diáspora descrita por Spivak (1996), têm consciência de seu papel nessa nova configuração geopolítica. Tanto na
concepção de Spivak (1996), como também na de James Clifford (1994) e de Rey Chow (1993), as mulheres ocupam
um papel crucial na nova diáspora, pois esse grupo gendrado se encontra atualmente em grande demanda
mercadológica pelos organismos internacionais. Além disso, os movimentos migratórios da atualidade acabam por
expor e, por vezes, modificar os mecanismos ideológicos, sociais e culturais que operam nas relações de gênero. Nos
termos de Spivak, as personagens desse romance personificam o que ela chama de “gendered outsiders inside”—
personagens gendradas periféricas que se encontram inseridas no sistema ideológico e que, de acordo com Spivak,
estão em forte evidência no mundo transnational (Spivak, 1996, p. 251), como o seguinte trecho de In Another Place,
Not Here nos mostra:
These women, our mothers, a whole generation of them, left us. They went to England or America or
Canada or some big city as fast as their wit would get them there because they were women and all
they had to live on was wit since nobody consider them whole people. They scraped money together.
… They put it away coin by coin. (1996, p. 230).
A citação acima desnuda os mecanismos de opressão de gênero para as mulheres que fazem parte dessa nova
diáspora. Na intenção de escapar do preconceito e da opressão, essas mulheres deixam sua terra natal e imigram,
apenas para descobrir que, apesar da mudança de status socioeconômico, ainda têm que enfrentar as imposições dos
papéis de gênero, embora diferentes daqueles com os quais estavam habituadas. Os movimentos diaspóricos mudam
as relações de gênero; no entanto, como mostrado acima, novas formas de coerção e preconceito se tornam evidentes.
As protagonistas Verlia and Elizete se movimentam temporal e espacialmente em busca de novas moradas e
novas identidades, apenas para descobrir que ambas são categorias ficcionais e provisórias. Como aponta George,
“Home in the immigrant genre is a fiction that can move beyond or recreate at will. The association between an adequate
self and a place to call home is held up to scrutiny and then let go” (200). Se a noção de “home”/lar é uma ficção, de
acordo com George, e a nação moderna é construída por narrativas das margens, como afirma Bhabha (1994),
podemos concluir que o romance de Brand não apenas elabora a narrativa de desplaçamento dessas duas mulheres,
mas também desestabiliza o conceito de lar/terra natal e também da nação, conforme compreendemos esses termos.
Tanto as experiências hifenizadas de Verlia quanto de Elizete nos ajudam a questionar as noções de lar, terra natal
(“home”) em sua dupla conotação: como o espaço íntimo e privado do lar, em sua esfera feminina, e como a nação ou
terra natal, concebida como um espaço público (George, 1999, p. 11-13). Em Another Place, Not Here, essa dualidade
é observada através da percepção de Elizete com relação a esse duplo significado do termo “home”—lar/terra natal,
que adquire para ela simultaneamente os sentidos do espaço privado e do público masculino, como a seguinte citação
nos mostra: “It was hard to resist the sound of a phrase from home, hard to resist listening to each other suck their teeth
when they came home” (p. 79, emphasis mine). “Home” aqui é ao mesmo tempo a terra natal deixada para trás e o
novo lar construído no país de adoção. A percepção desse dicotomia, porém, não torna a experiência menos dolorosa
ou menos ambígua.
Como sujeitos diaspóricos e agentes políticos—“organic intellectuals”, nos termos de Gramsci’s e Spivak’s—
ambas protagonistas rejeitam o espaço privado, estereotipicamente identificado como feminino, questionam a noção de
terra natal e desafiam o projeto de nação e de uma identidade unificada. O romance parece indicar que, para elas, o
conceito de nação está sempre em um processo contínuo de construção. É uma categoria deslizante com a qual não
podem se identificar ou à qual não pertencem. Segundo Elizete, “They were not interested in belonging. It could not
suffice” (p. 43). O pertencimento é aqui, como em A Map to the Door of No Return, uma expressão dúbia e ambivalente,
pois não dá conta da imensas possibilidades de filiações transitórias e temporárias.
É interessante observar também como o romance de Brand chama atenção para, ao mesmo tempo que
questiona, a feminização do espaço e do lar em seu sentido privado e sua ligação com metáforas associadas ao corpo
feminino. O romance expõe a maneira como as mulheres sentem essa experiência diaspória através do corpo, como
um sentimento carnal. Seus corpos se tornam emblemáticos dessa experiência diaspórica. Em A Map to the Door of No
Return, Brand retoma essa metáfora como forma de problematizar a questão diaspórica por meio da corporificação
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desse espaço; porém, desta feita, um corpo racializado: “The body is the place of captivity. The Black body is situated
as a sign of particular cultural and political meanings in the Diaspora” (2001, p. 35). Esse corpo racializado, porém, é
antes de tudo feminizado, como a citação que se segue demonstra: “In many senses the Black body is one of the most
regulated bodies in the Diaspora. Perhaps the most regulated body is the female body, any female body, but the Black
body is a close and symbolic second” (2001, p. 37).
Para essas mulheres hifenizadas que tentam negociar suas filiações diaspóricas, o corpo gendrado sofre e ao
mesmo tempo revela a condição dos sujeitos desraizados. A experiência é descrita como uma forma de perda, mas
também como uma força. Torna-se o meio de luta e também o objeto de opressão: aquilo que pode ser esvaziado –
“empitied like a shelf or a doorway” (1996, p. 86). Como uma outra personagem do romance comenta: “she remember
them in she body” (p. 45)—cada medo, luta, opressão, mas também cada alegria, deleite, vitória é sentido através do
corpo visível e irremediavelmente gendrado.
Essa concepção do corpo gendrado nos remete a um trecho do romance de Jhumpa Lahiri, The Namesake, no
qual uma das personagens descreve a experiência diaspórica através do corpo, desta vez do corpo feminino grávido:
For being a foreigner, Ashima is beginning to realize, is a sort of lifelong pregnancy—a perpetual
wait, a constant burden, a continuous feeling out of sorts. It is an ongoing responsibility, a
parenthesis in what had once been ordinary life, only to discover that that previous life has vanished,
replaced by something more complicated and demanding. Like pregnancy, being a foreigner, Ashima
believes, is something that elicits the same curiosity from strangers, the same combination of pity and
respect. (2003, p. 49-50)
Ao relacionar a experiência diaspórica com a gravidez, a personagem expressa de forma contundente a relação
intrínseca, como menciona Spivak e é sugerido no texto de Brand, entre essa nova diáspora e as mulheres, que se
tornam o elemento diferenciar dessa forma de mobilidade contemporânea.
V – Da diáspora ao cosmopolitismo contemporâneo
Se para Verlia and Elizete de In Another Place, Not Here, Toronto é, por um lado, uma cidade dividida por
questões socioeconômicas e raciais, é, por outro lado, um símbolo da experiência diaspórica de vários sujeitos em
trânsito. Em seu mais recente romance, What We All Long for, Toronto aparece como uma personagem central, como
um espaço cosmopolita por meio do qual os sujeitos em trânsito, mas também aqueles “enraizados”, convergem. Como
nos lembra Bruce Robbins,
Like diaspora, cosmopolitanism offers something other than a gallery if virtuous, eligible identities. It
points instead to a domain of contested politics. . . . cosmopolitics not as a universal reason in
disguise, but as one on a series of scales, as an area both within and beyond the nation … that is
inhabited by a variety of cosmopolitanisms. (1998, p. 12)
Assim como a experiência diaspórica modifica e interfere no conceito de nação, a cidade cosmopolita como
emblema desse espaço de múltiplas filiações e várias “identidades elegíveis” fornece subsídios para se pensar a nação,
também cosmopolita, em um sentido mais abrangente e inclusivo.
Nesse romance, Brand focaliza a geração pós-diaspórica, isto é, a geração que nasceu no Canadá, mas cujos
pais fizeram parte desse movimento transnacional contemporâneo. São personagens que apresentam filiações
múltiplas e pertencimentos diversos. Como os outros dois romances anteriores, What We All Long for privilegia uma
perspective feminina, embora, nesse caso, a autora também introduza personagens masculinos que necessitam lidar
com as conseqüências das escolhas de seu progenitores de viverem na diáspora. Como nos demais romances, esse
adota também uma perspectiva múltipla para contar a estória de vários personagens em trânsito. O romance se
desenvolve através da perspectiva de quatro personagens centrais – Tuyen, Carla, Oku and Jackie—cujos pais vivem a
experiência da mobilidade cultural, quer seja interna, pela mobilidade espacial no próprio contexto canadense, ou pelo
deslocamento através de fronteiras transnacionais. A citação abaixo descreve a experiência das personagens de viver
em um entre-lugar conflituoso, divididos entre a devoção e lealdade à terra dos pais e a sua própria experiência
cosmopolita:
They all, Tuyen, Carla, Oku, and Jackie, felt as if they inhabited two countries—their parents’ and
their own [. . .] Each left home in the morning as if making a long journey, untangling themselves from
the seaweed of other shores wrapped around their parents. Breaking their doorways, they left the
sleepwalk of their mothers and fathers and ran across the unobserved borders of the city, sliding
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In: DINIZ, Dilma C. B.; BARROS, Maria Lúcia J. D. de; ALMEIDA, Sandra R. G.; DINIZ, Thaïs F. N. (Orgs.). Brasil-Canadá: Olhares Diversos. Belo Horizonte:
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across ice to arrive at their own birthplace—the city. They were born in the city from people born
elsewhere (2005, p. 20).
Divididos entre duas culturas, duas percepções distintas do mundo, essas personagens se sentem deslocadas,
incapazes de se sentirem como cidadãs e cidadãos canadenses: “They’d never been able to join in what their parents
called ‘regular Canadian life’. The crucial piece, of course, was that they weren’t the required race” (2005, p. 47). A
questão racial mais uma vez permeia o texto de Brand, que mostra como a raça, bem como o gênero, são elementos
determinantes na vivência dessa nova diáspora e na experiência cosmopolita. De uma certa forma, os personagens se
sentem parte de uma heterogeneidade da cidade por meio de seus “murmúrios polifônicos” (“polyphonic murmuring”
[149]) e pela bagagem cultural que trazem consigo por meio da herança paterna e materna:
But as at any crossroad there are permutations of existence. People turn into other people
imperceptibly, unconsciously, right here in the grumbling train. And on the sidewalks, after they’ve
emerged from the stations, after being sandpapered by the jostling and scraping that a city like this
does, all the lives they’ve hoarded, all the ghosts they’ve carried, all the inversions they’ve made for
protection, all the scars and marks and records for recognition – the whole heterogeneous baggage
falls out with each step on the pavement. There’s so much spillage (2005, p. 5).
A referência à bagagem heterogênea que se derrama pela cidade nos remete à teorização de Rosemary George
sobre a condição do viver em trânsito que necessariamente implica em uma transferência espacial do sujeito, que
carrega consigo, entretanto, uma bagagem, uma herança ou resquício daquilo que foi vivido anteriormente. Como
afirma George, “the immigrant genre is marked by a curiously detached reading of the experience of ‘homelessness’ as
well as by the excessive use of the metaphor of luggage, both spiritual and material” (1996, p. 8). Em What We All Long
For, os personagens fazem constante referência às experiência diaspóricas de seus pais, como uma herança, uma
bagagem da qual não conseguem se livrar e são, portanto, obrigados a transportar consigo pela cidade cosmopolita.
A Toronto que é descrita no romance nos lembra, em termos menos positivos a aldeia global de McLuhan.
Nesse sentido, o narrator comenta: “In this city there are Bulgarian mechanics, there are Eritrean accountants,
Colombian café owners, Latvian book publishers, Welsh roofers … Hatian and Bengali taxi drivers with Irish dispatchers”
(5). Toronto é, portanto, uma cidade que precisa ser traduzida, isto é, cada um dos personagens principais acaba por se
tornar tradutor e mediador cultural, atuando como ponte entre o mundo de seus pais e o mundo da cidade cosmopolita:
“negotiating their way around the small objects of foreigners placed in their way” (p. 125). Esse é o caso específico de
Tuyen e seu irmão, cuja função primeira é traduzir o mundo a seu redor: “translating the city’s culture to their parents,
even to their older sisters, they were both responsible for transmitting the essence of life in Toronto to the household” (p.
120). Cabe a eles também o peso de explicar para o mundo a vivência de seus pais (“all the uncomfortable moments of
explaining her parents to the world” [p. 227]).
Nesse sentido, se At Full Change of the Moon relata o processo histórico da diáspora e In Another Place Not
Here descreve uma experiência contemporânea da diáspora em termos femininos, What We All Long for se detém
sobre as conseqüências da diáspora em um contexto cosmopolita com o qual as personagens principais não podem se
identificar ou contra o qual não podem se colocar, gerando uma inerente ambigüidade com relação a esse espaço
contemporâneo de convergências e dissidências.
Os romances aqui analisados nos permitem vislumbrar um percurso da diáspora que permeia a obra da escritora
Dionne Brand. Partindo de um olhar teórico sobre a diáspora, em A Map to the Door of No Return, que se encontra
refletido nos romances ficcionais, Brand nos oferece três versões distintas desse processo de movência por meio de
vozes periféricas da sociedade contemporânea. Suas personagens são em sua maioria mulheres, estrangeiras, negras,
sujeitos deslocados, seres traduzidos – para utilizar um termo de Salman Rushdie. Distintos em suas escolhas
narrativas, imagens e temática, os romances aqui analisados têm em comum o enfoque em estórias centradas em
personagens que transitam por vários espaços e possuem múltiplas filiações. São, por isso, forçadas a renegociarem
suas identidades, apresentando diversas versões de uma identidade em trânsito, em constante deslocamento, sempre
por de-vir, por se tornar algo em relação aos momentos vividos e aos vários espaços ocupados.
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In: DINIZ, Dilma C. B.; BARROS, Maria Lúcia J. D. de; ALMEIDA, Sandra R. G.; DINIZ, Thaïs F. N. (Orgs.). Brasil-Canadá: Olhares Diversos. Belo Horizonte:
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