Código do trabalho: 6515983
IDENTIDADE E CULTURA NEGRA NA DIÁSPORA1
Esmael Alves de Oliveira
Universidade Federal de Santa Catarina
[email protected]
Ao iniciar esta análise sobre imagens que retratam a arte negra, faz-se
necessário, sobretudo, explicitar minha opção por uma “abordagem cosmopolita”, que
tende a encarar o conceito de diáspora como um “entre-lugares”, um convite para a
relação e que vê o “espaço” muito mais no nível das relações, dos fluxos, das rotas, dos
trânsitos, do que da fixidez estática. Tal necessidade de explicitação justifica-se à
medida em que é exatamente num contexto diaspórico, de fluxos comunicacionais,
que estas produções emergem e ganham significados. Neste sentido, uma pergunta se
impõe à esta escrita: como pensar a arte negra na contemporaneidade sob um ponto
de vista diaspórico?
Arte e diáspora
Inicialmente associada à experiência de dispersão e desterritorialização dos
judeus, a diáspora ganha significado como sendo um processo de perda, dor e
sofrimento. Tal conceito aos poucos passou por um processo de transformação e de
uma idéia restrita ao contexto judaico, para representar uma experiência vivenciada
por outros grupos sociais e sujeitos. Na diáspora não há uma noção que remeta a
permanência ontologizada, há todo um processo de desenraizamento. De um fato
histórico, passa-se para uma categoria analítica.
Movimento, criação experiência do cotidiano, interação locais e globais ganham
um lugar privilegiado para se falar da arte. Assim, pensar a relação entre arte e a
diáspora se apresenta como um desafio. Desafio este não pela dificuldade de
associarmos os dois conceitos e/ou realidades, mas, sobretudo, porque somos
1
Este artigo é resultado de uma reflexão surgida durante a disciplina Cultura e Identidade Negra,
ministrada pela Profa Dra Ilka Boaventura Leite, no PPGAS/UFSC durante do semestre 2010.2.
Apresentando inicialmente como trabalho de conclusão de disciplina, após algumas alterações, passa
agora a ser submetido ao presente congresso.
provocados a desconstruir noções como autenticidade, tradição, pureza, autoria,
originalidade, etc. Tradicionalmente as produções artísticas são encaradas sob um
ponto de vista essencializado e, neste sentido, precisariam retratar com a mais
“perfeita” exatidão aspectos de um determinado lugar, cultura, etnia. Assim,
sobretudo numa perspectiva mercadológica, a noção de pureza/autenticidade se
mostra preponderante e quanto maior o grau de “detalhes” que evoquem aspectos
culturais específicos de um grupo étnico ou região, maior sua aceitabilidade e
valoração mercadológica (CARVALHO, 2005). Contudo, pensar a arte num contexto
diaspórico é por em suspensão a noção de pureza e colocar em evidencia o caráter
híbrido das produções artísticas (HALL, 2003).
A trajetória de artistas contemporâneos evocam algumas noções comuns:
trânsito, fluxo, hibridismo. Neste sentido, faz-se necessário pensar antes uma arte
diaspórica do que uma arte na diáspora.
Propostas de pensar o caráter dinâmico da arte tem sido cada vez mais
recorrentes. É assim que podemos compreender o conceito de metamodernismo
trabalhado por Moyo Okediji (2000). Okediji desenvolve a noção de metamodernismo
como sendo uma experiência que produz formas míticas, psíquicas e somáticas. Deste
modo, o metamodernismo estaria intimamente ligado com um modo de produzir o
próprio corpo, ligado à uma “autonomia” criativa que subverte uma lógica
essencializada das identidades diaspóricas e coloca as experiências “fronteiriças” em
relevo. Talvez neste sentido, ou seja, das múltiplas possibilidades de construção de si
através da arte, é que Okediji fale em “multiple diasporation”. Segundo o autor,
haveria uma “diasporação múltipla” (multiple diasporation) que teria as seguintes
implicações: uma fragmentação, uma fratura do eu, uma arte trágica. Vale ressaltar
que neste processo, o corpo ganha uma forte centralidade e que tem haver também
com todo um movimento histórico de valorização de novas formas estéticas, advindas,
sobretudo, de mudanças ideológicas, econômicas, politicas, tecnológicas. Não é atoa,
portanto, que a fragmentação, o efêmero sejam aspectos cada vez mais valorizados na
arte contemporânea (MATESCO, 2009).
Com relação a esta experiência de diasporação, Okediji ressalta, sobretudo, os
aspectos dramáticos como sendo profundamente produtivos e fonte de grande
criatividade. Assim, antes de evocar uma experiência dramática de esterilidade
ocasionada pela situação do artista que vive uma condição de diáspora, a diasporação
mostra-se como uma estratégia criativa, ou em outras palavras, um mecanismo de
agência, pois permite que estes artistas criem e recriem sua condição dando novos
significados à sua própria experiência enquanto sujeitos deslocados e multisituados e
ao modo como são compreendidos seus vários pertencimentos. É assim que a
experiência de uma “decorporeality” e “acoloniality” podem ser entendidas.
Peffer (2003) também ressalta a dimensão fluída e questionadora da arte
diaspórica. É assim que destaca o caráter híbridos que cercam as produções artísticas
de autores diaspóricos. Segundo Peffer, pensar a arte num contexto diaspórico
permite que atentemos para o fato de que constantemente novos arranjos são feitos
pelos artistas bem como perceber que novas significações são dadas às experiências e
vivências advindas de uma experiência diaspórica. Neste sentido, na perspectiva de
Peffer, ser um artista diaspórico significa, sobretudo, “ser um interprete ativo” dos
símbolos
culturais,
que
se
opõe
dinamicamente
à
uma
postura/visão
provinciana/colonialista. Por trás das produções diaspóricas estão, portanto, uma
noção de uma “civilização mundial universal mais vasta e mais abrangente”.
O que fica evidenciado a partir da reflexão destes autores, é que o artista não é
mais encarado como um nativo (daqui) e nem como um estrangeiro (de lá), mas como
um híbrido positivado (à medida em que adota estratégicamente de forma crítica e
subversiva a sua própria “condição”). O artista na diáspora passa a ser problematizado
em dois sentidos complementares: como uma “identidade” transitória (contrapondose à uma noção de pertencimento essencializado) e como produtor de um “objeto”
tridimensional (aberto a múltiplas compreensões e à subversão dos padrões estéticos
colonialmente estabelecidos). Assim, arte diaspórica é compreendida para além das
fronteiras nacionais e continentais e está à volta com temas como: globalização,
transnacionalismo e pós-colonialismo.
As imagens como encruzilhadas
A partir da análise de 3 conjuntos de imagens, faço algumas considerações
sobre a relação entre arte e diáspora através da noção de encruzilhada. Se a arte pode
ser compreendida como um ato permanente de “inventividade” e a diáspora como a
sublevação da noção de lugar e pertencimento, acredito que a noção de encruzilhada,
como um espaço possível de confluências “contrastivas”, permite estabelecer uma
relação de “interdependência” entre ambas.
Tendo como centralidade a figura de um casal negro carregando duas crianças
negras num cenário que parece evocar a geografia de um lugar (um verde fazendo
alusão à flora e um azul fazendo referência a um mar), a primeira imagem trás em si a
representação de uma série de metáforas que servem para pensar uma possível
naturalidade/nacionalidade. Neste sentido, à luz das reflexões dos autores da diáspora
(GILROY, 2001; HALL, 2003), podemos compreender a imagem retratada como um
retrato metafórico.
∗
Imagem 1
O que estaria buscando ilustrar? Um retorno nostálgico? O resgate de uma
memória? Uma historicidade étnica? São muitas possibilidades de interpretação, mas
nenhuma suficientes em si mesma à medida que são apenas suposições a partir de um
lugar (no qual nos situamos e sob o qual estabelecemos o nosso ponto de vista). É
assim que podemos entender a pergunta feita por Kasfir (1992): “Quem cria significado
para a arte africana? Quem ou o que determina sua autenticidade cultural?”. Nosso
olhar etnocêntrico e ocidentalizado, durante muito tempo tendeu a encarar as
produções artísticas africanas como uma representação do “primitivo”, do “grotesco”,
do “exótico”. Não podemos perder de vista que se construiu toda uma “retórica”
ocidentalizante e colonialista para retratar essas experiências artísticas/estéticas. Pelo
∗
Crédito das Imagens: Ilka Boaventura Leite
contrário, não raro encontrar exotismos e inferioridades construídas sobre o “Outro”
(SAID, 2007)
Esta imagem à qual me remeto, evoca nesse sentido muitos significados que
estão para além da noção de origem. Talvez possa se tratar da representação de um
lugar, talvez a explicitação de uma experiência subjetiva, talvez retrate núcleo familiar
realmente existente, enfim, múltiplas possibilidades de compreensão. Conforme nos
aponta Gilroy, “As culturas do Atlântico negro criaram veículos de consolação através
da mediação do sofrimento. Elas especificam formas estéticas e contra-estéticas e uma
distinta dramaturgia da recordação que caracteristicamente separam a genealogia da
geografia, e o ato de lidar com o de pertencer” (GILROY, 2001: 13).
A imagem acima necessita ser compreendida sob um ponto de vista ampliado.
Ao relatar o contexto desta imagem, Ilka Boaventura Leite (2010) ressaltou que a
fotografia (tirada por ela) retrata um mural num bairro de maioria negra da cidade de
Chicago, EUA. O mural começa e termina com imagens de Elegba, o irixá das
encruzilhadas (Imagem 2). Ainda segundo Leite, o mural ilustra a viagem do xamã
através de diversos ambientes e no final ele volta à comunidade de saber originária.
Foi produzido sob os auspícios da Community Police Partnership for Youth, em
Chicago, um programa para retirar crianças da situação de risco. Tal contextualização
nos diz muito sobre o lugar da diáspora nesta imagem. Não se trata apenas, ou tão
exclusivamente, de uma representação de algo distante e abstrato. Pelo contrário é
uma narrativa que fala da experiência de ser negro num contexto americano
extremamente racializado e guetificado. É uma experiência que evoca histórias de vida
pessoal, trajetórias, modos de simbolização, apropriação, identificação. E tem uma
dimensão político-social.
Imagem 2
A questão da representação de Elegbá/Exu (o orixá das encruzilhadas) na
imagem é muito significativa. Lembrando as discussões trazidas por Stuart Hall (2003),
sobre o caráter contraditório de se falar de uma “cultura negra”, podemos perceber
um sentido “contestatório” contigo na imagem. A encruzilhada é o lugar dos possíveis,
do trânsito, da precariedade, do inesperado. Nas abordagens teóricas sobre a diáspora
são comuns imagens que evocam trânsito, fluxo: “culturas viajantes”; “rotas”;
“movimento”; “mar”; “navio”. Tudo isso para evocar o caráter contingente, situacional
e relacional da experiência diaspórica. A arte diaspórica chama a atenção para as
relações, os contatos, as trocas, enfim, para as encruzilhadas. Se o termo encruzilhada
retrata exatamente o lugar onde se cruzam duas ou mais ruas, estradas ou caminhos, a
experiencia diaspórica pode ser interpretada como uma permanente encruzilhada à
medida que não há mais uma noção de cultura pura e nem mais uma identidade
essencial.
Assim, a idéia de uma África como mãe (conforme retratada na imagem
fotográfica), como um “mito” de origem, pode ser entendida não apenas sob um
ponto de vista da “tradição”, mas, sobretudo, como uma experiência do hoje, um
modo de apropriação de uma memória coletiva que é individualizada, coletivizada,
historicizada, atualizada. A experiência do “ser negro” hoje no contexto americano não
é a mesma dos primeiros migrantes que chegaram das colônias para assumir seu
“lugar” na metrópole colonizadora (Hall, s/d). O reconhecer-se projetado na imagem
ou por ela afetado, também não é uma experiência homogeneizada. Pelo contrário, a
imagem pode despertar diferentes modos de identificação e neste sentido, pode ser
interpretada como uma experiência dialética de convenção e invenção (ROY WAGNER,
2010). Uma imagem idílica da África, que funda uma mecânica cultural do
pertencimento, um “african self”, é um ilusão ficcional (MBEMBE, s/d). Neste sentido,
acredito que o elemento contextual é fundamental. A imagem da família africana,
antes de ser uma tentativa de uma representação de uma nostalgia sobre o que
“fomos um dia”, revela, sobretudo, uma ressignificação de “eu”. É uma pintura que
expressa o hoje, as experiências do lugar, a relação com a memória coletiva, mas
também individual, os contrastes políticos, ideológicos, sociais, econômicos e culturais.
É uma imagem do hoje, do agora, do presente que se constrói do encontro
permanente consigo, com o outro e com/em diferentes lugares situacionais
(contextos).
Este processo de inventividade ou de “experiência metamoderna” (conforme
Okediji), é algo que provoca uma expansão de sentidos múltiplos e diversos. Esta
multiplicidade de experiências e significações é também evidenciada na imagem 3,
onde podemos observar uma pessoa negra “mascarada” com uma tartaruga. Em cena
muitos símbolos mítico-religiosos. A centralidade do corpo exaltado, sobretudo, na
postura e na pintura. Os elementos religiosos em relevo: no candomblé a tartaruga é
associada a Xangô, símbolo da justiça2. Por outro lado, a pintura corpórea evoca
também um aspecto cerimonial, lembra o Efun (rito de iniciação do Candomblé).
Numa perspectiva estética, a imagem pode ser associada aos novos movimentos
artísticos que tem o corpo como mise en scène. Conforme Matesco, “na segunda
metade do século XX o corpo é focalizado em happenings, ações, performances,
2
Xangô é o orixá dos raios, trovões, grandes cargas elétricas e do fogo. É viril e atrevido, violento e
justiceiro.
experiências sensoriais, fragmentos orgânicos, o que afirmaria a noção de um corpo
literal como singularidade da arte contemporânea” (2009: 7).
Imagem 3
Trata-se de uma obra do artista plástico Mario Cravo Neto. Nascido na Bahia
em 1947, o artista trás em sua trajetória uma identidade diaspórica. Tendo sido
influenciado pelo próprio pai, Mario Cravo Júnior (escultor), teve a oportunidade de
passar e viver por diversas cidades do mundo, como Berlim, Espanha, Itália, NY, e ter
contato com várias experiências artísticas e estéticas (foi aluno do artista plástico Jack
Krueger na Art Student League, um dos precursores da arte conceitual em New York).
Faleceu no dia 9 de agosto de 2009, em Salvador, Bahia, após uma enfermidade
prolongada.3
No site do Instituto Mario Cravo Neto é possível encontrar a explicitação das
marcas características de sua criação artística: “As fotografias em preto e branco e as
coloridas de Cravo Neto contêm características formais e espirituais associadas ao
candomblé, a prática afro-brasileira que remanesce como parte essencial do tecido
cultural da Bahia”.4 Ou seja, ainda que pertencendo e experienciando múltiplos
lugares, o artista nunca esqueceu sua relação com sua “terra natal”, sempre retratada
numa perspectiva corporificada.
3
Criado no ambiente artístico de sua cidade natal, inicia suas primeiras experiências em escultura e
fotografia aos dezoito anos de idade. Nesta época, o seu pai o escultor Mario Cravo Júnior, tendo sido
convidado para tomar parte no programa "Artists in Residence" patrocinado pela "Ford Foundation" e o
Senado de Berlim Ocidental, viaja para a Alemanha com toda a família. É em Berlim que Mario Cravo
Neto, além de dedicar a maior parte do seu tempo ao trabalho criativo, experimenta o contato com
artistas e intelectuais vindos de outras partes do mundo. As viagens à Espanha e à Itália empreendidas
por sua família e o contato direto com os artistas Emilio Vedova e o fotógrafo Max Jakob, tambem
residentes em Berlim, alargam os horizontes do jovem Mario Cravo Neto. Retorna ao Brasil em 1965 e
finaliza seus estudos secundários. Em 1968, muda-se para New York para estudar na Art Student League
sob a orientação do artista plástico Jack Krueger, um dos precursores da arte conceitual em New York.
Este período de dois anos foi de importância fundamental para o delineamento de sua vida futura como
homem e artista. São desta época, as séries de fotografias em cores intituladas "On the Subway" e as
fotografias em preto e branco relacionadas ao aspecto da solidão humana na grande metrópole. É em
seu estúdio no Soho que desenvolve, paralelo à fotografia, as esculturas em acrílico, baseadas no
processo do "terrarium" que envolve o crescimento de plantas vivas em ambientes fechados. Retorna
ao Brasil em 1970, vítima de um esgotamento nervoso e pela primeira vez mostra na IX Bienal
Internacional de São Paulo a instalação das esculturas vivas realizados em New York. Devido ao acidente
automobilístico no dia 31 de março de 1975 Mario Cravo Neto interrompe a sua atividade profissional e
é forçado a permanecer na cama com ambas as pernas quebradas. Após o período de um ano de
convalescença e, impedido de dar continuidade às suas pesquisas anteriores, direciona a sua atenção
para a fotografia de estúdio e começa a utilizar nas suas instalações os objetos achados, íntimos do seu
cotidiano. São desta fase a continuidade do trabalho que o artista vem mostrando no Brasil e no
exterior. Fora seu trabalho fotográfico em preto e branco, Mario Cravo Neto publica seus dois livros
mais recentes: SALVADOR, com cento e oitenta fotografias coloridas de página inteira, e texto de Jorge
Amado, Padre Antônio Vieira e Wilson Rocha. LARÓYÈ , com cento e quarenta fotografias em cores de
pagina inteira e texto de Edward Leffingwell e Mario Cravo Júnior. The Eternal Now (2002) é a mais
completa monografia da obra em preto e branco do artista, com 136 fotografias em preto e branco e
texto de Edward Leffingwell. Na Terra sob Meus Pés (2003), com 55 imagens digitais, em cores e em
preto e branco, e texto de Ligia Canongia, direciona o trabalho do artista a uma perspectiva ainda mais
abrangente. Trance-Territories (2004) contém 88 fotografias realizadas no Axé Opó Aganju e textos de
Ildásio Tavares e do autor. O Tigre do Dahomey – A Serpente de Whydah (2004) traz 59 fotografias
sobre a temática mencionada, com textos de Mario Cravo Junior, escultor e pai do fotógrafo, Ildásio
Tavares, poeta e Otun Oba Aré do Axé Opô Afonjá, e do próprio autor. Fonte:
<http://www.bolsadearte.com.br/artista/artista_popup.asp?var_codigo=166>. Acesso em 08 de
novembro de 2010.
4
Fonte: http://www.institutomariocravoneto.com.br/. Acesso em 08 de novembro de 2010.
Na imagem em questão, a única “obviedade” que temos é a do corpo negro, a
face, por outro lado esta oculta. Esta imagem mostra-se muito representativa da
experiência diaspórica: não há lugar para o “um”. Todos podemos nos colocar nesta
representação, pois é um corpo com uma cabeça que tem uma face encoberta. Ela
pode ser a face do antigo e do moderno, do negro e do asiático, do latino e do
europeu, do rico e do pobre, enfim, de múltiplos “Eus”. Há neste sentido, uma espécie
de “cosmopolitismo diaspórico” (PEFFER, 2003), ou uma universalidade da experiência
diaspórica (OKEDIJI, 2000). Okediji sobre o caráter “universal” da experiência
diaspórica, ou seja, ela não seria uma experiência exclusiva/restrita de alguns grupos
específicos, mas algo que foi e é experimentado por diferentes indivíduos de
diferentes etnicidades/nacionalidades. Deste modo torna-se compreensível a pergunta
que ele faz: “Is the entire world, therefore, not undergoing the diaspora age?”
(OKEDIJI, 2000: 159).
Por outro lado também podemos verificar a centralidade do corpo. Para Stuart
Hall (2003), o corpo é um dos elementos que caracteriza as tradições diaspóricas
(juntamente com o estilo e ritmo) e passa a ser entendido enquanto retórica, onde
vários repertórios são acionados para dar-lhe significação. Assim, podemos pensar o
corpo na arte diaspórica como metáfora da resistência, da hibridização, enfim, de
agência. Okediji também se detêm sobre as produções artísticas que colocam o corpo
como foco de significação. É o que ele chama de “metacorpo”. Há, assim, a evocação
da instabilidade, da “incoerência”, da “transgressão”, do “contraditório”, do
“deslocamento”. Segundo Okediji, um “metacorpo” que evocaria uma certa
instabilidade provocada pelo deslocamento permanente de si mesmo. Para o autor:
“Metacorpos significa o sentimento natural de perda que acompanha a normalização,
pelo falecimento, do pós-modernismo e das mitificações, causada pela migração
psíquica, deslocações e as relocações das figuras metamodernas - de diasporação. Há o
sentimento de perda causado pela transgressão da distância da terra natal.” (OKEDIJI,
2000: 160). O corpo torna-se tradução e metáfora.
Enfim, diante do exposto, retomamos a indagação inicial: Como podemos
pensar estas experiências estético-existênciais sob a perspectiva da diáspora? Diante
de um universo múltiplo de significados, onde perspectivas são entrelaçadas,
contextos interligados, identidades subvertidas e reconfiguradas, nossos modos de
entendimento, nossas categorias taxonômicas de interpretação, unidades de análise,
para se pensar as experiências advindas da diáspora, tornam nossa compreensão
essencializada, estática da “identidade”, um tanto obsoleta. Assim, nossa reflexão
sobre as produções artísticas diaspóricas, nos leva a repensarmos nosso próprio
entendimento sobre os sujeitos que agora são multisituados, multicentrados, entes em
derivas e devires constantes. Se por um lado, noções como raça, etnia,
nacionalidade/nacionalismo, não dão conta da complexidade destes fluxos culturais
(GILROY, 2001), por outro, estas expressões artísticas nos apontam para a fronteira do
instável, do precário, do indeterminável-possível que faz da diferença não mais algo a
ser “definível” (como antes de fazia com a dita “arte primitiva”), mas a ser
experienciado nos fronteiras de uma encruzilhada.
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Esmael Alves de Oliveira